Em um novo artigo publicado na JAMA Psychiatry, os pesquisadores não encontraram nenhuma diferença neurobiológica entre aqueles com o diagnóstico de depressão e aqueles sem diagnóstico. Entretanto, fatores socioambientais foram um poderoso preditor da depressão.
Os “Pontos-chave” do artigo resumem muito bem o fracasso neurobiológico:
A pergunta: Qual é a diferença neurobiológica entre indivíduos saudáveis e aqueles com depressão dentro das modalidades de dados de neuroimagem comuns?
Significado: Os resultados do estudo sugerem que os pacientes com depressão e controles saudáveis são notavelmente similares em relação às marcas neurais das modalidades de neuroimagem comuns.
O estudo incluiu 861 pessoas com o diagnóstico de depressão e 948 “controles saudáveis”. Os pesquisadores incluíram todas as principais medidas neurobiológicas: “RM estrutural, RM funcional baseada em tarefas (fMRI), conectividade baseada em atlas, e parâmetros fisiológicos e gráficos de rede baseados em voxel derivados de fMRI em repouso e imagens de sensor de difusão (DTI)”, bem como o escore de risco poligênico (PRS). Finalmente, eles incluíram variáveis ambientais, incluindo maus-tratos infantis auto-relatados e apoio social.
Todos estes testes biológicos não foram significativos em p < 0,01 uma vez que os pesquisadores controlaram o fato de que eles realizaram inúmeros testes estatísticos (o que aumenta a probabilidade de resultados fortuitos).
Mesmo que os testes não significativos fossem todos incluídos, as “assinaturas” de neuroimagem explicavam menos de 2% de se alguém recebeu ou não um diagnóstico de depressão. A precisão do uso da neuroimagem para identificar se alguém tinha ou não o diagnóstico, “mesmo sob condições estatísticas ideais”, estava entre 53,5% e 55,6%. (Para comparação, 50% seria adivinhar com base em uma moeda ao ar livre).
O PRS – uma medida de todos os genes possíveis que já foram teoricamente ligados à depressão – tinha uma precisão de 58,3%, ligeiramente melhor que qualquer teste de neuroimagem, mas, novamente, não muito melhor que o acaso.
Em contraste, as variáveis socioambientais “suporte social” e “maus-tratos infantis” estavam significativamente ligadas à depressão, e cada uma delas previu com mais de 70% de precisão.
Os pesquisadores não testaram outras variáveis socioambientais (por exemplo, trauma, abuso sexual, abuso físico, perda recente de um emprego, perda do cônjuge, insegurança econômica, intimidação). É provável que estas outras variáveis pudessem ser adicionadas às duas que foram testadas para aumentar substancialmente o valor preditivo.
De notar que as seções de resumo, discussão e conclusão do trabalho não mencionam, mesmo de passagem, o valor preditivo muito mais elevado dos fatores socioambientais.
Os pesquisadores teorizaram que a “heterogeneidade clínica” pode ser o problema por trás de sua falta de resultados. De acordo com essa teoria, há alguns pequenos grupos de pessoas que têm diferenças cerebrais, mas, como a “depressão” é um diagnóstico tão abrangente, os dados dessas poucas pessoas são afogados no “ruído” de todas as outras.
Por essa razão, eles realizaram uma variedade de análises de subgrupos, separando aqueles com depressão crônica, aqueles com depressão aguda, e aqueles sob medicação, por exemplo. No entanto, nenhuma de suas análises revelou um achado significativo.
Eles escrevem: “Análises extensivas de subgrupos revelaram que a heterogeneidade clínica por si só também não está ocultando diferenças potencialmente relevantes”.
No final, porém, em vez de argumentar a importância de fatores socioambientais na explicação da depressão, os pesquisadores dobram a aposta em neurobiologia. A conclusão deles nem sequer menciona o alto valor preditivo dos fatores ambientais, ao invés disso, concentrando-se em como a pesquisa futura deve melhorar os testes neurobiológicos:
“Nós recomendamos o seguinte: (1) todos os pesquisadores devem comunicar claramente a relevância de suas descobertas relatando medidas de utilidade preditiva ou de sobreposição distributiva além dos valores de P; se a utilidade preditiva não puder ser demonstrada, os pesquisadores devem declarar com precisão de que forma um efeito significativo avança o desenvolvimento de uma teoria neurobiológica quantitativa da depressão, e os interessados podem querer considerar novas abordagens para o projeto do paradigma fMRI; (2) a comunidade deve priorizar fenótipos mais abrangentes, incluindo fenótipos profundos de coortes existentes, a avaliação sistemática de novos fenótipos digitais, indo além de simples projetos de controle de casos, bem como avaliações longitudinais da dinâmica dos sintomas e eventos da vida; e (3) a principal questão do fraco desempenho preditivo precisa ser abordada; abordagens de aprendizagem de máquinas são cada vez mais utilizadas para investigar padrões multivariados de desvios e mapear informações biológicas de alta dimensão para fenótipos complexos. ”
A equipe de pesquisa incluiu 31 pesquisadores interdisciplinares, incluindo neurocientistas, geneticistas e cientistas da computação. Eles foram liderados por Nils Winter na Universidade de Münster, Alemanha.
A pesquisa deles é consistente com um trabalho recente do segundo neurocientista mais influente do mundo, Raymond Dolan, que escreveu que “a característica mais fundamental da psiquiatria é sua ignorância, que ela não pode definir com sucesso o objeto de sua atenção, enquanto suas tentativas de pôr a nu a etiologia de seus transtornos têm sido uma ladainha de fracassos”.
Em um editorial que acompanha o estudo de Winter et al., Lianne Schmaal, da Universidade de Melbourne, escreve,
“De uma perspectiva clínica, estes pequenos tamanhos de efeito tornam improvável que medidas individuais do cérebro forneçam biomarcadores de diagnóstico. Isto levanta a importante questão de saber se devemos continuar a buscar a identificação de marcadores neuroimagem clinicamente úteis para a depressão e, em caso afirmativo, como”.
Schmaal sugere incluir fatores socioambientais em medidas neurobiológicas no futuro:
“Talvez mais promissor para fins de classificação diagnóstica seja combinar medidas de neuroimagem com medidas ambientais, tais como trauma infantil e apoio social, que foram encontradas para explicar uma maior variação no fenótipo depressivo”.
Não está claro o que as medidas de neuroimagem acrescentariam, pois, mais uma vez, a equipe de pesquisa não encontrou resultados significativos.
Schmaal lidera os dois maiores grupos de neuroimagem do mundo, ENIGMA-MDD e ENIGMA-STB. Ela também é chefe de um programa que utiliza aprendizagem de máquinas, neuroimagem e dados genéticos no Orygen sem fins lucrativos.
Nota do editor: Mad in America cobriu anteriormente este estudo quando foi publicado no site arXiv de acesso aberto, mas agora apareceu, revisado e com um comentário editorial, na revista psiquiátrica de primeira linha JAMA Psychiatry.
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Winter, N. R., Leenings, R., Ernsting, J., Sarink, K., Fisch, L., Emden, D., . . . & Hahn, T. (2022). Quantifying deviations of brain structure and function in major depressive disorder across neuroimaging modalities. JAMA Psychiatry, 79(9):879-888. doi:10.1001/jamapsychiatry.2022.1780 (Abstract)
Schmaal, L. (2022). The search for clinically useful neuroimaging markers of depression—A worthwhile pursuit or a futile quest? JAMA Psychiatry, 79(9):845-846. doi:10.1001/jamapsychiatry.2022.1606 (Abstract)
Depois que Joanna Moncrieff e colegas publicaram seu estudo desmascarando a teoria da depressão baseada na baixa serotonina, o editor de Mad na Suécia, Lasse Mattila, escreveu ao Conselho Nacional de Saúde e Bem-Estar Social da Suécia, perguntando se este estudo afetaria as diretrizes nacionais da Suécia para o tratamento da depressão. Eis como o Conselho Nacional respondeu:
“O estado do conhecimento sobre os efeitos antidepressivos dos ISRSs não se baseia em teorias de [seus] mecanismos de ação, mas em estudos clínicos comparando os efeitos de medicamentos em pacientes com placebo. Portanto, o artigo não altera o estado do conhecimento sobre os efeitos antidepressivos clínicos dos ISRSs ou a base para a recomendação de antidepressivos nas diretrizes nacionais para transtornos de depressão e ansiedade”.
A diretoria nacional sueca está apontando para uma conclusão simples: ensaios aleatórios, controlados por placebo e pelo duplo-cego descobriram que os antidepressivos são “eficazes”, e é por isso que a diretoria recomenda o seu uso para tratar a depressão e a ansiedade. Em nível nacional, os medicamentos são vistos como um benefício positivo para a saúde pública.
Este é o mesmo entendimento “de base” que tem impulsionado a prescrição de antidepressivos nos Estados Unidos e em grande parte do mundo desenvolvido. Os ensaios aleatórios controlados por placebo (RCTs) são vistos como o “padrão ouro” para avaliar a eficácia de um tratamento medicamentoso, e seus resultados são percebidos na sociedade como fornecendo uma conclusão binária: ou um medicamento é comprovadamente eficaz ou não é. Se for o primeiro, então se entende que a presença desse medicamento entre os recursos disponíveis de um país sirva a um propósito de saúde pública: o medicamento deve ajudar a amenizar a carga de depressão e ansiedade na saúde pública.
Esta confiança nos RCTs como a palavra final sobre a eficácia dos antidepressivos – como se o Deus da ciência tenha estendido seu longo dedo e os declarado bons – é facilmente demonstrada como tendo produzido um público iludido sobre seus méritos e alheio aos danos que eles têm causado a nível de saúde pública.
Para entender por que isto é assim, basta investigar esta questão: Na natureza, muitas vezes existe uma capacidade natural de recuperação de uma “doença”. Será que os antidepressivos melhoram essa capacidade natural de recuperação?
Como até mesmo uma rápida revisão revela, os RCTs de antidepressivos não fornecem provas disso. Mesmo os dados limitados que eles fornecem são de qualidade duvidosa, uma vez que vêm principalmente de ensaios financiados pela indústria, e as descobertas não são preditivas dos resultados em cenários do “mundo real”.
A consagração dos RCTs, na verdade, leva a um tipo de cegueira social e médica. A comunidade psiquiátrica – e, por extensão, nossa sociedade – se concentra em um único aspecto dos dados arrancado dos RCTs: a diferença na “redução dos sintomas” entre grupos de medicamentos e placebo no final do período de estudo (normalmente seis semanas.) As metanálises de experimentos descobriram que a diferença média é “estatisticamente significativa”, e isso se torna fundamental. Esta conclusão permanece mesmo quando os pesquisadores apontam que a diferença nos sintomas é tão pequena que não tem significado clínico; que vem de ensaios que são tendenciosos de múltiplas maneiras; e que quando a exposição a eventos adversos é adicionada à equação risco-benefício, a maioriao dos pacientes sofre danos com o tratamento.
Essa é a miopia que ocorre quando os resultados dos RCTs são resumidos. Talvez ainda mais problemáticos são os achados de outros tipos de estudos – uma história de pesquisa que se estende por mais de 50 anos e que fala de antidepressivos piorando os resultados a longo prazo – que são descartados porque não provêm de um RCT. E voilá! Com os antolhos firmemente instalados, nosso fetiche pelo RCT leva a pronunciamentos definitivos de que os antidepressivos “funcionam”.
Esta mentalidade se tornou visível em 2018, quando um grupo internacional de pesquisadores publicou uma meta-análise de 522 ensaios aleatórios de 21 antidepressivos na revista Lancet. A análise deles foi centrada nas diferenças na redução dos sintomas no final dos ensaios de curto prazo e, embora os pesquisadores tenham concluído que havia um “risco moderado a alto de viés” em 82% dos ensaios, e que a diferença na redução dos sintomas fosse bastante pequena, eles concluíram que todos os 21 “eram mais eficazes do que placebo”.
Jornais e outros meios de comunicação tiraram a sua conclusão : Este estudo havia provado, de uma vez por todas, que os antidepressivos funcionam.
Esta foi a conclusão a que o Conselho Nacional de Saúde e Bem-estar da Suécia se referiu quando declarou que os estudos clínicos apoiavam sua recomendação de antidepressivos como um tratamento para a depressão. Os RCTs tinham mostrado isso, e essa era toda a evidência que precisava ser considerada.
RCTs em psiquiatria
A adoção do estudo “randomizado, bem controlado, duplo-cego” como padrão-ouro para avaliar os medicamentos data do final dos anos 40, quando os investigadores britânicos usaram um projeto de randomização para avaliar a eficácia da estreptomicina como tratamento para a tuberculose pulmonar. A randomização forneceu uma imagem clara dos benefícios do medicamento, e na década seguinte as variáveis “bem controladas” e o “duplo-cegos” foram adicionados à randomização para criar esta “metodologia de padrão-ouro”.
A reificação pela sociedade dos RCTs veio em 1962, quando a FDA começou a exigir que as empresas farmacêuticas provassem à FDA que seus medicamentos não eram apenas seguros, mas eficazes também. As provas de eficácia, declarou a FDA, deviam vir de “estudos adequados e bem controlados”.
Como método para avaliar a eficácia de um tratamento para uma doença infecciosa, um RCT tem valor óbvio, e muitas vezes pode emitir um juízo definitivo. Entretanto, mesmo antes que a FDA acrescentasse a exigência de eficácia, entendia-se que a aplicação desta ferramenta aos medicamentos psiquiátricos teria seus desafios. O RCT nasceu como uma forma de avaliar a eficácia de um tratamento para uma doença específica, mas os pacientes diagnosticados com esquizofrenia ou depressão não eram conhecidos por compartilharem uma patologia comum. Havia preocupações de que os medicamentos psiquiátricos, devido a seu efeito sobre os estados emocionais internos, levariam a uma quebra dos “fatores de controle” e do “duplo-cego” dos ensaios, e isto levaria a resultados tendenciosos. Mais importante, não estava claro como os resultados poderiam ser medidos, dado que não havia marcadores biológicos de “doença” que pudessem ser avaliados.
Entretanto, uma vez que a FDA adotou seu padrão de eficácia, tais preocupações foram postas de lado.
A psiquiatria teria que adotar um modelo de doença para testar seus medicamentos. Os psiquiatras desenvolveram “escalas de classificação” para fornecer uma medição numérica dos sintomas que se dizia serem característicos da depressão e outros transtornos psiquiátricos e, uma vez isso ocorrido, os antolhos sociais foram fixados firmemente. As escalas de classificação, naturalmente, não teriam a precisão que as medições de doenças físicas podem ter, e também seriam subjetivas por natureza, e, não obstante, o uso de uma escala viria a gerar um número específico e, de repente, uma pontuação de 14 em uma escala de classificação de 52 pontos poderia ser vista como uma avaliação precisa dos sintomas de um paciente deprimido.
Os ingredientes para uma miopia institucional estavam agora estabelecidos. A FDA, a profissão psiquiátrica e a sociedade considerariam a redução dos sintomas a curto prazo como evidência da eficácia de um medicamento, e mesmo que um medicamento psiquiátrico o fizesse apenas em um grau ligeiramente melhor do que “placebo”, ele seria considerado eficaz. O ensaio clínico de seis semanas seria uma prova de que o uso do medicamento na sociedade proporcionava um benefício.
RCTs controlados pela indústria
Antes dos anos 80, as empresas farmacêuticas tinham que vir literalmente com “chapéu na mão” para pedir aos médicos acadêmicos que conduzissem os seus ensaios. As bolsas do NIH eram a moeda do reino da medicina acadêmica antes daquela época, e os médicos acadêmicos, se concordassem em realizar os ensaios de medicamentos, insistiriam em projetar os ensaios, analisar os resultados e publicar os resultados. A independência dos médicos acadêmicos proporcionava uma segurança científica para os ensaios.
Por diversas razões, essa independência começou a desaparecer durante os anos 80, e isso foi particularmente verdadeiro na psiquiatria. O primeiro ISRS a chegar ao mercado foi o Prozac em 1988, e naquela época as empresas farmacêuticas já haviam afirmado o controle dos RCTs de seus medicamentos psiquiátricos, e isso se mantém desde então. As empresas farmacêuticas projetam os ensaios, analisam os resultados e decidem quais os resultados publicar.
Os resultados que emergem dos RCTs de antidepressivos servem às empresas farmacêuticas de duas maneiras: eles fornecem dados para aprovação pelo FDA e os resultados “estatisticamente significativos” que podem ser usados para comercializar os medicamentos. A questão importante para a sociedade é esta: Qual a relevância desses resultados para a prática clínica e sua contribuição para uma “base de evidências” para o uso desses medicamentos?
Nenhuma comparação com “resultados na natureza”
O grupo placebo em um ensaio com drogas deve representar os resultados que ocorrem no “curso natural da doença”. Entretanto, nos RCTs de antidepressivos, os pacientes que atualmente tomam tais medicamentos são regularmente inscritos e depois passam por uma brusca suspenção da medicação antes da randomização para o medicamento e o placebo.
Como tal, o grupo “placebo” é melhor descrito como um grupo de retirada de drogas. Assim, os ensaios não fornecem informações sobre a capacidade natural dos pacientes deprimidos de melhorar a curto prazo, e como os RCTs podem alterar essa taxa natural de recuperação. Para que os RCTs forneçam essa informação, os pacientes inscritos nos ensaios precisam ser virgens de medicação ou pelo menos estar sem antidepressivos por um longo período.
Os voluntários do estudo não são representativos de pacientes do “mundo real”
Para que os RCTs sejam úteis, eles devem fornecer evidências dos efeitos do medicamento em pacientes que serão receitados em ambientes clínicos. Entretanto, em ensaios de medicamentos psiquiátricos, as empresas farmacêuticas utilizam critérios de inclusão e exclusão para selecionar os pacientes mais propensos a responder bem ao tratamento. Os critérios de exclusão em ensaios com antidepressivos podem incluir comorbidades psiquiátricas, abuso de álcool, pensamentos suicidas e uma não resposta a um antidepressivo anterior.
“Os ensaios em humanos tendem a ter um valor preditivo limitado devido a problemas de extrapolação para a prática clínica de rotina. Tipicamente, apenas uma pequena amostra da população em perspectiva a ser exposta ao medicamento pode ser estudada em ensaios clínicos. Além disso, os pacientes que provavelmente serão expostos ao medicamento se ele for comercializado podem ser excluídos dos ensaios clínicos porque têm múltiplas patologias ou tomam uma série de medicamentos diferentes”.
Estudos descobriram que 60% a 90% dos pacientes do “mundo real” estão excluídos dos ensaios de antidepressivos financiados pela indústria. Isto levou John Rush, psiquiatra do Texas Southwestern Medical Center em Dallas, a observar em um artigo de 2004 que “os resultados clínicos a curto e longo prazo de pacientes externos representativos com transtorno depressivo maior não psicótico tratados na prática diária, tanto no setor privado quanto no público, ainda não estão bem definidos”.
O uso de medicações concomitantes confunde os resultados
Um RCT é projetado para isolar o efeito do medicamento específico que está sendo testado. Entretanto, em testes antidepressivos, o uso de medicamentos concomitantes é comum.
Esta prática apareceu no primeiro ISRS aprovado para comercialização (Prozac.) Nos ensaios clínicos iniciais da fluoxetina, os investigadores notaram que o medicamento estava induzindo “acatisia e inquietação” em uma porcentagem significativa de pacientes. Em resposta, Eli Lilly emendou seus protocolos para permitir “o uso de benzodiazepinas para controlar a agitação”. Os ensaios estavam agora testando esta possível combinação de drogas psiquiátricas, e como Dorothy Dobbs, de Eli Lilly, confessou mais tarde em tribunal, o uso de benzodiazepinas era “cientificamente ruim”, pois “confundiria os resultados” e “interferiria na análise tanto da segurança quanto da eficácia.”[1]
Entretanto, uma vez que a FDA aprovou o Prozac, as empresas farmacêuticas entenderam que esta prática “cientificamente ruim” seria agora aceitável. Em um artigo de 1997, os pesquisadores escreveram que “o uso concomitante de medicamentos é uma prática comum na maioria dos ensaios clínicos com medicamentos antidepressivos”.
A prática continua até hoje. Nos ensaios de vortioxetina, aprovados para comercialização em 2013, o protocolo permitia “o uso ocasional de zolpidem, zopiclone e zaleplon para insônia”. Três das 17 perguntas da Escala de Classificação Hamilton para Depressão (HRSD) avaliam a insônia, com pontuação coletiva para as três perguntas variando de 0 a 6. O uso concomitante de um comprimido para dormir no ensaio poderia reduzir este número, e assim ajudar a aumentar a “eficácia” do antidepressivo.
Isto significa que a eficácia do RCT não pode ser atribuída apenas ao antidepressivo, mas sim à combinação de medicamentos.
Os viéses do Projeto
As empresas farmacêuticas querem que os ensaios clínicos produzam resultados que ajudem seus novos medicamentos a ter sucesso no mercado. Seu objetivo não é um objetivo científico, mas sim de marketing.
Há inúmeras maneiras pelas quais as empresas farmacêuticas buscam atingir este objetivo. Elas podem projetar ensaios que favoreçam o medicamento e minimizem a evidência de efeitos colaterais, publicar apenas os ensaios que produzem resultados positivos, e fazer girar esses resultados.
Como observado acima, nos ensaios com antidepressivos, os pacientes que tomaram antidepressivos e outros medicamentos são inscritos no estudo e estes medicamentos são, então, retirados de forma bastante abrupta. Os ensaios freqüentemente empregam uma fase de “introdução ao placebo” antes da randomização. Aqueles que melhoram durante esta fase – por exemplo, os que respondem com placebo – não são randomizados no estudo. Esta exclusão dos que respondem a placebo produz uma coorte inteira de pacientes que podem estar apresentando sintomas de abstinência na “linha de base”, e a randomização os separa em um grupo de placebo que pode continuar a apresentar tais sintomas, e em um grupo colocado de volta em um medicamento similar ao que eles tinham tomado.
Os participantes tratados com a droga em estudo, ou uma droga similar, antes da inclusão e posteriormente randomizada para a droga, muito provavelmente a tolerarão e experimentarão menos danos em comparação com uma população sem drogas (danos reduzidos no grupo da droga).
Os sintomas de retirada no grupo placebo podem ser mal interpretados como sinais de agravamento da depressão ou como eventos adversos (redução dos benefícios e aumento dos danos no grupo placebo).
Os participantes já tratados com um antidepressivo e posteriormente randomizados para o medicamento em estudo podem ter experimentado sintomas de abstinência durante a entrada em placebo que são então aliviados pelo medicamento em estudo. Pode ser mal interpretado como uma melhora da depressão, em oposição a um alívio dos sintomas de abstinência (aumento dos benefícios no grupo do medicamento).
Um protocolo pode incorporar qualquer número de elementos projetados para produzir resultados favoráveis ao medicamento. Por exemplo, um protocolo pode procurar reduzir a evidência de efeitos colaterais exigindo que os pacientes relatem espontaneamente os efeitos colaterais, ao invés de fazer com que os investigadores perguntem aos pacientes sobre tais sintomas. Ou mesmo se for utilizada uma lista de verificação de sintomas, a lista pode não incluir eventos adversos que surgiram durante os estágios iniciais dos testes, mas que não fazem parte dos efeitos colaterais conhecidos desta classe de drogas.
A FDA está bem ciente deste viés. Os revisores da FDA de “Novas Formas de Uso de Drogas” frequentemente apontam as formas em que os testes são tendenciosos em favor do medicamento do fabricante, ou como os possíveis efeitos colaterais foram minimizados. A tomada de consciência desta agência apareceu nas revisões da FDA sobre o Prozac.
Em seus resumos escritos sobre a fluoxetina, os revisores da FDA observaram que sua eficácia sobre o placebo era marginal, e que era menos eficaz que o medicamento comparador nos ensaios, a imipramina. Sua revisão dos relatos de casos revelou que a fluoxetina poderia causar uma longa lista de efeitos colaterais preocupantes -psicose, mania, insônia, nervosismo, confusão, tontura, disfunção de memória, tremores e coordenação motora prejudicada – e eles puderam ver que mesmo esta lista de efeitos colaterais era incompleta. Eli Lilly, escreveu David Graham, da FDA, tinha “participado em grande escala da subnotificação” dos danos que a fluoxetina poderia causar. [2] Outro revisor, Richard Kapit, apresentou esta conclusão de fundo: a fluoxetina “pode afetar negativamente os pacientes com depressão “[3].
Entretanto, a FDA deu ao Prozac seu selo de aprovação e, ao fazê-lo, estabeleceu um padrão para a aprovação de antidepressivos pela agência: mesmo que os medicamentos tivessem sido mal administrados em testes, ou mesmo que a empresa tivesse procurado esconder os efeitos adversos, a FDA lhe daria luz verde.
De fato, quando a Pfizer procurou a aprovação da sertralina (Zoloft), os revisores da FDA observaram que ela não havia demonstrado eficácia em quatro dos seis ensaios, que havia um quinto que era “questionável”, e que apenas um que era positivo. Paul Leber, da FDA, ao mesmo tempo em que insistia que o Comitê Consultivo de Drogas Psicofarmacológicas da FDA aprovasse a sertralina, confessou que não tinha “nenhuma idéia do que constitui prova de eficácia, exceto o que nós, como Comitê, concordamos, de forma ad hoc [base], que precisa haver”. O Comitê Consultivo, acrescentou ele, “poderia nos dizer: ‘olha, nós achamos que os padrões neste campo são terríveis'”. [4]
Tudo isso é bem conhecido. Em uma meta-análise de 2017 de 131 RCTs de antidepressivos, pesquisadores dinamarqueses concluíram que todos os 131 “estavam com alto risco de viés”. Os investigadores do Nordic Cochrane Collaboration Center, que analisaram novamente os dados dos 522 estudos do estudo Lancet, concluíram que não havia nenhum que estivesse livre de um risco de viés, e que havia um “alto risco de viés” em 414 ensaios. Como resultado, concluíram que a “certeza da evidência” na metanálise Lancet era “muito baixa”.
Os antidepressivos não proporcionam um benefício clinicamente significativo acima do placebo
O resultado primário em RCTs de antidepressivos concentra-se em uma única medição: Ao final do estudo (geralmente seis semanas), os sintomas no grupo dos antidepressivos diminuíram mais do que no grupo dos placebo, e verificar se a diferença é estatisticamente significativa.
Relatórios de ensaios financiados pela indústria apresentam regularmente um gráfico que parece mostrar uma diferença notável na redução dos sintomas entre o antidepressivo e o placebo. Aqui, por exemplo, um gráfico que mostra os resultados de um ensaio americano de vortioxetina, que foi aprovado pela FDA em 2013. Os sintomas foram medidos na Escala de Depressão Montgomery-Asberg de 60 pontos (MADRS).
Este gráfico, após exame minucioso, mostra que os sintomas diminuíram cerca de 14,4 pontos para aqueles a quem foram dados 20 mg de vortioxetina, 13,0 pontos no grupo de 10 mg, e 10,8 no grupo de placebo. A diferença de 3,6 pontos entre a dose de placebo e 20 mg foi estatisticamente significativa e, portanto, evidência da eficácia do medicamento a essa dose. (A dose de 10 mg não passou o corte “estatisticamente significativo”).
Entretanto, o gráfico serve como uma ilusão de eficácia. A diferença de sintomas é traçada contra um eixo de 18 pontos e, em lugar da escala MADRS completa de 60 pontos. Os pesquisadores determinaram que uma diferença de 6 pontos nos escores MADRS é a “diferença mínima” que é clinicamente significativa (ou mesmo clinicamente perceptível.) Se você traçar os resultados com uma escala de 60 pontos, você pode ver imediatamente porque isto é assim.
Esta falta de significado clínico tem se mostrado repetidamente em meta-análises de ensaios com antidepressivos. Em 2008, Irving Kirsch e colegas revisaram 47 ensaios de quatro ISRSs, e constataram que havia uma redução média de 9,6 pontos no HRSD de 52 pontos no grupo de antidepressivos, e 7,8 pontos no grupo de placebo, uma diferença de 1,8 pontos. O Instituto Nacional de Excelência Clínica estabeleceu uma diferença de 3 pontos no HRSD como a diferença mínima que poderia ser vista como clinicamente significativa.
As meta-análises mais recentes chegaram à mesma conclusão. O estudo dinamarquês de 131 ensaios encontrou uma diferença média de 1,94 pontos, que, observaram os investigadores, “estava abaixo de nosso limiar predefinido de significância clínica de três pontos”. O Centro Nórdico Cochrane, em sua revisão do documento da Lancet, determinou que a diferença média entre o medicamento e o placebo seria de 1,97 pontos. Eles também observaram que “os clínicos são incapazes de detectar reduções na escala de classificação de depressão Hamilton de três pontos ou menos”.
Assim, a própria meta-análise que os jornais alardearam como provando, de uma vez por todas, que os antidepressivos funcionam, na verdade, falava de uma diferença, entre o medicamento e o placebo, tão pequena que os clínicos não seriam capazes de notá-la, e isto estava em testes conhecidos por serem tendenciosos contra o placebo.
A maioria dos pacientes em RCTs continua deprimida
Embora os pacientes tratados com um antidepressivo no RCT apresentem uma redução nos sintomas, no final, a maioria permanece deprimida. Por exemplo, no ensaio de vortioxetina, a pontuação média do MADRS para aqueles que receberam a dose de 20 mg – a dose que foi considerada eficaz – foi de 18. Esta pontuação está no topo da faixa de pontuação para depressão leve (pontuação 7 a 19).
Embora Kirsch e colegas em seu relatório de 2008 não tenham fornecido uma pontuação composta de pontuação final para os pacientes em sua meta-análise, eles relataram pontuação final em 35 dos ensaios, e se a média dessas pontuações, a média para o braço antidepressivo é de 16,0, ela é categorizada como “leve a moderadamente deprimida”.
As análises de tamanho de efeito revelam que 8 de 9 pacientes tratados com um antidepressivo sofrem “danos”
Os dados do RCT, quando cuidadosamente analisados, fornecem um método para avaliar uma equação de “benefício/ dano” para os pacientes. Kirsch, os investigadores dinamarqueses e outros calcularam que a diferença de 2 pontos nos sintomas equivale a um tamanho de efeito de 0,3. Um tamanho de efeito de 0,3 significa que há uma sobreposição de 88% no espectro de resultados para o grupo do medicamento e placebo.
Graphic by Kristoffer Magnusson, http://rpsychologist.com/de/cohend/
Um cálculo relacionado que os investigadores fazem é o “número necessário para tratar” (NNT): quantos pacientes devem ser tratados com um medicamento para produzir uma resposta adicional além do placebo? Com um tamanho de efeito de 0,3, que se traduz em um NNT de 9. Assim, a equação de risco/benefício que emerge dos RCTs de antidepressivos: Um dos nove pacientes receberá um benefício além do placebo. Os outros oito não receberão nenhum benefício adicional, mas estão expostos aos efeitos adversos do medicamento. Isto os coloca na categoria “prejudicados”. A natureza dos possíveis danos pode ser vista em uma compilação dos efeitos adversos do medicamento, juntamente com os perigos associados ao uso de antidepressivos a longo prazo.
O ponto de partida
Como pode ser visto, os RCTs de antidepressivos não fornecem provas de que os antidepressivos “funcionam”.
Não há comparação com resultados em pacientes não tratados; ensaios financiados pela indústria produzem relatos exagerados de eficácia; os resultados não são vistos como preditivos de resultados em cenários do mundo real; o grupo placebo é um grupo com medicamentos retirados; o benefício do medicamento sobre o “placebo” não tem significado clínico; e os cálculos do NNT revelam que oito de nove pacientes poderiam ser vistos como “prejudicados” pelo tratamento.
No entanto, o brilho dos RCTs é tal que nenhuma dessas deficiências e falhas descarrilha a descoberta binária – que os antidepressivos são mais “eficazes” do que placebo – é o que orienta o uso desses medicamentos pela sociedade. De fato, se voltarmos ao relatório Kirsch, aqui está uma ilustração do único aspecto dos dados em que a psiquiatria e a sociedade estão confiando para afirmar que as drogas são um tratamento eficaz para a depressão:
Os dados que são ignorados
Os dados do RCT são um elemento de um grande pool de dados que existe a respeito do impacto dos antidepressivos. Os vários “tipos” de dados, quando vistos separadamente, são como peças de um quebra-cabeças sobre as quais se encontra, e qualquer avaliação da base de evidência dos antidepressivos deve procurar ver como elas se encaixam entre si. Qual é o quadro geral?
Em meu livro Anatomia de uma Epidemia, e em dois ensaios anteriores para o Mad in America, juntei as peças do quebra-cabeças de uma maneira narrativa que contou como, antes da chegada dos “antidepressivos”, a depressão era entendida enquanto um transtorno episódico, e que depois que os antidepressivos se tornaram o tratamento de primeira linha a depressão começou a ter um curso crônico, com os pesquisadores apresentando uma explicação biológica para o porquê dos medicamentos poderem ter esse efeito.
O que se segue são simplesmente as peças do quebra-cabeças que existem na literatura médica (além dos RCTs), sem qualquer esforço da minha parte para tirar uma conclusão. Esta é a informação que a psiquiatria – e, portanto, a sociedade – indica quando coloca nosso foco social nos dados do RCT. O objetivo aqui é iluminar a miopia desse foco, e como ele mal serve à nossa sociedade.
O curso natural da depressão
O curso natural de uma “doença” serve como uma linha de base necessária para se avaliar se uma intervenção é útil. Por exemplo, imagine que na natureza, 50% dos pacientes atingidos por uma doença tenham se recuperado no final de um ano. Uma intervenção médica precisa produzir uma taxa de recuperação maior do que a necessária para proporcionar um benefício. Se uma intervenção médica levar a uma taxa de recuperação de um ano de 40%, os médicos – se não tiverem uma noção da taxa de recuperação natural – provavelmente verão sua intervenção como eficaz. Os 40% dos pacientes que se recuperaram também o verão dessa forma. No entanto, de fato, a intervenção médica reduziu a taxa de recuperação, um fato que permanecerá oculto sem o conhecimento do curso natural do transtorno.
Antes da introdução de antidepressivos, a depressão era entendida como um transtorno bastante incomum. Pesquisas comunitárias dos anos 30 e 40 descobriram que menos de um em mil adultos sofria de depressão clínica a cada ano. Estudos de pacientes hospitalizados contavam como os sintomas depressivos diminuíam regularmente com o tempo, e muitas vezes nunca mais voltavam.[5]
Em 1972, Samuel Guze e Eli Robins da Faculdade de Medicina da Universidade de Washington em St. Louis revisaram a literatura científica e determinaram que em estudos de acompanhamento que duraram dez anos, 50% das pessoas hospitalizadas por depressão não tiveram nenhuma recorrência de sua doença. Apenas uma pequena minoria das pessoas com depressão unipolar – uma em dez doentes crônicos – concluiu. [6]
Esta foi a evidência científica que levou os funcionários da NIMH e outros, durante as décadas de 1960 e 1970, a falar otimisticamente sobre o curso da doença a longo prazo. Aqui está uma amostra de tais pronunciamentos: [7]
“A depressão é, de modo geral, uma das condições psiquiátricas com melhor prognóstico para uma eventual recuperação com ou sem tratamento. A maioria das depressões são autolimitadas”. -Jonathan Cole, diretor do Centro de Serviço de Psicofarmacologia do NIMH, 1964.
“No tratamento da depressão, sempre se tem como aliado o fato de que a maioria das depressões terminam em remissões espontâneas. Isto significa que em muitos casos, independentemente do que se faça, o paciente eventualmente começará a melhorar”. -Nathan Kline, diretor de pesquisa no Rockland State Hospital em Nova York, 1964.
A maioria dos episódios depressivos “seguirá seu curso e terminará com uma recuperação praticamente completa sem intervenção específica”. – Dean Schuyler, chefe da seção de depressão do NIMH, 1974.
De fato, a remissão espontânea era tão comum que Schuyler concluiu que seria difícil “julgar a eficácia de uma droga”. Talvez um medicamento pudesse encurtar o tempo de recuperação, já que a remissão espontânea em pacientes hospitalizados muitas vezes levava muitos meses para acontecer, mas seria quase impossível melhorar a alta taxa de remissão – 85% ou assim no final de um ano.
Resultados em pacientes do mundo real tratados com antidepressivos
Nos anos 70, as benzodiazepinas foram a droga de escolha para “ansiedade” e outros desconfortos emocionais. Os benzodiazepínicos caíram em desuso por causa de suas qualidades viciantes, e logo os antidepressivos se tornaram a droga de escolha, e isto foi particularmente verdadeiro após a chegada do Prozac em 1988.
Durante os anos 90, os psiquiatras nos Estados Unidos e em outros lugares ampliaram o espectro de resultados associados aos antidepressivos. Um terço de todos os pacientes unipolares não respondiam às drogas e tinham resultados pobres a longo prazo. Outro terço eram “respondedores parciais” aos medicamentos e, em testes de curto prazo, apareceram como sendo ajudados pelo medicamento. O problema era que estes pacientes recaíam com freqüência posteriormente. O terço final foi enviado a curto prazo, mas apenas cerca da metade ficou bem.
O livro didático de 1999 da Associação Psiquiátrica Americana resumiu este espectro de resultados:
“Apenas 15% das pessoas com depressão unipolar experimentam um único episódio da doença”, observou o livro, e para os 85% restantes, a cada novo episódio, as remissões se tornam “menos completas e novas recidivas se desenvolvem com menos provocação.” [8]
Por volta dessa época, a NIMH financiou três estudos para avaliar os resultados de um ano de pacientes “do mundo real” tratados para a depressão. Em dois dos estudos – o primeiro um estudo com 118 pacientes ambulatoriais no Texas; o segundo o grande estudo STAR*D – todos os pacientes foram tratados com antidepressivos, e ambos os protocolos foram projetados para maximizar as taxas de remissão. O terceiro foi um estudo de 84 pacientes para avaliar o “curso de depressão sem tratamento“. As taxas de remissão ao final de um ano foram as seguintes:
O investigador principal do estudo “sem tratamento”, Michael Posternak, concluiu que os resultados refletiam os resultados relatados por Emil Kraepelin quase um século antes. Kraepelin havia observado que os episódios depressivos não tratados geralmente eram esclarecidos em seis meses, e este novo estudo, escreveu ele, forneceu “talvez a confirmação metodologicamente mais rigorosa desta estimativa”.
Os pobres resultados que apareceram nos dois estudos financiados pelo NIMH foram replicados em outros cenários do “mundo real”. Por exemplo, um relatório de Minnesota sobre os resultados no mundo real de 260.000 pacientes tratados por depressão de 2011 a 2014, por provedores médicos em todo o estado, encontrou taxas de remissão igualmente baixas. No final de cada ano, apenas cerca de 5% dos pacientes estavam em remissão. Outros 10% foram considerados como respondedores ao tratamento antidepressivo (queda de 50% nos sintomas.) Os 85% restantes foram classificados como cronicamente deprimidos.
Dois estudos publicados em 2022 completam este quadro de maus resultados em pacientes do mundo real:
Em um estudo internacional de 2022 com 1.279 pacientes, que foi financiado por Lundbeck e conduzido por investigadores com numerosos vínculos com empresas farmacêuticas, apenas 25% responderam ao tratamento antidepressivo. Os demais ou não responderam (34%) ou foram considerados “resistentes ao tratamento” depois de não responderem duas vezes a um antidepressivo (41%).
Em um estudo com 1.944 pacientes em 22 centros médicos do Departamento de Assuntos de Veteranos (VA), que envolveu testes para possíveis interações genético-drogativas com a esperança de que pudesse aumentar as taxas de resposta, a taxa de resposta composta para os dois grupos foi de 30%, com os testes genéticos provando ser de pouco valor.
Resultados medicados vs. não medicados
Resultados medicados vs. não medicados
Durante os últimos 25 anos, pesquisadores na Europa, Canadá e Estados Unidos realizaram um pequeno número de “estudos naturalistas” que avaliaram os resultados da depressão com base no uso de antidepressivos. Essas investigações constataram regularmente que os pacientes medicados são mais propensos à depressão e ao comprometimento das funções.
Aqui estão resumos de dez desses estudos.
1) “Characteristics and Significance of Untreated Major Depressive Disorder” (1995). Investigadores financiados pela NIMH relataram que, durante um período de seis anos, aqueles que foram “tratados” pela doença tinham três vezes mais probabilidade de sofrer uma “cessação” de seu “papel social principal” e quase sete vezes mais probabilidade de ficar “incapacitados”.
Os pesquisadores da NIMH escreveram: “Os indivíduos não tratados aqui descritos tinham doenças mais leves e de duração mais curta (do que aqueles que foram tratados) e, apesar da ausência de tratamento, não mostraram mudanças significativas no status socioeconômico a longo prazo”.
2.) “Outcome of Anxiety and Depressive Disorders in Primary Care” (1997). Em um estudo britânico com 148 pacientes deprimidos, o grupo nunca-medicado viu seus sintomas diminuir em 62% em seis meses, enquanto os pacientes tratados com medicamentos experimentaram apenas uma redução de 33% nos sintomas.
3. “The Effects of Detection and Treatment on the Outcome of Major Depression in Primary Care” (1998). Um estudo da Organização Mundial da Saúde sobre pacientes deprimidos em 15 cidades do mundo descobriu que, ao final de um ano, aqueles que não estavam expostos a medicamentos psicotrópicos desfrutavam de uma saúde geral muito melhor, seus sintomas depressivos eram muito mais suaves e era menos provável que ainda estivessem “doentes mentais”.
4. “Treatment of Depression Related to Recurrence” (2000). Em um estudo retrospectivo de 10 anos de resultados, os investigadores holandeses descobriram que 76% dos que não foram tratados com um antidepressivo recuperaram e nunca recaíram, em comparação com 50% dos que foram prescritos com um antidepressivo.
5. “Pattern of Antidepressant Use and Duration of Depression-Related Absence from Work” (2003). Os investigadores canadenses identificaram 1.281 pessoas que ficaram com uma incapacidade de curto prazo entre 1996 e 1998 porque perderam dez dias consecutivos de trabalho devido à depressão. Aqueles que não receberam a prescrição de um antidepressivo voltaram ao trabalho, em média, em 77 dias, enquanto o grupo medicado levou 105 dias para voltar ao trabalho. Apenas 9% do grupo não medicado passou para incapacidade prolongada, em comparação com 19% daqueles que tomaram um antidepressivo.
6. “The Impact of Antidepressant Treatment on Population Health” (2004). Em um estudo de cinco anos com 9.508 pacientes deprimidos no Canadá, os pacientes medicados estavam deprimidos em média 19 semanas por ano, contra 11 semanas para aqueles que não tomavam os medicamentos. Os investigadores canadenses concluíram que “o tratamento antidepressivo pode levar a uma deterioração no curso a longo prazo dos transtornos de humor”.
7. “Continuation and Maintenance Use of Antidepressants in Recurrent Depression” (2008). Pesquisadores na Holanda acompanharam 172 pacientes durante dois anos após sua depressão ter entrado em remissão, e descobriram que durante esse acompanhamento a taxa de recidivas foi de 60% para aqueles que tomaram continuamente um antidepressivo, 64% para aqueles que tomaram intermitentemente um, e 26% para aqueles que não tomaram nenhum antidepressivo.
8. “Impact of Duration of Antidepressant Treatment on the Risk of a New Sequence of Antidepressant Treatment” (2011). Pesquisadores franceses, em um estudo com 35.000 pacientes do primeiro episódio, descobriram que quanto mais tempo os pacientes eram tratados com um antidepressivo antes de se retirarem do medicamento, maior a taxa de recidiva. Aqueles que foram expostos a um antidepressivo por mais de seis meses tinham mais que o dobro do risco de recaída do que aqueles expostos por menos de um mês.
9. “Poorer Long-Term Outcomes Among Persons with Major Depressive Disorder Treated with Medication” (2017). Uma análise dos resultados de 3.294 pessoas que foram diagnosticadas com depressão e seguiram por nove anos revelou que aqueles que tomaram antidepressivos durante esse período tiveram sintomas mais graves ao final de nove anos do que aqueles que não tomaram tal medicação. A diferença nos resultados não poderia ser explicada por nenhuma diferença na gravidade inicial da depressão.
10) “Antidepressant Use Prospectively Relates to a Poorer Long-Term Outcome of Depression” (2018). Um estudo prospectivo de 521 pacientes deprimidos na Suíça, que foram acompanhados dos 20 aos 50 anos de idade, descobriu que tomar um antidepressivo em algum momento durante esse período estava associado a resultados piores no final do estudo, mesmo quando se controlava os sintomas iniciais e outros fatores.
Efeitos adversos
O NNT que emerge dos RCTs de antidepressivos informa como oito dos nove pacientes deprimidos tratados com um antidepressivo não recebem nenhum benefício do medicamento (em termos de redução de sintomas além do placebo), e ainda estão expostos aos perigos do medicamento.
A lista de efeitos colaterais conhecidos associados aos antidepressivos é longa. Ela inclui numerosos efeitos adversos físicos, emocionais e psiquiátricos. O maior risco, entretanto, é que a exposição a um antidepressivo leve a um agravamento a longo prazo: uma conversão para transtorno bipolar, disfunção sexual persistente, e depressão crônica. Dificuldades na retirada de antidepressivos aumentam a probabilidade de que uma prescrição inicial venha a evoluir para o uso a longo prazo.
Há muito se sabe que os antidepressivos podem desencadear um episódio maníaco. Este é um “efeito adverso” que pode converter a depressão “unipolar” em um diagnóstico bipolar. Em um trabalho de 2002, pesquisadores da Universidade de Yale quantificaram o risco durante um período de dez meses: um de cada 12 pacientes deprimidos expostos a antidepressivos se converterá em bipolar, que é o dobro da taxa de conversão em pacientes deprimidos não expostos aos medicamentos.
Até 75% dos usuários de ISRS relatam algum grau de disfunção sexual – baixa libido, secura vaginal, disfunção erétil, e orgasmos menos intensos. Como os pesquisadores irlandeses escreveram, “os efeitos sexuais adversos parecem ser a regra, e não a exceção com os ISRSs”. Além disso, mesmo após a retirada de um antidepressivo ISRS, a disfunção sexual pode persistir indefinidamente, uma condição conhecida como PSSD: disfunção sexual pós-ISRS.
O risco de desenvolvimento do PSSD não é conhecido. A disfunção sexual pode, naturalmente, ser devastadora para o indivíduo. De uma perspectiva da evolução, o PSSD pode ser visto como uma pessoa que está “menos em forma” pela droga. Uma nação de pessoas em ISRSs não seria uma população próspera.
Como observado acima, na era pré-antidepressiva, a recuperação de um episódio depressivo era esperada. Após a introdução dos antidepressivos, o curso de longo prazo da depressão – como o revelado pelos estudos clínicos – começou a ter um curso mais crônico. No início dos anos 90, os pesquisadores relataram que 10% a 15% dos pacientes diagnosticados com depressão grave tinham se tornado “resistentes ao tratamento”. Este mau resultado continuou a aumentar à medida que os ISRSs foram popularizados, de tal forma que uma pesquisa de 2006 concluiu que quase 40% dos pacientes deprimidos que tomaram antidepressivos por um período mais longo acabaram “resistentes ao tratamento”.
Com a depressão correndo um curso mais crônico, e quase 40% dos pacientes acabando “resistentes ao tratamento”, o psiquiatra italiano Giovanni Fava e um punhado de outros propuseram uma explicação biológica para este declínio nos resultados: O ISRS e outros antidepressivos induzem mudanças no cérebro que tornam os pacientes mais vulneráveis biologicamente à depressão.
Em um artigo de 2011, El-Mallakh, especialista em transtornos do humor na Faculdade de Medicina da Universidade de Louisville, resumiu a hipótese:
“Um estado depressivo crônico e resistente ao tratamento é proposto para ocorrer em indivíduos que são expostos a antagonistas potentes de bombas de recaptação de serotina (ISRSs) por períodos de tempo prolongados. Devido ao atraso no aparecimento deste estado depressivo crônico, ele é rotulado como disforia tardia. A disforia tardia manifesta-se como um estado disfórico crônico que é inicialmente aliviado de forma transitória – mas que acaba por se tornar uma medicação antidepressiva que não responde. Os antidepressivos serotonérgicos podem ser de particular importância no desenvolvimento da disforia tardia”.
Ele concluiu que a disforia tardia induzida pela droga poderia “continuar por um período de tempo após a interrupção do medicamento, e pode não ser reversível”.
Enquanto muitas pessoas expostas a antidepressivos são capazes de deixar as drogas sem muita dificuldade após um período mais curto de uso, o uso prolongado pode levar a uma “síndrome de descontinuação” quando as pessoas tentam sair do medicamento. Os sintomas de abstinência, os pesquisadores escreveram em um artigo de 2022, incluem sintomas semelhantes aos da gripe, ansiedade, capacidade emocional, diminuição do humor, irritabilidade, crises de choro, tonturas, tremores, fadiga e sensações de choque elétrico. Os sintomas geralmente persistem por semanas e podem durar meses ou mesmo anos. Metade dos pacientes que sofrem efeitos de abstinência classificam os sintomas como “graves”.
Resultados da Saúde Pública
Se os antidepressivos “funcionassem”, o público poderia esperar que o aumento da prescrição desses medicamentos nos últimos 30 anos teria reduzido a “carga social da depressão”. Eles teriam proporcionado um benefício de saúde pública: a carga econômica diminuiria (pois mais pessoas poderiam trabalhar); a taxa de suicídio diminuiria; e as taxas de incapacidade diminuiriam.
No entanto, o oposto provou ser verdade.
Uso de antidepressivos
O uso de antidepressivos tem aumentado constantemente desde que o Prozac foi introduzido em 1988. A porcentagem de adultos americanos com 12 anos ou mais que usaram um antidepressivo no “mês anterior” saltou sete vezes durante este período de 30 anos.
Carga econômica da depressão
Em 1990, a “carga econômica” da depressão nos EUA foi calculada em 116 bilhões de dólares (em dólares de 2020). Esta cifra é composta de gastos diretos em terapia e medicamentos, bem como cuidados residenciais nas instalações; custos relacionados ao suicídio; e custos no local de trabalho (perda de produtividade devido à depressão.) Esta carga econômica aumentou três vezes desde então, atingindo 326 bilhões de dólares em 2018 (em dólares de 2020).
Taxas de suicídio
Há uma série de fatores associados à mudança das taxas de suicídio, com a posse de armas e o desemprego, dois fatores principais. A taxa de suicídio diminuiu nos anos 90, e depois aumentou de forma constante durante as duas décadas seguintes.
Espera-se que os antidepressivos sirvam como um fator que reduza a taxa de suicídio. Entretanto, dois grandes estudos de coorte de pacientes deprimidos em ambientes de cuidados primários (um nos EUA e outro no Reino Unido) relataram taxas de suicídio muito mais altas para pacientes deprimidos que tomaram um antidepressivo. Um terceiro estudo no Reino Unido de pacientes deprimidos do primeiro episódio encontrou uma taxa de suicídio muito mais alta enquanto tomavam o medicamento ou durante as primeiras quatro semanas após o abandono do medicamento (período de abstinência do medicamento).
Da mesma forma, um grande estudo com veteranos americanos diagnosticados com um problema de saúde mental encontrou uma taxa de suicídio 50% mais alta naqueles que foram tratados para o problema.
O boom bipolar
O rápido aumento na prescrição de ISRSs nos anos 90 foi acompanhado por um notável aumento na prevalência de doenças bipolares em nossa sociedade. No curto período de uma década (1992-2003), a prevalência da bipolaridade em adultos quase dobrou, e aumentou 40 vezes na juventude.
Embora a expansão dos limites diagnósticos tenha contribuído para este espantoso aumento da doença bipolar, uma pesquisa com membros da Depressive and Manic-Depressive Association constatou que 60% dos que tinham um diagnóstico bipolar tinham inicialmente apresentado uma grande depressão e tinham se tornado bipolares após a exposição a um antidepressivo.
Em nível de saúde pública, o aumento do número de pacientes “bipolares” revela um agravamento da saúde mental da sociedade. Bipolar é entendido como um transtorno mais grave do que a depressão ou qualquer outro transtorno de humor; diz-se que 85% sofrem de “deficiência grave”.
Ascensão das taxas de Incapacidade
Dois dos estudos citados acima na seção sobre “resultados medicados versus não medicados” encontraram taxas mais altas de incapacidade para pacientes deprimidos que tomaram antidepressivos em comparação com aqueles que não tomaram. A nível social, esses estudos serviram como uma previsão de que a incapacidade devido a transtornos do humor aumentaria com o aumento do uso de antidepressivos. Esse aumento apareceu rapidamente nos anos 90, quando os ISRSs se tornaram os medicamentos mais vendidos.
Enquanto a porcentagem de adultos americanos que sofriam de transtornos de humor não mudou de 1991 para 2002, a porcentagem que recebeu tratamento, mudou. Em outras palavras, a prevalência de transtornos de humor permaneceu a mesma; a diferença foi que o número de adultos tratados por um transtorno de humor aumentou de 11,2 milhões em 1991 para 21,4 milhões em 2002. Como isto ocorreu, o número de adultos que receberam um pagamento federal por incapacidade – SSI ou SSDI – devido a um transtorno de humor saltou de 292.000 para 940.000. No curto espaço de uma década, a taxa de incapacidade para adultos com transtornos de humor subiu de 1 em 188 para 1 em 69.
Em 2016, um grupo de trabalho no Parlamento do Reino Unido me convidou para fazer uma apresentação sobre o aumento da incapacidade devido a transtornos de humor, já que isso estava ocorrendo também no Reino Unido. Naquela época, eu coletava dados sobre aumentos no uso de antidepressivos e taxas de incapacidade em seis países.
Tais são os resultados de saúde pública associados ao aumento do uso de antidepressivos nos últimos 30 anos. A carga econômica da depressão mais do que dobrou; a taxa de suicídio aumentou constantemente durante as duas últimas décadas; houve um “boom bipolar”, e as taxas de incapacidade devido a distúrbios de humor dispararam em país após país que adotou o uso generalizado das drogas.
Os Pedaços de um Quebra-cabeça
Como escrevi anteriormente, os vários tipos de provas relativas ao impacto dos antidepressivos são como as peças de um quebra-cabeça. A esperança é que as peças se encaixem para apresentar uma imagem clara “baseada em evidências” de seus méritos.
Neste caso, aqui estão as peças do quebra-cabeça:
Nos RCTs, os antidepressivos proporcionam uma redução “estatisticamente significativa” maior dos sintomas a curto prazo, em comparação com o placebo.
A diferença na redução dos sintomas é tão pequena que é clinicamente insignificante e não seria perceptível por clínicos ou pacientes.
A maioria dos RCTs são financiados pela indústria e tendenciosos de maneiras que favorecem o medicamento.
Com base nos cálculos do “tamanho do efeito”, oito de nove pacientes não se beneficiarão do tratamento antidepressivo (além do placebo), e ainda assim serão expostos a efeitos adversos associados ao seu uso.
Na era pré-antidepressiva, a depressão era entendida como um curso episódico. A maioria das pessoas poderia esperar uma recuperação. Uma vez que os antidepressivos foram popularizados, a depressão começou a ter um curso mais crônico.
Estudos no “mundo real” de pacientes descobrem que apenas 25% a 30% “respondem” a um antidepressivo, e que as taxas de remissão ao final de um ano são muito mais baixas (abaixo de 15%).
Um estudo destinado a avaliar as taxas de recuperação em pacientes “sem tratamento” relatou que 85% estavam bem no final do ano, semelhante aos resultados da era pré-antidepressiva.
Estudos naturalistas que avaliam os resultados de acordo com o uso de antidepressivos descobrem regularmente que o grupo medicado tem resultados piores: é mais provável que permaneçam sintomáticos e mais provável que fiquem incapacitados pelo distúrbio.
No nível da saúde pública, o peso dos transtornos depressivos tem aumentado acentuadamente durante os últimos 30 anos.
A conclusão de que o trabalho com “antidepressivos” vem da peça número um do quebra-cabeça . . . Os RCTs provaram que os antidepressivos produzem um benefício “estatisticamente significativo” em relação ao placebo a curto prazo, e o resto da informação pode ser descartada. A desconstrução dos RCTs é colocada no fundo da conversa, e o restante das informações é descartado como inferior aos estudos dos RCTs.
Tal é a miopia que orienta o uso de antidepressivos pela sociedade.
Um quadro muito diferente, é claro, emerge quando as peças do quebra-cabeças dois a nove são incorporadas à “base de provas”. Essas peças se juntam para contar os danos causados e, pode-se argumentar, os danos em uma vasta escala. Mesmo os dados da RCT agora acrescentam a essa conclusão: eles falam de drogas que, em testes tendenciosos por projeto para favorecer a droga, não conseguem fornecer um benefício clinicamente significativo a curto prazo. Se você tirar os antolhos, a literatura científica conta uma história muito robusta sobre a eficácia dos antidepressivos e o seu impacto sobre a saúde pública.
Notas de Rodapé
J. Cornwall, The Power to Harm (New York: Viking, 1996):147-48.
D. Graham, “Sponsor’s ADR submission on fluoxetine dated July 17, 1990,” FDA document, September 1990.
P. Breggin, Talking Back to Prozac (New York: St Martin’s Press, 1994): 90
R. Whitaker and L. Cosgrove, Psychiatry Under the Influence (New York: Palgrave Macmillan, 2015):75
R. Whitaker, Anatomy of an Epidemic (New York: Broadway Books, 2010):150-153.
D. Schuyler, The Depressive Spectrum (New York: Jason Aronsom, 1974) 49.
Whitaker, ibid, 153.
R. Hales, editor, Textbook of Psychiatry (Washington D.C.: American Psychiatric Press, 1999):547.
Nota do editor: Este ensaio foi encomendado pelo Mad in the UK, submetido ao Mad in America para publicação simultânea como um Relatório MIA, e agora está sendo apresentado aqui por nós.
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Após a publicação da revisão, não encontrando nenhuma evidência para a teoria da baixa serotonina (“desequilíbrio químico”) da depressão, no mês passado, eu estive cada vez mais consciente das opiniões fortemente defendidas e muitas vezes opostas veiculadas nas mídias sociais. Há múltiplas vozes neste campo conhecido amplamente por ” saúde mental”, com profissionais clínicos, pesquisadores, profissionais com experiência enquanto paciente psiquiátrico, usuários de serviços e a grande mídia, todos com visões aparentemente distintas.
Pensei que poderia ser útil falar com algumas das figuras-chave neste debate, por vezes polêmico. Das supostas associações com a extrema-direita, ao que as experiências que chamamos de “doença mental” realmente são, desafiei algumas das maiores vozes do lado amplamente “crítico” do debate para descobrir no que elas realmente acreditam.
Acabou sendo uma tarefa desafiadora, tentando determinar o que os críticos realmente pensam – ou até mesmo o que eles querem ser chamados – uma vez que se tornou evidente que não existe um conjunto fixo e universal de posições. O movimento amplamente crítico da psiquiatria não existe como um monólito e, como se espera de um grupo de pensadores contrários aos rótulos, muitos deles não querem ser chamados de psicólogos críticos, “antipsiquiatras” (veja por que isso é problemático aqui), ou mesmo “críticos” enquanto tal! Portanto, vou me referir às pessoas com as quais falei simplesmente enquanto “críticos”.
Uma coisa que encontrei em todas as minhas conversas foi a ênfase em trabalhar em parceria e encontrar inspiração nos sobreviventes e pessoas com experiência de vida. Como alguém com a sua própria história de sofrimento psíquico, fiquei satisfeita em saber que este movimento não se refere apenas aos profissionais; a experiência dos usuários de serviço esteve no centro de tudo o que os críticos falaram, assim como a importância de se contar com as evidências mais atualizadas e precisas.
Tudo me parece suficientemente sensato, então por que todo o debate na mídia, e por que eu continuo ouvindo falar da extrema-direita?
(Ao escrever este post, Charlotte falou com a Dra. Lucy Johnstone, James Barnes, Professor Peter Kinderman, Jo Watson, Professor John Read, Dr. Sami Timimi, e vários outros).
Você realmente acredita que a doença mental não existe?
Esta é uma afirmação comum e confusa. Todos com quem falei enfatizaram que aceitam completamente a existência e a validade do sofrimento, do desespero e da angústia das pessoas. (Como não?)
O que eles estão desafiando é a idéia de que estas experiências e divergências podem ser melhor explicadas em termos de doenças médicas ou “transtornos”. Esta é uma questão bastante diferente, mas que muitas vezes é confusa para pessoas que nunca questionaram (ou mesmo tiveram a oportunidade de questionar) as suposições profundamente sustentadas sobre o sofrimento psíquico que são amplamente difundidas na sociedade.
Desafiar o modelo médico não é de forma alguma a mesma coisa que negar as experiências das pessoas. Esta seria uma visão sem sentido para os muitos críticos cujas opiniões se baseiam em um extenso trabalho clínico e, em alguns casos, também em suas próprias experiências pessoais. O que é desafiado é a idéia de que estas experiências e diferenças muito reais possamm ser melhor entendidas enquanto uma doença médica ou “transtorno”.
Como disse um crítico: “Ninguém trabalharia em serviços de saúde mental se pensasse que as pessoas estavam de alguma forma inventando estas experiências”!
Ok, estamos chamando isso de sofrimento psíquico, mas não de transtorno ou desordem. Então, será que os críticos são todos a favor da proibição das palavras e de uma linguagem policialesca?
Algumas das pessoas com quem falei estiveram envolvidas na elaboração de orientações para jornalistas, enquanto outras propuseram abordagens não-diagnósticas nos serviços. Nenhum crítico quer que as pessoas sejam instruídas sobre como devem descrever a si mesmas e suas experiências, quer utilizem termos médicos ou qualquer outro vocabulário. Mas ironicamente, como eles me disseram, uma visão em particular – a explicação médica ou diagnóstica atual – é rotineiramente imposta às pessoas. É contra esta imposição que todos os críticos se opõem, apesar de suas diferenças em alguns outros aspectos; todos eles disseram que o que lhes preocupava era a falta de escolha de perspectiva e o fato de ser medicalizado quase se tornou a condição prévia para receber qualquer tipo de apoio ou cuidado de saúde mental.
A atual explicação médica e diagnóstica do sofrimento e da angústia está profundamente enraizada nos serviços, na mídia e nas mentes do público em geral. Os críticos estão preocupados que o uso inquestionável de termos como “doença mental” ou “transtorno” leve a um certo conjunto de pontos de vista, o que encerra outras possibilidades.
O objetivo de promover termos mais neutros, especialmente na mídia, é abrir, e não fechar, espaço para preferências pessoais. Como está hoje, às pessoas que entram nos serviços é muito raramente oferecida qualquer escolha de linguagem, perspectiva ou compreensão culturalmente sensível. Neste sistema, pode ser arriscado ou até mesmo punitível (por exemplo, dizer-lhes que “não têm discernimento”) ter opiniões legítimas, porém alternativas.
Uma das maneiras de promover a escolha é usar uma linguagem – como “ouvir vozes”, “extrema angústia”, “baixo humor” – que não assume nenhum modelo em particular.
E quanto ao meu diagnóstico?
Os críticos com quem falei explicaram como eles acreditam que existem formas muito melhores a longo prazo de se planejar os cuidados e oferecer benefícios, acomodações e serviços do que o atual sistema de diagnósticos psiquiátricos. Muitos deles defendem a reforma, ou versões melhores do que temos; outros apresentam uma visão mais radical que se baseia em princípios fundamentalmente diferentes, tais como o Power Threat Meaning Framework.
Mas todos eles reconhecem que no sistema que temos agora, não importa suas falhas significativas, as pessoas atualmente precisam de diagnósticos para acessar serviços e benefícios essenciais, e que a obtenção de apoio deve ser priorizada. “Tenho passado muitas horas preenchendo formulários com pessoas”, disse-me um clínico, “A diferença é que tenho uma discussão honesta sobre qual termo é mais provável que lhes dê o que precisam, e é mais aceitável para eles”. Eu não apenas lhes digo que ‘têm’ X condição psiquiátrica”.
Os críticos respeitam o fato de que algumas pessoas (tanto usuários de serviços quanto profissionais) consideram os diagnósticos úteis e significativos. Eles também estão cientes de que outros acham os rótulos de diagnóstico profundamente desmotivadores e estigmatizantes, e uma barreira a longo prazo para se lidar com suas dificuldades reais. Os rótulos, o estigma e a ameaça estereotipada podem ser experimentados como angustiantes ou prejudiciais à esperança e a uma auto-imagem positiva.
E para alguns dos críticos, há uma questão maior em relação à validade científica do diagnóstico, o que coloca a questão se devemos caminhar para uma maneira diferente de explicar a angústia e o sofrimento psíquico em suas manifestações. Todos os críticos acreditam que precisamos de melhores alternativas, o que levaria a serviços que operem em um modelo mais humano. No mínimo, as pessoas – tanto profissionais como usuários de serviços – precisam ser conscientizadas de que existem maneiras-não-médicas de entender suas experiências. Eles também têm o direito de terem acesso a essas alternativas. Entretanto, estamos muito longe dessa posição mais democrática, apesar do reconhecimento aberto de que as categorias do DSM não são cientificamente válidas.
E quanto à minha medicação? Você é contra o uso de medicamentos psiquiátricos?
Antes de tudo, se você estiver tomando medicamentos psiquiátricos, nós o instamos a não sair abruptamente deles e a procurar o conselho de seu prescritor (além de qualquer outra coisa, estes são medicamentos poderosos que podem ter graves efeitos de retirada).1
Todos com quem falei concordaram que os medicamentos têm um papel e podem ser úteis ou até mesmo experimentados como salva-vidas por alguns. Como um deles disse, “eu nunca conheci pessoalmente alguém que quisesse proibir o uso de drogas psiquiátricas, ou que as descrevesse como maléficas, ou que envergonhasse as pessoas por tomá-las”. Estas alegações contribuem para uma polarização inútil de pontos de vista, que nos impedem de ter um diálogo construtivo sobre como usar drogas com o maior benefício e o menor dano”.
No entanto, todos eles estavam muito preocupados (assim como muitos profissionais seniores dos principais serviços) com o uso exagerado e indevido de drogas psiquiátricas – a sobreavaliação dos benefícios, a desconsideração dos riscos e a falta de consentimento informado adequado. Os críticos sugerem que estes fatores estão relacionados ao enorme aumento na prescrição e uso de drogas psiquiátricas. Todos eles foram categóricos em afirmar que informações adequadas e precisas são fundamentais para que as pessoas possam tomar suas próprias decisões informadas.
Os entrevistados também lamentaram a desinformação – o recente desmascaramento do amplamente divulgado mito do “desequilíbrio químico” é um exemplo, mas os críticos apontaram que o mesmo mito é promovido sobre os chamados “antipsicóticos”. A evidência da eficácia de muitos medicamentos psiquiátricos é menos impressionante do que parece. Alguns críticos têm se envolvido extensivamente em campanhas de conscientização sobre danos potenciais, inclusive sob a forma de graves efeitos de abstinência, e a necessidade de conselhos e apoio.
De fato, alguns achavam que estes nomes (“antipsicóticos” e “antidepressivos”) são em si mesmo muito enganadores; como uma pessoa me disse, “costumavam ser chamados de grandes tranquilizantes, o que na verdade os descrevia muito melhor. Não há um efeito específico sobre a psicose, da mesma forma que não há um efeito específico sobre a depressão”. Todos os críticos conhecem pessoas da comunidade dos “danos prescritos”, que sem dúvida foram mais prejudicadas do que ajudadas. Eles querem muito mais honestidade sobre o que as drogas podem e não podem fazer, e, portanto, que hajam escolhas mais seguras para os usuários de serviços, tanto no início como ao sair de suas drogas.
Então, onde entra a biologia em tudo isso?
A maneira como isto foi explicado para mim é que toda a experiência humana tem aspectos biológicos – quer estejamos falando de sofrimento emocional, felicidade ou qualquer outro estado de espírito. Não há nada de único no sofrimento emocional ou angústia aguda nesse sentido.
O próprio fato de que a biologia está envolvida não justifica chamar algo de “doença” ou “transtorno”, onde a suposição é que a causa principal é algo que está funcionando mal no cérebro ou no corpo, em vez de algo que deu errado na vida de uma pessoa ou no ambiente mais amplo.
Esta é a base do slogan “Em vez de perguntar o que há de errado comigo, pergunte o que aconteceu comigo – socialmente, relacionalmente, culturalmente, politicamente, etc.”. Em outras palavras, os críticos argumentam – e dizem que há muitas evidências para apoiá-los – que muitas formas de sofrimento emocional se tornam inteiramente compreensíveis quando lidas cuidadosamente no contexto pleno da vida social, cultural e relacional de uma pessoa. Obviamente, isto tem grandes implicações para os melhores caminhos a seguir.
Eu li online que os críticos são aliados da extrema-direita?
Esta alegação veio à tona recentemente, e os críticos são unânimes em considerá-la como ridícula. Na verdade, eles acreditam que ela só pode ser entendida como uma tentativa desesperada de difamar os seus pontos de vista.
O que descobri foi que as pessoas críticas aos cuidados psiquiátricos tradicionais tendem a ser politicamente de esquerda, enfatizando a justiça social e a necessidade de serviços melhores e mais bem financiados para as pessoas em dificuldade. Um crítico explicou como eles acreditam que temos direito a serviços sociais melhores e mais justos, apoio financeiro e acomodações vitais para pessoas em circunstâncias difíceis ou com necessidades particulares. Na opinião deles, deveríamos oferecer benefícios sociais e financeiros baseados não na presença ou ausência de “transtornos” disputados, mas nas necessidades de uma pessoa (agora isso é o que eu chamo de socialismo).
Recentemente, políticos e comentaristas de direita tentaram cooptar linguagem, pontos de vista e pesquisas a partir da perspectiva “crítica” para sua própria agenda. Um crítico apontou como exemplo as formas estreitas de TCC sendo transformadas no projeto “de costas para o trabalho” do IAPT. Eles se opõem fortemente a estas formas de cooptação de idéias. Entretanto, fizeram questão de salientar que são as idéias médicas (que algumas pessoas têm genes defeituosos ou são inerentemente defeituosas) que têm sido mais freqüentemente mal utilizadas desta forma – por exemplo, em apoio à eugenia ou, mais recentemente, em políticas conservadoras a favor das armas (que culpam os tiros com armas de fogo aos “doentes mentais” e não às leis frouxas sobre armas de fogo).
No geral, todos com quem falei pareciam confiantes de que ninguém realmente leva esta acusação a sério. No entanto, eles viram estas acusações, por mais estranhas que fossem, como quase inevitáveis. “Não se consegue uma mudança fundamental sem um recuo”, disse uma delas.
Ouvi dizer que os críticos são anti-vaxx, anti-ciência e envolvidos na Cientologia?
Este é outro ponto que os críticos contestam fortemente. Vários deles são pesquisadores acadêmicos e científicos proeminentes, trabalhando em universidades, e todos com quem falei se sentem também confiantes de que suas opiniões são apoiadas pelas melhores evidências; evidências que, se promulgadas, levariam a políticas e práticas de saúde mental mais justas, humanas, eficazes e compassivas. Todos os críticos afirmaram que apóiam os cuidados baseados em evidências e isso inclui a vacinação.
Este foco na evidência empírica foi reiterado para mim várias vezes, com outros críticos argumentando que muitas práticas atuais no cuidado biomédico da saúde mental parecem em oposição às melhores e mais atualizadas evidências – por exemplo, ECT (veja abaixo) e publicidade recente sobre a teoria do desequilíbrio químico. De fato, é precisamente esta ênfase na abordagem científica que os críticos usam como argumento para reformar a psiquiatria tradicional – porque grande parte dos cuidados de saúde mental biomédicos dominantes é contrária à ciência e não é, de fato, apoiada pelas evidências.
“A ciência, além de apoiar fortemente a vacinação e outras respostas de saúde pública a pandemias virais, também nos diz que muitas das reivindicações da psiquiatria tradicional não são verdadeiras”, disse uma pessoa.
Ninguém com quem eu falei era anti-vax, nem quis passar tempo debatendo o que eles viam como uma tentativa irrelevante de desacreditá-los”. Da mesma forma, ficou claro que eles não têm absolutamente nenhuma ligação com a Cientologia.
Os críticos são anti-ECT e querem que seja banido
Esta foi uma das questões em que as pessoas tiveram opiniões diferentes; alguns sentem, e têm dito durante anos, que não há lugar para a ECT, enquanto outros acreditam que ela ainda pode ser apropriada em situações claramente definidas se as evidências a suportarem. Todos concordam que a única maneira de resolver a questão é fazer uma revisão completa do ECT. Isso significa reavaliar a pesquisa sobre sua eficácia e examinar de perto as evidências para as alegações de que é um tratamento miraculoso e que salva vidas. Significa examinar como o ECT é usado – o que em muitos casos não está de acordo com as diretrizes da NICE. E também significa investigar a possibilidade de danos – inclusive danos ao cérebro – causados pelo ECT e assegurar que as pessoas estejam dando consentimento plenamente informado. Os defensores acreditam firmemente que é inaceitável que o credenciamento de clínicas ECT seja opcional e estão surpresos que esta idéia seja negada ou resistida. Como um deles me disse: “Certamente é do interesse de todos que as intervenções sejam realizadas com segurança e devidamente regulamentadas”.
A questão chave aqui parece ser se as pessoas estão recebendo honestamente as informações de que precisam para dar o consentimento informado. Portanto, sim, as pessoas que criticam os cuidados psiquiátricos tradicionais estão preocupadas com o fato de que as evidências que apoiam o uso de ECT simplesmente não estão lá, mas o foco de sua campanha atual é uma revisão da prática, não uma simples “proibição”.
Tudo é causado por traumas
Ninguém com quem falei acredita que toda a angústia e sofrimento psíquico seja causada por eventos traumáticos; na verdade, eles acham a idéia óbvia e ridícula. Alguns deles criticaram a rápida difusão do termo “trauma” na medida em que ele corre o risco de perder seu significado. O que eles dizem é que os sistemas de saúde mental normalmente ignoram, negam e falham em lidar com as experiências traumáticas quando elas realmente estão presentes.
Outro crítico enfatizou a distinção entre traumas de eventos agudos do tipo “TEPT” e traumas relacionais/complexos contínuos. “Traumas relacionais/complexos”, disse este crítico, “são tipos de trauma sutis e insidiosos que são muito mais comuns, e que muitas vezes desempenham um papel no sofrimento psíquico, mas isto é muito diferente de dizer que as pessoas devem ter tido eventos horríveis em seu passado”. Os detratores muitas vezes derrubam propositalmente esta distinção, para fazer parecer como se os críticos estivessem dizendo algo claramente falso.
Muitos usuários de serviços têm testemunhado sobre como o rótulo de “transtorno de personalidade limítrofe” tem sido usado para silenciar e culpar as pessoas que sobreviveram a eventos extremamente difíceis. Isto não é aceitável. Também precisamos de maneiras de entender como o sofrimento pode surgir mesmo sem “traumas” óbvios. O Power Threating Meaning Framework foi citado para mim como uma abordagem mostrando como contextos mais amplos – como a pobreza, a discriminação e a vida em sociedades competitivas, fragmentadas e desiguais – podem colocar todos nós em risco, algo que provavelmente veremos mais como o custo de vida e as crises de combustível pioram.
É um jogo de poder; trata-se de psicólogos que atacam psiquiatras para substituí-los
Os críticos contestaram fortemente esta acusação comum. Eles apontaram que várias pessoas de seu grupo informal são psiquiatras e pessoas que querem que sua própria profissão seja reformada, e que muitos psicólogos utilizam abordagens diagnósticas. Como acima, alguns deles viram isso como uma forma de se desviar das questões reais. A maioria deles tem vasta experiência clínica e enfatizaram a importância de trabalhar construtivamente ao lado de colegas de todas as origens. Como disse um deles: “As únicas pessoas que me acusam de atacar psiquiatras são aquelas que nunca se encontraram ou trabalharam comigo”.
Voltando às questões principais, todos os críticos concordam que a psiquiatria tem sérias falhas conceituais, com impactos muitas vezes prejudiciais na prática. Eles enfatizaram que isto não significa que as pessoas estão universalmente decepcionadas pelo sistema de saúde mental, mas significa, na opinião deles, que muitos não são ajudados, ou mesmo danificados e re-traumatizados, e que os resultados clínicos têm sido uniformemente pobres durante o período de domínio do modelo médico.
Comecei dizendo que este não é um grupo homogêneo, nem têm uma agenda precisa ou compartilhada para seguir em frente. Ao contrário, eles tendem a apontar para uma série de projetos e iniciativas em andamento, muitos dos quais vêm do movimento de usuários/sobreviventes do serviço, como a Hearing Voices Network. Um deles disse: “Nenhum de nós tem a resposta, e não podemos ver como o campo vai se desenvolver”. Mas espero que um dia as perspectivas críticas sejam vistas como simples, de senso comum humano”.
***
De minhas conversas com certos críticos, fiquei impressionado com o quanto eles falam apaixonadamente sobre igualdade, querendo o melhor para os usuários dos serviços e a importância de fundamentar suas crenças na pesquisa empírica. Apesar do que seus detratores sugerem, eles são um coletivo informal de clínicos, acadêmicos, escritores, cientistas e jornalistas, alguns dos quais têm experiência pessoal de sofrimento psíquico e de uso de serviços, que só querem reformar os modelos existentes com base em evidências e o que seja o melhor para as pessoas afetadas. Todos com quem falei sofreram conseqüências difíceis na carreira por causa de suas opiniões, incluindo suspensão, perda de empregos e obstáculos à promoção. Entretanto, isto não diminuiu sua confiança, determinação e compromisso com o avanço e a defesa de uma reforma humana e eficaz da saúde mental.
É claro que estas pessoas operam em uma arena altamente controversa. Mas não encontrei a rigidez, polarização e silenciamento que você poderia esperar se simplesmente reunisse suas informações nas mídias sociais como o Twitter. Quer você concorde ou não com tais vozes críticas – e, como descobri, elas nem sempre concordam entre si – muitos vêem suas vozes como uma parte muito necessária da luta por melhores serviços, melhores experiências e melhores resultados para as pessoas em dificuldade.
Doesn’t it make sense that so many of us are suffering? We are living in a traumatised world.’ Photograph: A Room With Views/Alamy
Publicado em The Guardian, em 6 de setembro de 2022.
“Estamos vivendo, dizem-nos, meio a uma “crise de saúde mental“. Os serviços de saúde mental não conseguem lidar com a explosão da demanda durante os últimos dois anos: 1,6 milhões de pessoas estão em listas de espera, enquanto outros 8 milhões precisam de ajuda, mas não conseguem sequer entrar nessas listas. Até mesmo crianças estão aparecendo na A&E em desespero, querendo morrer.
“Mas há outra maneira de ver esta crise – uma maneira que não a coloca firmemente no domínio do sistema médico. Será que não faz sentido que tantos de nós estejamos sofrendo? Claro que faz: estamos vivendo em um mundo traumatizante e incerto. O clima está em colapso, estamos tentando nos manter no controle do aumento do custo de vida, ainda carregado de luto, contágio e isolamento, enquanto as revelações sobre a polícia assassinando mulheres e revistando crianças destroem nossa fé naqueles que deveriam nos proteger.
“Como psicóloga clínica que trabalha nos serviços do NHS há uma década, tenho visto em primeira mão como estamos falhando com as pessoas ao localizar seus problemas dentro delas como algum tipo de transtorno mental ou questão psicológica, e assim despolitizando seu sofrimento. Será que seis sessões de TCC, projetadas para visar estilos de pensamento “inúteis”, serão realmente eficazes para alguém que não sabe como vai alimentar sua família por mais uma semana? Os antidepressivos não vão erradicar o implacável trauma racial que um homem negro está vivendo em um local de trabalho hostil, e a rotulação de pessoas que estão sofrendo violência sexual com algum nome de transtorno psiquiátrico (em um mundo onde duas mulheres por semana são assassinadas em sua própria casa) não faz nada para mantê-las seguras. Não é surpreendente que a mindifulness não esteja ajudando as crianças que estão vivendo a pobreza, a pressão dos colegas e as condições escolares competitivas, onde o bullying e os danos causados pela mídia social são frequentes.
“Se uma planta estivesse murchando, não a diagnosticaríamos com “síndrome de planta-murcha” – mudaríamos suas condições. No entanto, quando os humanos estão sofrendo sob condições de vida insustentáveis, nos é dito que algo está errado conosco e que se espera que continuemos a insistir. Continuar trabalhando e produzindo, sem reconhecer nossa dor.
“Nos esforços para desestigmatizar o sofrimento mental, “doença mental” é enquadrada como uma “doença como qualquer outra” – enraizada em uma química cerebral supostamente defeituosa. Na realidade, pesquisas recentes concluíram que a depressão não é causada por um desequilíbrio químico do cérebro. Ironicamente, sugerir que temos um cérebro danificado para a vida aumenta o estigma e a fragilidade. O que é mais devastador sobre este mito é que o problema e a solução estão posicionados na pessoa, nos desviando dos ambientes que causam nossa angústia.
“A psicoterapia individual é muito boa para muitas pessoas e os antidepressivos podem ajudar algumas pessoas a lidar com isso. Mas preocupa-me que um entendimento puramente medicalizado e individualizado da saúde mental coloque gessos sobre grandes feridas abertas, sem abordar a fonte da violência. Eles nos encorajam a nos adaptarmos aos sistemas, protegendo assim o status quo. É aqui que falhamos mais com as pessoas marginalizadas: as expressões compreensíveis das pessoas negras de dor ao viverem em uma sociedade estruturalmente racista são muitas vezes medicalizadas, rotuladas como perigosas e enfrentadas com violência sob o pretexto de “cuidado”. Os negros são mais propensos a serem degolados, sequestrados, reprimidos e super-medicados do que qualquer outra pessoa em nossos serviços de saúde mental de hoje.
“O Reino Unido poderia aprender muito com a psicologia da libertação. Criada nos anos 80 pelo ativista e psicólogo salvadorenho Ignacio Martín Baró, argumenta que não podemos isolar “problemas de saúde mental” de nossas estruturas sociais mais amplas. O sofrimento surge dentro das experiências e histórias de opressão das pessoas. A psicologia da libertação vê as pessoas não como pacientes, mas como atores sociais potenciais no projeto de liberdade, valorizando sua própria descendência, criatividade e experiência, em vez de serem forçadas a uma idéia branca, eurocêntrica e individualista de terapia. Ela desafia diretamente as causas sociais, culturais e políticas da angústia através da ação social coletiva.
“Esta estrutura faz todo o sentido quando ouvimos que a pandemia no Reino Unido afetou mais a saúde mental das pessoas pobres. Será que isso significa que homens brancos ricos e privilegiados não sofrem? É claro que sim. Ainda estamos aprendendo sobre as formas complicadas que estas questões estruturais afetam nossa vida cotidiana. Por exemplo, como as pressões do individualismo e do capitalismo podem levar ao isolamento e ao abuso de substâncias, ou como a violência colonial contra famílias de imigrantes acontece dentro de casas e em corpos.”
“Continua difícil refutar uma crítica de que a característica mais fundamental da psiquiatria é sua ignorância, que ela não consegue definir com sucesso o objeto de sua atenção, enquanto suas tentativas de pôr a nu a etiologia de seus transtornos têm sido uma ladainha de fracassos”, escreve ele.
O artigo, publicado na revista Neuron, tem coautoria de Matthew Nour e Yunzhe Liu, todos da University College London.
Os autores resumem o artigo desta forma:
“Apesar de três décadas de intensa pesquisa de neuroimagens, ainda nos falta um relato neurobiológico para qualquer condição psiquiátrica. Da mesma forma, a neuroimagem funcional não tem nenhum papel na tomada de decisões clínicas”.
Eles acrescentam que nos últimos 30 anos, mais de 16.000 artigos de neuroimagem foram publicados – o que significa que bilhões de dólares e décadas de foco de pesquisa foram pagos para esta linha de investigação, sem nada para mostrar:
“Lançar um olhar frio sobre a literatura de neuroimagens psiquiátricas convida a concluir que, apesar de 30 anos de intensa pesquisa e consideráveis avanços tecnológicos, este empreendimento não forneceu um relato neurobiológico (ou seja, uma explicação) para qualquer transtorno psiquiátrico, nem forneceu um biomarcador confiável de utilidade clínica baseado em imagens”.
“Apesar de três décadas de intensa pesquisa de neuroimagens, ainda nos falta um relato neurobiológico para qualquer condição psiquiátrica. Da mesma forma, a neuroimagem funcional não tem nenhum papel na tomada de decisões clínicas”.
Eles acrescentam que nos últimos 30 anos, mais de 16.000 artigos de neuroimagem foram publicados – o que significa que bilhões de dólares e décadas de foco de pesquisa foram pagos para esta linha de investigação, sem nada para mostrar:
“Lançar um olhar frio sobre a literatura de neuroimagens psiquiátricas convida a concluir que, apesar de 30 anos de intensa pesquisa e consideráveis avanços tecnológicos, este empreendimento não forneceu um relato neurobiológico (ou seja, uma explicação mecanicista) para qualquer transtorno psiquiátrico, nem forneceu um biomarcador confiável de utilidade clínica baseado em imagens”.
Então, quais são alguns dos obstáculos que impedem o sucesso da pesquisa neurobiológica?
Uma segunda questão é que mesmo quando são encontradas ligeiras correlações, o efeito explicativo é mínimo. Por exemplo, um estudo recente descobriu que um escore de risco poligênico previa menos de 1% de se uma pessoa obteria um diagnóstico de esquizofrenia. Para comparação, cerca de 17% foi explicado por fatores socioeconômicos, dinâmicos familiares e relacionais. Isto pode ser relatado como uma “correlação estatisticamente significativa entre a genética e a esquizofrenia” – mas é clinicamente inútil, não fornecendo informações reais. (Em grandes estudos, os pesquisadores também determinaram que esta pequena correlação provavelmente se deve apenas ao acaso).
Como escreveu o então chefe do NIMH Thomas Insel em um post de blog em 2013 e que se tornou famoso, os diagnósticos psiquiátricos são inválidos de uma forma que não seria tolerada por nenhum outro subconjunto da medicina:
“O ponto fraco é sua falta de validade. Ao contrário de nossas definições de doença cardíaca isquêmica, linfoma ou SIDA, os diagnósticos DSM são baseados em um consenso sobre agrupamentos de sintomas clínicos, não em nenhuma medida laboratorial objetiva. No resto da medicina, isto seria equivalente a criar sistemas de diagnóstico baseados na natureza da dor torácica ou na qualidade da febre. De fato, o diagnóstico baseado nos sintomas, uma vez comum em outras áreas da medicina, foi amplamente substituído no último meio século, pois entendemos que somente os sintomas raramente indicam a melhor escolha de tratamento”.
No final, Dolan, Nour e Liu sugerem que a solução seja simplesmente dobrar a pesquisa neurobiológica. O cérebro, argumentam eles, é essencialmente apenas um computador cuja programação foi interrompida. Eles não mencionam qualquer impacto potencial de fatores sociais, culturais ou interpessoais, incluindo traumas, sobre a emoção ou o comportamento humano. Em vez disso, eles escrevem que a melhor maneira de entender a angústia humana é como que um programa de computador que não funciona bem:
“Nós afirmamos que a pesquisa de neuroimagem em psiquiatria, mais do que nunca, precisa adotar estruturas teóricas derivadas da neurociência básica e computacional. Isto inclui abordar como a atividade neural de alta dimensão suporta a cognição, juntamente com a formulação de previsões testáveis quanto às conseqüências comportamentais e sintomáticas das interrupções desses processos”. É discutível que uma necessidade urgente é ver os sintomas através das lentes dos modelos computacionais de cognição, preenchendo uma lacuna entre o conhecimento articulado em diferentes níveis de análise (do neural ao comportamental) e em diferentes espécies”.
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Nour, M. M., Liu, Y., & Dolan, R. J. (2022). Functional neuroimaging in psychiatry and the case for failing better. Neuron, 110, 2524-2544. https://doi.org/10.1016/j.neuron.2022.07.005 (Full text)
Em um novo artigo publicado no The Journal of Public Space, Elizabeth Nyabiage Ombati destaca as questões de inclusão e acessibilidade enfrentadas por pessoas com deficiências psicossociais nos espaços públicos.
A autora conclui que os governos devem fazer mais para compreender os requisitos de acessibilidade para pessoas com deficiências psicossociais. Ombati escreve:
“Toda pessoa tem direitos à cidade”: experimentar suas culturas e inovações, suas histórias e suas ricas diversidades”. A questão, no entanto, que persiste é: todos estão realmente tendo acesso à cidade? E se alguns grupos dentro da sociedade não estão acessando tais espaços públicos, o que isso significa para o gozo de seus direitos humanos”?
Em vez de adotar uma perspectiva centrada nas deficiências individuais, a autora escreve de um ponto de vista que entende a deficiência como decorrente da interação da deficiência com as barreiras ambientais. Nesta perspectiva, a igualdade de acesso para pessoas com deficiências psicossociais é um imperativo dos direitos humanos. O trabalho atual reconhece que as pessoas com deficiências psicossociais são muitas vezes vistas como um incômodo público. Os vários rótulos aplicados a essas pessoas muitas vezes as marcam como menos que humanas.
A autora reflete brevemente sobre sua própria experiência de espaços públicos inacessíveis devido a uma deficiência psicossocial. Ela descreve a extrema ansiedade nos espaços públicos, observando que os engarrafamentos eram particularmente difíceis para ela passar a pé, pois sentia as pessoas nos carros observando e julgando seus movimentos. Essa ansiedade tornou comuns os ataques de pânico e fez com que a autora evitasse muitos lugares, como os shoppings centers. A autora observa que a reação do público às pessoas em momentos de aflição é frequentemente ridicularizar, registrar e denunciar essa pessoa à polícia, em vez de ajudá-las.
Pessoas com deficiências psicossociais muitas vezes enfrentam estigma, violência e encarceramento injusto em espaços públicos. A autora aponta para um estudo no Quênia que revelou que pessoas com deficiências intelectuais e psicossociais eram muito mais propensas a serem presas por delitos menores. Pessoas com deficiências psicossociais são geralmente detidas extrajudicialmente por longos períodos no hospital nacional de saúde mental do Quênia. Elas também enfrentam um aumento de casos de violência e agressão sexual. A mídia normalmente retrata as pessoas com deficiências psicossociais como mendigos e incômodos perigosos que devem ser limpos das ruas. A autora observa que a mídia dedica quase nenhum tempo para perguntar sobre os fatores ambientais que impedem as pessoas com essas deficiências de acessar recursos públicos e encontrar emprego.
De acordo com a CRPD, o acesso aos espaços públicos é um direito humano. Infelizmente, embora muitos países tenham ratificado a CRPD, eles não fizeram nenhum esforço real para garantir acesso igualitário a recursos compartilhados para as pessoas com deficiências psicossociais. Há duas partes para alcançar este acesso igualitário. A parte “difícil” deste problema envolve conhecimento técnico e projetos físicos que permitem maior acesso aos espaços públicos. A parte “suave” do problema é suavizar as atitudes e comportamentos das pessoas em relação àqueles que experimentam sofrimento psicológico.
A autora aponta várias decisões de projetos urbanos para aumentar a acessibilidade das pessoas com deficiência. Os espaços públicos verdes acessíveis promovem tanto a saúde física quanto a mental. Amplos caminhos para pedestres com sinalização clara e vias de circulação podem permitir maior acesso, assim como espaços desobstruídos com “áreas de fuga”. Ao incluir pessoas com deficiências psicossociais nas decisões de projeto e empregá-las no nível de projeto de infra-estrutura, provavelmente poderíamos abordar muitas questões de acessibilidade que, de outra forma, seriam ignoradas.
A autora conclui:
“Governos em todos os níveis, em particular governos locais e regionais, juntamente com organizações de pessoas com deficiência, devem desenvolver a capacidade de pessoal dos provedores de serviços de infra-estrutura e dos profissionais urbanos para compreender os diferentes requisitos de acessibilidade para todos os tipos de grupos com deficiência: respeitando as identidades e a diversidade das pessoas com deficiência e também exercendo paciência, gentileza e empatia”.
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Ombati, E. (2022). Persons with Psychosocial Disabilities in Public Spaces: Welcomed or Shunned?. The Journal Of Public Space (Link)
3d robotic arm and tool modifying DNA helix. Abstract low poly DNA molecules and robotics isolated in blue. Genetic engineering, nanotechnology, science, medicine concept. Digital vector illustration
Pelo menos uma empresa privada começou a oferecer serviços para permitir aos pais submetidos à fertilização in vitro (FIV) a triagem de embriões para riscos genéticos complexos com um procedimento chamado triagem de embriões poligênicos (PES). Embora os testes genéticos de embriões para o risco de algumas doenças graves com fortes ligações genéticas conhecidas (fibrose cística ou Tay-Sachs, por exemplo) existam há décadas, o PES é uma nova forma de triagem que essas empresas afirmam poder identificar o risco de problemas médicos complexos, incluindo transtornos psiquiátricos, que não possuem genes específicos de risco conhecido.
No entanto, esta abordagem carece de validade científica e levanta uma série de questões éticas, de acordo com um novo artigo na revista psiquiátrica de alto nível a Lancet Psychiatry.
“Estamos preocupados que estes testes estejam sendo comercializados com dados empíricos limitados por trás deles e praticamente nenhuma discussão científica ou ética”. Sem mais pesquisas, é improvável que os médicos e o público em geral tenham compreensão suficiente para avaliar os prós e os contras desta tecnologia”, escrevem os pesquisadores.
Os autores foram liderados por Todd Lencz, um prolífico especialista em genética de diagnósticos psiquiátricos. Lencz lidera o Laboratório de Biomarcadores Neurogenômicos do Centro de Neurociências Psiquiátricas dos Institutos Feinstein de Pesquisa Médica. Ele também é o fundador e líder de numerosos grupos de pesquisadores em genética, os chamados consórcios. O artigo foi redigido por 18 membros da Sociedade Internacional de Genética Psiquiátrica (ISPG).
Os pesquisadores explicam que a PSA usa escores de risco poligênicos (PRS) – que combinam o risco minúsculo de milhares de variantes genéticas para chegar a um único número. Quanto maior o número, maior é o risco. Mas um PRS faz um trabalho pobre de estimar o risco para os indivíduos, e atualmente é considerado útil apenas para pesquisas em toda a população. Ao lidar com um paciente individual, é um teste clinicamente inútil.
“Embora em geral pontuações mais altas signifiquem que há mais probabilidade de se ter uma condição, muitas pessoas saudáveis terão pontuações altas; outras poderão desenvolver a condição, mesmo com uma pontuação baixa. A precisão com que uma pontuação poligênica pode prever doenças psiquiátricas, tais como esquizofrenia, transtorno bipolar e depressão grave, não é atualmente suficiente para uso clínico”.
De acordo com a declaração da ISPG, a pontuação PRS “mede apenas um dos muitos fatores de risco possíveis”, e no caso de diagnósticos psiquiátricos, a contribuição de fatores genéticos é minúscula. Pesquisas anteriores sugerem que os testes genéticos podem explicar menos de 1% dos problemas de saúde mental. De fato, uma enorme quantidade de pesquisas sugere que os transtornos psiquiátricos são altamente dependentes de fatores sociais e ambientais, tais como pobreza, raça, identidade de gênero e orientação sexual.
No artigo da Lancet Psychiatry, os autores observam que “PRS para traços comportamentais e neurocognitivos são … especialmente sensíveis aos efeitos de confusão da ‘nutrição genética’ – o fato de que os genes dos pais também moldam o ambiente no qual a prole cresce”.
Em outras palavras, mesmo quando os traços estão altamente correlacionados com uma composição genética específica, a correlação pode ser explicada não pela genética, mas por fatores ambientais.
Como historiadores da psiquiatria e outros pesquisadores têm observado, a própria ciência psicológica está enraizada no racismo. Assim, a própria taxonomia e sintomologia dos transtornos psiquiátricos reflete ideias brancas supremacistas de “saúde mental”.
Assim, os pesquisadores se preocupam que a prática de triagem de embriões por “genes ruins” para erradicar a diferença mental é uma continuação da longa e conservada história dos EUA com a eugenia. E porque, como os autores observam, “não há regulamentação sobre quais condições ou traços podem ser rastreados nos EUA”, não há limite para os ideais de pureza genética que podem ser embalados e vendidos como “saúde” para consumidores particulares.
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Lencz, T., Sabatello, M., Docherty, A., Peterson, R. E., Soda, T., Austin, J., . . . & Davis, L. K. (2022). Concerns about the use of polygenic embryo screening for psychiatric and cognitive traits. Lancet Psychiatry. Published online August 2, 2022. doi: 10.1016/S2215-0366(22)00157-2 (Abstract)
Em um artigo recente do BMJ, pesquisadores descobriram que os antidepressivos podem ser melhores do que placebo para cerca de 15% das pessoas. Embora isto signifique que 85% dos que estão expostos aos efeitos nocivos dos medicamentos (geralmente incluindo ganho de peso, disfunção sexual e entorpecimento emocional) e efeitos de abstinência dos medicamentos sem benefícios, isto ainda pode ser considerado um achado positivo. Pelo menos há um grupo de pessoas para as quais as drogas parecem ser benéficas.
Mas, segundo outros pesquisadores, mesmo esta conclusão é muito otimista. Em duas “respostas rápidas” que também apareceram no BMJ, os pesquisadores sugerem que este achado positivo pode ser devido ao efeito de quebra de ocultação nos estudos.
O médico aposentado John Warren coloca isso de forma sucinta: “A pequena queda adicional nos [sintomas de depressão] com tratamento ativo é consistente com o efeito do uso de um placebo ativo, onde experimentar efeitos colaterais do tratamento ativo aumenta a crença na eficácia”.
Os pesquisadores também advertem que estes dados vêm de estudos de curto prazo, geralmente com cerca de seis semanas de duração, e que ensaios controlados e aleatórios de longo prazo simplesmente não existem. Portanto, não está claro se os medicamentos são seguros ou eficazes para qualquer pessoa – a longo prazo.
De acordo com Warren, “É uma grande preocupação que a duração mais freqüente dos ensaios tenha sido de seis semanas e que não tenhamos dados além dos de 12 semanas. Estes medicamentos são dados freqüentemente por anos e isto não é consistente com os requisitos internacionais para outras áreas de terapêutica de longo prazo. A falta de prova de eficácia a longo prazo é importante, a falta de dados de segurança a longo prazo é ainda mais importante”.
Em uma outra resposta breve, os pesquisadores Mark Horowitz, Florian Naudet, Janus Jakobsen, Martin Plöderl e Joanna Moncrieff concordam que a quebra do duplo cego é provavelmente a causa do grupo um pouco maior que se beneficia das drogas
“O desbloqueio por efeitos colaterais… pode amplificar este efeito para o grupo de drogas”, escrevem eles.
Eles acrescentam que a análise estatística post-hoc usada no trabalho original pode não ser apropriada. Eles escrevem que este tipo de análise deve ser considerado exploratório e não é comparável a resultados pré-especificados em um ensaio bem conduzido. Também não fornece nenhuma informação sobre como identificar os supostos 15% de pessoas que se beneficiam, pois depende de cada paciente haver uma probabilidade maior ou menor de estar naquele grupo – não identificando as pessoas específicas daquele grupo.
“Não está claro que o foco na mudança a partir da pontuação de base em subpopulações indefiníveis de pacientes seja informativo. Como são distribuições teóricas, cada participante tem uma probabilidade de pertencer a cada distribuição para que a técnica não identifique um grupo de pessoas que apresentem uma resposta “grande” ou que se beneficiem mais dos antidepressivos”, escrevem eles.
Eles observam que o resultado menos controverso do estudo é que, em média, os pesquisadores encontraram uma diferença de 1,75 pontos (numa escala de 52 pontos) entre o antidepressivo e o placebo – um resultado clinicamente insignificante que nem os pacientes nem seus clínicos podem detectar.
O estudo original incluiu apenas ensaios clínicos, que escolheram a dedo seus participantes, procurando por aqueles sem outras condições e que não são suicidas. Isto os torna muito diferentes dos indivíduos mais freqüentemente tratados com as drogas na vida real.
Outros pesquisadores descobriram este ano que a resposta ao tratamento é baixa na vida real. Em um estudo onde mais de mil pessoas com depressão foram tratadas com medicamentos antidepressivos – mais da metade com múltiplos medicamentos – bem como com terapia e hospitalização, menos de um quarto responderam ao tratamento.
Em outro trabalho, esses mesmos pesquisadores também descobriram que aqueles com depressão mais grave, aqueles com ansiedade comórbida e aqueles que eram suicidas eram os menos propensos a se beneficiar dos medicamentos.
Warren, J. B. (2022). Re: Response to acute monotherapy for major depressive disorder in randomized, placebo controlled trials submitted to the US Food and Drug Administration: individual participant data analysis. BMJ, 378, e067606. https://doi.org/10.1136/bmj-2021-067606 (Full text)
Horowitz, M. A., Naudet, F., Jakobsen, F., Plöderl, M., & Moncrieff, J. (2022). Data modelling in search of meaning. BMJ, 378, e067606. https://doi.org/10.1136/bmj-2021-067606 (Full text)
Gene therapy DNA helix concept with a medical genetics specialist doctor on a ladder climbing a plant that represents part of the human chromosomes anatomy as a biotechnology metaphor for genetic testing and repair.
Uma tentativa recente é o teste farmacogenômico. De acordo com a teoria, os testes de DNA podem revelar se uma pessoa tem fatores genéticos que interagem com a eficácia da droga. Com esta informação, os médicos poderiam evitar drogas que tenham sua eficácia “bloqueada” pelos genes de uma pessoa.
Soa bem em teoria. Mas os pesquisadores têm tido resultados mistos ao testá-la até agora. Por exemplo, o grande ensaio randomizado controlado de testes farmacogenômicos (GUIDED), falhou em seu resultado primário de melhoria dos sintomas – embora os resultados secundários tenham mostrado uma ligeira vantagem para aqueles que receberam os testes.
Agora, os pesquisadores tentaram outro grande ensaio randomizado controlado de testes farmacogenômicos (chamado PRIME Care). Um total de 1944 pacientes participou, recrutados em 22 centros médicos do Departamento de Assuntos de Veteranos (VA).
No grupo que recebeu testes farmacogenômicos, apenas 18% das prescrições tiveram interações medicamentos-gene, enquanto no grupo que não recebeu testes, 45% das prescrições tiveram interações medicamentos-gene. Desta forma, o estudo pôde ser visto como um sucesso – o acesso aos testes significou que muito menos pessoas receberam drogas que foram previstas interagir mal com seus genes.
E isto também pareceu melhorar ligeiramente alguns resultados. Na metade do estudo (12 semanas), 16,5% das pessoas que receberam testes haviam se recuperado da depressão (“remissão”), enquanto 11,2% das que não receberam testes haviam se recuperado. Um início promissor.
Entretanto, no final do estudo, esta pequena diferença havia desaparecido. A diferença entre os grupos não era significativa às 24 semanas (seis meses).
“Em geral, houve pequenos efeitos positivos na remissão dos sintomas durante as 24 semanas com diferenças de pico no início do ensaio e nenhuma diferença significativa na remissão às 24 semanas. Os resultados secundários da resposta e da redução dos sintomas seguiram padrões semelhantes”, escrevem os pesquisadores.
Ou seja, receber testes farmacogenômicos reduziu a quantidade de interações medicamentos-gene previstas – mas não melhorou os resultados reais até o final do estudo. Ambos os grupos tinham a mesma (in)probabilidade de recuperação da depressão: 17,2% contra 16,0%.
Outra maneira de ver isto é enquanto sendo um estudo da eficácia dos antidepressivos. No marco de seis meses, o uso de antidepressivos levou à recuperação de 17,2%, no máximo, das pessoas.
E quanto aos resultados secundários? Bem, com 24 semanas, 32,1% no grupo de teste os sujeitos experimentaram “resposta” (pelo menos uma redução de 50% na pontuação PHQ). Esse número foi de 27,5% no grupo não-teste, uma diferença estatisticamente significativa. Entretanto, no decorrer do estudo, esse número não foi consistente. Na avaliação imediatamente anterior a essa (18 semanas), os grupos não eram diferentes em termos de “resposta”.
Os pesquisadores também observam que os resultados secundários devem ser considerados “exploratórios”, uma vez que eles não controlaram para testes múltiplos (o que torna os resultados positivos mais prováveis por acaso). E acrescentam que trocaram o tipo de teste estatístico usado para calcular seus resultados, em vez de se ater à análise que escreveram no protocolo de estudo (o que poderia introduzir maior viés).
Mais um ponto metodológico: Os pesquisadores escrevem que mesmo o pequeno efeito positivo no início do ensaio – que desapareceu no final – pode ter sido um resultado do efeito placebo. Os pacientes, ou seus médicos, podem ter esperado que aqueles que receberam testes genéticos melhorassem mais.
Os pesquisadores escrevem: “Não houve nenhuma tentativa de “cegar” nem o clínico nem o paciente no estudo. Assim, os modestos efeitos no grupo farmacogenômico orientado poderiam ser um efeito do tipo placebo”.
Finalmente, eles sugerem que pode haver um pequeno grupo de pessoas que se beneficiam dos testes farmacogenômicos – aqueles que têm características genéticas específicas que são conhecidos por interagir com o metabolismo de medicamentos antidepressivos. Entretanto, este estudo não foi capaz de encontrar tal efeito, sugerindo que a quantidade de pessoas que se beneficiariam é muito pequena ou que o efeito é, na melhor das hipóteses, marginal.
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Oslin, D. W., Lynch, K. G., Shih, M. C., Ingram, E. P., Wray, L. O., . . . Thase, M. E., and the PRIME Care Research Group. (2022). Effect of pharmacogenomic testing for drug-gene interactions on medication selection and remission of symptoms in major depressive disorder: The PRIME care randomized clinical trial. JAMA, 328(2), 151-161. doi:10.1001/jama.2022.9805 (Abstract)
Publicado em The New Yourk Times, edição de doming, 28 de agosto de 2022. Uma reportagem que nos dá uma visão da crescente medicalização psiquiátrica da infância e adolescência. Até quando a assistência em saúde mental estará dominada pelo modelo biomédico da psiquiatria para o tratamento do nosso sofrimento psíquico?
“Uma manhã, no outono de 2017, Renae Smith, uma caloura do ensino médio em Long Island, N.Y., não conseguiu sair da cama, esmagada com a perspectiva de ir à escola. Nos dias seguintes, a ansiedade dela aumentou em desespero.
” ‘Eu deveria ter ficado feliz’, escreveu ela mais tarde. ‘Mas eu chorava, gritava e implorava ao universo ou qualquer que fosse o poder divino para tirar a dor de mil homens que estava preso dentro de minha cabeça’ “.
“A intervenção para a sua depressão e ansiedade não veio do divino, mas da indústria farmacêutica. Na primavera seguinte, um psiquiatra prescreveu Prozac. O medicamento oferecia uma remissão de seu sofrimento, mas o efeito se dissipou, então lhe foi prescrito um antidepressivo adicional, Effexor.
“Havia começado uma cascata de medicamentos. Durante 2021, ano em que ela se formou, foram-lhe prescritos sete medicamentos. Entre eles, um para convulsões e enxaquecas – ela não teve nenhuma, mas o medicamento também pode ser usado para estabilizar o humor – e outro para amortecer os efeitos colaterais dos outros medicamentos, embora seja usado principalmente para esquizofrenia. Ela se sentia melhor alguns dias, mas profundamente triste por outros.
“Ela passara a exemplificar uma prática médica comum em sua geração: o uso simultâneo de múltiplos medicamentos psiquiátricos pesados.
“Psiquiatras e outros clínicos enfatizam que as drogas psiquiátricas, devidamente prescritas, podem ser vitais para estabilizar adolescentes e salvar a vida de adolescentes suicidas. Mas, esses especialistas advertem, tais medicamentos são muito facilmente consumidos, muitas vezes como uma alternativa fácil à terapia que as famílias não podem pagar ou encontrar, ou não estão interessadas.
“Esses medicamentos, geralmente destinados ao uso a curto prazo, às vezes são prescritos por anos, embora possam ter efeitos colaterais graves – incluindo episódios psicóticos, comportamento suicida, ganho de peso e interferência no desenvolvimento reprodutivo, de acordo com um estudo recente publicado em Frontiers in Psychiatry.”