Porque é que a Psiquiatria é tão defensiva em relação à crítica?

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Selective focus on the word "psychiatry". Many more word photos for you in my portfolio...

Em 6 de janeiro de 2022, Awais Aftab, MD, psiquiatra e professor clínico da Case Western, publicou um artigo no Psychiatric Times. O título é  It’s Time for Us to Stop Being So Defensive About Criticisms of Psychiatry [É hora de se parar de ficar na defensiva com os críticos da psiquiatria]. 

O trabalho do Dr. Aftab é essencialmente uma resposta a um outro trabalho, publicado também no Psychiatric Times. Este último artigo é intitulado It’s Time For Us To Stop Waffling About Psychiatry [ É hora de se parar de falar da psiquiatria pelos cotovelos] de Daniel Morehead, MD, diretor de treinamento para a residência geral de psiquiatria na Tufts. O Dr. Morehead reconheceu a generosa assistência que recebeu de Ronald Pies, MD, na redação do artigo.

Tudo isto é um pouco complicado. Mas a essência é esta: O Dr. Morehead escreveu um artigo condenando os críticos da psiquiatria. O Dr. Aftab responde sugerindo uma abordagem mais moderada, e expressando a opinião de que “…precisamos reconceptualizar a relação da psiquiatria com a crítica de uma maneira mais produtiva”.

E embora o apelo do Dr. Aftab à moderação pareça positivo e conciliatório, e ele certamente evita a vituperação explícita do artigo do Dr. Morehead, ele também se agarra a uma imagem da psiquiatria que, em minha experiência, não está de acordo com as realidades teóricas e práticas que realmente sustentam e impulsionam a psiquiatria moderna, com a sua profusão de profundos fracassos e erros contínuos.

ENTÃO, VAMOS DAR UMA OLHADA

Aqui estão algumas citações do trabalho do Dr. Aftab, intercaladas com as minhas observações e opiniões.

“O Dr. Morehead e eu concordamos sobre muitas coisas: a legitimidade fundamental da psiquiatria como ramo da medicina; o papel essencial que a psiquiatria tem a desempenhar no tratamento de problemas de saúde mental; que uma defesa da psiquiatria é garantida contra críticas graves e equivocadas; e que o valor da psiquiatria deve ser transmitido aos legisladores, às seguradoras e ao público em geral”.

As afirmações do Dr. Aftab nesta citação são essencialmente lugares-comuns não comprovados – e provavelmente não comprováveis. Ele aparentemente está expressando algumas de suas próprias crenças fundamentais sobre estes assuntos.

Por exemplo, ele afirma “a legitimidade fundamental da psiquiatria como um ramo da medicina”. Se por esta afirmação ele quer dizer que as várias escolas de psiquiatria receberam as Autorizações do Estado apropriadas e passaram nas várias inspeções de qualidade de ensino, etc., então, é claro, ele está correto. Mas não é isso que os críticos têm em mente quando desafiam a psiquiatria sobre esta questão em particular. O que está em jogo aqui não é a conclusão bem sucedida de várias expectativas burocráticas, mas sim se o assunto da psiquiatria é suficientemente tangível, coerente e válido para constituir um corpo de pensamento definível e ensinável de forma confiável, e se este corpo de pensamento tem se mostrado eficaz na melhoria de doenças reais. A legitimidade acadêmica e profissional não são coisas que possam ser conjuradas por comitês para adequar-se ao estado de espírito do momento ou para obscurecer problemas sociais profundos, tais como pobreza, desigualdade, discriminação, desemprego, racismo, habitação precária, abuso/negligência infantil, etc.

Ele também menciona “o papel essencial que a psiquiatria tem que desempenhar no tratamento de problemas de saúde mental”. O que é particularmente interessante aqui é que o Dr. Aftab aparentemente não pode sequer imaginar um mundo sem psiquiatria (“o papel essencial que a psiquiatria tem que desempenhar”), e parece inteiramente impassível pelo fato de que muitos dos críticos da psiquiatria podem.

Assim, ficamos com a noção de que “o valor da psiquiatria deve ser transmitido aos legisladores, às seguradoras e ao público em geral”, o que, naturalmente, nos leva a perguntar por quê? Se a psiquiatria tivesse um valor genuíno, estes indivíduos não estariam cientes disso, e não seria uma perda de tempo visá-los da maneira mencionada? Por outro lado, se legisladores, seguradoras e o público em geral não estiverem convencidos do valor da psiquiatria, isto não sugere que a psiquiatria tem alguns problemas profundamente enraizados? Afinal, não existem outras profissões médicas (e com relação à psiquiatria, uso o termo vagamente) sobre as quais os legisladores, seguradoras e o público em geral entretêm este tipo de desconfiança, pelo menos não tanto quanto eu saiba.

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“A psiquiatria é uma profissão com uma rica história intelectual…”

Esta história, aliás, inclui o hospital de Bethlehem em Londres, onde os moradores eram encorajados a visitar as instalações pelo preço de alguns centavos, e a serem “entretidos” pelas artimanhas dos “lunáticos” que lá estavam alojados em condições terríveis. Outros “tratamentos” usados na “rica história intelectual” da psiquiatria incluem: terapia da febre, incluindo terapia da malária; terapia do estado de coma da insulina; a cadeira tranquilizante; o berço Utica; lobotomia; terapia do sono profundo; terapia de rotação; hidroterapia, incluindo banhos de gelo; mesmerismo; convulsões induzidas quimicamente; choques elétricos de alta voltagem no cérebro, etc.

“… que exemplifica um pouco do melhor que a medicina tem a oferecer”.

Ao qual eu só posso abanar a cabeça e me perguntar em que mundo o Dr. Aftab tem passado o seu tempo.

O Dr. Aftab não sabe que, ao contrário do que acontece com os verdadeiros especialistas médicos, que com muito cuidado e através de anos de estudo, descobrem as suas doenças na natureza, a psiquiatria dispensa esta formalidade cansativa, e simplesmente as faz ajustar-se à moda do momento? Basta um voto do comitê DSM da APA, como se a natureza tivesse o menor interesse na regra da maioria. E além disso, não conheço nenhum avanço psiquiátrico que mereceu uma vela como foi para a vacinação contra a varíola, a descoberta da penicilina, ou o transplante bem sucedido de um rim ou fígado.

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“Há razões compreensíveis para que a psiquiatria seja examinada de forma mais minuciosa do que outras especialidades médicas. Ela, por exemplo, exerce controle social sobre a vida dos indivíduos sob seus cuidados até um grau exercido por nenhuma outra especialidade; está sujeita a desacordos de maior valor; tem que trabalhar através de múltiplas disciplinas e perspectivas difíceis de integrar; tem um legado histórico tumultuado; o estado de desenvolvimento científico ainda é comparativamente rudimentar; e lida com condições estigmatizadas e mal compreendidas, etc.”.

Vamos comentar este parágrafo.

“Ela [psiquiatria]… exerce controle social sobre a vida dos indivíduos sob seus cuidados até um grau exercido por nenhuma outra especialidade;”

Isto é de fato verdade. As audiências para compromissos civis em hospitais psiquiátricos são em grande parte meras formalidades, às vezes realizadas dentro do próprio “hospital”. Aos “pacientes” é designado um advogado com quem eles normalmente se reúnem por apenas alguns minutos antes da audiência. Muitos pacientes concordam em se apresentar voluntariamente porque as probabilidades de eles prevalecerem na área jurídica são minúsculas. Mas em muitas jurisdições, uma vez internados, eles não podem revogar o seu acordo voluntário. Eles só podem ser liberados quando e se as autoridades hospitalares os declararem aptos a serem liberados. Como processo legal, trata-se de uma farsa. Mas o que é particularmente importante aqui é que a psiquiatria nunca foi forçada a assumir este papel. Ao contrário, eles a abraçaram de boa vontade e a consideraram parte integrante da gestão dos asilos, e do “tratamento” psiquiátrico.

“…ela [psiquiatria] tem um tumultuado legado histórico”.

Eu diria que o legado histórico da psiquiatria não tem sido particularmente tumultuado. Eu o descreveria como cruel, incomum, e destinado a quebrar o espírito das pessoas. Os antigos asilos eram pouco mais do que câmaras de tortura nas quais o bem-estar dos “pacientes” era freqüentemente subordinado às ambições, caprichos e preconceitos de seus tratadores. Além de instituições que abraçavam a filosofia e a prática do tratamento moral, os asilos podiam reivindicar pouco em termos de eficácia ou mesmo o respeito básico aos direitos humanos.

“…e ela [psiquiatria] lida com condições estigmatizadas e mal compreendidas, etc.”.

Esta afirmação é difícil de conciliar com a brilhante autopromoção que se encontra em sites de proeminentes instituições psiquiátricas e outros grupos pró-psiquiatria, os quais transmitem a impressão de que as causas fundamentais das “doenças mentais” são bem compreendidas, e que qualquer estigma associado a estas “doenças” é uma função das reivindicações imprudentes do movimento anti-psiquiatria. Esta noção é fortemente instigada dentro do contexto da “rica história intelectual” da psiquiatria, embora as evidências há muito tenham indicado que é a ávida promoção das doenças mentais como desequilíbrios neuroquímicos que tem sido a principal fonte de estigma. [Angermeyer, MC, et al (2018)Lee, AA, et al (2013)Read J, et al 2006Deacon, BJ (2013)]

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“Estes e outros fatores garantem que a psiquiatria estará sob os holofotes (assim como podemos esperar que a força policial será quase sempre mais escrutinada do que o serviço postal). Este escrutínio adicional se cruza com a desordem dentro da própria casa da psiquiatria, dando aos críticos muito material inflamável para trabalhar. Mesmo os problemas que estão presentes em todos os medicamentos – como a influência da indústria e a corrupção de medicamentos baseados em evidências – são mais perceptíveis no contexto da psiquiatria graças ao escrutínio adicional.3 Há também muitos “clientes infelizes” quando se trata de psiquiatria, por assim dizer: receptores de cuidados psiquiátricos que ficaram traumatizados, desencantados, até mesmo devastados por suas experiências. Tem havido [uma] tendência dentro da profissão de não levar tais indivíduos a sério, pelo menos não sem serem forçados a fazê-lo”.

Assim, diz-nos o Dr. Aftab, há “desordem” dentro da psiquiatria, o que dá aos críticos muito “material inflamável para se trabalhar”. Isto é uma boa imagem, é claro, mas quando reduzida à prosa simples, significa simplesmente que existem problemas dentro da prática psiquiátrica que fornecem aos críticos amplas oportunidades e incentivos legítimos para criticar. Se existe “desordem” em uma profissão médica, então é correto e apropriado que isto seja identificado e corrigido. Mas o imaginário do Dr. Aftab sutilmente transfere a culpa por isso para os críticos, que são retratados como pesquisadores maliciosos de “material inflamável com o qual trabalhar”.

É uma experiência bastante comum na sociedade que indivíduos que não limpam os seus próprios atos, mais cedo ou mais tarde, terão alguém para vir e limpá-los para eles. E isto é exatamente o que está acontecendo com a psiquiatria. Durante décadas eles chafurdaram em ciência espúria e corrupção, e mentiram descaradamente a seus clientes a respeito da natureza de seus problemas e da eficácia dos tratamentos. Havia, e ainda há, dissidentes ocasionais, mas a maioria dos psiquiatras alinhava com o ardil da doença, a rotina de 15 minutos de checagem médica e a pílula para sempre que, coletivamente, passou a constituir uma prática psiquiátrica estabelecida. E agora o movimento anti-psíquiátrico está convocando-os, exigindo provas de eficácia, expondo conflitos de interesse, expondo os efeitos nocivos dos tratamentos psiquiátricos, etc. Estas são coisas que precisam ser ditas, e precisam ser ditas repetidamente e de forma convincente, no entanto, o Dr. Aftab nos compara aos incendiários à procura de alvos fáceis.

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Há também muitos “clientes infelizes” quando se trata de psiquiatria, por assim dizer: os receptores de cuidados psiquiátricos que ficaram traumatizados, desencantados, até mesmo devastados por suas experiências. Tem havido [uma] tendência dentro da profissão de não levar tais indivíduos a sério, pelo menos não sem serem forçados a fazê-lo”.

E isto vem de um psiquiatra que anteriormente afirmou sem ambiguidade “a legitimidade fundamental da psiquiatria como ramo da medicina”; “o papel essencial que a psiquiatria tem que desempenhar no tratamento de problemas de saúde mental”; que a psiquiatria deve se defender “contra críticas graves e equivocadas”; “que o valor da psiquiatria deve ser transmitido aos legisladores, às seguradoras e ao público em geral”; e que “a psiquiatria é uma profissão com uma rica história intelectual que exemplifica alguns dos melhores do que a medicina tem a oferecer”.

Mas agora ele reconhece que a psiquiatria tem muitos “clientes infelizes”. E estes são: “receptores de cuidados psiquiátricos que ficaram traumatizados, desencantados, até mesmo devastados por suas experiências”. O fato é que a psiquiatria precisa ser responsabilizada pelos clientes infelizes que foram traumatizados, desencantados, e devastados por suas experiências. E se os líderes da psiquiatria não estão dispostos ou preparados para responsabilizar os culpados, alguém pode culpar o movimento antipsiquiatria por ter entrado nesta brecha? Também vale a pena perguntar o que exatamente os psiquiatras estão fazendo que deixa “muitos” de seus clientes traumatizados, desiludidos e devastados por suas experiências?

E então:

“Tem havido [uma] tendência dentro da profissão de não levar tais indivíduos a sério, pelo menos não sem ser forçado a fazê-lo”.

De fato, existem “razões compreensíveis para que a psiquiatria seja mais escrutinada do que outras especialidades médicas”. Essas razões são: porque sistematicamente mentem a seus clientes a respeito da origem e causas de seus males; administram drogas perigosas e eletrochoques sem explicar o potencial de danos e até mesmo de morte; rotineiramente induzem a um sentimento de dependência, impotência e indignidade em seus clientes; e então tendem a não levar esses indivíduos a sério a menos que e até que sejam forçados a fazê-lo.

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. . “A psiquiatria tem sido vulnerável a modismos de diagnóstico. A profissão tem se permitido ser explorada por empresas farmacêuticas. A teoria psiquiátrica tem sido vulnerável às ‘mitologias de mensagem única’ e ao reducionismo zeloso.4 Seus líderes têm negligenciado os determinantes estruturais da saúde. O estado da ciência é o que ela é; podemos criar condições favoráveis à pesquisa científica, mas as descobertas e progressos não podem ser apressados ou forçados. Embora reconhecendo o estado da ciência psiquiátrica deva levar a uma atitude de humildade, muitos psiquiatras em posições de poder e influência têm frequentemente feito reivindicações grandiosas – e às vezes têm demonstrado uma arrogância impressionante”.

No parágrafo acima, o Dr. Aftab afirma que a psiquiatria “tem se permitido ser explorada por empresas farmacêuticas”. Então, temos estes médicos altamente qualificados (10 anos de treinamento universitário) sendo “explorados” por …o quê? Representantes de vendas bem vestidos que trazem amostras grátis? Anúncios farmacêuticos? Apresentações enganosas? Pagamentos para fazer apresentações de medicamentos aos colegas? E estes médicos altamente instruídos na verdade se apaixonam por este papo furado. Pobres cordeiros! Será que eles simplesmente nasceram ingênuos, ou existe algum nepenthe doado a estagiários de psiquiatria que os faz esquecer o básico da ciência, e engolir sem sentido o pablum de autocongratulações que passa pela educação profissional nas escolas de psiquiatria?

Os psiquiatras não têm se deixado explorar pela indústria farmacêutica; ao contrário, eles abraçaram ativa e voluntariamente uma relação de mão na luva com a indústria farmacêutica para seus próprios fins. Isto vem acontecendo nos níveis acadêmico e prático há décadas. Caracterizar isto como exploração é perder de vista a questão.

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“… mas as descobertas e os avanços não podem ser apressados ou forçados”.

No entanto, é exatamente isso que a psiquiatria tem feito com a teoria do desequilíbrio químico, que afirma que a depressão não é causada por eventos adversos ou por circunstâncias adversas permanentes, mas sim por desequilíbrios neuroquímicos. Esta noção espúria tem sido promovida pela psiquiatria por várias décadas, tem sido reforçada pelas declarações de neutralidade de causas em sucessivas edições do DSM, e tem induzido milhões de pessoas no mundo inteiro, que de outra forma não o teriam feito, a tomar drogas psiquiátricas, às quais muitas delas são agora viciadas.

“Embora reconhecendo o estado da ciência psiquiátrica deva levar a uma atitude de humildade, muitos psiquiatras em posições de poder e influência têm frequentemente feito reivindicações grandiloquentes – e às vezes têm demonstrado uma arrogância impressionante”.

Eu diria que uma boa maioria dos psiquiatras se enquadra neste último grupo. Em minha experiência, a grandiosidade, a arrogância e as invenções autodidatas são praticamente a norma nos círculos psiquiátricos.

“Isto não quer dizer que a psiquiatria não enfrenta críticas injustas”. Há uma hostilidade desenfreada, desinformação, argumentos mal orientados, etc., bem exemplificados pela Cientologia, Szasz, e outros atores. É preciso ter cuidado com eles e reagir contra eles, mas, ao mesmo tempo, muitos psiquiatras têm sido muito apressados com alegações de ” antipsquiatria” e têm colocado todo tipo de crítica sob a mesma bandeira.”

Assim, o Dr. Aftab nos diz: “Há uma hostilidade desenfreada, desinformação, argumentos mal orientados, etc., bem exemplificados pela Cientologia, Szasz, e outros atores”. Parece-me que as várias falhas na teoria e prática psiquiátrica, que o próprio Dr. Aftab admitiu, justificam uma dose de hostilidade abundante, desenfreada ou não. Se a Cientologia, Thomas Szasz, e outros atores também promovem “desinformação, argumentos mal orientados, etc.” depende da perspectiva de cada um. Eu responderia que quem afirma a “legitimidade fundamental da psiquiatria como ramo da medicina” e promove a noção de que a psiquiatria é “uma profissão com uma rica história intelectual”, ao mesmo tempo e no mesmo jornal, reconhece que muitos psiquiatras em posições de poder e influência “muitas vezes têm feito reivindicações grandiloquentes – e às vezes demonstraram uma arrogância impressionante”, e que “os receptores de cuidados psiquiátricos muitas vezes têm sido deixados traumatizados, desencantados, até mesmo devastados por sua experiência” não está sendo totalmente consistente. O Dr. Aftab descreve corretamente um estado de coisas verdadeiramente terrível, mas desvaloriza certos membros selecionados do movimento contra a psiquiatria com o argumento de que sua hostilidade à psiquiatria é “desenfreada” e que na opinião do Dr. Aftab suas afirmações constituem “desinformação” e “argumentos mal orientados”.

Talvez, se ele estabelecesse exatamente quais argumentos da Cientologia, Thomas Szasz, e os “outros atores” não especificados, constituem desinformação, nós poderíamos formar os nossos próprios julgamentos sobre quem está mal orientado ou mal informado. Ou o Dr. Aftab está sugerindo que devemos apenas deixar estas questões espinhosas para ele decidir, e passar para o resto de nós os resultados de seu conhecimento e sabedoria superiores?

Note, a propósito, que o Dr. Aftab usa a frase “alegações de ‘antipsiquiatria” como se fosse algum tipo de crime, e que somente as críticas aprovadas pelo Dr. Aftab têm validade genuína. Este é um exemplo da “espantosa arrogância” que ele atribuiu anteriormente a “muitos psiquiatras em posições de poder e influência”?

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“Como mencionei, com base no papel social que a psiquiatria ocupa atualmente, é inevitável um escrutínio excessivo”.

Note a afirmação implícita de que o escrutínio é inevitável e excessivo, e decorre do “papel social” da psiquiatria. Em resposta a esta afirmação do Dr. Aftab, eu sustento que, baseado no papel quase policial que a psiquiatria abraçou e continua a abraçar de bom grado, e no dano feito a seus clientes nestes e outros contextos, um alto nível de escrutínio, e até mesmo condenação, não só é inevitável, mas também justificado.

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“Morehead faz referência ao trabalho de 2012 de Phillips et al sobre questões conceituais e de definição no diagnóstico psiquiátrico.20 Este artigo destaca alguns dos nomes mais proeminentes da filosofia da psiquiatria e revela as dificuldades filosóficas que envolvem a noção de doença mental e a indefinição de uma definição satisfatória. Este tem sido um tema de meu interesse por muitos anos, e meu próprio trabalho filosófico nesta área reflete as inadequações conceituais de nossa noção de doença mental.″

Esta é a questão central em todo o debate. Mas a noção de doença mental não é elusiva; na verdade, ela é cristalina. É um erro – mas não é elusivo em nenhum sentido comum do termo.

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Este post, entretanto, está se tornando longo. Retornarei a este tema em meu próximo post.

Devo também mencionar de passagem que, embora discorde de grande parte do artigo do Dr. Aftab, ele é, no entanto, uma corajosa matéria escrita. Ele chama a atenção para muitas das contradições e erros da psiquiatria, e a questão principal em minha mente é por que ele não troca as especialidades por algo mais válido e útil, e deixa os comentários inúteis da psiquiatria para  os seus tagarelas fúteis, que aliás é que não faltam.

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Mad recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são projetados para servir como um fórum público para uma discussão -psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as próprias dos escritores.

Como a Classe Socioeconômica Afeta a Terapia?

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Quando se trata de prever o resultado de tratamentos psicológicos, a aliança terapêutica é uma das variáveis mais amplamente investigadas. Por exemplo, uma meta-análise recente de 295 estudos sobre a associação entre a aliança terapêutica e o resultado geral em psicoterapias para adultos revelou que a aliança estava positivamente relacionada ao resultado do tratamento em todas as formas de terapias, contextos culturais e características do cliente. No entanto, existem poucas pesquisas sobre como os fatores sociais e econômicos relacionais, como a classe, afetam a qualidade da relação terapêutica.

Um novo trabalho liderado por Martin Wolgast na Universidade de Lund, na Suécia, revela que pessoas de baixo status socioeconômico têm mais dificuldades para estabelecer uma aliança terapêutica. Pessoas de baixa condição socioeconômica e de minorias étnicas tipicamente experimentam um número maior de eventos adversos à vida, mais “estresses de vida”  (como o endividamento), e um sofrimento psicológico mais significativo. No entanto, a maioria das intervenções terapêuticas foi desenvolvida para abordar as questões e preocupações da classe média educada, e as queixas de sintomas são tratadas de forma diferente em clientes de diferentes status socioeconômicos.

Sem surpresa, então, Wolgast e seus colegas relatam que a “pesquisa disponível sugere que a psicoterapia não é ‘isenta de classe’, e que clientes da classe trabalhadora ou de posições socioeconômicas mais baixas podem estar sistematicamente em desvantagem nos contextos psicoterapêuticos”.

Enquanto as definições tradicionais de classe social delimitam as classes com base em aspectos como a relação dos indivíduos com os meios de produção e propriedade do capital, um marcador mais facilmente mensurável das relações de classe consiste em diferenças quantitativas no status socioeconômico. Os pesquisadores previram que o status socioeconômico estaria positivamente correlacionado à percepção do cliente sobre a qualidade da aliança terapêutica; em outras palavras, eles previram que os participantes com status socioeconômico mais elevado (SES) classificariam a aliança terapêutica como melhor do que os participantes com SES mais baixo.

Os resultados apoiam esta hipótese. Usando a modelagem da equação estrutural de 217 pesquisas dos entrevistados, os pesquisadores encontraram um padrão de afastamento dos clientes com SES inferior do contexto terapêutico.

Os pesquisadores explicam que tal distanciamento do contexto terapêutico “pode implicar tanto experiências nos clientes de não serem compreendidos e como inferiores em relação ao seu terapeuta, como também percepções entre os terapeutas de clientes da classe trabalhadora como sendo menos adequados e receptivos à psicoterapia”.

Estes resultados foram mais substanciais nos clientes que participam da terapia psicodinâmica versus terapia cognitiva comportamental, talvez devido aos diferentes papeis do psicoterapeuta dentro destas modalidades de tratamento.

Estas descobertas, os autores observam, também podem ser entendidas para sugerir “que existem preconceitos internalizados baseados na classe entre os terapeutas, refletindo o fato de que eles próprios pertencem à classe média e que o modelo terapêutico que praticam é baseado nas normas da classe média”.

Estes resultados sugerem uma profunda necessidade de mudança no treinamento psicoterapêutico, na pesquisa e no desenvolvimento de métodos.

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Wolgast, M., Despotovski, D., Lachonious Olsson, J., and Wolgast, S. (2021). Socioeconomic Status and the Therapeutic Alliance: An Empirical Investigation Using Structural Equation Modeling. J Clinical Psychology, 1-16. (Link)

Johann Hari: “Foco Roubado” – Porque a gente não consegue mais prestar atenção?

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Esta semana, no podcast do Mad in America, ouvimos de Johann Hari. Johann é um autor internacionalmente best-seller cujos livros apareceram em 38 idiomas, e foi nomeado duas vezes Jornalista Nacional do Ano pela Anistia Internacional.

Johann esteve conosco em 2018 sobre o seu novo livro de então Conexões Perdidas: Descobrindo as Causas Reais da Depressão e as Soluções Inesperadas [Lost Connections: Uncovering the Real Causes of Depression and the Unexpected Solutions]. Hoje, iremos falar sobre o último livro de Johann, Foco Roubado: Por que não conseguimos prestar atenção [ Stolen Focus: Why You Can’t Pay Attention], lançado no dia 6 de janeiro de 2022 no Reino Unido e 25 de janeiro nos EUA e Canadá.

Para escrever o livro Foco Roubado, Johann fez uma jornada de três anos para descobrir as razões por de trás da nossa incapacidade de focalizar e entender como esta crise afeta o nosso bem-estar e a sociedade. De forma crucial, ele aprendeu como podemos recuperar o nosso foco roubado se estivermos preparados para lutar por ele.

A transcrição abaixo foi editada para maior extensão e clareza. Ouça aqui o áudio da entrevista.

 

James Moore: Johann, bem-vindo. Muito obrigado por se reunir comigo hoje para o podcast Mad in America. Falamos pela última vez em 2018 e discutimos o seu novo livro na época Conexões Perdidas: Descobrindo as Causas Reais da Depressão e as Soluções Inesperadas, que com toda a razão se tornou um best-seller internacional.

Aqui estamos nós em 2022, e seu novo livro Foco Roubado analisa a razão pela qual estamos lutando para prestar atenção. Seu trabalho escrevendo Conexões Perdidas levou diretamente ao seu desejo de escrever Foco Roubado, ou houve um evento precipitante que criou o desejo de saber mais?

Johann Hari: Acho que há uma espécie de conexão perdida, que é o que todos os meus livros são: uma pergunta à qual quero responder e que não sei a resposta com antecedência. É claro que eu tinha várias ideias, suposições. Então, como você disse, com Conexões Perdidas, a pergunta era: por que tantas pessoas estão deprimidas? Por que tantas pessoas estão ansiosas? O que podemos fazer a respeito disso? Para o Foco Roubado houve – não vou dizer um evento precipitante – mas uma espécie de evento culminante onde percebi que eu tinha que pensar sobre isso.

Quando o meu afilhado tinha nove anos de idade, ele desenvolveu uma breve mas assustadoramente intensa obsessão com Elvis Presley. Assim, ele fazia obsessivamente a clássica imitação de Elvis, sacudindo a pélvis e fazendo um baixo crooning. É engraçado porque eu nem sei como ele chegou ao Elvis, deve ter sido no Youtube. Lembro-me dele exigindo que eu lhe contasse a história de Elvis. Dei a ele um pouco do resumo da história e obviamente pulei o final. No decorrer disso, mencionei que ele tinha construído um tipo de palácio para a sua mãe quando se tornou famoso e o chamou de Graceland.

Lembro-me de uma noite em que o aconchegava e que ele disse: “Johann, você vai me levar à Graceland um dia?”. Eu disse: “Sim, claro”, da maneira como se faz com as crianças quando elas lhe fazem perguntas completamente hipotéticas. Eu não pensei mais nisso até 10 anos depois, quando as coisas realmente deram errado. Ele já tinha 19 anos e havia abandonado a escola quando tinha 15. Eu estava muito preocupado com ele, em parte porque parecia que ele simplesmente não era capaz de se concentrar em nada. Ele passava a vida alternando entre o seu iPad e o seu telefone e o seu laptop, e a algo indistinto entre Youtube, Snapchat e pornografia. Ele era uma pessoa adorável, mas parecia que não havia nada que pudesse ter força em sua mente. Parecia que naquela década ele havia se tornado um homem que estava meio quebrado e fragmentado. Ele era um exemplo extremo, mas eu senti que isso estava acontecendo comigo e pensei que isso também estava acontecendo com muitas pessoas que eu conhecia.

Havia algumas provas sugestivas que eu conhecia, um pequeno estudo dos estudantes universitários americanos que descobriu que eles se concentravam em média em qualquer coisa durante 65 segundos. O trabalhador médio de escritório, de acordo com a pesquisa de Gloria Mark, concentrava-se durante três minutos em qualquer coisa. A nossa vida inteira se dissolvendo em uma espécie de tempestade de granizo de 65 segundos ou três minutos.

Um dia, lembro que nós estávamos sentados em meu sofá aqui em Londres e eu estava olhando para o meu telefone, olhei para o meu sobrinho e disse: “Vamos para Graceland”. Ele nem se lembrava dessa obsessão do Elvis. Eu disse: “Temos que quebrar este tipo de rotina entorpecida, vamos para Graceland”. Ele disse: “Você está falando sério?” Eu disse: “Mas só o farei se você prometer que não vai olhar para o telefone o tempo todo, que vai deixar o seu telefone no hotel”. Ele disse: “Sim, sim, eu prometo”.

Apenas algumas semanas depois, fomos para Nova Orleans e diferentes partes do Sul e depois para Graceland. Quando você faz um tour por Graceland agora não há mais um ser humano que lhe mostre a cidade. O que acontece é que você chega e eles lhe dão um iPad e você coloca fones de ouvido e o iPad fala com você e explica a história. Estávamos andando por Graceland e todos estavam apenas olhando para os seus iPads. Cabeças para baixo, olhando para o iPad deles, e eu tentando fazer contato visual com as pessoas.

Uma pessoa olhou para mim e eu queria dizer: “Oh, olha, somos as pessoas que viajaram milhares de quilômetros para realmente olhar para o lugar para onde viajamos”. Então percebi que ele olhou para mim só porque desviou o olhar do iPad para tirar o seu telefone e para tirar uma fotografia de si próprio. Finalmente, chegamos à Sala da Selva que era a sala favorita de Elvis na mansão. Esse casal estava ao meu lado e ele se virou para a sua esposa e disse: “Querida, isto é incrível”. Se você deslizar para a esquerda no iPad você pode ver o Salão da Selva para a esquerda, e se deslizar para a direita você pode ver o Salão da Selva para a direita”. Eu olhei e vi a sua esposa começando a deslizar o mouse para a esquerda e para a direita. Fiquei tão nervoso que apenas disse: “Mas senhor, vocês percebem que há uma forma antiquada aqui de passar o mouse. Se pode simplesmente virar a cabeça, porque estamos na verdade na Sala da Selva, você não precisa olhar uma representação dela em seu iPad, estamos literalmente lá, estamos na Sala da Selva“. É claro, eles saíram da sala e claramente pensaram que eu era algum tipo de lunático.

Voltei-me para o meu afilhado para rir sobre isso, e ele estava apenas no canto, olhando para o Snapchat, porque não conseguia cumprir com a sua promessa. Ele estava constantemente mandando mensagens de texto, olhando para o Snapchat, incapaz de estar presente. Eu apenas comecei a gritar e ele saiu de forma totalmente justificável e eu não o vi mais até aquela noite. Estávamos hospedados no Hotel Heartbreak, que fica ao fundo da rua de Graceland. Encontrei-o perto desta piscina que tem o formato de um violão e eles estão sempre tocando Suspicious Minds lá. Ele apenas disse: “Eu sei que algo está realmente errado, mas não sei o que é” e voltou a olhar para o telefone dele.

Eu me lembro de sentir raiva. Não estava bravo com ele, estava realmente bravo comigo mesmo porque podia sentir aquelas forças pesando sobre mim mesmo, não era tão severo quanto com ele ou pelo menos o resultado não era tão severo. Foi então que eu pensei que realmente precisava investigar isto. Talvez estas anedotas não representem uma realidade mais ampla, ou talvez elas representem. Acabei viajando muito pelo mundo, do Rio a Moscou, de Miami a Melbourne, para tentar descobrir o que realmente estava acontecendo. Acredito que há fortes evidências de que estamos enfrentando uma verdadeira crise de atenção e obtive muitas informações das pessoas que conheci e do estudo de suas pesquisas sobre a razão pela qual isto está acontecendo conosco e o que podemos fazer a respeito.

Moore: Foi de partir o coração ler esse relato da alegria da infância ficando obscurecida ao se ficar olhando para as telas. É claro, quando se está lendo o livro, a gente reconhece muito desse comportamento em nós próprios. Eu me peguei dizendo à minha filha para não olhar tanto para a tela enquanto eu segurava um iPad, isso é completamente ridículo.

Hari: Eu acho que você está tão certo, isto é algo que está pesando sobre todos e não apenas por causa das mudanças tecnológicas que vem acontecendo, embora elas sejam uma parte fundamental. Mas muitas vezes pode se sentir muito ambiente, muito escorregadio e foi realmente impressionante para mim aprender com esses cientistas incríveis que há realmente boas evidências científicas para 12 fatores diferentes que estão indiscutivelmente acabando com a nossa atenção. Mas que uma vez que entendemos o que isso significa, podemos começar a lidar com o que está acontecendo. Há técnicas, algumas delas são técnicas pessoais e outras são mudanças sociais maiores, que podemos implementar e que realmente nos ajudarão a lidar com isso. Não é que a sua atenção tenha falhado, a sua atenção foi roubada por essas forças maiores e precisamos mudar a forma como pensamos sobre isso.

Se eu penso em como me comportei com meu afilhado, mas também como me comportei comigo mesmo, foi como uma forma de reprovação. É como “você está sendo preguiçoso, você está sendo fraco, se recomponha”, o que não funciona, não funciona muito bem para nada, mas particularmente não funciona para isto porque existem estas causas maiores. Precisamos pensar sobre isto de uma maneira muito diferente e ter uma disposição muito diferente para os nossos próprios problemas de atenção e para os problemas de atenção de nossos filhos.

Moore: O livro examina uma série de forças profundas que trabalham para prejudicar a nossa atenção. Será que poderíamos tocar em duas coisas que se destacaram para mim? A primeira foi o esgotamento de nossos estados de fluxo. O livro fala de uma crise em como passamos o nosso tempo e mantemos superficialmente a atenção, mas também fala de uma mudança real em como vivemos o momento presente. As pessoas podem ter ouvido falar do conceito de “estado de fluxo”, mas será que você poderia nos dizer um pouco sobre isso, por que é tão importante para nós e por que é muito mais difícil de se alcançar nos últimos tempos?

Hari: Aprendi muito sobre isto com Mihaly Csikszentmihalyi que é o cientista que descobriu isto pela primeira vez e que eu entrevistei em Claremont na Califórnia. Tive muita sorte em poder entrevistá-lo porque ele morreu muito recentemente, o que foi uma verdadeira perda. Acho que a história de Mihaly realmente nos ajuda a entender o conceito de fluxo. O que ele descobriu é que todos os seres humanos têm a capacidade de focalizar muito profundamente de forma que se sinta sem qualquer esforço em certas circunstâncias e que a maneira atual de viver não permite essas circunstâncias.

Eu sempre penso nele no início do relato quando ele tinha nove anos de idade, quando ele estava em um lugar chamado Fumei na Itália e era o auge da Segunda Guerra Mundial e o lugar estava sendo bombardeado até o inferno. Um dia, um bombardeio começou e Mihaly correu para tentar encontrar abrigo, e ele correu para o açougue local porque era o prédio sólido mais próximo e havia adultos tentando entrar na loja. Eles eventualmente conseguiram entrar, mas quando entraram descobriram que os três açougueiros haviam sido assassinados e estavam pendurados nos ganchos do açougue. Ele teve que se esconder ali ao lado dos corpos até que o bombardeio tivesse terminado.

Mihaly era de uma família húngara, seu pai era um diplomata húngaro e eles estavam basicamente fugindo por diferentes partes da Europa tentando encontrar segurança durante toda a guerra. Ele se torna um adolescente nas ruínas da Europa e está convencido de que os adultos realmente não sabem como viver, eles destruíram o mundo e não sabem como viver. Ele acabou em um campo de refugiados por um tempo, tendo tido uma vida muito dura.

Um dia ele se aproxima para se tornar membro do grupo escoteiro local e eles começam a levá-lo para as montanhas, o que ele nunca havia feito antes. Ele começa a ter este sentimento incrível que não consegue articular, mas quando estava fazendo algo bastante difícil e desafiador, como andar por um barranco, ele sentia como se seu senso de ego tivesse derretido, que ele tinha este sentimento profundo. Ele não tinha uma palavra para isso, mas mais tarde ele chamou de fluxo, este momento que muitas pessoas terão vivido. Para algumas pessoas, seria tocar o violão, para algumas pessoas, seria exercitar-se. Para mim, seria escrever. Quando se está fazendo algo e se está totalmente envolvido nisso. Você está nesse momento e você está fluindo e seu senso de tempo e ego desaparecem e você está prestando muita atenção. Mas não ‘sente’ que você está prestando atenção, não sente que você tem que prestar atenção, há apenas um jorro de atenção.

Mihaly tem estas experiências incríveis e decide que estar em um campo de refugiados não é maneira de viver. Ele decide ir para Roma quando tem apenas 13 anos. Ele vai para Roma por conta própria e se torna tradutor e  garçom. Na verdade, ele serviu a Humphrey Bogart uma vez. Ele decide que quer estudar psicologia e se dirige aos Estados Unidos Quando ele chega aos Estados Unidos, ele tem esta descoberta realmente sóbria. Ele descobre que a psicologia americana naquela época estava dominada por uma visão realmente sombria. É uma visão que realmente tomou conta de grande parte do mundo em que vivemos agora.

Um homem chamado B. F. Skinner era o psicólogo mais famoso dos Estados Unidos na época. Skinner tinha construído este modelo de psicologia que mais tarde foi usado para projetar o Instagram e as mídias sociais com as quais a sua filha é sem dúvida obcecada e com as quais a maioria das crianças e a maioria de nós é obcecada. E vem de uma forma loucamente simples de psicologia.

As pessoas podem tentar isto em casa, se quiserem ver como funciona. Por exemplo, se você pegar um pombo e colocá-lo em uma gaiola, os pombos estão fazendo movimentos aleatórios o tempo todo, eles bicam em volta. Você pode selecionar um movimento aleatório, como quando o pombo move a sua asa esquerda, e decidir recompensar esse movimento. Toda vez que ele levanta a sua asa esquerda, você libera um pouco de semente para dentro da gaiola. Muito rapidamente, o pombo começará a levantar obsessivamente a sua asa esquerda porque aprendeu “oh, é assim que eu recebo uma recompensa”. Você pode escolher qualquer coisa, você pode escolher quando ele levanta a cabeça ou quando ele a agacha, não importa, é completamente arbitrário.

Skinner havia descoberto que quando se dá recompensas arbitrárias a um ser vivo, a gente pode treiná-lo para fazer todo tipo de loucura que ele não faria de outra forma. Você pode treinar um pombo para jogar ping-pong, você pode treinar um porco para aspirar, você pode treinar coelhos para pegar moedas e colocá-las em cofrinhos de porquinho. Você pode treinar um animal para se concentrar em coisas sem sentido, se você lhe der o padrão certo de recompensas. É claro que estas são as principais ideias que mais tarde foram usadas conscientemente para projetar o Instagram e assim por diante.

Mas Mihaly pensou que “tudo o que eles estão fazendo é se concentrar neste aspecto muito sombrio e redutor da natureza humana”. Isto não é o que queremos ser, apenas sacudindo e contorcendo arbitrariamente de acordo com o roteiro de outra pessoa. Ele acreditava que deve haver mais do que isso na psicologia humana. Ele decidiu estudar algo positivo, algo generativo. Ele começou simplesmente estudando um grupo de pintores em Chicago. Ele lhes dizia: “Posso apenas observá-los durante meses enquanto estão pintando, apenas observar o seu processo?”. Ao observá-los, ele começa a observar exatamente esta coisa de fluxo. Quando um pintor está pintando, eles entram neste estado quase hipnótico, aonde a atenção vem muito facilmente, onde estão muito absorvidos no que fazem.

Skinner tinha argumentado que toda a psicologia humana era sobre gratificações, mas Mihaly notou que uma vez que um pintor tinha terminado a sua pintura, eles não passavam anos apenas olhando para a pintura, eles não ficavam obcecados com o dinheiro que iriam receber. Geralmente, eles simplesmente colocavam o quadro de lado e faziam um outro. Que, na verdade, se toda a psicologia fosse sobre esta recompensa arbitrária, como você explicaria isso? Não se pode explicar. Ele descobriu que deve haver mais do que isto na psicologia. Deve haver uma força positiva e generativa, isto é o que o levou a estudar o que ele chamou de estados de fluxo.

Depois de conversar com esses pintores, ele começou a olhar para toda uma gama de pessoas como escaladores de montanhas, jogadores de xadrez. Inicialmente, ele só olhava para pessoas não-profissionais. Ele descobriu que a maneira como eles descreviam as suas experiências era incrivelmente semelhante e muitas vezes eles usavam uma palavra como ‘fluxo’. Sente-se apenas como se estivesse fluindo. Foi assim que ele identificou os estados de fluxo que são realmente importantes. Primeiramente, eles são a forma mais profunda da atenção humana. Em segundo lugar, eles são uma capacidade humana inata, se você souber onde perfurar pode liberar este jorro de atenção dentro de você de uma forma que não lhe parece trabalhosa.

Ele descobriu que existem certos parâmetros para a maneira como você entra no fluxo. Primeiramente, é preciso escolher um objetivo claro. Você tem que dizer “eu quero tocar este violão”, “eu quero pintar esta tela” e colocar de lado todos os seus outros objetivos. Esse objetivo tem que ser significativo para você. “Não sei nada sobre o violão, não me importo com o violão, gosto do som dos violões, nunca vou tocá-lo”. Se eu escolhesse assim o violão, isso não funcionaria, eu não entraria em fluxo.

O parâmetro seguinte e eu acho que este é o mais importante, é que ele tem que ser algo no limite de suas habilidades. Se você está fazendo algo muito fácil, você não entra em um estado de fluxo. Se você fosse um montanhista de nível médio, você não gostaria de subir o muro do seu ardim, assim como não gostaria de escalar o Monte Kilimanjaro que vai ser muito assustador. Você quer escalar algo um pouco mais alto e mais difícil do que a última coisa que você escalou.

Mihaly fez todas estas incríveis descobertas sobre o fluxo, sobre a importância que ele tem para a psicologia humana, sobre a facilidade com que produz a atenção. Mas ele também descobriu que os estados de fluxo são muito frágeis. Fundamentalmente, se você estiver perturbado, uma vez que todos nós estamos sendo interrompidos o tempo todo atualmente, seu sentido de fluxo simplesmente se dissolve. O fluxo é quase como se fosse um sonho. Se você for sacudido o tempo todo, você não sonhará. Se você for interrompido o tempo todo, você não vai fluir.

Vivemos em uma cultura que agora nos interrompe constantemente. Estamos passando por muitas interrupções de fluxo e, de certa forma, sinto que o que vivemos é um conflito entre o mundo que Skinner queria construir e o mundo que Mihaly identificou. Vivemos em um mundo dominado por tecnologias literalmente baseadas nos insights de Skinner. Quando você olha as pessoas posando interminavelmente para selfies para obter likes no Instagram, as pessoas são como os pombos de Skinner. Queremos ser os pombos de Skinner ou queremos ser como os pintores de Mihaly? Acho que essa é a escolha que enfrentamos agora.

Moore: Ler isso realmente me fez perceber como era fácil entrar nesse estado quando eu era mais jovem e, no entanto, desde que me envolvi muito mais com as pressões do trabalho e com as tensões diárias, tenho muito menos desses sentimentos hoje em dia.

Hari: Mas não é o envelhecimento, acho que é realmente importante porque Mihaly olhou para a idade e a idade não se correlaciona com os estados de fluxo. O que é, é a maneira como trabalhamos agora que é bem diferente de como trabalhávamos no passado. Não é para romantizar o passado, muitas coisas são melhores agora.

Entrevistei no Instituto de Tecnologia de Massachusetts um dos principais neurocientistas do mundo, um homem chamado Professor Earl Miller. Ele disse: “Olhe, você tem que entender uma coisa mais do que qualquer outra, você só pode pensar conscientemente em uma coisa de cada vez”. Esta é simplesmente uma limitação fundamental do cérebro humano e não mudou por 40.000 anos”. Você só pode pensar em uma coisa de cada vez. O que aconteceu é que passamos a nos envolver em uma espécie de ilusão, que é que podemos pensar em muitas coisas ao mesmo tempo. Acreditamos que posso falar com você, ao mesmo tempo que verifico os meus textos e também vejo a televisão em segundo plano. Mas o que o professor Miller e muitos outros cientistas descobriram é que quando você pensa que está fazendo muitas coisas ao mesmo tempo, na verdade, você está fazendo malabarismos entre elas. Você está fazendo malabarismos mentais. Sua consciência lida com o processo de malabarismo, mas o que você está fazendo é malabarismo. Isso vem acompanhado por quatro custos realmente grandes.

O primeiro é chamado de “custo da comutação”. Se eu olhar para meu telefone agora e olhar para você, eu apenas olho para as minhas mensagens, isso levaria apenas dois segundos, mas não leva porque a minha mente tem que se voltar para o que estávamos falando. Foi perturbada. Eu não perdi apenas o fluxo, na verdade perdi o trem do meu pensamento por um segundo.

O segundo custo é que ao fazer isso, você começa a cometer erros, inevitavelmente você comete erros quando está comutando entre as coisas, sua taxa de erros aumenta e você tem que voltar atrás para corrigir esses erros. O terceiro é que há um grande custo para a sua criatividade. Com o tempo, sua mente vai começar a se associar livremente, vai começar a fazer conexões entre diferentes coisas que você já experimentou. Se a sua mente estiver atolada, uma grande parte da sua capacidade está sendo utilizada na comutação e correção, você perde uma quantidade significativa desse tempo que produz criatividade. Quarto, você se lembra menos porque é necessária energia mental para codificar as suas experiências em memórias. Se você está gastando grande parte de sua capacidade de comutação, você não está fazendo nada disso.

A maneira como o professor Miller me disse é que estamos vivendo uma perfeita tempestade de degradação cognitiva como resultado da distração. Estamos atolados com isto. Os resultados disto são bastante duros se você olhar para alguns dos estudos. Houve um pequeno estudo que foi feito para a empresa de tecnologia Hewlett-Packard. Eles pegaram um grupo de trabalhadores e os dividiram em dois grupos. O primeiro grupo foi informado, “basta fazer seu trabalho e você não vai receber nenhuma distração por telefone, texto ou e-mail”. O segundo grupo foi perturbado com telefonemas, mensagens de texto e e-mails a uma taxa normal, e eles mediram o QI deles enquanto isso acontecia.

As pessoas que estavam distraídas, como resultado da distração, tinham um QI que era 10 pontos mais baixo do que as pessoas que estavam apenas fazendo uma coisa. Para dar um senso de comparação, isso é o dobro de seu QI quando você está chapado. Seria melhor se você estivesse sentado à sua mesa fumando um enorme baseado e apenas fazendo uma coisa do que sentado à sua mesa e tentando responder às constantes distrações enquanto faz o seu trabalho.

Houve outro estudo da Universidade Carnegie Mellon onde eles conseguiram 138 alunos, dividiram-nos em dois grupos e fizeram todos o mesmo exame. A um grupo foi dito “condições normais de exame, basta fazer apenas o exame, você não pode ter o seu telefone”. Ao segundo grupo foi dito: ‘você pode receber e enviar mensagens de texto’. O segundo grupo, o que recebeu mensagens de texto, se saiu em média 20% pior no exame. Atualmente, todos nós estamos perdendo esses 20% de capacidade cerebral o tempo todo, praticamente o tempo todo. Pode-se ver que isso não é algo a ser feito, oh, eu sou apenas mais velho agora do que era então, mas não é que você seja mais velho, é que houve uma mudança profunda no ambiente. Essa não é a única, mas houve uma mudança profunda no ambiente que degrada profundamente a nossa capacidade de nos concentrarmos e prestar atenção.

Moore: Ao longo do livro, há este tema da expansão da tecnologia que pode nos rastrear e manipular. Você tocou em questões que têm estado no radar muito recentemente, o uso crescente das mídias sociais, o aumento da vigilância digital. Alguns ouvintes podem ter visto o filme “O Dilema Social” e você passou um tempo com os autores desse filme, Tristan Harris e Aza Raskin, embora o seu livro considere questões muito mais amplas do que apenas o uso da tecnologia. Quando estamos considerando a mídia social e os mecanismos de busca, como o Google, parece que está sendo planejada intencionalmente essa distração. Foi isso que você encontrou em sua pesquisa para o livro?

Hari: Sim, isto é algo que aprendi com muitas das pessoas no Vale do Silício que realmente projetaram o mundo em que vivemos agora e que se sentem realmente desconfortáveis com o que suas criações fizeram. Acho que é realmente importante se entender e isto é algo que realmente mudou a minha maneira de pensar sobre o assunto. Parte desta distração é inerente à tecnologia, mas uma grande parte da degradação de nossa atenção não se deve à tecnologia em si, mas sim ao atual modelo de negócios da tecnologia e à forma como esta é projetada.

Vamos começar com uma pergunta realmente básica que é, o Facebook vai lhe dizer muitas coisas. Ele lhe dirá o aniversário de sua avó, lhe dirá se houve um ataque terrorista e se seus amigos e entes queridos estão seguros. Mas há algo que o Facebook não faz. Muitas vezes você estará sentado em casa e pensará “oh eu me pergunto quais dos meus amigos estão livres e gostariam de me encontrar?” Não há nenhum botão no Facebook que diga, “quais dos meus amigos estão por perto e livres e gostariam de me encontrar?“. Esse seria um botão realmente popular. Tenho certeza de que todos os que estão nos ouvindo pensariam “oh, eu gostaria de ter essa opção”. Por que o Facebook não oferece essa opção?.

Quando você segue o rastro da resposta a essa pergunta, acho que isso nos ajuda a entender muito do que está acontecendo. O modelo de negócios do Facebook no momento e de todos os principais sites de mídia social é essencialmente ganhar dinheiro com duas coisas. A primeira é obviamente que eles vendem publicidade, você olha para o Facebook e vê um anúncio. Ok, isso é muito simples.

A segunda é cada vez que você faz alguma coisa no Facebook, que você envia uma mensagem para sua avó, que você gosta de alguma coisa, você não gosta de alguma coisa, o que quer que seja. Essa informação está sendo classificada e selecionada. As informações são coletadas e selecionadas para construir um perfil de você, que depois são vendidas para os anunciantes para que estes possam direcionar anúncios para você.

Assim que você pousa o seu telefone, a cada minuto que você não está olhando para o seu telefone, essas empresas estão perdendo dinheiro porque não recebem a publicidade e recebem menos informações sobre você. A cada minuto que você olha para o seu telefone, elas ganham mais dinheiro. Sua distração é o combustível delas. Cada vez que você recupera a sua atenção para fazer algo mais, isso é um desastre para elas. Seus designers, que não são pessoas más de forma alguma, são pessoas muito espertas e sofisticadas, dedicando toda a sua energia para descobrir como manter as pessoas navegando.

Agora, quando você entender que pode perceber por que esse botão não existe. Se dissesse, bem, oh meu amigo Bob está na esquina e quer ir beber um Chopp, eu desligaria o meu telefone. Eu desligaria o telefone, eu iria e me sentaria com Bob no barzinho. Eu não falaria com Bob através do Facebook, eu falaria com ele no mundo real que todos nós sabemos que nos faz sentir muito melhor. Isso seria um desastre para o preço de suas ações.

Tudo o que eles fazem é resultado do modelo de negócios, não como resultado da crueldade individual por parte das pessoas. Elas não são vilões do James Bond, mas o modelo de negócios toma essa decisão por elas. Os produtos são projetados para nos distrair, eles são projetados para perturbar a nossa atenção. Há muitas maneiras pelas quais estes modelos prejudicam a nossa atenção que fluem diretamente deste modelo de negócios. A solução para isso é que temos que lidar com o modelo de negócios.

Nos anos 70, as pessoas costumavam pintar as suas casas com tinta à base de chumbo e depois descobriu-se que isto causava danos profundos à atenção das crianças e ao QI. O que nós fizemos? Proibimos o chumbo na pintura. Não proibimos a pintura, eu estou sentado em uma sala que é pintada, você também está. Acabamos de nos livrar do chumbo na tinta. Da mesma forma, podemos proibir esse modelo de negócio específico de exploração da atenção, isso não significa que não teremos mídia social, significa apenas que ele funcionará com princípios muito diferentes.

Moore: Eu acho que a gente começa a sentir-se muito diferente quando começa a perceber que a nossa atenção é um produto que os gigantes das mídias sociais querem. Isso dá um giro bem diferente em vez de ver isso como uma atividade simples e benigna que é ver o que seus amigos estão fazendo.

Hari: Exatamente, Tristan Harris, que é uma das pessoas que mais admiro, é um ex-engenheiro do Google que trabalhou profundamente nisto. Há um momento que realmente me arrepia. Ele trabalhou na equipe do Gmail na época em que ela estava sendo desenvolvida. Houve um momento em que alguém disse: “Ei, por que não fazemos com que toda vez que alguém recebe um e-mail, o seu telefone vibre?” Todos disseram: “oh, isso é uma boa ideia”. Então ele descreve que apenas em poucas semanas, caminhando por São Francisco em Palo Alto, onde ele estava era só ouvindo e vendo os telefones das pessoas vibrando, e se dando conta de que isso estava acontecendo no mundo inteiro. Na verdade, como resultado dessa decisão, houve 11 bilhões de intervenções todos os dias e ele pensou “oh meu Deus, o que estamos fazendo?”

Há estes momentos em que você percebe como foram tomadas estas decisões em um contexto específico e que podemos desfazer. Não tem que ser assim. As pessoas que o projetam não gostam. Um dos antigos engenheiros do Google que eu entrevistei, James Williams, falou uma vez em uma conferência de tecnologia, centenas e centenas de pessoas estavam lá. Estas são pessoas que estão projetando o mundo em que vivemos. Ele disse: “Qualquer um aqui que levante a mão se quiser viver no mundo que estamos projetando?”. Nem uma só pessoa levantou a mão. Trata-se de mudar os incentivos para essas pessoas, os incentivos financeiros para que possamos chegar a um modelo mais são.

Moore: Acho que muitos de nós lutamos contra essa sensação de ter que conspirar com as mídias sociais, quase sentindo que é um mal necessário ou sentindo a sensação de perder se você não o usa ou tem que usá-lo para fins promocionais. Como não marcharmos ao seu ritmo? Há maneiras de pensarmos de forma diferente sobre o uso da tecnologia para fins promocionais ou de conexão?

Hari: É uma pergunta realmente importante. A primeira coisa é o que podemos fazer enquanto indivíduos, e como você sabe, eu tentei uma solução muito extrema para o meu livro. Passei três meses inteiramente sem a Internet e conto essa história no livro. Isso ajudou enormemente a minha atenção, e então voltei e estava tão mal quanto jamais tinha estado. Fui ver James Williams, o antigo engenheiro do Google, que agora é um filósofo realmente importante da atenção. Ele estava em Moscou e eu fui vê-lo lá.

Lembro-me de James me dizer: “Johann, você está pensando nisto da maneira errada. Tentar ter uma desintoxicação digital individualmente está bem se você quiser, isso o ajudará um pouco.” Mas, disse ele, “é como pensar que a solução para a poluição do ar é usar uma máscara de gases um dia por semana“. Quero dizer, tudo bem, não sou contra máscaras de gases, elas nos podem dar algum alívio, mas a gente tem que ir até a raiz do problema.

Acho que há muitas coisas que podemos fazer como indivíduos. Não sei se você pode ver em meu escritório aqui, eu tenho o que é chamado de kSafe. É um cofre plástico cronometrado onde você pode levantar a parte superior, colocar o telefone e girar a parte superior e ele vai trancar o seu telefone por quanto tempo você disser para ele. Eu uso isso todos os dias para guardar o meu telefone por pelo menos quatro horas. Em meu laptop que estou falando com você através de Freedom, um aplicativo que o desliga da internet. Eu tenho muitas coisas pessoais que faço e sobre as quais escrevo no livro. Sou a favor de todas essas intervenções, elas são valiosas e importantes. Também sou a favor de ser honesto com as pessoas, o que só vai levar você até aqui.

Há uma camada mais profunda de solução para isto, que é que temos que realmente assumir as forças que estão roubando o nosso foco e derrotá-las. Temos que impedi-las de fazer isso. No momento, é como se alguém estivesse derramando pó de mico sobre nós e depois as pessoas nos dissessem: “você sabe, você pode querer meditar, isso o ajudaria com todos os arranhões“. Precisamos ir às fontes destes problemas, que incluem a tecnologia. Lembro-me de quando pensei pela primeira vez sobre este pensamento, ‘”sso soa realmente assustador”. Como James Williams me disse, “problemas sistêmicos exigem soluções sistêmicasp” e comecei a pensar sobre isso em relação a uma luta social mais ampla.

Estou com 42 anos por mais algumas semanas. Quando minhas avós tinham 42 anos de idade, isso era 1962. Pensei em suas vidas. Uma de minhas avós era uma mulher escocesa da classe trabalhadora que vivia nos cortiços escoceses. A outra era uma camponesa suíça, que é como a teriam descrito na época, vivendo em uma montanha na Suíça. Minhas avós deixaram a escola quando tinham 13 anos, porque ninguém se importava em educar meninas. Minha avó suíça era realmente brilhante no desenho e na pintura. Ninguém queria ouvir isso, era “calar a boca, se casar”. Minha avó escocesa foi trabalhar em uma lavanderia. Ela queria ficar na escola, ninguém se importava com ela estar fora da escola.

Quando tinham 42 anos, a idade que eu tenho agora, minha avó suíça nem sequer tinha direito a voto. Quatro por cento dos membros do Parlamento na Grã-Bretanha eram mulheres. Não havia mulheres chefes de empresas, não havia mulheres policiais ou mulheres oficiais superiores da polícia. Os homens controlavam quase tudo. Era legal que minhas avós fossem estupradas por seus maridos. Elas não podiam ter contas bancárias em seus próprios nomes porque eram mulheres casadas. O grau de poder masculino é difícil de se entender.

Agora, ainda há um longo caminho a percorrer e eu valorizo o fato de que para as mulheres que estão ouvindo é extremamente irritante ouvir um homem explicar isto a alguém. Mas se eu olhar para a minha sobrinha que agora tem 17 anos e adora desenhar como a sua bisavó adorava desenhar, a lacuna entre a vida da minha avó e a vida da minha sobrinha é espantosa. Agora, quando a minha sobrinha desenha, dizemos: “É maravilhoso que você vá para a escola de arte, nós te amamos, você é ótima“. Mesmo os misóginos malucos não sugerem que a minha sobrinha não deve ter uma conta bancária, não deve ter direito a voto, ou que deveria ser legal estuprá-la. Estas coisas são hoje em dia insondáveis e impensáveis e com toda a razão.

Por que essas mudanças aconteceram? Não aconteceram porque as pessoas poderosas decidiram entregá-las de cima para baixo. Aconteceu porque mulheres comuns e alguns homens simpáticos se uniram e disseram “isto é uma merda, não vamos tolerar mais isto, isto não está certo“. E eles lutaram, e eles lutaram, e eles lutaram, e eles lutaram. Eventualmente, em muitas questões eles prevaleceram, ainda há um longo caminho a percorrer, sublinho que novamente e de certa forma temos andado para trás em algumas áreas.

Houve uma grande luta, assim como o movimento feminista tornou possível que as mulheres recuperassem os seus corpos. Acho que precisamos, e já existe um movimento da atenção para reivindicar as nossas mentes. Precisamos enfrentar as forças que estão fazendo isso conosco. Elas não são populares. Elas são poderosas em alguns aspectos, mas são fracas em outros. Há diferentes maneiras de nossa sociedade funcionar e administrar, que não nos destroem e invadem o nosso foco.  Temos que enfrentar essas pessoas, temos que enfrentar essas forças e temos que prevalecer sobre elas.

Isso requer uma mudança em nossa psicologia porque, embora haja coisas que os indivíduos podem fazer e eu falo muito sobre elas no livro, também precisamos sair desta mentalidade de nos culpar ou apenas pedir pequenas coisas. Nós não somos camponeses medievais na Corte do Rei Zuckerberg implorando por migalhas de atenção da sua mesa. Somos os cidadãos livres da democracia e podemos reclamar as nossas mentes se quisermos.

Moore: O livro fala sobre os impactos combinados da falta de atenção, má alimentação, poluentes ambientais, falta de tempo na natureza, falta de sono, excesso de trabalho, estresse crônico e muito mais. É difícil ler o livro e não sentir que tudo isso não poderia ser mais bem projetado para nos impedir de responder a crises e problemas sociais. O fator comum parece ser o de colocar o lucro à frente das pessoas. Você acha que o impulso para o crescimento econômico sustentado é realmente a questão por trás de tudo isso?

Hari: Há esta pergunta que surgiu no início da minha pesquisa e que eu me afastei um pouco do pensamento por um longo tempo. Fui a Copenhague, na Dinamarca, para entrevistar o primeiro cientista a provar que a  atenção coletiva está realmente diminuindo. Este é o Professor Sune Lehmann, um incrível cientista da Universidade Técnica da Dinamarca, é professor de matemática aplicada. Sune fez esta descoberta realmente importante e ele a fez por uma razão pessoal. Ele tem estes dois jovens filhos que ele ama que vêm e saltam em sua cama e saltam por cima dele todas as manhãs. Todas as manhãs ele instintivamente pegava seu telefone antes de tocá-los, e ele pensava “há algo errado aqui”, então ele decidiu fazer uma pesquisa.

Inicialmente, ele fez um estudo bastante pequeno, mas ele realmente se incorporou a esta coisa maciça envolvendo muitos cientistas. Ele olhou inicialmente no Twitter. Como qualquer pessoa que escuta e usa o Twitter sabe, há certos tópicos de tendências que são as coisas de que um grande número de pessoas está falando. Eles são identificados pelo Twitter e têm uma tendência e você pode olhar para eles. Inicialmente, ele observou quanto tempo dura um tópico de tendências. Em 2013, o tópico de tendências duraria em média 17,5 horas, então as pessoas falariam de uma coisa por 17,5 horas. Quando se chegou a 2016, isso foi reduzido para 12 horas e continuou a diminuir. Isso é interessante, mas talvez seja uma peculiaridade do Twitter.

Ele começa a olhar para uma enorme variedade de outros conjuntos de dados para ver se estamos falando de uma coisa a menos e menos. Ele descobriu em toda a Internet (com uma exceção, Wikipédia, que é interessante e inexplicável) se são pesquisas no Google, Reddit, o que quer que seja, as pessoas estavam se concentrando cada vez menos em uma coisa qualquer. Acontece que isto era verdade em coisas como quando um filme é um sucesso, quanto tempo as pessoas continuam a vê-lo depois de ter havido um splash inicial, coisas assim.

Eles olhavam para livros que remontam à década de 1880, portanto, de 1880 até os dias de hoje. Há uma forma técnica que pode identificar novos conceitos que surgem nos livros, é denominada detecção de engramas. Pense em uma frase como “no deal Brexit”. Ninguém usou a frase “no deal Brexit” antes de 2016 , e suponho que dentro de cinco anos ninguém mais usará “no deal Brexit”. Então a frase emerge e depois desaparece, há frases como essa ao longo da história.

Você pode treinar um algoritmo para detectar estas novas frases, detectar o engrama e ver quanto tempo as pessoas falam sobre cada novo tópico. É efetivamente uma maneira de descobrir o equivalente ao que se esperava no Twitter no passado, é um método realmente inteligente. O que eles descobriram é realmente marcante. Desde a década de 1880, a cada década que passou, as pessoas discutiam novos conceitos por períodos cada vez mais curtos. O gráfico se parece exatamente com o gráfico do Twitter desde que o Twitter foi criado até os dias de hoje. O que é fascinante e bizarro.

Lembro-me de Sune dizer o mesmo quando olhou para os dados, “caramba, isto está realmente acontecendo, há realmente uma diminuição da atenção coletiva“. Ele está tentando descobrir por que isso aconteceria? Eles construíram um equivalente dos modelos que preveem as mudanças futuras no clima. Eles basicamente descobriram que se você quer fazer a informação se comportar assim, o que você tem que fazer é inundar o sistema com informação. Se você inundar o sistema com informações, qualquer um nesse sistema será capaz de lidar cada vez menos com essas informações. É como se estivéssemos bebendo de uma mangueira de incêndio, é como ele pensa, somos pulverizados com essa enorme quantidade de informação.

Quando você bombeia massivamente as pessoas com informações, você degrada a quantidade que elas possivelmente podem processar por razões óbvias. Foi realmente desafiador porque a tentação é dizer “oh isto é um problema que tem a ver com a internet” e, claro, os fatores que acabamos de falar são muito reais. Mas na verdade o que Sune mostrou é que a atenção tem sido degradada para toda a minha vida, para toda a vida de seus pais ou para a vida de seus avós. Na verdade, na vida de nossos bisavós, isso tem sido consistente. Qual é a coisa subjacente que está causando isso?

Há um grande debate sobre isto e eu ofereço isto muito mais cautelosamente do que ofereci as outras evidências porque não está claro. Mas pessoas como Thomas Hylland Eriksen, que é um dos principais cientistas sociais da Noruega, argumentaram que o que está acontecendo está relacionado com o fenômeno do crescimento econômico. Vivemos em uma economia e uma sociedade construída inteiramente em torno do princípio do crescimento econômico. Se os líderes políticos garantem o crescimento econômico, eles são reeleitos na maioria das vezes, se não supervisionarem o crescimento econômico, são expulsos. O mesmo acontece com os chefes de empresa, se a empresa cresce, eles são recompensados, se a empresa encolhe, eles são enxertados.

O professor Eriksen está falando sobre como podemos garantir o crescimento. Há duas maneiras: você pode identificar um novo mercado ou pode conseguir que um mercado existente consuma mais da mesma coisa. Por exemplo, se eu conseguir que você veja televisão e ao mesmo tempo olhe o seu telefone, eu dupliquei o mercado para publicidade. Você está exposto ao dobro da quantidade de publicidade a que estava exposto antes. Claramente, ainda há novos mercados sendo identificados, mas muito crescimento econômico está vindo atualmente desta invasão.

Por que dormimos menos, uma das principais causas dos problemas de atenção de que falo no livro? Bem, um grande fator é que estamos sempre amparados para estar comprando coisas e fazendo coisas. Estamos neste estado de agitação constante. Enquanto construímos um movimento de atenção que está tentando pensar sobre as razões pelas quais não podemos pensar tão claramente quanto queremos, mais cedo ou mais tarde teremos que contar com o fato de que temos um modelo baseado no crescimento econômico que requer níveis cada vez maiores de consumo quando na verdade, para recuperar a nossa atenção, temos que consumir menos.

A propósito, vamos ter que lidar com este modelo de crescimento econômico de qualquer maneira por causa das consequências ecológicas do mesmo. Não se pode ter um crescimento infinito em um planeta finito. Há muitas razões pelas quais vamos ter que lidar com o crescimento econômico e avançar em direção a modelos que existem, baseados no que é chamado de economia de estado estável, onde não se tenta crescer, tenta-se ficar onde se está.

Curiosamente, a COVID foi a primeira vez em nossas vidas e em muito tempo que algo diferente do crescimento econômico se tornou o princípio organizador de nossas sociedades. Isso aconteceu por causa de uma emergência, o que não é a circunstância ideal para fazê-lo, é claro, mas isso foi interessante. Foi um momento em que decidimos coletivamente desacelerar. Não quero ser loquaz quanto a isso, perdemos cinco milhões de pessoas em uma estimativa conservadora, isso causou muita dor psicológica e todo tipo de problemas.

Mas também para muitos de nós, houve um sentimento de alívio no mundo, além de todo esse estresse e horror. Um sentimento de que talvez não precisemos todos correr o tempo todo, talvez haja uma maneira diferente de ser. Acho que essa percepção pode ser valiosa quando a levamos adiante ao sairmos da pandemia, o que esperamos um dia vir a acontecer.

Moore: Você menciona a mudança climática e o meio ambiente. Como sabemos, o mundo está enfrentando o que só pode ser descrito como o desafio mais significativo e potencialmente transformador que já enfrentou em relação à mudança climática. Para enfrentá-lo será necessário que deixemos de lado as diferenças culturais e políticas e colaboremos em uma escala antes desconhecida na história da humanidade. Seu livro pinta um quadro bastante nítido do efeito do capitalismo de vigilância e de um mundo construído sobre o crescimento econômico. Você tem esperança de que podemos realmente responder às mudanças climáticas de forma significativa se estivermos permanente e poderosamente distraídos?

Hari: Não podemos se estivermos permanentemente distraídos, mas podemos absolutamente se ultrapassarmos esta crise. Eu acho que você está totalmente certo, e isto foi realmente sóbrio para mim, muitas das cidades onde passei o tempo pesquisando este livro foram então sufocadas pelos incêndios.

Lembro-me de estar com Tristan Harris, o antigo engenheiro do Google, que foi tão corajoso ao falar sobre tudo isso. Um dia, Tristan e eu estávamos andando por São Francisco apenas conversando e ele estava dizendo, o que mais me preocupa nisto é – ele não colocou as coisas assim, mas – estamos perdendo nossa superpotência, nossa capacidade de prestar atenção no momento em que mais precisamos dela. Então, exatamente um ano depois, houve os enormes incêndios florestais na Califórnia. A própria casa de Tristan ardeu e as ruas que pisamos foram sufocadas pela fumaça e pela laranja brilhante no meio do dia.

Eu passei muito tempo em Sydney porque tenho muitos amigos lá e um dia estava ao telefone. Era o auge do verão negro de 2019 quando em um ponto toda a costa do estado de New South Wales estava em chamas. Três bilhões de animais morreram queimados ou tiveram que fugir. Talvez duas ou três semanas depois daquele verão negro e eu estava ao telefone com meu amigo Andy em Sydney. Ele vive no centro de Sydney, não é como no meio do campo nem nada. O alarme de fumaça começou a disparar, e ele disse: “oh, temos este problema”. O que aconteceu foi que, por toda Sydney em escritórios e casas, os alarmes de fumaça começaram a disparar porque a densidade da fumaça no ar era tão grande que os edifícios pensavam que estavam pegando fogo mesmo que os incêndios fossem realmente muito longe.

A gente percebe naqueles momentos que os sistemas que construímos em nossas casas para nos manter seguros estão funcionando, mas o sistema político maior que foi projetado para nos manter seguros não está funcionando. Acho que é realmente importante entender a forma como isto está perturbando a nossa capacidade de lidar com o aquecimento global.

A gente volta ao que estávamos dizendo sobre o modelo de negócios para as mídias sociais. Quanto mais tempo você navegar, mais dinheiro eles recebem. Esse é o único objetivo do algoritmo é mantê-lo navegando. Quando esses algoritmos escaneam as pessoas e descobrem o que o mantém navegando, eles esbarram em uma peculiaridade da psicologia humana chamada viés de negatividade. Basicamente, você olhará para algo assustador e irado por mais tempo do que para algo que o faz sentir-se bem. É por isso que em uma autoestrada, se você já passou por um acidente de carro, você olha para o acidente de carro por mais tempo do que olha para as lindas flores ao lado da autoestrada. Provavelmente por uma razão evolutiva perfeitamente boa, faz mais sentido ficar olhando para algo que pode machucá-lo do que para algo que não o machucará. Você pode até mesmo ver isso quando bebês de 10 semanas de idade olham para um rosto zangado por mais tempo do que olham para um rosto sorridente exatamente por essa razão.

Mas isto cria um efeito desastroso on-line. Um estudo da NYU descobriu que se você inserir um desacordo moral furioso em seus tweets, é 20% mais provável que eles sejam compartilhados. Na verdade, houve um estudo horrível no Facebook, o Pew Research Center descobriu que, se você colocar uma repulsa moral em seus tweets, você dobra a quantidade que eles são apreciados e compartilhados. Se é revoltante, é envolvente. O algoritmo começará a selecionar coisas que o deixam irritado, não porque o algoritmo queira que você fique irritado, o algoritmo não se importa com o que você sente. Mas o algoritmo sabe que se você estiver com raiva, é mais provável que você continue navegando.

Agora, o que isso faz é produzir parte desta polarização catastrófica que estamos vendo em todas as nossas sociedades. O fato de estar acontecendo em todos os lugares nos diz algo. O fato de que estamos presos em faixas crescentes de ódio profundo. Se estamos sendo constantemente alimentados para ficarmos artificialmente irritados e incompreendidos uns com os outros, tribalizados, polarizados, não vamos absolutamente lidar com o aquecimento global.

Como você pode ver pela resposta da COVID. Fizemos algumas coisas boas, mas isso promoveu a polarização artificial e a polarização anticientífica de todos os tipos. Foi aí que as empresas de mídia social procuraram bloquear e, mesmo ali, o algoritmo buscando tão fortemente assim mesmo não conseguiram impedir que as suas máquinas promovessem a polarização. Esta não é apenas a minha opinião ou a de Tristan, é o que diz a pesquisa interna do Facebook quando nos foi divulgada por Frances Haugenno ano passado.

Não podemos lidar com nenhum de nossos problemas se não tivermos a capacidade de nos concentrar, prestar atenção, distinguir a verdade das mentiras e responsabilizar as pessoas ao longo do tempo. Eu diria que um pré-requisito para resolver a crise climática, que não temos muito tempo para fazer, mas precisamos continuar, é resolver esta crise de atenção. Se estamos interagindo através de videogames baseados na raiva, que é essencialmente o que a mídia social se tornou, então não seremos capazes de resolver isto. Trata-se de ignorar as diferenças, de nos unirmos, de nos unirmos, de ter o poder de prestar contas.

Tenho 42 anos, os ouvintes mais jovens talvez nem se lembrem disso, mas quando éramos mais jovens eu me lembro de estar aterrorizado com a destruição da camada de ozônio. Havia um componente químico chamado CFC que estava em sprays e geladeiras e em várias coisas, e que estava causando um buraco na camada de ozônio que nos protege dos raios do sol. Estávamos muito preocupados com isso, com razão.

O que aconteceu foi que o mundo foi avisado sobre as evidências científicas. Ouvimos as evidências científicas. Vimos que era verdade e responsabilizamos os nossos políticos. Fizemo-los fazer a coisa certa, proibimos os CFCs e os sprays de cabelo e conseguimos diferentes tipos de geladeiras e os responsabilizamos e agora a camada de ozônio está sarando. Não creio que se essa crise acontecesse agora, nós faríamos isso. Acho que você teria teóricos malucos da conspiração dizendo que a camada de ozônio não existe, ou que o buraco foi feito por lasers espaciais judeus lançados por George Soros ou o que quer que seja. Não seríamos capazes de distinguir a verdade da mentira e responsabilizar os nossos políticos.

Além disso, acho que não teríamos o espaço de atenção, como você vê pela resposta da COVID. Estou entediado agora, tentamos distanciamento social e máscaras por alguns meses, vamos apenas fingir que o vírus desapareceu. Não acho que seremos capazes de fazer essas coisas na atual ecologia da informação que criamos. Mas não temos que viver nesta ecologia da informação. Como James Williams me disse, o machado existiu por 1,4 milhões de anos antes que alguém pensasse em colocá-lo em prática. A Internet existe há menos de 10.000 dias. Podemos mudar estas coisas, temos absolutamente em nosso poder para mudar estas coisas, mas temos que entender o que realmente está acontecendo e então temos que lidar com isso.

Moore: Johann, muito obrigado. A leitura do livro foi tantas coisas ao mesmo tempo. Foi aterrador, foi sóbrio, foi fascinante, mas também foi esperançoso porque você fala de passos que poderíamos dar em direção a soluções. Gosto da maneira como você o descreve, não como um livro de autoajuda que tem uma boa solução arrumada no final, mas como coisas em que as pessoas podem começar a se engajar para começar a mudar a narrativa e mudar a abordagem. Acho que é incrivelmente oportuno e estou tão grato que você possa ter tido tempo para se juntar a nós hoje para falar sobre isso.

Hari: Muito obrigado, eu realmente gostei muito. Agradeço imensamente o seu envolvimento com o livro. Qualquer pessoa que quiser mais informações sobre o livro pode ir ao site StolenFocusBook.com. Você pode obter o livro ou o audiolivro. Você também pode ouvir gratuitamente as entrevistas com muitos dos especialistas de que falamos como Mihaly Csikszentmihalyi, acho que foi a última entrevista que ele fez. Tristan Harris, muitas e muitas das pessoas que você pode ouvir áudio com eles.

Eu acredito absolutamente que podemos lidar com isto e isto não precisa acontecJohann Hari: Foco Roubado – Porque não se pode prestar atençãoer, mas precisamos entender o que realmente está acontecendo conosco e que nossa atenção está sendo ro

A patologização do sofrimento psíquico

Face of schizophrenic woman reflected in broken mirror

Os psicotrópicos modificaram a paisagem da loucura, esvaziaram os manicômios e substituíram a camisa-de-força e os tratamentos de choque pela redoma medicamentosa. Embora não curem as denominadas “doenças mentais”, eles revolucionaram as representações do psiquismo e fabricaram um novo sujeito, o sujeito contemporâneo. Receitado tanto por clínicos gerais quanto pelos especialistas em psicopatologia, os psicotrópicos têm como função normalizar comportamentos e eliminar os sintomas mais dolorosos do sofrimento psíquico sem lhes buscar significação. Assim, a clínica hoje, com os impasses que se delineiam em seu campo, se impõe como um problema em pauta. Tantas e tantas vezes as pessoas buscam ajuda com seu (auto) diagnóstico pronto. O que querem é a confirmação de algo que elas já sabem, que ouviram dizer ou que buscaram nas redes ou na internet.

Quanto mais surgem “novas” patologias, mais surgem identificações com a (s) nova (s) doença (s).

Joel Birman (2018) ressalta a articulação entre os discursos provenientes da psiquiatria biológica, do cognitivismo e da terapia comportamental que procurou desarticular o dispositivo da clínica do psíquico, na medida em que os registros do sujeito e da singularidade são colocados em questão no campo terapêutico. Patologizar, medicalizar, psicopatologizar esse é o tom do mercado, é a bola da vez. Num paradigma naturalista de cientificidade, fundado nos discursos teóricos da biologia e das neurociências, cada vez com mais descobertas que prometem explicar a condição humana, não há espaço para aquilo que não cabe entre as sinapses neuronais, para a política, a história, as relações, a cultura, o social, a dor de existir, as insatisfações humanas quando tudo deveria estar tão bem (por que não está?). Esses diferentes discursos, essas linhas de força que se conjugam, que pretendem explicar tudo, também lançam fórmulas e protocolos para que todos caibamos na mesma forma, com etapas bem definidas e métodos para reduzir (e por que não extirpar?) os sofrimentos existenciais.  Essas narrativas se articulam na série de reconfigurações produzidas do DSM (Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais) e CID, agora em sua nova roupagem, a 11а versão.

Em consonância ao pensamento de Joel Birman, Tenório (2016) ratifica que a intenção declarada das modificações em torno das classificações psiquiátricas foi estabelecer o maior consenso possível para qualquer que fosse a escola adotada pelo psiquiatra. Para tanto, o DSM e, posteriormente, a CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde) proclamaram-se “ateóricos”, excluindo as categorias que implicavam pressupostos psicodinâmicos e pretenderam basear a classificação exclusivamente em sintomas que pudessem ser empiricamente observados, descritos e quantificados. Contudo, nota-se como efeito dessas mudanças a supressão da referência às teorias psicodinâmicas. Ademais, o apoio exclusivo nos sintomas para a descrição de psicopatologias favoreceu a ênfase cada vez maior na ação farmacológica no tratamento do sofrimento psíquico. Assim, a primeira resposta para o cuidado com o sofrimento advém do medicamento e das terapias a ele relacionadas.

Uma série de mal-estares humanos vem sofrendo cada vez mais um deslocamento progressivo de sentido. A pluralidade de abordagens contempladas quando se tratava de explicar as vicissitudes individuais, foi capturada por concepções que tendem a reduzi-la a sua dimensão biológica.

Data de 1952 a primeira sintetização de um psicofármaco utilizado em tratamentos psiquiátricos. Desde então, a indústria farmacêutica investe massivamente, ano após ano, cada vez mais recursos no estabelecimento de pesquisas na área da psicofarmacologia e investe grande parcela de recursos no marketing de novas drogas. Há uma assustadora inversão na construção da lógica diagnóstica contemporânea, posto que o remédio participa da nomeação do próprio transtorno. Não há mais uma etiologia e uma historicidade a serem consideradas, pois a verdade do sintoma/transtorno está no funcionamento bioquímico, e os efeitos da medicação dão validade a um ou outro diagnóstico.

A partir de uma auto-nomeação designada pelo diagnóstico podemos pensar na produção de identidades patológicas (Silva Júnior, 2018). Estas são declarações em que o sujeito se nomeia como o objeto de um saber, especificamente de um saber médico sobre o sofrimento em geral. Tais formas de auto-nomeação são transnosográficas. Diversos tipos de sujeitos frequentemente evocam um diagnóstico sobre o qual não tem qualquer dúvida e ao qual se conformam como quem descreve a cor dos cabelos. No entanto, esta auto-nomeação a partir de um quadro psiquiátrico descreve uma disfunção.

Podemos fundamentar tal raciocínio desde as proposições freudianas. No texto “Mal-estar na civilização” (1930/2011,) Freud esclarece que a vida, tal como nos coube, é muito difícil, traz demasiadas dores, decepções e tarefas insolúveis, assim, para suportá-la não podemos dispensar o uso de paliativos. O uso de substâncias lícitas e ilícitas insurge com vistas a aplacar a angústia e com a promessa de felicidade. Neste texto, Freud fala que o sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que fadado ao declínio e à dissolução, não podendo sequer dispensar a dor e o medo como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis e destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos. O sofrimento que se origina desta última fonte é experimentado mais dolorosamente do que qualquer outro tipo de sofrimento.

O crescimento vertiginoso de categorias diagnósticas e a presença massiva de descrições de transtornos psiquiátricos fez com que Whitaker (2017) constatasse uma epidemia diagnóstica. Na psiquiatria mais restrita ao paradigma médico, o diagnóstico é um ato de observar corretamente um sinal e, a partir do saber médico, atribuir a este o seu verdadeiro significado disponível na nosografia. Nesse paradigma, o sintoma é como um significante a espera do seu “verdadeiro” significado. Um significado universal, fixo, não-particular daquele sujeito, uma vez que disponível no “tesouro semiológico” do médico. Nota-se o efeito de fechamento: diante de um sintoma/sinal, o médico “completa” o par com o verdadeiro significado. O desafio que se apresenta consiste em interrogar de modo a fazer do sintoma questão, manejando-o segundo um endereçamento. Não basta que o sujeito se queixe de um sintoma. É preciso que essa queixa se transforme numa demanda endereçada e que o sintoma passe do estatuto de resposta ao estatuto de questão para o sujeito, para que este seja instigado a decifrá-lo e criar (Tenório, 2000).

Retomemos a clínica do psíquico, a história, a geografia, a ecologia, as construções e representações sociais, o panorama político-econômico-social, a antropologia, a cultura, os dissensos e os consensos que potencializam e alicerçam as lógicas de mercado (incluindo a compreensão de como os sujeitos “devem” ser – devem?) antes de patologizar a existência humana.

Referências

Birman, J. (2018) Genealogia da clínica. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 21 (3), 442-464.

Tenório, F. (2000). Desmedicalizar e subjetivar: A especificidade da clínica da recepção. Cadernos IPUB, 6 (17), 79-91.

Whitaker, R. (2017). A anatomia de uma epidemia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

Silva Júnior, N. (2018). O mal estar no sofrimento e a necessidade de sua revisão pela psicanálise. In: SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (Orgs.). Patologias do social. Belo Horizonte: Autêntica editora.

Freud, S. (2011). O mal-estar na civilização. V. XXI. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930).

O caos, o medo e o pânico: a legitimação do adoecimento em saúde mental pelo trabalho na Secretaria Municipal de Saúde de Foz do Iguaçu, Paraná

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A entrada na trajetória da saúde coletiva que trilhei logo que iniciei minha vida profissional não sinalizou, estranhamente, que eu adoeceria pelo trabalho dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Se soubesse que o terror da existência iria me tocar, certamente buscaria romper com a linha que planejei percorrer pelos jardins da prática profissional Sanitarista.

Neste relato, busco trazer subsídios iniciais que conformam a ruptura que o adoecimento psíquico causou em meu projeto de felicidade e vida e, mesmo compreendendo que a experiência individual não é generalizável para as ciências da saúde mental, considero que o meu existir relata e denuncia a perversidade que o neoliberalismo provoca em nossas mãos, mentes e corações.

Compreendo que historicamente no Brasil, a práxis da gestão, política e planejamento na saúde pública possui uma característica que ronda a não humanidade, a racionalidade desordenada, o símbolo perturbador da eficiência e eficácia das decisões, a gestão por resultados, a gestão de competências e a gestão do outro antes da gestão de si. Foi neste cenário que iniciei como Sanitarista residente na Secretaria Municipal de Saúde (SMSA) de Foz do Iguaçu em 2016. Lembro-me bem que o sentimento de início era da retomada de uma terra arrasada pela corrupção generalizada, desvio de função das responsabilidades Estatais na saúde coletiva e o caos na organização interna de uma gestão em saúde que foi chacoalhada pela indecência e imoralidade de um fetiche de enriquecimento ilícito. Dos 15 vereadores da cidade, 12 haviam sido presos por corrupção. Nas práticas ilícitas estavam também secretários de saúde da cidade, que colocaram seus interesses próprios a frente dos interesses sociais na saúde coletiva.

Nossa luta contra a precarização das relações de trabalho na SMSA foi intensa. Foram muitos tensionamentos contra a privatização da gestão em saúde da cidade produzidas pelo Conselho Municipal de Saúde (COMUS) e pela classe trabalhadora do SUS. Surtiu efeito. Mas havia uma grande tarefa a ser cumprida para resgatar a ética na gestão em saúde da cidade.

Fiz minha residência, cumprindo com a mobilização popular na construção dos instrumentos de gestão e planejamento da SMSA. Ali, já sentia efeitos no meu corpo do assédio interno que ocorriam pelos corredores e salas, principalmente contra servidores críticos que questionavam as bases reacionárias e conservadoras das práticas normativas, da ausência ou mutilação da solidariedade e humanidade da gestão ou até mesmo do subfinanciamento da Atenção Primária em Saúde (APS) local.

Fonte: Arquivo Pessoal, mensagem direcionada aos servidores do prédio da SMSA de Foz do Iguaçu

Trabalhar em silêncio na gestão em Saúde pública não é um ordenamento razoável, ético e fraterno. Se não utilizarmos a nossa voz para escoar o pensamento, nossa inventividade e nossa criatividade acabam por reproduzir Ecos e legitimam os desmandos políticos institucionais que mais fragilizam a saúde coletiva, nossa dignidade, nossos projetos de cuidar de si e dos outros e o intento de amar o mundo.

Os sinais já eram claros e evidentes, conquanto, a mobilização do “Eu” na busca pela saúde coletiva e pela justiça no SUS me mobilizaram a prestar o concurso da SMSA ao fim da residência multiprofissional. O grande trauma viria em apenas três meses de trabalho como Sanitarista Júnior concursado da SMSA, em 2018.

Assumi o cargo e me direcionaram para o trabalho no Gabinete da Gestão da SMSA. Não tive tempo de compreender, a época, que minha identidade Sanitarista seria desmoronada pelo sofrimento psíquico causado pelo grande acumulo de funções e tarefas. Como existência que é movida por desafios, acreditei que conseguiria ministrar todas as responsabilidades, relações humanas e atividades. Mas eu estava sozinho no Gabinete, não havia uma equipe e eu me vi só e assustado com o aparecimento quase diário de pombas mortas no parapeito da janela da sala.

Fonte: Arquivo de Maísa Melara, prédio da SMSA de Foz do Iguaçu, 2018.

O medo, a solidão e a crise no ser-fazer Saúde Coletiva anunciavam o rumo: você irá surtar! “Comece a falar menos […] Cuidado aí”, disse várias vezes um colega de trabalho em tom ameaçador e intimidatório. Na produção intelectual “Psicoterapia do Oprimido – Ideologia e técnica da psiquiatria popular”, Moffatt (1984) sinaliza que “ […] A crise tem a ver com sentir-se invadido por uma vivência de paralização da continuidade do processo da vida” (MOFFATT, 1984, p.231). Nesse sentido, a paralisia estava mais direcionada a impotência da transformação da realidade do caos instalado na saúde local do que no meu corpo.

A invasão do pânico dentro do meu corpo ocorreu tanto pela pressão simbólica que este espaço de decisão promove na equação mente-existência quanto pela precariedade nas condições de trabalho. Não havia um ambiente salutar para o desenvolvimento do trabalho, tampouco relações afetivas, éticas e que produzissem felicidade.

O surto psicótico, denominado cientificamente pela psiquiatria e psicologia, chegou. Em 03 de dezembro de 2018, cheguei ao Gabinete choroso, confuso, no limite entre o real e o irreal. Comuniquei a chefia imediata, catei meus livros de legislação do SUS e fui em psicose intensa solicitar minha exoneração do cargo de Sanitarista Júnior da SMSA. Ironicamente, nem exame demissional foi realizado pela prefeitura. Em 15 minutos a ruptura estava assinada, carimbada e legitimada pelo Estado.

Moffatt (1984) também sinaliza que “A expressão orgânica deste processo de desorganização é a angustia […] Todo corpo fica tenso, preparado para enfrentar o perigo. Podemos sintetizar tudo isso com a palavra desesperado (des-esperado), ou seja, aquele que já não espera nada, que tem o futuro vazio” (MOFFATT, 1984, p.231). A psicose permaneceu por um mês, com delírios e alucinações: “Eu hoje represento a cigarra / Que ainda vai cantar / Nesse formigueiro quem tem ouvidos / Vai poder escutar / Meu grito!”

Agradeço imensamente o encontro potente com as humanas e profissionais Soraya Sehli e Ercilia Monção. Aos amigos e amigas que estiveram ao meu lado caminhando na crise. Diagnosticado clinicamente, inicio meu processo de retomada do meu projeto de vida e felicidade.

O mais dolorido de todo este processo foi e é ainda perceber que a Saúde mental é negligenciada e mutilada pela administração pública local, ao menos, em meu caso. A responsabilização pelo sofrimento psíquico gerado pelo ambiente e relações de trabalho no SUS precisa ser vista com mais seriedade, sem culpabilizar quem sofre e com a costura de políticas públicas que minimizem as possibilidades de ocorrência, conquanto, enquanto não for feita uma fissura na lógica neoliberal de trabalho nestes espaços, não haverá saúde mental produzida por ali.

Fonte: Arquivo pessoal, sombras de uma caminhada em psicose, 2018.

Por sorte, pude redefinir o caminho e trilhar novos rumos. Atualmente estável busco sensibilizar e trazer ao campo da saúde mental a crítica como subsídio para compreender que não estamos sozinhos. “Nunca neste mundo se está sozinho”. Meu desejo é que as relações de amizade, fraternidade, solidariedade e amor cresçam nos espaços da gestão em saúde. Que se faça a gestão de si e que se rompa com a premissa da gestão do outro.

Desejar saúde mental não somente na gestão, mas também na assistência, na participação social, nas práticas, programas e políticas de saúde é o primeiro passo para que transformemos a realidade experenciada. Notificar o adoecimento em saúde mental pelo trabalho também é necessário, e já contamos com uma ficha para tal. A saída é coletiva e política.

Hoje, sem antipsicóticos ou estabilizadores de humor, permito a abertura para o existir. Caso precise e sinta a necessidade, um lítio sempre me cai bem. “Se eles têm três carros, eu posso voar / Se eles rezam muito, eu já estou no céu”

Referências

MOFFATT, Alfredo. Psicoterapia do oprimido: ideologia e técnica da psiquiatria popular. 4 ed., São Paulo: Cortez, 1984.

Luz del Fuego. MysticPieces. Rita Lee – Luz Del Fuego, Youtube. 23 de ago 2009. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3gyMTYEbCvs. Acesso em 20 jan 2022

Balada do Louco. Ney Matogrosso. Balada do Louco (ao vivo), Youtube. s/d. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yu90Ha1Woiw

Domingo 23. Ulysses Joven. Jorge Bem – Domingo 23 (1972), Youtube. 14 de dez 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q3rH_3poPMI

Despsiquiatrização e a Promessa da abordagem do Diálogo Aberto

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Embora a incidência e prevalência dos chamados ” transtornos mentais” tenham permanecido relativamente estáveis, o aumento global dos cuidados psiquiátricos tem causado uma carga crescente para os sistemas e sociedades de saúde. No ano passado, um grupo de estudiosos interdisciplinares liderado por Timo Beeker introduziu o conceito de psiquiatrização como uma estrutura conceitual para compreender os processos pelos quais cada vez mais indivíduos são diagnosticados e tratados como doentes mentais e as práticas psiquiátricas moldam cada vez mais áreas da vida.

Em resposta ao apelo desses estudiosos à pesquisa transdisciplinar sobre psiquiatria, um novo trabalho de Sebastian von Peter explica como a abordagem do Diálogo Aberto (OD) ao cuidado mental pode ser usada como uma estratégia potencial para combater a onda de psiquiatrização global.

A psiquiatrização tem sido muito criticada, principalmente enquanto uma ferramenta da colonização. A medicalização de tudo, da depressão à solidão, tem sido bem documentada e seus efeitos são potencialmente prejudiciais aos indivíduos, sociedades e saúde pública.

Estes danos potenciais incluem o sobrediagnóstico e o tratamento excessivo, minando a prestação de cuidados de saúde mental para os mais graves, e “impulsionando intervenções médicas que incitam o indivíduo a lidar com problemas sociais, em vez de encorajar soluções políticas de longo prazo“.

Desenvolvido na Finlândia, o Diálogo Aberto (DA) é um modelo multiprofissional, contínuo, orientado às necessidades dos pacientes e tratamento ambulatorial de apoio durante uma crise. Sua metodologia representa uma mudança do paradigma psiquiátrico de busca do “diagnóstico correto” para um foco na criação de significados, linguagem comum e inclusão de uma rede de diferentes vozes no processo de tratamento.

“Em [Diálogo Aberto], a rede social e o usuário estão envolvidos no planejamento conjunto do tratamento e no engajamento do tratamento desde o início e durante todo o processo terapêutico (às vezes durante anos, se necessário)”.

Esta abordagem se baseia nos recursos e criatividade do usuário do serviço e de sua rede social para tomar decisões e desenvolver um plano de ação e tratamento. Esta abordagem não institucional, não medicalizada, também se harmoniza com as atuais abordagens baseadas em direitos para o tratamento da saúde mental.

Com base em vários estudos de coorte realizados nos anos 90 e início dos anos 2000, o DA provou ser eficaz para reduzir significativamente as estadias hospitalares, bem como para reduzir as taxas de recaídas ao longo do tempo. Estes estudos também mostram a reintegração de até 84% dos usuários de serviços no trabalho e na educação e o uso baixo e pouco freqüente de medicamentos neurolépticos durante o tratamento de DA.

De modo geral, as evidências dos estudos de coorte do tratamento de DA mostraram que “os resultados do tratamento alcançado em cada caso permaneceram bastante estáveis durante todo o período [de 13 anos] ou até mesmo aumentaram ao longo do tempo”. Assim, o DA constitui uma abordagem promissora para o tratamento de doenças mentais que honra os direitos dos usuários de serviços e não aumenta a medicalização, fornecendo assim um potencial promissor contra os processos de psiquiatria em todo o mundo.

No entanto, apesar do histórico promissor do DA, mesmo este modelo de prestação de serviços pode vir a ser apropriado por um sistema de tratamento psiquiátrico. Os autores advertem:

“Este perigo [de apropriação] é ainda mais pertinente, uma vez que exige sistemas de apoio psicossocial mais democráticos, baseados nos direitos humanos, fortalecedores ou orientados para a recuperação que procuram ampliar, no entanto, muitas vezes sem a vontade ou a reflexividade suficiente para mudar as rotinas habituais”.

A implementação de uma abordagem DA à saúde mental e seu impacto na despsiquiatrização dependerá de como a abordagem será implementada em um contexto de cuidado, apoio e respeito. De fato, escreve von Peter:

“O DA pode ser considerado como somente sendo um componente para trazer as mudanças urgentemente necessárias no sistema de saúde mental”.

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Von Peter, S., et al. (2021). Dialogue as a Response to the Psychiatrization of Society? Potentials of the Open Dialogue Approach. Frontiers in Sociology(Link)

Investigação interdisciplinar necessária sobre os riscos da psiquiatrização

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O aumento global dos transtornos mentais diagnosticados e o aumento da utilização dos serviços de saúde mental têm causado uma carga crescente tanto para os sistemas de saúde quanto para as sociedades. Novo trabalho de um grupo de estudiosos interdisciplinares explora o conceito de psiquiatria da sociedade e suas implicações e apela para uma pesquisa transdisciplinar sobre o tema.

Por “psiquiatrização”, os autores se referem aos processos pelos quais mais e mais indivíduos são diagnosticados e tratados como doentes mentais, e as práticas psiquiátricas moldam cada vez mais áreas da vida.

A crescente medicalização dos sintomas cotidianos, da solidão à tristeza e depressão, um processo que converte estes sintomas em problemas psiquiátricos, tem sido tanto bem documentado quanto fortemente criticado. A psiquiatrização da infância tem recebido atenção significativa, e a psiquiatrização em geral tem sido investigada criticamente como uma ferramenta da colonização.

Focalizando o desenvolvimento teórico e considerações teóricas, os autores sugerem um modelo básico de psiquiatrização como um ponto de partida para futuras pesquisas. Como os autores observam:

“A psiquiatrização é altamente complexa, diversificada e global. Ela envolve vários protagonistas, e seus efeitos são potencialmente prejudiciais aos indivíduos, às sociedades e à saúde pública”.

Estes danos potenciais incluem o sobrediagnóstico e o tratamento excessivo, minando a prestação de cuidados de saúde mental para os doentes mais graves, e “impulsionando intervenções médicas que instigam a lidar com problemas sociais de forma individual, em vez de encorajar soluções políticas de longo prazo”.

Os autores descrevem dois processos de psiquiatrização: de cima para baixo e de baixo para cima. No modelo de cima-para baixo [top-down,] especialistas e políticos, juntamente com a indústria farmacêutica e companhias de seguros, impulsionam tanto o uso de práticas psiquiátricas quanto a aplicação de conhecimentos psiquiátricos, tais como as  categorizações diagnósticas.

Exemplos de processos de cima-para baixo de psiquiatrização incluem “reestruturação em larga escala dos serviços de saúde mental, elaboração de leis, publicação de novas diretrizes de tratamento e diagnóstico, introdução de novos diagnósticos no DSM”, aprovação de medicamentos psicotrópicos existentes para algumas “novas” condições, triagem obrigatória da saúde mental e requisitos de diagnóstico para acesso a apoio educacional.

A psiquiatrização de baixo para cima [bottom-up] ocorre quando as necessidades e desejos dos pacientes e consumidores induzem mudanças no nível superior e, portanto, é conduzida por leigos sem vínculos profissionais com a psiquiatria ou com o sistema de saúde em geral. Em processos de baixo-para cima, a psiquiatrização pode ser, parafraseando Foucault, “solicitada, ao invés de imposta”.

“Os propulsores típicos da psiquiatria de baixo para cima podem ser pessoas buscando o reconhecimento do sofrimento subjetivo ou da diferença através de diagnóstico clínico, pessoas com ‘sintomas’ leves ou inespecíficos usando serviços profissionais de saúde sem indicação clara, ou a demanda dos pais ou outros cuidadores para diagnósticos e tratamento de transtornos de aprendizagem e comportamento percebidos”.

Os efeitos dos processos de psiquiatrização tanto de cima para baixo como de baixo para cima são diversos, altamente ambivalentes e significativamente influenciados por fatores tecnológicos, econômicos, políticos e sociais localizados e diversificados. Ao fazer este trabalho, os autores esperam fornecer uma estrutura conceitual para novas pesquisas interdisciplinares sobre a psiquiatrização da sociedade, seus impactos, riscos e benefícios.

As reorientações dos sistemas globais de saúde mental através da digitalização, desinstitucionalização e ampliação do atendimento comunitário no mundo inteiro devido às contínuas mudanças políticas e sociais tornam os processos de psiquiatrização cada vez mais relevantes para a vida social e política. Como os autores observam, porém, “pode ser complicado para a pesquisa distinguir as tentativas legítimas de atender às necessidades reais não atendidas da construção de infraestrutura que criam a necessidade artificial ou promovem a patologização e o supertratamento do sofrimento mental”.

Por estas razões, tanto a pesquisa interdisciplinar qualitativa quanto quantitativa é necessária para explorar os diferentes aspectos da psiquiatria e identificar as razões para o envolvimento em processos de psiquiatria, ou para resistir a eles.

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Beeker, T., Mills, C., Meerman, S., Thoma, S., Heinze, M., and von Peter, S. (2021). “Psychiatrization of Society: A Conceptual Framework and Call for Transdisciplinary Research.” Frontiers in Psychiatry, 20:645556.(Link)

Projeto Fireside: Apoio de Pares para Experiências Psicodélicas

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Burning Man, 2019: A cidade pop-up radicalmente inclusiva do deserto de Black Rock de Nevada estava cheia de gente, muitas delas buscando abordagens alternativas à vida, à autoexpressão e à própria consciência. Alguns as encontraram na música ou na arte. Alguns encontraram-nas em substâncias.

Joshua White, Diretor-exectuvo da Fireside

Entre as dezenas de milhares naquele ano estava Joshua White, um voluntário do Projeto Zendo [Zendo Project]- que fornece apoio pessoal e de redução de danos para os psicodélicos. Outro foi Hanifa Nayo Washington, músico e especialista em reiki, com anos de experiência em serviço comunitário e ativismo.

Ambos tiveram experiências – profundas – com substâncias psicodélicas. Para White, as drogas haviam ajudado a resolver sua relação com a sua própria ansiedade e a aceitar-se “como uma pessoa inteira”. Para Washington, tomá-las em um contexto cerimonial havia lhe permitido curar e passar tempo com seu “eu criança”.

Hanifa Nayo Washington, chefe-executiva da Fireside

Ambos sabiam que existiam riscos inerentes. Algumas experiências podem ser extremas. Algumas podem ser aterrorizantes, levando a chamadas para o 911. E à medida que os psicodélicos crescem em popularidade, esses riscos estão afetando uma população mais ampla de pessoas que podem experimentá-los e tropeçar neles sozinhas, despreparadas, desacompanhadas e sobrecarregadas – tudo isso pode representar perigos significativos. Ambos viram tudo isso em um contexto de justiça social.

Eles se encontraram. Conversaram. No verão de 2020 – no auge da pandemia, após o assassinato de George Floyd, em um período de protesto e incerteza – eles conversaram um pouco mais, chegando ao foco das populações carentes e as pessoas que tomam os psicodélicos por conta própria.

Alguém pode precisar de um ouvido simpático. Uma voz simpática. Um colega que entendesse – que pudesse avaliar sua segurança e assegurar-lhes que estão bem. Talvez os voluntários presentes no “espaço psicodélico” pudessem sentar-se com eles, mesmo que remotamente, enquanto eles trabalham com suas experiências, presentes e passadas. Talvez eles pudessem acompanhar com chamadas de check-in, fazendo com que aqueles que se aproximassem se sentissem ainda mais conectados e apoiados.

“Já sabemos que as pessoas estão usando substâncias psicodélicas – e como elas estão sendo legalizadas e descriminalizadas, também sabemos que, ainda assim, a maioria das pessoas que acessam e se relacionam com substâncias psicodélicas não vai estar em uma clínica”, disse Washington. “Vai estar fora da clínica”. Dado isso, “seria irresponsável da nossa parte não criar protocolos de segurança – processos – para que as pessoas não caiam em comportamentos e situações de risco”. Por isso, queremos minimizar o risco”.

A visão, nas palavras de White: “Toda pessoa pode ter acesso a apoio de alta qualidade entre pares durante e após as suas experiências psicodélicas. Elas não têm que ter dinheiro. Elas não precisam ter dinheiro para pagar um terapeuta ou ir a uma clínica. Cada pessoa no mundo que tem um telefone pode ter acesso a apoio”.

O resultado: Projeto Fireside. A linha de apoio sem fins lucrativos lançada em 14 de abril de 2021 – oferecendo apoio entre pares de forma gratuita e confidencial nos Estados Unidos (pelo menos por enquanto) a praticamente qualquer pessoa, em praticamente qualquer substância, em praticamente qualquer circunstância. White é seu diretor executivo fundador; a co-fundadora Washington é a diretora de estratégia. Equidade, redução de danos, educação e esperança são seus objetivos.

“A redução de danos – isso é o que, para mim, é tão bom em Fireside”. Não é um juízo de valor. É aceitar as pessoas”, disse Fola Vickers, um dos três supervisores da Fireside que acompanham os telefonemas.

Acrescentou Katie Bourque, sua diretora de operações e de divulgação: “Esta é a primeira oportunidade real para que todos tenham este acesso igualitário”.

Apertando o cinto de segurança durante a “renascença psicodélica”

Co-fundador do Projeto Cognitive Liberty, Bourque havia realizado um trabalho de apoio de colegas durante uma década – anteriormente gerenciando Pathways Vermont Support Line  e a comunidade terapêutica Soteria Vermont – antes de se conectar com Fireside.

Como alguém com experiência psiquiátrica vivida e experiência “transformacional” com substâncias psicodélicas, “eu via como esta oportunidade é perfeita para fazer uma espécie de ponte entre o modelo de apoio de pares e o espaço psicodélico”. . . . À medida que os psicodélicos se tornam medicalizados, é realmente importante ter uma voz pura nesse lado das coisas”, disse ela. “Além disso, à medida que os psicodélicos se tornam descriminalizados, para ter certeza de que estamos oferecendo serviços de redução de danos e riscos na comunidade”. Foi isso que me atraiu para o Projeto Fireside”.

Ao discutir seu papel, os organizadores do Fireside usam algumas analogias simples. Uma que aparece freqüentemente é a rede de segurança; White, por exemplo, observou que as pessoas correm riscos quando escolhem fazer sexo ou dirigir um carro, e há maneiras de reduzir os riscos para ambos. Mas Washington levou a analogia mais longe, comparando a linha de apoio Fireside especificamente com um cinto de segurança.

“Sentado em um carro não é inerentemente prejudicial, mas você está se colocando em maior risco se não usar o cinto de segurança”. É uma ferramenta. É um protocolo para a segurança. . . . Estamos aqui como uma ferramenta de segurança para tornar esse espaço mais seguro e reduzir riscos potenciais”, disse Washington. “De modo que, por si só, para nós é justiça social”. É eqüidade”.

Os conceitos mais amplos e não julgadores de redução de danos por trás do Fireside não são novos, remontando aos anos 80 e a chamada “abordagem PAN” (“preservativos, agulhas e negociação”) para limitar a propagação da AIDS. Tampouco o modelo de redução de danos para ajudar as pessoas com psicodélicos é totalmente inédito. Nos anos 70, um programa em North Adams, Mass., manteve uma linha direta [hotline] “Viagens de Emergência” para pessoas em meio a experiências psicodélicas desafiadoras.

Meio século depois, a necessidade de tais abordagens de redução de danos é ainda mais pronunciada à medida que os psicodélicos captam mais atenção do que em qualquer outra época desde meados do século 20. Muita tinta tem sido derramada, ultimamente, nas principais publicações e livros mais vendidos, mais notadamente em Michael Pollan’s How to Change Your Mind: What the New Science of Psychedelics Teaches Us About Consciousness, Dying, Addiction, Depression, and Transcendence [ComoMudar a Sua Mente:O que a Nova Ciência dos Psicodélicos nos ensina sobre Consciência, Morte, Vício, Depressão e Transcendência]. Drogas como psilocibina e MDMA estão agora sendo descriminalizadas, até mesmo legalizadas, em vários locais. Sua eficácia no tratamento da depressão, ansiedade, dependência e TEPT está sendo analisada em testes de drogas realizados por pesquisadores em instituições acadêmicas.

E mesmo enquanto os pesquisadores estão realizando tais ensaios, muitos proponentes estão enquadrando as drogas como uma alternativa ou antídoto para o paradigma das drogas psiquiátricas existentes – que tradicionalmente se fixa nos sintomas e prescreve durante anos, se não para toda a vida. Os psicodélicos são diferentes, dizem tais vozes. Elas não entorpecem. Eles não são prescritos a longo prazo.

No entanto, os psicodélicos são, afinal de contas, drogas – com potencial para resultados negativos, sejam eles viagens negativas em psilocibina ou relatos de crise de abstinência da cetamina. As pessoas estão se voltando para eles tanto em ambientes legais quanto não. Elas estão participando de experimentos, indo a clínicas, se reunindo em retiros, experimentando microdosagens de ajuste de humor, pagando por terapia assistida por psicodélicos ou – mais parecido, para aqueles sem dinheiro – procurando um punhado de cogumelos por conta própria. Às vezes sozinhas. Muitas vezes sem qualquer apoio, orientação, conhecimento dos produtos químicos que estão tomando, ou presença de alguém, qualquer pessoa, que possa ajudá-los a navegar em uma experiência psicodélica desafiadora ou a processar uma experiência passada.

“Com os psicodélicos, existem com certeza riscos”, disse White. “E esses riscos são maiores se uma pessoa não tiver apoio durante a experiência”.

Minimizando os riscos com um senso de missão

Tais riscos podem variar. Um deles é o potencial para uma viagem ruim – especialmente para alguém que vai sozinho, e especialmente para aqueles que procuram autotratar suas lutas de saúde mental: Na Pesquisa Global sobre Drogas 2020, 4,2% dos entrevistados que relataram ter usado substâncias psicodélicas como autotratamento no ano anterior acabaram procurando uma emergência psiquiátrica. Mas uma viagem dura pode ser difícil para qualquer um navegar e, mais tarde, integrar-se: Em uma pesquisa de 2016, 39% dos 1.993 entrevistados classificaram uma experiência negativa de psilocibina como “entre as cinco experiências mais desafiadoras de sua vida”. Onze por cento colocam a si mesmo ou a outros em risco de dano físico”.

Entretanto, os líderes da Fireside observam que nem tudo o que é percebido como uma emergência durante uma viagem é realmente uma emergência. Esse é um risco que o Projeto Fireside pode diminuir ao realizar a triagem inicial: Alguém está em perigo? Será que precisam ir à urgência? Depois disso, os voluntários “sentam” com os que entraram em contato por telefone ou enviando uma mensagem escrita no meio da experiência de algo novo, estranha e potencialmente assustadora.

Como o site da Fireside deixa claro, ele não oferece serviços médicos. Ele não fornece conselhos ou cuidados de saúde mental. Não fornece conselhos para os curiosos em psicodélicos. Seus voluntários não são “guias”, um termo usado na comunidade psicodélica que delineia um papel muito mais específico e ativo. E a organização reconhece, como o site também deixa claro, que “os psicodélicos não são para todos”. Ele adverte: “Se você tem um histórico pessoal ou familiar de esquizofrenia, transtorno bipolar ou alguns outros transtornos, ou se você está tomando determinados medicamentos, consulte um profissional antes de tomar os psicodélicos”.

O que ele faz é apresentado em uma declaração de missão que se encontra na parte superior da página inicial. Seu objetivo é diminuir os riscos. Maximizar o potencial. Fornecer apoio compassivo, acessível e culturalmente sintonizado. Educar o público. Pesquisas adicionais. Aumentar a equidade e a partilha do poder “dentro do movimento psicodélico”.

Mais abaixo estão listadas 10 práticas básicas de segurança, entre elas diretrizes para fazer pesquisas antes de experimentar uma droga; para testar as substâncias que estão prestes a consumir pelo conteúdo; para garantir que tenham acesso à água e a um banheiro; e para dar tempo para integração, após a viagem. Também exorta os visitantes a “Estar atentos ao conjunto e ao cenário”, um conceito articulado pela primeira vez nos anos 60 pelo pioneiro psicodélico Timothy Leary. Ele explica: “Set é o seu mundo interior”. Set é seu ambiente externo – isto inclui onde você está e quem está com você. Evite cenários públicos”.

A idéia, com tudo isso, é suavizar o caminho e fornecer apoio emocional. Mas não de qualquer um – de alguém que entende, de um “cidadão psicodélico” com suas próprias experiências que alteram a mente.

“Há um número que você pode chamar para ser ajudado sem julgamento. E é um colega! É outro cidadão, é outra pessoa que teve as suas próprias experiências com estados alterados – e também compreende a importância de ter o apoio de pares nessas experiências”, disse Washington. Ela continuou: “Quando falamos de modelos médicos, saúde mental e cuidados mentais, acreditamos que o apoio entre pares é uma ferramenta e um caminho essencial”.

Manter a simplicidade, mantendo-os seguros

Com a redução de danos em mente, as bases do Projeto Fireside são exatamente isso. Básico. Qualquer pessoa nos EUA, a qualquer hora entre 15h e 3h da manhã, horário do Pacífico, em qualquer dia da semana, pode enviar uma mensagem de texto ou ligar para 62-FIRESIDE (623-473-7433). Aqueles que precisam de suporte também podem usar o aplicativo Fireside, abrindo-o para ver dois grandes botões. Um diz ” chamar “. O outro diz “texto”. Depois de passar um pouco para frente e para trás, uma seqüência de mensagens suavemente encorajadoras toma a tela.

imagem da tela do aplicativo do Fireside

A população alvo é ampla, oferecendo apoio às pessoas atualmente em viagens, geralmente sozinhas e em busca de companhia; para pessoas que processam viagens passadas, seja dias ou anos atrás; para pessoas sóbrias no meio da “viagem” da outra pessoa; para terapeutas, facilitadores ou qualquer pessoa em um ambiente clínico, cerimonial ou outro ambiente de grupo que esteja em alguma forma de angústia ou simplesmente precise se sentir ouvida.

Sua definição de “psicodélico” também é ampla, incluindo psilocibina (cogumelos), MDMA (ecstasy), LSD (ácido), mescalina (peiote), santo-dime (parte de ayahuasca, uma poção indigenena da Amazônia), e outros. Também sob o guarda-chuva estão a cetamina, um anestésico com efeitos dissociativos que agora está sendo prescrito para depressão, ansiedade e dependência de álcool; e a cannabis, atualmente legal para uso recreativo em 19 estados, que pode produzir efeitos psicodélicos, pelo menos para algumas pessoas, pelo menos em algumas doses.

A palavra “alucinógeno” é freqüentemente evitada, pois nem todas as experiências psicodélicas envolvem alucinações. E dentro da comunidade daqueles que consomem estas substâncias – o “espaço psicodélico” – muitos são referidos como “medicamentos vegetais”, o que enfatiza suas antigas raízes, literais e figurativas, na prática indígena tradicional.

Em uma conversa de chamada ou texto, os protocolos são ao mesmo tempo flexíveis e firmes.

Fola Vickers, um dos supervisores do pessoal da Fireside

Quando alguém se aproxima, o Fireside determina imediatamente a sua segurança e o seu estado alterado. Essa é “a primeira regra”, disse Fola Vickers. Todos que telefonam ou enviam mensagens de texto ouvem ou lêem um aviso exortando-os a entrar em contato com os serviços se, de fato, eles estiverem em uma emergência médica. Depois de estabelecer que não estão, a pessoa é conectada com alguém, geralmente um voluntário em um turno de quatro horas.

A linha de apoio é privada e estritamente anônima. Mas o maior número possível de detalhes são colhidos desde o início, disse ela: “Como, ei, o que esta pessoa está procurando, exatamente? Será que está tropeçando neste momento? A pessoa está procurando integração para uma viagem que talvez tenha acontecido recentemente? Será mesmo apropriado”? Alguém pode ter discado o número errado, disse ela. Ou ligou em busca de um número de contato, um website, ou algum outro recurso que a Fireside não possa fornecer.

Algo mais que os voluntários não podem fazer em uma ligação: dar conselhos. Essa não é a competência deles – não enquanto os psicodélicos continuarem ilegais em tantas jurisdições. O projeto, apoiado por uma organização sem fins lucrativos da Califórnia chamada Social Good Fund e auxiliado por doadores, incluindo a empresa de sabão orgânico do Dr. Bronner, não pode ser visto como promoção de comportamento potencialmente criminoso. Como afirma em sua declaração de isenção de responsabilidade: “O Projeto Fireside não incentiva ou tolera nenhuma atividade ilegal, incluindo mas não se limitando ao uso de substâncias ilegais”.

Mas uma vez que passam pelos lances iniciais, aqueles que alcançam Fireside são encorajados a se sentirem confortáveis (será que precisam de um cobertor?) e, bem, a conversar. O papel do voluntário é, bem, ouvir. Estar com uma pessoa, respondendo a seus medos e sentimentos e necessidades em um espaço tão acolhedor e caloroso como uma lareira. Um amplo treinamento de voluntários enfatiza este objetivo: “Durante o treinamento, você aprenderá sobre escuta ativa, auto-trabalho, como dar apoio durante e após uma experiência psicodélica, a ética de dar apoio psicodélico de colegas, e como apoiar alguém por mensagem de texto”.

“Estas são pessoas que têm compreensão, porque também elas estiveram em alguns lugares sombrios”, disse Vickers. Embora voluntários e funcionários se encontrem e compartilhem on-line para sessões regulares de apoio de grupo, ela não conhece o histórico psicodélico de todos. Mas qualquer que seja a experiência deles, ela tem certeza de que isso ajuda. “Vejo como isso me tem apoiado em poder sentar com alguém”.

Rastreando os números de forma anônima

E sentar-se com interlocutores é, digamos Vickers e outros, a chave: Simplesmente estar com alguém é diferente de diagnosticá-los, tratá-los, tentar corrigi-los. Enquanto enfermeira psiquiátrica de prática privada em Alberta, Canadá, Vickers trabalhava anteriormente em equipes de emergência-resposta. Antes, ela entrava nas casas ao lado da polícia e levava as pessoas para o hospital contra a sua vontade. Mas então, ao entrar em sua própria “emergência espiritual”, ela começou a questionar esse modelo. Foi por isso que ela saiu. O apoio dos colegas tem um papel diferente, disse ela.

” Isto vai daquele lugar de ‘consertar e salvar’ – em nossa antiga, mais ou menos, forma de cuidar da saúde – até o presente. ‘Não precisamos patologizar o que você está passando, ou dizer que está errado’. Ou fazer com que seja de uma certa maneira porque nos deixa desconfortáveis””. Em vez disso, “é apenas, como, permitir o que quer que esteja presente – e confiar que essa pessoa vai passar por tudo o que precisa para passar em seu próprio tempo”.

Ou, como Washington o expressou: “Estamos tomando a vergonha – certo? – e responsabilizando os que estãi experimentando e nivelando o campo de jogo”.

Os voluntários da organização vêm de diferentes fusos horários ao redor do mundo, ajudando a Fireside a cobrir os turnos em sua janela de serviço de 12 horas (que se expandirá, provavelmente, 24 horas por dia). Pedimos para entrevistar voluntários e e ex-usuários da linha de apoio – ou, pelo menos, descrições de chamadas já feitas- Fireside declinou, citando as suas políticas de privacidade e anonimato.

Entretanto, em vários postagens nos últimos meses, o que não faltam são elogios à Fireside e com endossos sucintos. Uma postagem diz: “Se vocês não sabem o que é o projeto Fireside, vocês são uma merda! Pessoas absolutamente incríveis… . . Se você ou alguém que você conhece precisa de ajuda para processar uma experiência ou está atualmente passando por uma, tenha certeza que você pode entrar em contato com a Fireside”. Disse outra postagem: “Eu usei seus serviços depois de uma experiência e isso me ajudou muito. Eu precisava falar com alguém que a tivesse. . . . Muito descontraído e profissional”.

No início de dezembro, White disse: “Fireside tinha se envolvido em 1.300 conversas, cerca da metade delas por meio de texto. Em uma colaboração com a Universidade do Sul da Califórnia, São Francisco, a organização está acompanhando seus números – olhando para os usuários da linha de apoio que optam por preencher uma pesquisa anônima. O objetivo, dizem eles, é mostrar quantas pessoas estão ligando, por que estão ligando, que grupos de pessoas estão ligando mais e até que ponto o projeto minimiza as ligações para o 911, alivia danos psicológicos e reduz outros riscos relacionados ao uso psicodélico.

Até agora, cerca de 60% das chamadas e textos são pessoas que integram experiências psicodélicas passadas; cerca de 30% estão tropeçando ativamente. Os 10% restantes, mais ou menos, são “uma mistura de pessoas buscando conselhos antes da viagem (que nós não fornecemos) e chamadas fora do escopo estabelecido para as linhas”, disse White em um e-mail de acompanhamento. E, em um número tweetado pelo projeto, “30% dos entrevistados da pesquisa sugeriram que poderiam ter ligado para o 911 ou contatado serviços de emergência se não tivessem contatado @GlowFireside”.

Joseph Zamaria, psicólogo clínico e investigador

Geralmente, aqueles que usam Fireside para processar viagens passadas não correm risco semelhante – a menos que sejam suicidas, disse Joseph Zamaria, o investigador principal no estudo da UCSF e professor associado de psiquiatria na Faculdade de Medicina da UCSF. “Mas provavelmente não. Provavelmente é mais, talvez, existencialmente pesado tentar dar sentido a essa experiência”. Nesses casos, é útil encontrar ” um ouvinte empático e informado que tenha ideias”.

Zamaria, que também é psicólogo clínico e pesquisador em vários e contínuos ensaios com psilocibina na UCSF, considera isto especialmente importante em uma era de isolamento generalizado. Mesmo antes da pandemia, disse ele, a sociedade se encontrava em “circunstâncias terríveis de saúde mental”. Conseguir ajuda – qualquer tipo de ajuda – não é fácil. “Portanto, muitas pessoas se voltam para a medicina psicodélica e fazem isto por conta própria”. . . . O serviço Fireside é realmente importante, porque oferece orientação. Ele oferece apoio”.

Yin e yang, sombra e luz
Para aqueles sem conhecimento em primeira mão dos psicodélicos, a conversa ao seu redor pode ser mistificante: Pela sua natureza, os efeitos são difíceis de descrever. Os “psiconautas” experientes descrevem estados que alteram a percepção, quebram limites, conectam o eu com o domínio mais amplo e trazem à tona uma maravilha semelhante a uma criança. Uma viagem é uma viagem – uma viagem para dentro e além da consciência, muitas vezes resultando em epifania espiritual.

Katie Bourque, diretora de operações e divulgação da Fireside

Katie Bourque chamou isso de “a busca humana pela transformação”. Seja perseguida através de psicodélicos ou algum outro meio, é o impulso de “ir além do eu e para algum plano diferente”. Ela sabe porque ela mesma já esteve lá. “Eu pessoalmente tenho experiência usando substâncias psicodélicas – e encontrando-as para serem realmente experiências transformadoras”.

Em 1954, em As Portas da Percepção, Aldous Huxley descreveu a sua própria transformação em quatro décimos de um grama de mescalina. As habituais informações espaciais e temporais, escreveu ele, deixaram de ter importância. O que o envolveu em vez disso, “só posso descrever como a visão sacramental da realidade … em um mundo onde tudo brilhava com a Luz Interior, e era infinito em seu significado”.

Mais de seis décadas depois, em How to Change Your Mind, Pollan detalhou a sua própria experimentação supervisionada – primeiro com o LSD, depois com a psilocibina, e finalmente com o veneno do sapo 5-MeO-DMT (também conhecido como “Veneno de Sapo”, ou “A Molécula de Deus”). “O indivíduo tinha sido obliterado”, escreveu ele sobre sua viagem na psilocibina. Como uma gravação Yo-Yo Ma de uma suíte de violoncelo de Bach tocada ao fundo, “eu perdi qualquer habilidade que ainda tinha para distinguir sujeito de objeto, contar à parte o que restava de mim e qual era a música de Bach”.

Mas nem todas as viagens são fáceis – como Pollan aprendeu em primeira mão em sua experiência de pesadelo com o Veneno de Sapo [toad venon]. Mesmo as viagens mais reveladoras podem ter elementos que podem alarmar aqueles que tomam uma dose considerável. Além disso, o relato de Pollan de perder a si mesmo não é incomum – essa sensação de conexão em algum plano superior, em algum universo infinito, também pode envolver uma dissolução do ego.

“Você se sente como se estivesse morrendo”, confirmou White. “Então uma pessoa que não tinha realmente nenhum conhecimento de como as experiências psicodélicas funcionam pode acreditar que está realmente morrendo – e então ligar para o 911. Ou pode ser que tenham alguém para levá-los para o pronto-socorro. Isso comporta seus próprios riscos, certo? Especialmente se ligar para o 911 significa que você interage com as autoridades policiais, e sendo uma pessoa de cor”.

Considerando todas essas complexidades de experiência, White vê a missão do Projeto Fireside como “ter duas partes que são yin e yang”: Ajudamos as pessoas a reduzir os riscos e a cumprir o potencial para sua experiência psicodélica”. Expandindo isto, ele disse: “Ao criar um invólucro seguro para as pessoas, que reduz os riscos – porque permite que esta pessoa sinta uma sensação de segurança, conforto e conexão”. E é precisamente a criação desse espaço seguro que também permite que a pessoa se volte para a experiência e realize o potencial”.

Aquele yin e um yang podem estar presentes na própria viagem. No caso de Vickers, ela nunca experimentou uma morte do ego, mas ela entende “aquela luz e aquela sombra” – ou seja, a complexidade que alguns podem encontrar em qualquer viagem. “As pessoas têm viagens diferentes, caminhos diferentes que precisam tomar – e têm esses entendimentos de sua realidade de maneiras diferentes”, disse ela.

White citou uma citação de Stanislav Grof, o psiquiatra conhecido por seu trabalho com consciência não-ordinária (seja através de substâncias psicodélicas ou do trabalho holotrópico da respiração). “Os psicodélicos são para a mente o que o microscópio é para a biologia e o telescópio é para a astronomia”, disse ele certa vez. Significado: Eles olham para as profundezas e magnificam verdades distantes.

“Isso só pode acontecer se você sentir uma sensação de segurança e proteção”, disse White. “Se você está fora do mundo em um psicodélico” – e por “o mundo” ele quer dizer o reino físico mundano – “e há pessoas ao seu redor que não o entendem, há ruídos altos, há intensidade ao seu redor? Ter seu subconsciente amplificado pode ser arriscado”.

Algo para percorrer, não para instrumentalizar

Segundo muitos na esfera psicodélica, essa mesma intensidade sugere diferenças significativas entre tais substâncias e drogas psiquiátricas padrão como os ISRS. Os psicodélicos não são, dizem eles, negócios como de costume.

Primeiro: A maioria das pessoas não está com eles por muito tempo. Em ambientes clínicos, elas podem tomar doses limitadas junto com múltiplas sessões de psicoterapia, realizadas antes como preparação e depois para integração. Para alguns ensaios clínicos explorando os efeitos sobre o TEPT, por exemplo, “São três sessões de MDMA“, disse Bourque. “Não, como se alguém estivesse tomando medicação para o resto de suas vidas”. Acho que alguém vai muito tempo ao médico e fica, tipo, “Aqui está um antidepressivo para sempre”. Certo?”

Segundo: Há uma diferença nos efeitos das substâncias psicodélicas na mente. Os modos habituais de pensar e sentir não são silenciados, como acontece com tantas drogas psiquiátricas; em vez disso, em meio a essa transformação de dominação da mente, eles são exacerbados. Na literatura e nos comentários sobre os psicadélicos neste momento, uma imagem freqüentemente citada é o glóbulo de neve – algo que sacode as pessoas de suas rotinas cognitivas e emocionais, seja depressão, ansiedade ou vício.

Compare isso, disse Bourque, com o modelo ocidental de diagnóstico e tratamento – que se concentra nos sintomas e se esforça para apagá-los.

“Falando por experiência própria, como alguém que esteve sob medicação psiquiátrica e também tomou substâncias psicodélicas, acho que a diferença que experimentei pessoalmente foi que ao invés de os sintomas serem algo a ser administrado ou reduzido, com substâncias psicodélicas, é algo a ser elaborado”.Ainda assim, os pontos de interrogação pairam sobre este campo emergente. Quais são as potenciais desvantagens psicodélicas para as pessoas propensas a seus próprios estados alterados? Na sua forma atual, aqueles com “psicose atual ou que estão em risco de transtornos psicóticos” são considerados em risco demais e são, portanto, excluídos dos estudos com psilocibina. Além disso, os pesquisadores estão explorando a associação entre tais diagnósticos e o uso da maconha. Outros riscos incluem a possibilidade de “flashbacks“, ou interrupções sensoriais pós-excitação que o Manual de Diagnóstico e Estatística rotula como Transtorno de Percepção Persistente de Alucinógeno (HPPD). Também: Will Hall, em uma matéria para Mad in America e já traduzida no Mad in Brasil, escreveu sobre os danos induzidos por terapeutas psicodélicos que cometem abusos.

Além da psilocibina, os pontos de interrogação também pairam sobre outros ensaios com drogas em curso, muitos deles estudos de curto prazo com poucos sujeitos e desvantagens notáveis. Análises recentes de ensaios clínicos para esketamina, um medicamento feito de cetamina e prescrito para depressão resistente ao tratamento, mostraram uma eficácia incerta e efeitos adversos graves – incluindo ataques cardíacos, derrames, acidentes automobilísticos e mortes por suicídio. Outro estudo sobre a eficácia da ayahuasca no alívio da ansiedade, depressão e estresse apontou resultados não maiores do que os de um placebo.

Ainda outras preocupações envolvem a pura força de um sistema capitalista que poderia, alguns temem, conceder mais e mais poder às empresas farmacêuticas que estão cada vez mais inclinadas a monetizar tais medicamentos. A hierarquia de longa data já é desequilibrada. O que acontecerá se os psicodélicos forem medicados ainda mais? O que acontecerá se os efeitos dessas doses limitadas se desgastarem? E quanto à tendência à microdosagem, ou ao consumo de pequenas quantidades sub-halucinógenas de substâncias psicodélicas, como forma de reduzir os sintomas de depressão e ansiedade? Isso não sugere um modelo de doença redux?

“Temos medo de como a Big Psychedelics Pharma vai se desenvolver”, disse Washington. Por causa disso, “Queremos garantir que, caso os pacientes precisem de apoio, pelo menos eles tenham o apoio psicodélico de seus pares – porque o que antecipamos é que muitas pessoas passarão por experiências psicodélicas medicalizadas” – e depois, mais tarde, integrá-las.

“Temos que estar conscientes de que não estamos apenas nos virando e entregando o nosso poder a este medicamento”, disse Vickers. “O que já fizemos dentro de nossa indústria farmacêutica”: Dando poder aos médicos, dando a alguém um comprimido”. Isso vai contra todo o conceito de substâncias psicodélicas”. “Os psicodélicos mostram que você já tem o poder dentro de você” – através das próprias substâncias ou de outras práticas de mudança de consciência.

Justiça social psicodélica

Na própria vida de White, os psicodélicos ofereceram um yang distinto, ajudando-o a ouvir, e a aprender, com os elementos que estão no seu íntimo. “Há esta progressão, você sabe: Primeiro há o aprendizado sobre si mesmo, e as diferentes partes de si mesmo – e depois há a aceitação dessas diferentes partes. E depois, para mim, o passo final nesse caminho é amar todas as diferentes partes”.

Um ex-procurador, ele passou 17 anos em litígios civis, 11 deles para a Procuradoria Municipal de São Francisco, onde se concentrou em ações judiciais contra empresas que se aproveitavam de comunidades carentes. Em 2020, quando as origens de Fireside se desenvolveram, White considerou seu trabalho com o Projeto Zendo e a Talk Line, uma linha de apoio à redução de danos para os pais em São Francisco. Ele havia pensado nos pobres e sem seguro, na desigualdade e na necessidade.

“Eu realmente tinha a sensação de que o mundo parece que está chegando ao fim. E se eu não fizer algo para mudar isso”, perguntou ele, “por que estou vivo?

Em suas conversas na época, Washington lançou uma pergunta própria: “Qual é a maior possibilidade de que isto poderá acontecer? A quem estará servindo? Quem é que não estará à mesa?”

A resposta: Muitos.

Desde o advento dos psicodélicos nos anos 50 até seu renascimento agora, a cultura predominante que envolve esses produtos químicos que dominam a mente tem sido principalmente – cegamente – branca. Assim como os pesquisadores dominados pelo Ocidente cooptaram os rituais indígenas e ignoraram as contribuições de grupos desfavorecidos (mais uma vez uma preocupação, dada a crescente popularidade dos retiros ayahuasqueiros sul-americanos). Somando-se a tal iniquidade, no último meio século, tem sido a interminável “guerra contra as drogas” dirigida aos afro-americanos – dando aos povos originários ainda mais motivos para hesitar em pedir ajuda.

No renascimento atual, a brancura novamente prevalece. A maioria dos pesquisadores são brancos. A maioria dos psicólogos são brancos. A maioria das pessoas que podem pagar tratamentos são brancas.

E isso ali, disse Zamaria, é “uma questão de justiça social”.

“Porque é como se apenas um número muito seleto de pessoas pudesse entrar nos atuais ensaios clínicos que estão acontecendo em todo o país”. Quando essas terapias se tornarem legais, elas serão privatizadas, e provavelmente muito caras”. Se alguém tem o dinheiro, pode “fazer uma clínica de produtos naturais”. . . . Mas e se você não puder arcar com isso? Você encontra alguns cogumelos por um punhado de dólares. E assim a presença de Fireside tem realmente em mente, penso eu, a iniquidade, porque é apoiar as pessoas que não têm recursos para experimentar estes medicamentos de outras formas, sancionadas”.

Nos dados da Fireside, a lacuna no privilégio já se manifesta. Dos cerca de 20% dos usuários da Fireside que responderam até agora à pesquisa, a “maioria esmagadora” é branca – sem números difíceis, por enquanto, sobre exatamente quantos. Os brancos disseram que pouco mais de 50% são mulheres; um “número muito, muito pequeno” se identifica como trans e não-binário. Tais números ressaltam a necessidade de garantir, à medida que as pessoas se reúnem em grupos psicodélicos, que o “espaço seguro” seja estendido a todos.

As circunstâncias da ingestão psicodélica de alguém não fazem diferença, disse Washington – ou não deveriam fazer. Alguém pode ter recebido uma pastilha no correio de uma clínica de cetamina, ou pode estar colhendo alguns cogumelos que eles mesmos cultivaram. Isso não importa. “Porque é um serviço gratuito ao qual qualquer pessoa pode ter acesso e que tem um telefone. Portanto, se você não tem recursos para pagar um terapeuta psicodélico ou um técnico de integração – você teve uma experiência psicodélica e precisa de algum fundamento e apoio para poder processar isso – você pode ligar para Fireside”.

Bourque concordou. “Oferecer apoio de colegas que seja gratuito e acessível a todos, independentemente de como eles acessam os psicodélicos – eu só acho que há necessidade disso. É, tipo, realmente fenomenal, porque é transversal”. As compartimentações na forma como os serviços são prestados se foram, disse ela. Desapareceu o dinheiro necessário para acessá-los. Desapareceu é a lacuna no direito de acesso. Há, disse ela, “muito privilégio em algumas dessas experiências”.

‘Acionar um pouco os freios agora mesmo’

E à medida que os psicodélicos continuam a crescer – em popularidade e perfil, em legalização e medicalização – a parte da justiça social é ainda mais urgente. Embora a venda, a posse e o uso continuem ilegais sob a lei federal, 12 municípios em todo o país desprivilegiaram o policiamento e a ação legal sobre a psilocibina; um 13º, Detroit, descriminalizou-a, e outras dezenas de cidades estão considerando medidas semelhantes. Até agora, apenas um estado – Oregon – foi totalmente descriminalizado no uso e legalização do uso médico, mas a legislação ativa está agora sendo considerada em outros 10. (Para informações mais detalhadas), consulte o Rastreador de Legalização e Descriminalização Psicodélica).

Clinicamente, os ensaios sancionados pela FDA em universidades americanas – e outros ensaios em todo o mundo – estão sendo preparados em uma ampla gama de frentes psicodélicas.

Entre eles estão múltiplos estudos sobre o efeito da psilocibina na depressão, com muito mais treinamento sobre a eficácia da droga para pessoas diagnosticadas com TOC, transtorno bipolar, transtorno dismórfico corporal, anorexia, alcoolismo e uso de cocaína. O tabagismo é outra área de pesquisa. Também em breve: Mais pesquisas sobre os efeitos do MDMA em pessoas diagnosticadas com TEPT. Na Suíça, pesquisas sobre os efeitos do LSD em pessoas diagnosticadas com ansiedade e grandes transtornos depressivos. Na Holanda, pesquisa sobre os efeitos do 5-MeO-DMT na depressão. Em outras partes da Europa, estudos explorando a Ibogaine, uma substância derivada da iboga na África Central e utilizada por várias tribos de pigmeus.

Ao mesmo tempo, a nova onda psicodélica se infiltrou ainda mais na cultura e uma ampla cobertura da mídia. Pollan, cujo publicista não respondeu a um pedido de entrevista, enviou tweets sobre o Projeto Fireside e continua sendo uma figura proeminente em todo o espaço psicodélico.

O lançamento desse livro”, disse White, “foi um momento seminal no ressurgimento psicodélico que está acontecendo”. . . . Acho que é realmente impossível subestimar o significado que esse livro teve”.

Muitas pessoas que chamam Fireside o citam como uma influência – o que aponta, mais uma vez, para a necessidade de redução de risco.

“Muitas pessoas que leem o livro leem outros tipos de cobertura da mídia sobre o que está acontecendo no espaço psicodélico – e não percebem que é realmente difícil tomar substâncias psicodélicas. Que a experiência do cogumelo, a experiência da ayahuasca: Pode ser absolutamente brutal”, disse White. “E que pode ser um processo de integração extensivo”. Se você não tem a expectativa de que há esse nível de dificuldade, pode ser traumatizante – e pode tornar o potencial de cura de um psicodélico ainda mais difícil”.

Zamaria compartilha sua preocupação. “Sim, eu estou preocupado com isso”, disse ele. “Há um fervor neste momento tanto na indústria e nos círculos acadêmicos quanto nos círculos sociais e culturais, de que drogas como os psicodélicos podem ter todas as respostas”, disse ele. “E eu acho que elas podem ser tremendamente úteis”. Mas sim, eu acho que há apenas esta onda de, talvez, esperança de que precisamos de algum tipo de remédio para curar o que nos aflige psicologicamente”. . e isso é preocupante”.

Essa onda de ânsia “pode ofuscar os riscos, ou os problemas”. Não sei quantas pessoas teriam que entrar numa sala, mas alguma porcentagem delas, se procurassem substâncias psicodélicas, não seria ajudada por elas. Isso também é um grande problema. Pensar: “Aqui está uma bala mágica – ela funciona para todos”. E depois usá-la em qualquer forma – seja em uma sessão guiada, ou por conta própria, ou seja o que for – e depois não entrega”…”.

Por causa disso, ” acionar um pouco os freios agora mesmo faz muito sentido”. . . Basta ser cauteloso, ter cuidado e olhar para os dados”. Em um e-mail, ele acrescentou: “A terapia assistida por psicodélicos tem o potencial de ser uma ferramenta segura e muito poderosa no trabalho de psicologia e psiquiatria, mas o trabalho precisa ser feito para determinar suas aplicações, inconvenientes, etc.”.

Os princípios da “cidadania psicodélica”

Enquanto isso, White e seus colaboradores na Fireside têm seu próprio trabalho pela frente – olhando para o futuro com uma série de planos ambiciosos. Já está sendo desenvolvida uma Iniciativa de Equidade que treina “coortes de afinidade”, ou apoio cultural que liga um chamador ou um alguém que envia uma mensagem em texto a um colega da mesma origem ou identidade; a primeira coorte se concentrará em pessoas que são negras, trans, indígenas e veteranos militares. O esforço de divulgação e parceria com organizações em comunidades marginalizadas será uma parte do esforço de equidade, que o projeto espera lançar em 2022.

“Sabemos que isto é importante”, disse Washington. “Sabemos que a representação é importante”. Sabemos que a afinidade é importante”.

Outras metas, dependentes da captação de recursos: Aumento das horas, idealmente até 24/7 até o final do ano. Expansão da cobertura para o Canadá, também até o final do ano. Mais pesquisas de prospecção dos dados anônimos da Fireside, possivelmente explorando a natureza da integração. Uma campanha de educação, em breve para começar, avançando os princípios da cidadania psicodélica – quando e como ajudar alguém, reduzir seus danos e suavizar seu caminho para a transformação.

Eles eventualmente esperam alcançar e ensinar “funcionários, e pessoal de serviços de emergência, e todas as faculdades”. Nós temos uma grande visão”, disse Washington. “E isso requer uma espécie de desenrolar as coisas um pouco de cada vez”.

Mais amplamente, todos os entrevistados enfatizaram a necessidade de conscientizar o público em geral – “espalhar a palavra”, como diz o site. Para amarrar o cinto de segurança, é preciso saber que ele está lá.

Mas como Joshua White deixou claro, ninguém na Fireside está tentando persuadir ninguém a tomar substâncias psicodélicas. Eles não estão evangelizando. Essa não é a missão deles.

“Eu não diria que temos o desejo de levar estas experiências às pessoas”, disse ele. Em vez disso, eles têm o desejo de tornar essas experiências tão seguras quanto possível – e, além disso, tão positivas quanto possível, particularmente para aqueles em grupos menos privilegiados.

Como disse Vickers, “Sabemos que as pessoas vão tomar substâncias psicodélicas”. Como, sabemos que as pessoas vão fazer isso. As pessoas estão sempre tomando drogas”. As pessoas têm dificuldades que estão tentando administrar – elas querem se sustentar”.

Usando a mesma ideia sintetizada , Zamaria concordou.

“As pessoas vão fazer o que fazem em seu próprio tempo. E Fireside é criticamente importante”, disse ele, “porque ajudará as pessoas a fazer isso da forma mais segura possível”.

É sempre a melhor estratégia quando os antidepressivos são afunilados lentamente?

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A plate of white pills on a calendar background. A conceptual photo with pills and an hourglass. Medical theme.

Inicio este blog com um pedido de desculpas. Pode haver pessoas lendo que, como eu, olham para trás com frustração e desespero que não podem mudar os anos que passaram dependentes de drogas antidepressivas ou a abordagem que adotaram ao parar. Eu recentemente passei meu segundo aniversário de abstinência da mirtazapina, uma droga altamente sedante, do tipo anti-histamínico. Quanto ao meu progresso nesse tempo, tudo o que posso dizer é que ainda tenho muito trabalho de cura a fazer. Algumas pessoas comentando sobre as minhas dificuldades contínuas apontam como eu procedi o processo de afunilamento da dosagem, particularmente o meu uso de tiras afiladas. Entretanto, acredito que há um fator importante na retirada difícil que precisa ser considerado, e que é o tempo de exposição. Para aqueles de nós, novamente como eu, que não podem voltar atrás no tempo, isto pode ser doloroso de considerar e, por esta razão, peço desculpas se esta nota perturba alguém afetado.

Eu me interessei pela abstinência de antidepressivos pela primeira vez em 2016. Isto não foi por escolha, mas sim foi algo imposto a mim, como a tantos outros, porque tomei consciência de que a pessoa que prescrevia o meu medicamento não tinha a menor ideia de como pará-lo com segurança. Os médicos apenas pareciam realmente interessados em me prescrever e aumentar a dosagem, apesar dos meus protestos de que eu me sentia pior enquanto tomava o medicamento.

Durante a minha retirada, me tornei um voluntário de um grande grupo de pessoas, dando apoio e encorajamento a outros que navegavam nas complexidades de se livrar dos antidepressivos. Embora a grande maioria da interação do grupo de apoio seja inestimável, tomei consciência de abordagens que são potencialmente menos úteis. Desde que comecei a dirigir meu grupo de discussão, Let’s Talk Withdrawal, e estando envolvido em muitos outros, cheguei à conclusão de que há momentos em que a natureza individual da experiência de uma pessoa é ignorada e todos eles recebem conselhos semelhantes. Tive pessoas que me contataram em particular para dizer que foram expulsas de outros grupos de apoio porque não queriam se ater rigorosamente à estratégia de “10% da dose anterior” que atingiu um status quase mitológico em comunidades leigas. Dez por cento da dose anterior é um bom ponto de partida para reduzir os sintomas, mas não é correto para todos. O maior problema com ela é que ela leva a afilamentos muito longos que aumentam o tempo de exposição da pessoa ao agente que pode muito bem estar causando suas dificuldades. Há uma visão predominante de que a forma como você se retira define as suas circunstâncias futuras. Isso pode ser parte da equação, mas não é o todo e o fim de tudo.

É importante dizer que sites de aconselhamento de retirada há muito estabelecidos, incluindo o Inner Compass Initiative e Surviving Antidepressants, não defendem uma abordagem fixa ou um cronograma de redução fixo. Os defensores e apoiadores que aconselham nesses locais conhecem as complexidades causadas pela polifarmácia e a necessidade de adaptar uma abordagem a cada indivíduo. Infelizmente, o mesmo não pode ser dito de todos os conselhos de retirada dados em fóruns on-line. Grande parte vem de um bom lugar, mas alguns conselhos são muito restritivos e não são dados em total consideração às circunstâncias únicas de uma pessoa. Os 10% por mês da dose anterior é uma sugestão, não uma meta. Não vai funcionar para todos, será muito lento para alguns e muito rápido para outros. Precisamos nos distinguir dos prescritores ingênuos, estando abertos a todos os métodos de retirada e a todas as velocidades.

Como exemplo, para alguém que está saindo de uma dose de 20mg de citalopram (Celexa), uma estratégia de “10% da dose anterior por mês” exigirá que leve 29 meses, durante dois anos, para atingir um ponto de salto de 1 miligrama. Para alguém que tem sido tratado por décadas, isto parece sensato; para alguém tratado com a droga por um ano ou dois anos, o afilamento pode muito bem dobrar o tempo de exposição. As pessoas podem argumentar que este tempo de exposição adicional está em uma dose menor. Isto é verdade mas, como vimos em trabalhos recentes sobre a ocupação da serotonina realizados pelo Dr. Mark Horowitz, muitos medicamentos do tipo ISRS retêm grande parte de sua potência em baixos níveis de dosagem. Por exemplo, olhando novamente para o citalopram, esta droga reterá mais de 40% de seu efeito a 5mg. Em uma programação de 10% ao mês, este ponto só será alcançado em 16 meses no processo de afunilamento.

É difícil dizer isto sem temer que possa fazer alguns se sentirem desesperançados, mas uma retirada gradual não é uma bala mágica para evitar problemas durante o afunilamento ou problemas prolongados depois. Não sabemos quase o suficiente sobre as muitas complexidades da experiência de abstinência para saber qual é a abordagem correta. Entretanto, ao insistir que todos sigam um caminho semelhante, podemos inadvertidamente estar prolongando o sofrimento. Embora pareça superficial, a taxa de retirada correta é aquela que você considera tolerável e que não requer grandes ajustes de vida para lidar com isso. Isso será diferente para pessoas diferentes e pode também variar durante o afunilamento. Muitos estarão dispostos a tolerar um período de retirada mais desconfortável se puderem limitar seu tempo total de exposição.

É muito difícil pensar em uma maneira de que isso possa ser estudado empiricamente, pois seria antiético causar sofrimento potencialmente forçando as pessoas a cumprir diferentes taxas de redução que não atendessem às suas necessidades. A falta de um estudo randomizado e controlado por placebo foi apreendida por alguns psiquiatras como um motivo para rejeitar a necessidade de abordagens de redução gradual, mas é difícil ver como isto pode ser estudado a não ser com um grande estudo naturalista e qualitativo que não imponha estratégias de redução gradual.

Conheço pessoas que foram forçadas a levar cinco anos para sair de uma droga e pensamentos sobre a velocidade de seu afunilamento e se erraram ou não ocupando cada dado momento do seu dia-a-dia. Talvez essa pessoa estaria melhor se reduzisse mais rapidamente e chegasse a uma posição estável mais rapidamente. Demorei 2,5 anos para sair e, contra a sabedoria convencional, acelerei ao chegar às dosagens menores. Era a coisa certa a fazer? Quem sabe? Certamente nunca saberei por que não posso repetir o experimento de outra maneira. Embora eu não possa provar isso, não acredito que meus problemas contínuos sejam resultado da maneira como eu fiz o afunilamento ou do tempo que levei. Acredito que é uma consequência direta de passar sete anos e oito meses, incluindo o afunilamento, em uma droga formadora de dependência.

No momento da minha retirada, tive a sorte de ter o apoio de um psicoterapeuta muito respeitado e prestativo. Ele tentou muito me motivar a ir mais rápido, mas minha confiança falhou. A razão pela qual falhou foi porque eu tinha sido influenciado a aceitar que quanto mais lento você for, melhor você se sentirá e menos chances há de dificuldades a longo prazo. Olhando para trás agora, meu conselheiro estava completamente certo. Suspeito agora que eu poderia ter saído em um ano ou menos e estar exatamente onde estou agora, mas com 18 meses menos tempo de exposição.

Submeter-se a um processo de retirada apenas o qualifica em sua própria experiência, isso não lhe diz muito sobre outras experiências. Se você se encontra em um grupo de apoio que o força a se engajar apenas de uma determinada maneira, então encontre outro grupo, mais aberto e mais acolhedor. Há um tremendo trabalho em andamento na comunidade leiga e eu sublinho que estas abordagens rígidas são a exceção e não a regra, mas precisamos apoiar melhor a pessoa que se retira, satisfazendo suas necessidades, não nossas preferências.

Outra questão que os participantes dos grupos de apoio ou discussão verão com freqüência é que as pessoas chegam com a dose máxima de um antidepressivo, tendo por vezes sido rotuladas como “resistentes ao tratamento” porque não responderam melhor à medida que a dosagem foi aumentando. Quando um grupo de pesquisadores psiquiátricos estudou o que chamaram de doses “ótimas” de antidepressivos, descobriram que nos sete medicamentos que selecionaram (citalopram, escitalopram, fluoxetina, paroxetina, sertralina, venlafaxina e mirtazapina) “a faixa inferior da dose licenciada atinge o equilíbrio ideal entre eficácia, tolerabilidade e aceitabilidade no tratamento agudo de depressão grave”. Simplificando, a recomendação de longa data da Associação Psiquiátrica Americana de “ testar até a dose máxima tolerada” foi posta em questão pela pesquisa da psiquiatria.

Como Peter Groot, desenvolvedor de tiras afiladas, nos lembra com freqüência, nossa abordagem da dosagem ao prescrever antidepressivos é tão limitada a ponto de ser quase risível. As dosagens padrão disponíveis para as pessoas são o equivalente a ir a uma sapataria e ser dito “você pode ter qualquer sapato que quiser, mas nós só os temos no tamanho 35 ou tamanho 44”. Dito isto, nós riríamos com razão da escolha limitada e iríamos a outro lugar. Infelizmente, no que diz respeito aos antidepressivos, não há outro lugar aonde possamos ir. Um homem de 120 quilos acabará na mesma dosagem que uma mulher de 60 quilos com pouca ou nenhuma consideração pela sua fisiologia. Pode haver alguns prescritores que levam em conta a fisiologia em sua prescrição, mas eles são a exceção e não a norma. Um atleta vai acabar na mesma dosagem que alguém inativo, um aposentado vai acabar na mesma dosagem que alguém na casa dos vinte anos. Longe da “medicina de precisão”, estas dosagens padrão foram alcançadas observando as médias de grupo em testes de curto prazo. Você pode ter sorte e se encaixar perfeitamente em uma dessas “caixas de dosagem”, mas é igualmente provável que você esteja tomando mais do que precisa para uma resposta.

Muitos de vocês terão animais de estimação e os terão levado ao veterinário, onde poderão obter uma receita médica. Muitas vezes você descobrirá que a dosagem é em miligramas por quilograma de peso corporal. Podemos fazer isso para nossos animais de estimação, mas não para nós? A necessidade de dosagens variáveis e estratégias de afunilamento nunca foi tão importante. O número de prescrições de antidepressivos está aumentando rapidamente; mais pessoas a cada dia estão sendo colocadas em medicamentos que podem ter dificuldade para sair.

Estamos agravando os problemas que as pessoas têm para deixar de tomar o medicamento psiquiátrico tanto por muito tempo sem revisão quanto por um rápido aumento das dosagens até o nível máximo sugerido, aparentemente baseado em adivinhações. Então quando a pessoa finalmente percebe as limitações dos conselhos que lhe foram dados, ela é frequentemente deixada de lado por seu prescritor ou rotulada como “resistente a tratamento” e deixada para se defender.

Graças aos esforços de muitos profissionais, ativistas, defensores e aqueles que têm experiência, estamos começando a progredir na resposta ao desafio de sair dos antidepressivos. No entanto, para garantir que ajudemos os muitos, precisamos de uma abordagem matizada, flexível e aberta para ajudar as pessoas a se livrarem das drogas. Para algumas pessoas, sair daqui a dois anos pode se revelar tão problemático quanto sair daqui a duas semanas. Estamos todos aprendendo à medida que avançamos, mas em contraste com a psiquiatria convencional, precisamos evitar uma visão fixa dos métodos e prazos que as pessoas podem escolher para colocar seus antidepressivos atrás de si.

[Publicado originalmente em Mad in the UK, em 23/12/2021]

Na Itália: o bônus para tratamento psicológico é negado

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Não há “esperança” para o bônus do tratamento psicológico – Outro passo para a consolidação da orientação pseudo-organicista no tratamento do sofrimento psíquico

A notícia da rejeição do bônus para o tratamento psicológico na Itália é recente, após uma série de consultas a nível governamental que não conseguiram compreender a importância do sofrimento emocional que existe no país e que se expandiu como fogo incontrolável durante a pandemia de Covid.

O Bônus, proposto para 2022, com um orçamento de cerca de 50 milhões de euros, destinava-se a estender o acesso a intervenções psicológicas para um número muito maior de indivíduos. A rejeição do bônus, que de fato já tinha sido instituído há algum tempo numa escala mais modesta e não se concretizou, mostra que a saúde mental da população não se encontra entre os principais objetivos do governo.

A rejeição do bónus está também em conflito com o que surgiu na “Conferência sobre Saúde Mental”, realizada em Junho passado, que propôs uma expansão dos serviços de saúde mental a nível territorial e, por isso, pareceu (talvez uma interpretação bastante ingénua) querer sublinhar a importância da abordagem basagliana das questões de saúde mental. A conferência deu a impressão de uma “coisa séria”: vários funcionários governamentais estiveram presentes, incluindo o Ministro da Saúde Speranza. Os usuários também pareciam ter tido uma palavra a dizer. Esperava-se que houvesse uma “sequitur” concreta e substancial para as questões importantes e urgentes discutidas durante o evento.

Mas vamos ao essencial: a negação do bônus terá sem dúvida efeitos negativos sobre a saúde mental dos cidadãos e, em particular, sobre a qualidade de vida.
A negação do bônus terá sem dúvida efeitos negativos sobre a saúde mental dos cidadãos, especialmente crianças e adolescentes, uma vez que, na ausência de tratamento psicológico suficiente, haverá um uso crescente de drogas psicotrópicas, com o risco de um sofrimento psicológico crônico que poderia ser adequadamente tratado com psicoterapia e uma abordagem psicossocial.

As consequências potenciais do uso de drogas psicotrópicas a longo prazo são agora bem conhecidas e têm sido ilustradas em numerosas publicações e sites de confiança. “MAD em Itália e toda a rede de MAD na América e MAD Internacional, por exemplo, abordaram o tema com uma abundância de artigos e intervenções.
Ao mesmo tempo, não se deve esquecer que o uso de drogas psicotrópicas na Itália, tal como no resto do mundo, está constantemente em crescimento. As estatísticas mais recentes para Itália mostram um aumento consistente no uso de drogas psicotrópicas (entre 10 a 20% no sentido global), o que se sobrepõe ao aumento progressivo registado ao longo das últimas duas décadas.

O contexto da saúde mental em que o bônus é negado deve, portanto, ser sublinhado. Refiro-me à tentativa de reduzir cada vez mais intervenções psicossociais, como se viu na recente reestruturação do sistema de Saúde Mental de Trieste, com base numa abordagem psicossocial superlativa.

Poder-se-ia observar: “Mas o que é que a rejeição do bônus tem a ver com Trieste”?

Tem tudo a ver com isto! Ambos são sintomas do mesmo mal: a penetração da orientação pseudo-organicista na gestão do sofrimento emocional.

Links úteis e referências bibliográficas:

O bônus do psicólogo não passou: o que ele teria proporcionado.

https://urldefense.com/v3/__https://it.finance.yahoo.com/notizie/non-**A-passato-il-bonus-230217352.html? guccounter=1__;w6g!!KXH1hvEXyw!cpiiQRmtXkZuNrNA4cal3sHDuSXdm4ffdvcVSKlLmL52qQJg-X4H-Ymv1zXPyG8qjK40EFUoy30dOH_s7s6Eoe080pY$

Conferência sobre Saúde Mental

http://www.conferenzasalutementale.it/2021/07/28/la-2a-conferenza-nazionale-salute-mentale-si-e-tenuta-il-25-e-26-giugno-scorso-e-possibile-tracciarne-un-bilancio-ragionato-a-settembre-assemblea-di-verifica/

Aifa, em 2020 +11,6% das prescrições de drogas psicotrópicas pediátricas

https://tg24.sky.it/salute-e-benessere/2021/07/26/eta-pediatrica-aifa-psicofarmaci

Roma, o Covid-19 e seus efeitos: aumento das vendas de drogas para combater a ansiedade e neurose Roma. https://www.ilmessaggero.it/roma/news/covid_antidepressivi_farmacie_vendite_medicine_effetti_quarantena_psiche_ultime_notizie-5330096.html

Marcello Maviglia (2019) Why Mad in Italy? – Mad In America.

Laura Guerra (2021) Depressione e antidepressivi: cronicizzazione dei sintomi – Mad in Italy (mad-in-italy.com)

 

[Publicado originalmente em Mad in Italy, em 3 de janeiro de 2022]

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