A entrada na trajetória da saúde coletiva que trilhei logo que iniciei minha vida profissional não sinalizou, estranhamente, que eu adoeceria pelo trabalho dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Se soubesse que o terror da existência iria me tocar, certamente buscaria romper com a linha que planejei percorrer pelos jardins da prática profissional Sanitarista.
Neste relato, busco trazer subsídios iniciais que conformam a ruptura que o adoecimento psíquico causou em meu projeto de felicidade e vida e, mesmo compreendendo que a experiência individual não é generalizável para as ciências da saúde mental, considero que o meu existir relata e denuncia a perversidade que o neoliberalismo provoca em nossas mãos, mentes e corações.
Compreendo que historicamente no Brasil, a práxis da gestão, política e planejamento na saúde pública possui uma característica que ronda a não humanidade, a racionalidade desordenada, o símbolo perturbador da eficiência e eficácia das decisões, a gestão por resultados, a gestão de competências e a gestão do outro antes da gestão de si. Foi neste cenário que iniciei como Sanitarista residente na Secretaria Municipal de Saúde (SMSA) de Foz do Iguaçu em 2016. Lembro-me bem que o sentimento de início era da retomada de uma terra arrasada pela corrupção generalizada, desvio de função das responsabilidades Estatais na saúde coletiva e o caos na organização interna de uma gestão em saúde que foi chacoalhada pela indecência e imoralidade de um fetiche de enriquecimento ilícito. Dos 15 vereadores da cidade, 12 haviam sido presos por corrupção. Nas práticas ilícitas estavam também secretários de saúde da cidade, que colocaram seus interesses próprios a frente dos interesses sociais na saúde coletiva.
Nossa luta contra a precarização das relações de trabalho na SMSA foi intensa. Foram muitos tensionamentos contra a privatização da gestão em saúde da cidade produzidas pelo Conselho Municipal de Saúde (COMUS) e pela classe trabalhadora do SUS. Surtiu efeito. Mas havia uma grande tarefa a ser cumprida para resgatar a ética na gestão em saúde da cidade.
Fiz minha residência, cumprindo com a mobilização popular na construção dos instrumentos de gestão e planejamento da SMSA. Ali, já sentia efeitos no meu corpo do assédio interno que ocorriam pelos corredores e salas, principalmente contra servidores críticos que questionavam as bases reacionárias e conservadoras das práticas normativas, da ausência ou mutilação da solidariedade e humanidade da gestão ou até mesmo do subfinanciamento da Atenção Primária em Saúde (APS) local.
Fonte: Arquivo Pessoal, mensagem direcionada aos servidores do prédio da SMSA de Foz do Iguaçu
Trabalhar em silêncio na gestão em Saúde pública não é um ordenamento razoável, ético e fraterno. Se não utilizarmos a nossa voz para escoar o pensamento, nossa inventividade e nossa criatividade acabam por reproduzir Ecos e legitimam os desmandos políticos institucionais que mais fragilizam a saúde coletiva, nossa dignidade, nossos projetos de cuidar de si e dos outros e o intento de amar o mundo.
Os sinais já eram claros e evidentes, conquanto, a mobilização do “Eu” na busca pela saúde coletiva e pela justiça no SUS me mobilizaram a prestar o concurso da SMSA ao fim da residência multiprofissional. O grande trauma viria em apenas três meses de trabalho como Sanitarista Júnior concursado da SMSA, em 2018.
Assumi o cargo e me direcionaram para o trabalho no Gabinete da Gestão da SMSA. Não tive tempo de compreender, a época, que minha identidade Sanitarista seria desmoronada pelo sofrimento psíquico causado pelo grande acumulo de funções e tarefas. Como existência que é movida por desafios, acreditei que conseguiria ministrar todas as responsabilidades, relações humanas e atividades. Mas eu estava sozinho no Gabinete, não havia uma equipe e eu me vi só e assustado com o aparecimento quase diário de pombas mortas no parapeito da janela da sala.
Fonte: Arquivo de Maísa Melara, prédio da SMSA de Foz do Iguaçu, 2018.
O medo, a solidão e a crise no ser-fazer Saúde Coletiva anunciavam o rumo: você irá surtar! “Comece a falar menos […] Cuidado aí”, disse várias vezes um colega de trabalho em tom ameaçador e intimidatório. Na produção intelectual “Psicoterapia do Oprimido – Ideologia e técnica da psiquiatria popular”, Moffatt (1984) sinaliza que “ […] A crise tem a ver com sentir-se invadido por uma vivência de paralização da continuidade do processo da vida” (MOFFATT, 1984, p.231). Nesse sentido, a paralisia estava mais direcionada a impotência da transformação da realidade do caos instalado na saúde local do que no meu corpo.
A invasão do pânico dentro do meu corpo ocorreu tanto pela pressão simbólica que este espaço de decisão promove na equação mente-existência quanto pela precariedade nas condições de trabalho. Não havia um ambiente salutar para o desenvolvimento do trabalho, tampouco relações afetivas, éticas e que produzissem felicidade.
O surto psicótico, denominado cientificamente pela psiquiatria e psicologia, chegou. Em 03 de dezembro de 2018, cheguei ao Gabinete choroso, confuso, no limite entre o real e o irreal. Comuniquei a chefia imediata, catei meus livros de legislação do SUS e fui em psicose intensa solicitar minha exoneração do cargo de Sanitarista Júnior da SMSA. Ironicamente, nem exame demissional foi realizado pela prefeitura. Em 15 minutos a ruptura estava assinada, carimbada e legitimada pelo Estado.
Moffatt (1984) também sinaliza que “A expressão orgânica deste processo de desorganização é a angustia […] Todo corpo fica tenso, preparado para enfrentar o perigo. Podemos sintetizar tudo isso com a palavra desesperado (des-esperado), ou seja, aquele que já não espera nada, que tem o futuro vazio” (MOFFATT, 1984, p.231). A psicose permaneceu por um mês, com delírios e alucinações: “Eu hoje represento a cigarra / Que ainda vai cantar / Nesse formigueiro quem tem ouvidos / Vai poder escutar / Meu grito!”
Agradeço imensamente o encontro potente com as humanas e profissionais Soraya Sehli e Ercilia Monção. Aos amigos e amigas que estiveram ao meu lado caminhando na crise. Diagnosticado clinicamente, inicio meu processo de retomada do meu projeto de vida e felicidade.
O mais dolorido de todo este processo foi e é ainda perceber que a Saúde mental é negligenciada e mutilada pela administração pública local, ao menos, em meu caso. A responsabilização pelo sofrimento psíquico gerado pelo ambiente e relações de trabalho no SUS precisa ser vista com mais seriedade, sem culpabilizar quem sofre e com a costura de políticas públicas que minimizem as possibilidades de ocorrência, conquanto, enquanto não for feita uma fissura na lógica neoliberal de trabalho nestes espaços, não haverá saúde mental produzida por ali.
Fonte: Arquivo pessoal, sombras de uma caminhada em psicose, 2018.
Por sorte, pude redefinir o caminho e trilhar novos rumos. Atualmente estável busco sensibilizar e trazer ao campo da saúde mental a crítica como subsídio para compreender que não estamos sozinhos. “Nunca neste mundo se está sozinho”. Meu desejo é que as relações de amizade, fraternidade, solidariedade e amor cresçam nos espaços da gestão em saúde. Que se faça a gestão de si e que se rompa com a premissa da gestão do outro.
Desejar saúde mental não somente na gestão, mas também na assistência, na participação social, nas práticas, programas e políticas de saúde é o primeiro passo para que transformemos a realidade experenciada. Notificar o adoecimento em saúde mental pelo trabalho também é necessário, e já contamos com uma ficha para tal. A saída é coletiva e política.
Hoje, sem antipsicóticos ou estabilizadores de humor, permito a abertura para o existir. Caso precise e sinta a necessidade, um lítio sempre me cai bem. “Se eles têm três carros, eu posso voar / Se eles rezam muito, eu já estou no céu”
Referências
MOFFATT, Alfredo. Psicoterapia do oprimido: ideologia e técnica da psiquiatria popular. 4 ed., São Paulo: Cortez, 1984.
Embora a incidência e prevalência dos chamados ” transtornos mentais” tenham permanecido relativamente estáveis, o aumento global dos cuidados psiquiátricos tem causado uma carga crescente para os sistemas e sociedades de saúde. No ano passado, um grupo de estudiosos interdisciplinares liderado por Timo Beeker introduziu o conceito de psiquiatrização como uma estrutura conceitual para compreender os processos pelos quais cada vez mais indivíduos são diagnosticados e tratados como doentes mentais e as práticas psiquiátricas moldam cada vez mais áreas da vida.
Em resposta ao apelo desses estudiosos à pesquisa transdisciplinar sobre psiquiatria, um novo trabalho de Sebastian von Peter explica como a abordagem do Diálogo Aberto (OD) ao cuidado mental pode ser usada como uma estratégia potencial para combater a onda de psiquiatrização global.
Desenvolvido na Finlândia, o Diálogo Aberto (DA) é um modelo multiprofissional, contínuo, orientado às necessidades dos pacientes e tratamento ambulatorial de apoio durante uma crise. Sua metodologia representa uma mudança do paradigma psiquiátrico de busca do “diagnóstico correto” para um foco na criação de significados, linguagem comum e inclusão de uma rede de diferentes vozes no processo de tratamento.
“Em [Diálogo Aberto], a rede social e o usuário estão envolvidos no planejamento conjunto do tratamento e no engajamento do tratamento desde o início e durante todo o processo terapêutico (às vezes durante anos, se necessário)”.
Esta abordagem se baseia nos recursos e criatividade do usuário do serviço e de sua rede social para tomar decisões e desenvolver um plano de ação e tratamento. Esta abordagem não institucional, não medicalizada, também se harmoniza com as atuais abordagens baseadas em direitos para o tratamento da saúde mental.
Com base em vários estudos de coorte realizados nos anos 90 e início dos anos 2000, o DA provou ser eficaz para reduzir significativamente as estadias hospitalares, bem como para reduzir as taxas de recaídas ao longo do tempo. Estes estudos também mostram a reintegração de até 84% dos usuários de serviços no trabalho e na educação e o uso baixo e pouco freqüente de medicamentos neurolépticos durante o tratamento de DA.
De modo geral, as evidências dos estudos de coorte do tratamento de DA mostraram que “os resultados do tratamento alcançado em cada caso permaneceram bastante estáveis durante todo o período [de 13 anos] ou até mesmo aumentaram ao longo do tempo”. Assim, o DA constitui uma abordagem promissora para o tratamento de doenças mentais que honra os direitos dos usuários de serviços e não aumenta a medicalização, fornecendo assim um potencial promissor contra os processos de psiquiatria em todo o mundo.
No entanto, apesar do histórico promissor do DA, mesmo este modelo de prestação de serviços pode vir a ser apropriado por um sistema de tratamento psiquiátrico. Os autores advertem:
“Este perigo [de apropriação] é ainda mais pertinente, uma vez que exige sistemas de apoio psicossocial mais democráticos, baseados nos direitos humanos, fortalecedores ou orientados para a recuperação que procuram ampliar, no entanto, muitas vezes sem a vontade ou a reflexividade suficiente para mudar as rotinas habituais”.
A implementação de uma abordagem DA à saúde mental e seu impacto na despsiquiatrização dependerá de como a abordagem será implementada em um contexto de cuidado, apoio e respeito. De fato, escreve von Peter:
“O DA pode ser considerado como somente sendo um componente para trazer as mudanças urgentemente necessárias no sistema de saúde mental”.
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Von Peter, S., et al. (2021). Dialogue as a Response to the Psychiatrization of Society? Potentials of the Open Dialogue Approach. Frontiers in Sociology. (Link)
O aumento global dos transtornos mentais diagnosticados e o aumento da utilização dos serviços de saúde mental têm causado uma carga crescente tanto para os sistemas de saúde quanto para as sociedades. Novo trabalho de um grupo de estudiosos interdisciplinares explora o conceito de psiquiatria da sociedade e suas implicações e apela para uma pesquisa transdisciplinar sobre o tema.
Por “psiquiatrização”, os autores se referem aos processos pelos quais mais e mais indivíduos são diagnosticados e tratados como doentes mentais, e as práticas psiquiátricas moldam cada vez mais áreas da vida.
Focalizando o desenvolvimento teórico e considerações teóricas, os autores sugerem um modelo básico de psiquiatrização como um ponto de partida para futuras pesquisas. Como os autores observam:
“A psiquiatrização é altamente complexa, diversificada e global. Ela envolve vários protagonistas, e seus efeitos são potencialmente prejudiciais aos indivíduos, às sociedades e à saúde pública”.
Estes danos potenciais incluem o sobrediagnóstico e o tratamento excessivo, minando a prestação de cuidados de saúde mental para os doentes mais graves, e “impulsionando intervenções médicas que instigam a lidar com problemas sociais de forma individual, em vez de encorajar soluções políticas de longo prazo”.
Os autores descrevem dois processos de psiquiatrização: de cima para baixo e de baixo para cima. No modelo de cima-para baixo [top-down,] especialistas e políticos, juntamente com a indústria farmacêutica e companhias de seguros, impulsionam tanto o uso de práticas psiquiátricas quanto a aplicação de conhecimentos psiquiátricos, tais como as categorizações diagnósticas.
Exemplos de processos de cima-para baixo de psiquiatrização incluem “reestruturação em larga escala dos serviços de saúde mental, elaboração de leis, publicação de novas diretrizes de tratamento e diagnóstico, introdução de novos diagnósticos no DSM”, aprovação de medicamentos psicotrópicos existentes para algumas “novas” condições, triagem obrigatória da saúde mental e requisitos de diagnóstico para acesso a apoio educacional.
A psiquiatrização de baixo para cima [bottom-up] ocorre quando as necessidades e desejos dos pacientes e consumidores induzem mudanças no nível superior e, portanto, é conduzida por leigos sem vínculos profissionais com a psiquiatria ou com o sistema de saúde em geral. Em processos de baixo-para cima, a psiquiatrização pode ser, parafraseando Foucault, “solicitada, ao invés de imposta”.
“Os propulsores típicos da psiquiatria de baixo para cima podem ser pessoas buscando o reconhecimento do sofrimento subjetivo ou da diferença através de diagnóstico clínico, pessoas com ‘sintomas’ leves ou inespecíficos usando serviços profissionais de saúde sem indicação clara, ou a demanda dos pais ou outros cuidadores para diagnósticos e tratamento de transtornos de aprendizagem e comportamento percebidos”.
Os efeitos dos processos de psiquiatrização tanto de cima para baixo como de baixo para cima são diversos, altamente ambivalentes e significativamente influenciados por fatores tecnológicos, econômicos, políticos e sociais localizados e diversificados. Ao fazer este trabalho, os autores esperam fornecer uma estrutura conceitual para novas pesquisas interdisciplinares sobre a psiquiatrização da sociedade, seus impactos, riscos e benefícios.
As reorientações dos sistemas globais de saúde mental através da digitalização, desinstitucionalização e ampliação do atendimento comunitário no mundo inteiro devido às contínuas mudanças políticas e sociais tornam os processos de psiquiatrização cada vez mais relevantes para a vida social e política. Como os autores observam, porém, “pode ser complicado para a pesquisa distinguir as tentativas legítimas de atender às necessidades reais não atendidas da construção de infraestrutura que criam a necessidade artificial ou promovem a patologização e o supertratamento do sofrimento mental”.
Por estas razões, tanto a pesquisa interdisciplinar qualitativa quanto quantitativa é necessária para explorar os diferentes aspectos da psiquiatria e identificar as razões para o envolvimento em processos de psiquiatria, ou para resistir a eles.
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Beeker, T., Mills, C., Meerman, S., Thoma, S., Heinze, M., and von Peter, S. (2021). “Psychiatrization of Society: A Conceptual Framework and Call for Transdisciplinary Research.” Frontiers in Psychiatry, 20:645556.(Link)
Burning Man, 2019: A cidade pop-up radicalmente inclusiva do deserto de Black Rock de Nevada estava cheia de gente, muitas delas buscando abordagens alternativas à vida, à autoexpressão e à própria consciência. Alguns as encontraram na música ou na arte. Alguns encontraram-nas em substâncias.
Joshua White, Diretor-exectuvo da Fireside
Entre as dezenas de milhares naquele ano estava Joshua White, um voluntário do Projeto Zendo [Zendo Project]- que fornece apoio pessoal e de redução de danos para os psicodélicos. Outro foi Hanifa Nayo Washington, músico e especialista em reiki, com anos de experiência em serviço comunitário e ativismo.
Ambos tiveram experiências – profundas – com substâncias psicodélicas. Para White, as drogas haviam ajudado a resolver sua relação com a sua própria ansiedade e a aceitar-se “como uma pessoa inteira”. Para Washington, tomá-las em um contexto cerimonial havia lhe permitido curar e passar tempo com seu “eu criança”.
Hanifa Nayo Washington, chefe-executiva da Fireside
Ambos sabiam que existiam riscos inerentes. Algumas experiências podem ser extremas. Algumas podem ser aterrorizantes, levando a chamadas para o 911. E à medida que os psicodélicos crescem em popularidade, esses riscos estão afetando uma população mais ampla de pessoas que podem experimentá-los e tropeçar neles sozinhas, despreparadas, desacompanhadas e sobrecarregadas – tudo isso pode representar perigos significativos. Ambos viram tudo isso em um contexto de justiça social.
Eles se encontraram. Conversaram. No verão de 2020 – no auge da pandemia, após o assassinato de George Floyd, em um período de protesto e incerteza – eles conversaram um pouco mais, chegando ao foco das populações carentes e as pessoas que tomam os psicodélicos por conta própria.
Alguém pode precisar de um ouvido simpático. Uma voz simpática. Um colega que entendesse – que pudesse avaliar sua segurança e assegurar-lhes que estão bem. Talvez os voluntários presentes no “espaço psicodélico” pudessem sentar-se com eles, mesmo que remotamente, enquanto eles trabalham com suas experiências, presentes e passadas. Talvez eles pudessem acompanhar com chamadas de check-in, fazendo com que aqueles que se aproximassem se sentissem ainda mais conectados e apoiados.
“Já sabemos que as pessoas estão usando substâncias psicodélicas – e como elas estão sendo legalizadas e descriminalizadas, também sabemos que, ainda assim, a maioria das pessoas que acessam e se relacionam com substâncias psicodélicas não vai estar em uma clínica”, disse Washington. “Vai estar fora da clínica”. Dado isso, “seria irresponsável da nossa parte não criar protocolos de segurança – processos – para que as pessoas não caiam em comportamentos e situações de risco”. Por isso, queremos minimizar o risco”.
A visão, nas palavras de White: “Toda pessoa pode ter acesso a apoio de alta qualidade entre pares durante e após as suas experiências psicodélicas. Elas não têm que ter dinheiro. Elas não precisam ter dinheiro para pagar um terapeuta ou ir a uma clínica. Cada pessoa no mundo que tem um telefone pode ter acesso a apoio”.
O resultado: Projeto Fireside. A linha de apoio sem fins lucrativos lançada em 14 de abril de 2021 – oferecendo apoio entre pares de forma gratuita e confidencial nos Estados Unidos (pelo menos por enquanto) a praticamente qualquer pessoa, em praticamente qualquer substância, em praticamente qualquer circunstância. White é seu diretor executivo fundador; a co-fundadora Washington é a diretora de estratégia. Equidade, redução de danos, educação e esperança são seus objetivos.
“A redução de danos – isso é o que, para mim, é tão bom em Fireside”. Não é um juízo de valor. É aceitar as pessoas”, disse Fola Vickers, um dos três supervisores da Fireside que acompanham os telefonemas.
Acrescentou Katie Bourque, sua diretora de operações e de divulgação: “Esta é a primeira oportunidade real para que todos tenham este acesso igualitário”.
Apertando o cinto de segurança durante a “renascença psicodélica”
Como alguém com experiência psiquiátrica vivida e experiência “transformacional” com substâncias psicodélicas, “eu via como esta oportunidade é perfeita para fazer uma espécie de ponte entre o modelo de apoio de pares e o espaço psicodélico”. . . . À medida que os psicodélicos se tornam medicalizados, é realmente importante ter uma voz pura nesse lado das coisas”, disse ela. “Além disso, à medida que os psicodélicos se tornam descriminalizados, para ter certeza de que estamos oferecendo serviços de redução de danos e riscos na comunidade”. Foi isso que me atraiu para o Projeto Fireside”.
Ao discutir seu papel, os organizadores do Fireside usam algumas analogias simples. Uma que aparece freqüentemente é a rede de segurança; White, por exemplo, observou que as pessoas correm riscos quando escolhem fazer sexo ou dirigir um carro, e há maneiras de reduzir os riscos para ambos. Mas Washington levou a analogia mais longe, comparando a linha de apoio Fireside especificamente com um cinto de segurança.
“Sentado em um carro não é inerentemente prejudicial, mas você está se colocando em maior risco se não usar o cinto de segurança”. É uma ferramenta. É um protocolo para a segurança. . . . Estamos aqui como uma ferramenta de segurança para tornar esse espaço mais seguro e reduzir riscos potenciais”, disse Washington. “De modo que, por si só, para nós é justiça social”. É eqüidade”.
Os conceitos mais amplos e não julgadores de redução de danos por trás do Fireside não são novos, remontando aos anos 80 e a chamada “abordagem PAN” (“preservativos, agulhas e negociação”) para limitar a propagação da AIDS. Tampouco o modelo de redução de danos para ajudar as pessoas com psicodélicos é totalmente inédito. Nos anos 70, um programa em North Adams, Mass., manteve uma linha direta [hotline] “Viagens de Emergência” para pessoas em meio a experiências psicodélicas desafiadoras.
Meio século depois, a necessidade de tais abordagens de redução de danos é ainda mais pronunciada à medida que os psicodélicos captam mais atenção do que em qualquer outra época desde meados do século 20. Muita tinta tem sido derramada, ultimamente, nas principais publicações e livros mais vendidos, mais notadamente em Michael Pollan’s How to Change Your Mind: What the New Science of Psychedelics Teaches Us About Consciousness, Dying, Addiction, Depression, and Transcendence [ComoMudar a Sua Mente:O que a Nova Ciência dos Psicodélicos nos ensina sobre Consciência, Morte, Vício, Depressão e Transcendência]. Drogas como psilocibina e MDMA estão agora sendo descriminalizadas, até mesmo legalizadas, em vários locais. Sua eficácia no tratamento da depressão, ansiedade, dependência e TEPT está sendo analisada em testes de drogas realizados por pesquisadores em instituições acadêmicas.
E mesmo enquanto os pesquisadores estão realizando tais ensaios, muitos proponentes estão enquadrando as drogas como uma alternativa ou antídoto para o paradigma das drogas psiquiátricas existentes – que tradicionalmente se fixa nos sintomas e prescreve durante anos, se não para toda a vida. Os psicodélicos são diferentes, dizem tais vozes. Elas não entorpecem. Eles não são prescritos a longo prazo.
No entanto, os psicodélicos são, afinal de contas, drogas – com potencial para resultados negativos, sejam eles viagens negativas em psilocibina ou relatos de crise de abstinência da cetamina. As pessoas estão se voltando para eles tanto em ambientes legais quanto não. Elas estão participando de experimentos, indo a clínicas, se reunindo em retiros, experimentando microdosagens de ajuste de humor, pagando por terapia assistida por psicodélicos ou – mais parecido, para aqueles sem dinheiro – procurando um punhado de cogumelos por conta própria. Às vezes sozinhas. Muitas vezes sem qualquer apoio, orientação, conhecimento dos produtos químicos que estão tomando, ou presença de alguém, qualquer pessoa, que possa ajudá-los a navegar em uma experiência psicodélica desafiadora ou a processar uma experiência passada.
“Com os psicodélicos, existem com certeza riscos”, disse White. “E esses riscos são maiores se uma pessoa não tiver apoio durante a experiência”.
Minimizando os riscos com um senso de missão
Tais riscos podem variar. Um deles é o potencial para uma viagem ruim – especialmente para alguém que vai sozinho, e especialmente para aqueles que procuram autotratar suas lutas de saúde mental: Na Pesquisa Global sobre Drogas 2020, 4,2% dos entrevistados que relataram ter usado substâncias psicodélicas como autotratamento no ano anterior acabaram procurando uma emergência psiquiátrica. Mas uma viagem dura pode ser difícil para qualquer um navegar e, mais tarde, integrar-se: Em uma pesquisa de 2016, 39% dos 1.993 entrevistados classificaram uma experiência negativa de psilocibina como “entre as cinco experiências mais desafiadoras de sua vida”. Onze por cento colocam a si mesmo ou a outros em risco de dano físico”.
Entretanto, os líderes da Fireside observam que nem tudo o que é percebido como uma emergência durante uma viagem é realmente uma emergência. Esse é um risco que o Projeto Fireside pode diminuir ao realizar a triagem inicial: Alguém está em perigo? Será que precisam ir à urgência? Depois disso, os voluntários “sentam” com os que entraram em contato por telefone ou enviando uma mensagem escrita no meio da experiência de algo novo, estranha e potencialmente assustadora.
Como o site da Fireside deixa claro, ele não oferece serviços médicos. Ele não fornece conselhos ou cuidados de saúde mental. Não fornece conselhos para os curiosos em psicodélicos. Seus voluntários não são “guias”, um termo usado na comunidade psicodélica que delineia um papel muito mais específico e ativo. E a organização reconhece, como o site também deixa claro, que “os psicodélicos não são para todos”. Ele adverte: “Se você tem um histórico pessoal ou familiar de esquizofrenia, transtorno bipolar ou alguns outros transtornos, ou se você está tomando determinados medicamentos, consulte um profissional antes de tomar os psicodélicos”.
O que ele faz é apresentado em uma declaração de missão que se encontra na parte superior da página inicial. Seu objetivo é diminuir os riscos. Maximizar o potencial. Fornecer apoio compassivo, acessível e culturalmente sintonizado. Educar o público. Pesquisas adicionais. Aumentar a equidade e a partilha do poder “dentro do movimento psicodélico”.
Mais abaixo estão listadas 10 práticas básicas de segurança, entre elas diretrizes para fazer pesquisas antes de experimentar uma droga; para testar as substâncias que estão prestes a consumir pelo conteúdo; para garantir que tenham acesso à água e a um banheiro; e para dar tempo para integração, após a viagem. Também exorta os visitantes a “Estar atentos ao conjunto e ao cenário”, um conceito articulado pela primeira vez nos anos 60 pelo pioneiro psicodélico Timothy Leary. Ele explica: “Set é o seu mundo interior”. Set é seu ambiente externo – isto inclui onde você está e quem está com você. Evite cenários públicos”.
A idéia, com tudo isso, é suavizar o caminho e fornecer apoio emocional. Mas não de qualquer um – de alguém que entende, de um “cidadão psicodélico” com suas próprias experiências que alteram a mente.
“Há um número que você pode chamar para ser ajudado sem julgamento. E é um colega! É outro cidadão, é outra pessoa que teve as suas próprias experiências com estados alterados – e também compreende a importância de ter o apoio de pares nessas experiências”, disse Washington. Ela continuou: “Quando falamos de modelos médicos, saúde mental e cuidados mentais, acreditamos que o apoio entre pares é uma ferramenta e um caminho essencial”.
Manter a simplicidade, mantendo-os seguros
Com a redução de danos em mente, as bases do Projeto Fireside são exatamente isso. Básico. Qualquer pessoa nos EUA, a qualquer hora entre 15h e 3h da manhã, horário do Pacífico, em qualquer dia da semana, pode enviar uma mensagem de texto ou ligar para 62-FIRESIDE (623-473-7433). Aqueles que precisam de suporte também podem usar o aplicativo Fireside, abrindo-o para ver dois grandes botões. Um diz ” chamar “. O outro diz “texto”. Depois de passar um pouco para frente e para trás, uma seqüência de mensagens suavemente encorajadoras toma a tela.
imagem da tela do aplicativo do Fireside
A população alvo é ampla, oferecendo apoio às pessoas atualmente em viagens, geralmente sozinhas e em busca de companhia; para pessoas que processam viagens passadas, seja dias ou anos atrás; para pessoas sóbrias no meio da “viagem” da outra pessoa; para terapeutas, facilitadores ou qualquer pessoa em um ambiente clínico, cerimonial ou outro ambiente de grupo que esteja em alguma forma de angústia ou simplesmente precise se sentir ouvida.
Sua definição de “psicodélico” também é ampla, incluindo psilocibina (cogumelos), MDMA (ecstasy), LSD (ácido), mescalina (peiote), santo-dime (parte de ayahuasca, uma poção indigenena da Amazônia), e outros. Também sob o guarda-chuva estão a cetamina, um anestésico com efeitos dissociativos que agora está sendo prescrito para depressão, ansiedade e dependência de álcool; e a cannabis, atualmente legal para uso recreativo em 19 estados, que pode produzir efeitos psicodélicos, pelo menos para algumas pessoas, pelo menos em algumas doses.
A palavra “alucinógeno” é freqüentemente evitada, pois nem todas as experiências psicodélicas envolvem alucinações. E dentro da comunidade daqueles que consomem estas substâncias – o “espaço psicodélico” – muitos são referidos como “medicamentos vegetais”, o que enfatiza suas antigas raízes, literais e figurativas, na prática indígena tradicional.
Em uma conversa de chamada ou texto, os protocolos são ao mesmo tempo flexíveis e firmes.
Fola Vickers, um dos supervisores do pessoal da Fireside
Quando alguém se aproxima, o Fireside determina imediatamente a sua segurança e o seu estado alterado. Essa é “a primeira regra”, disse Fola Vickers. Todos que telefonam ou enviam mensagens de texto ouvem ou lêem um aviso exortando-os a entrar em contato com os serviços se, de fato, eles estiverem em uma emergência médica. Depois de estabelecer que não estão, a pessoa é conectada com alguém, geralmente um voluntário em um turno de quatro horas.
A linha de apoio é privada e estritamente anônima. Mas o maior número possível de detalhes são colhidos desde o início, disse ela: “Como, ei, o que esta pessoa está procurando, exatamente? Será que está tropeçando neste momento? A pessoa está procurando integração para uma viagem que talvez tenha acontecido recentemente? Será mesmo apropriado”? Alguém pode ter discado o número errado, disse ela. Ou ligou em busca de um número de contato, um website, ou algum outro recurso que a Fireside não possa fornecer.
Algo mais que os voluntários não podem fazer em uma ligação: dar conselhos. Essa não é a competência deles – não enquanto os psicodélicos continuarem ilegais em tantas jurisdições. O projeto, apoiado por uma organização sem fins lucrativos da Califórnia chamada Social Good Fund e auxiliado por doadores, incluindo a empresa de sabão orgânico do Dr. Bronner, não pode ser visto como promoção de comportamento potencialmente criminoso. Como afirma em sua declaração de isenção de responsabilidade: “O Projeto Fireside não incentiva ou tolera nenhuma atividade ilegal, incluindo mas não se limitando ao uso de substâncias ilegais”.
Mas uma vez que passam pelos lances iniciais, aqueles que alcançam Fireside são encorajados a se sentirem confortáveis (será que precisam de um cobertor?) e, bem, a conversar. O papel do voluntário é, bem, ouvir. Estar com uma pessoa, respondendo a seus medos e sentimentos e necessidades em um espaço tão acolhedor e caloroso como uma lareira. Um amplo treinamento de voluntários enfatiza este objetivo: “Durante o treinamento, você aprenderá sobre escuta ativa, auto-trabalho, como dar apoio durante e após uma experiência psicodélica, a ética de dar apoio psicodélico de colegas, e como apoiar alguém por mensagem de texto”.
“Estas são pessoas que têm compreensão, porque também elas estiveram em alguns lugares sombrios”, disse Vickers. Embora voluntários e funcionários se encontrem e compartilhem on-line para sessões regulares de apoio de grupo, ela não conhece o histórico psicodélico de todos. Mas qualquer que seja a experiência deles, ela tem certeza de que isso ajuda. “Vejo como isso me tem apoiado em poder sentar com alguém”.
Rastreando os números de forma anônima
E sentar-se com interlocutores é, digamos Vickers e outros, a chave: Simplesmente estar com alguém é diferente de diagnosticá-los, tratá-los, tentar corrigi-los. Enquanto enfermeira psiquiátrica de prática privada em Alberta, Canadá, Vickers trabalhava anteriormente em equipes de emergência-resposta. Antes, ela entrava nas casas ao lado da polícia e levava as pessoas para o hospital contra a sua vontade. Mas então, ao entrar em sua própria “emergência espiritual”, ela começou a questionar esse modelo. Foi por isso que ela saiu. O apoio dos colegas tem um papel diferente, disse ela.
” Isto vai daquele lugar de ‘consertar e salvar’ – em nossa antiga, mais ou menos, forma de cuidar da saúde – até o presente. ‘Não precisamos patologizar o que você está passando, ou dizer que está errado’. Ou fazer com que seja de uma certa maneira porque nos deixa desconfortáveis””. Em vez disso, “é apenas, como, permitir o que quer que esteja presente – e confiar que essa pessoa vai passar por tudo o que precisa para passar em seu próprio tempo”.
Ou, como Washington o expressou: “Estamos tomando a vergonha – certo? – e responsabilizando os que estãi experimentando e nivelando o campo de jogo”.
Os voluntários da organização vêm de diferentes fusos horários ao redor do mundo, ajudando a Fireside a cobrir os turnos em sua janela de serviço de 12 horas (que se expandirá, provavelmente, 24 horas por dia). Pedimos para entrevistar voluntários e e ex-usuários da linha de apoio – ou, pelo menos, descrições de chamadas já feitas- Fireside declinou, citando as suas políticas de privacidade e anonimato.
Entretanto, em vários postagens nos últimos meses, o que não faltam são elogios à Fireside e com endossos sucintos. Uma postagem diz: “Se vocês não sabem o que é o projeto Fireside, vocês são uma merda! Pessoas absolutamente incríveis… . . Se você ou alguém que você conhece precisa de ajuda para processar uma experiência ou está atualmente passando por uma, tenha certeza que você pode entrar em contato com a Fireside”. Disse outra postagem: “Eu usei seus serviços depois de uma experiência e isso me ajudou muito. Eu precisava falar com alguém que a tivesse. . . . Muito descontraído e profissional”.
No início de dezembro, White disse: “Fireside tinha se envolvido em 1.300 conversas, cerca da metade delas por meio de texto. Em uma colaboração com a Universidade do Sul da Califórnia, São Francisco, a organização está acompanhando seus números – olhando para os usuários da linha de apoio que optam por preencher uma pesquisa anônima. O objetivo, dizem eles, é mostrar quantas pessoas estão ligando, por que estão ligando, que grupos de pessoas estão ligando mais e até que ponto o projeto minimiza as ligações para o 911, alivia danos psicológicos e reduz outros riscos relacionados ao uso psicodélico.
Até agora, cerca de 60% das chamadas e textos são pessoas que integram experiências psicodélicas passadas; cerca de 30% estão tropeçando ativamente. Os 10% restantes, mais ou menos, são “uma mistura de pessoas buscando conselhos antes da viagem (que nós não fornecemos) e chamadas fora do escopo estabelecido para as linhas”, disse White em um e-mail de acompanhamento. E, em um número tweetado pelo projeto, “30% dos entrevistados da pesquisa sugeriram que poderiam ter ligado para o 911 ou contatado serviços de emergência se não tivessem contatado @GlowFireside”.
Joseph Zamaria, psicólogo clínico e investigador
Geralmente, aqueles que usam Fireside para processar viagens passadas não correm risco semelhante – a menos que sejam suicidas, disse Joseph Zamaria, o investigador principal no estudo da UCSF e professor associado de psiquiatria na Faculdade de Medicina da UCSF. “Mas provavelmente não. Provavelmente é mais, talvez, existencialmente pesado tentar dar sentido a essa experiência”. Nesses casos, é útil encontrar ” um ouvinte empático e informado que tenha ideias”.
Zamaria, que também é psicólogo clínico e pesquisador em vários e contínuos ensaios com psilocibina na UCSF, considera isto especialmente importante em uma era de isolamento generalizado. Mesmo antes da pandemia, disse ele, a sociedade se encontrava em “circunstâncias terríveis de saúde mental”. Conseguir ajuda – qualquer tipo de ajuda – não é fácil. “Portanto, muitas pessoas se voltam para a medicina psicodélica e fazem isto por conta própria”. . . . O serviço Fireside é realmente importante, porque oferece orientação. Ele oferece apoio”.
Yin e yang, sombra e luz
Para aqueles sem conhecimento em primeira mão dos psicodélicos, a conversa ao seu redor pode ser mistificante: Pela sua natureza, os efeitos são difíceis de descrever. Os “psiconautas” experientes descrevem estados que alteram a percepção, quebram limites, conectam o eu com o domínio mais amplo e trazem à tona uma maravilha semelhante a uma criança. Uma viagem é uma viagem – uma viagem para dentro e além da consciência, muitas vezes resultando em epifania espiritual.
Katie Bourque, diretora de operações e divulgação da Fireside
Katie Bourque chamou isso de “a busca humana pela transformação”. Seja perseguida através de psicodélicos ou algum outro meio, é o impulso de “ir além do eu e para algum plano diferente”. Ela sabe porque ela mesma já esteve lá. “Eu pessoalmente tenho experiência usando substâncias psicodélicas – e encontrando-as para serem realmente experiências transformadoras”.
Em 1954, em As Portas da Percepção, Aldous Huxley descreveu a sua própria transformação em quatro décimos de um grama de mescalina. As habituais informações espaciais e temporais, escreveu ele, deixaram de ter importância. O que o envolveu em vez disso, “só posso descrever como a visão sacramental da realidade … em um mundo onde tudo brilhava com a Luz Interior, e era infinito em seu significado”.
Mais de seis décadas depois, em How to Change Your Mind, Pollan detalhou a sua própria experimentação supervisionada – primeiro com o LSD, depois com a psilocibina, e finalmente com o veneno do sapo 5-MeO-DMT (também conhecido como “Veneno de Sapo”, ou “A Molécula de Deus”). “O indivíduo tinha sido obliterado”, escreveu ele sobre sua viagem na psilocibina. Como uma gravação Yo-Yo Ma de uma suíte de violoncelo de Bach tocada ao fundo, “eu perdi qualquer habilidade que ainda tinha para distinguir sujeito de objeto, contar à parte o que restava de mim e qual era a música de Bach”.
Mas nem todas as viagens são fáceis – como Pollan aprendeu em primeira mão em sua experiência de pesadelo com o Veneno de Sapo [toad venon]. Mesmo as viagens mais reveladoras podem ter elementos que podem alarmar aqueles que tomam uma dose considerável. Além disso, o relato de Pollan de perder a si mesmo não é incomum – essa sensação de conexão em algum plano superior, em algum universo infinito, também pode envolver uma dissolução do ego.
“Você se sente como se estivesse morrendo”, confirmou White. “Então uma pessoa que não tinha realmente nenhum conhecimento de como as experiências psicodélicas funcionam pode acreditar que está realmente morrendo – e então ligar para o 911. Ou pode ser que tenham alguém para levá-los para o pronto-socorro. Isso comporta seus próprios riscos, certo? Especialmente se ligar para o 911 significa que você interage com as autoridades policiais, e sendo uma pessoa de cor”.
Considerando todas essas complexidades de experiência, White vê a missão do Projeto Fireside como “ter duas partes que são yin e yang”: Ajudamos as pessoas a reduzir os riscos e a cumprir o potencial para sua experiência psicodélica”. Expandindo isto, ele disse: “Ao criar um invólucro seguro para as pessoas, que reduz os riscos – porque permite que esta pessoa sinta uma sensação de segurança, conforto e conexão”. E é precisamente a criação desse espaço seguro que também permite que a pessoa se volte para a experiência e realize o potencial”.
Aquele yin e um yang podem estar presentes na própria viagem. No caso de Vickers, ela nunca experimentou uma morte do ego, mas ela entende “aquela luz e aquela sombra” – ou seja, a complexidade que alguns podem encontrar em qualquer viagem. “As pessoas têm viagens diferentes, caminhos diferentes que precisam tomar – e têm esses entendimentos de sua realidade de maneiras diferentes”, disse ela.
White citou uma citação de Stanislav Grof, o psiquiatra conhecido por seu trabalho com consciência não-ordinária (seja através de substâncias psicodélicas ou do trabalho holotrópico da respiração). “Os psicodélicos são para a mente o que o microscópio é para a biologia e o telescópio é para a astronomia”, disse ele certa vez. Significado: Eles olham para as profundezas e magnificam verdades distantes.
“Isso só pode acontecer se você sentir uma sensação de segurança e proteção”, disse White. “Se você está fora do mundo em um psicodélico” – e por “o mundo” ele quer dizer o reino físico mundano – “e há pessoas ao seu redor que não o entendem, há ruídos altos, há intensidade ao seu redor? Ter seu subconsciente amplificado pode ser arriscado”.
Algo para percorrer, não para instrumentalizar
Segundo muitos na esfera psicodélica, essa mesma intensidade sugere diferenças significativas entre tais substâncias e drogas psiquiátricas padrão como os ISRS. Os psicodélicos não são, dizem eles, negócios como de costume.
Primeiro: A maioria das pessoas não está com eles por muito tempo. Em ambientes clínicos, elas podem tomar doses limitadas junto com múltiplas sessões de psicoterapia, realizadas antes como preparação e depois para integração. Para alguns ensaios clínicos explorando os efeitos sobre o TEPT, por exemplo, “São três sessões de MDMA“, disse Bourque. “Não, como se alguém estivesse tomando medicação para o resto de suas vidas”. Acho que alguém vai muito tempo ao médico e fica, tipo, “Aqui está um antidepressivo para sempre”. Certo?”
Segundo: Há uma diferença nos efeitos das substâncias psicodélicas na mente. Os modos habituais de pensar e sentir não são silenciados, como acontece com tantas drogas psiquiátricas; em vez disso, em meio a essa transformação de dominação da mente, eles são exacerbados. Na literatura e nos comentários sobre os psicadélicos neste momento, uma imagem freqüentemente citada é o glóbulo de neve – algo que sacode as pessoas de suas rotinas cognitivas e emocionais, seja depressão, ansiedade ou vício.
Compare isso, disse Bourque, com o modelo ocidental de diagnóstico e tratamento – que se concentra nos sintomas e se esforça para apagá-los.
“Falando por experiência própria, como alguém que esteve sob medicação psiquiátrica e também tomou substâncias psicodélicas, acho que a diferença que experimentei pessoalmente foi que ao invés de os sintomas serem algo a ser administrado ou reduzido, com substâncias psicodélicas, é algo a ser elaborado”.Ainda assim, os pontos de interrogação pairam sobre este campo emergente. Quais são as potenciais desvantagens psicodélicas para as pessoas propensas a seus próprios estados alterados? Na sua forma atual, aqueles com “psicose atual ou que estão em risco de transtornos psicóticos” são considerados em risco demais e são, portanto, excluídos dos estudos com psilocibina. Além disso, os pesquisadores estão explorando a associação entre tais diagnósticos e o uso da maconha. Outros riscos incluem a possibilidade de “flashbacks“, ou interrupções sensoriais pós-excitação que o Manual de Diagnóstico e Estatística rotula como Transtorno de Percepção Persistente de Alucinógeno (HPPD). Também: Will Hall, em uma matéria para Mad in America e já traduzida no Mad in Brasil, escreveu sobre os danos induzidos por terapeutas psicodélicos que cometem abusos.
Além da psilocibina, os pontos de interrogação também pairam sobre outros ensaios com drogas em curso, muitos deles estudos de curto prazo com poucos sujeitos e desvantagens notáveis. Análises recentes de ensaios clínicos para esketamina, um medicamento feito de cetamina e prescrito para depressão resistente ao tratamento, mostraram uma eficácia incerta e efeitos adversos graves – incluindo ataques cardíacos, derrames, acidentes automobilísticos e mortes por suicídio. Outro estudo sobre a eficácia da ayahuasca no alívio da ansiedade, depressão e estresse apontou resultados não maiores do que os de um placebo.
Ainda outras preocupações envolvem a pura força de um sistema capitalista que poderia, alguns temem, conceder mais e mais poder às empresas farmacêuticas que estão cada vez mais inclinadas a monetizar tais medicamentos. A hierarquia de longa data já é desequilibrada. O que acontecerá se os psicodélicos forem medicados ainda mais? O que acontecerá se os efeitos dessas doses limitadas se desgastarem? E quanto à tendência à microdosagem, ou ao consumo de pequenas quantidades sub-halucinógenas de substâncias psicodélicas, como forma de reduzir os sintomas de depressão e ansiedade? Isso não sugere um modelo de doença redux?
“Temos medo de como a Big Psychedelics Pharma vai se desenvolver”, disse Washington. Por causa disso, “Queremos garantir que, caso os pacientes precisem de apoio, pelo menos eles tenham o apoio psicodélico de seus pares – porque o que antecipamos é que muitas pessoas passarão por experiências psicodélicas medicalizadas” – e depois, mais tarde, integrá-las.
“Temos que estar conscientes de que não estamos apenas nos virando e entregando o nosso poder a este medicamento”, disse Vickers. “O que já fizemos dentro de nossa indústria farmacêutica”: Dando poder aos médicos, dando a alguém um comprimido”. Isso vai contra todo o conceito de substâncias psicodélicas”. “Os psicodélicos mostram que você já tem o poder dentro de você” – através das próprias substâncias ou de outras práticas de mudança de consciência.
Justiça social psicodélica
Na própria vida de White, os psicodélicos ofereceram um yang distinto, ajudando-o a ouvir, e a aprender, com os elementos que estão no seu íntimo. “Há esta progressão, você sabe: Primeiro há o aprendizado sobre si mesmo, e as diferentes partes de si mesmo – e depois há a aceitação dessas diferentes partes. E depois, para mim, o passo final nesse caminho é amar todas as diferentes partes”.
Um ex-procurador, ele passou 17 anos em litígios civis, 11 deles para a Procuradoria Municipal de São Francisco, onde se concentrou em ações judiciais contra empresas que se aproveitavam de comunidades carentes. Em 2020, quando as origens de Fireside se desenvolveram, White considerou seu trabalho com o Projeto Zendo e a Talk Line, uma linha de apoio à redução de danos para os pais em São Francisco. Ele havia pensado nos pobres e sem seguro, na desigualdade e na necessidade.
“Eu realmente tinha a sensação de que o mundo parece que está chegando ao fim. E se eu não fizer algo para mudar isso”, perguntou ele, “por que estou vivo?
Em suas conversas na época, Washington lançou uma pergunta própria: “Qual é a maior possibilidade de que isto poderá acontecer? A quem estará servindo? Quem é que não estará à mesa?”
A resposta: Muitos.
Desde o advento dos psicodélicos nos anos 50 até seu renascimento agora, a cultura predominante que envolve esses produtos químicos que dominam a mente tem sido principalmente – cegamente – branca. Assim como os pesquisadores dominados pelo Ocidente cooptaram os rituais indígenas e ignoraram as contribuições de grupos desfavorecidos (mais uma vez uma preocupação, dada a crescente popularidade dos retiros ayahuasqueiros sul-americanos). Somando-se a tal iniquidade, no último meio século, tem sido a interminável “guerra contra as drogas” dirigida aos afro-americanos – dando aos povos originários ainda mais motivos para hesitar em pedir ajuda.
No renascimento atual, a brancura novamente prevalece. A maioria dos pesquisadores são brancos. A maioria dos psicólogos são brancos. A maioria das pessoas que podem pagar tratamentos são brancas.
E isso ali, disse Zamaria, é “uma questão de justiça social”.
“Porque é como se apenas um número muito seleto de pessoas pudesse entrar nos atuais ensaios clínicos que estão acontecendo em todo o país”. Quando essas terapias se tornarem legais, elas serão privatizadas, e provavelmente muito caras”. Se alguém tem o dinheiro, pode “fazer uma clínica de produtos naturais”. . . . Mas e se você não puder arcar com isso? Você encontra alguns cogumelos por um punhado de dólares. E assim a presença de Fireside tem realmente em mente, penso eu, a iniquidade, porque é apoiar as pessoas que não têm recursos para experimentar estes medicamentos de outras formas, sancionadas”.
Nos dados da Fireside, a lacuna no privilégio já se manifesta. Dos cerca de 20% dos usuários da Fireside que responderam até agora à pesquisa, a “maioria esmagadora” é branca – sem números difíceis, por enquanto, sobre exatamente quantos. Os brancos disseram que pouco mais de 50% são mulheres; um “número muito, muito pequeno” se identifica como trans e não-binário. Tais números ressaltam a necessidade de garantir, à medida que as pessoas se reúnem em grupos psicodélicos, que o “espaço seguro” seja estendido a todos.
As circunstâncias da ingestão psicodélica de alguém não fazem diferença, disse Washington – ou não deveriam fazer. Alguém pode ter recebido uma pastilha no correio de uma clínica de cetamina, ou pode estar colhendo alguns cogumelos que eles mesmos cultivaram. Isso não importa. “Porque é um serviço gratuito ao qual qualquer pessoa pode ter acesso e que tem um telefone. Portanto, se você não tem recursos para pagar um terapeuta psicodélico ou um técnico de integração – você teve uma experiência psicodélica e precisa de algum fundamento e apoio para poder processar isso – você pode ligar para Fireside”.
Bourque concordou. “Oferecer apoio de colegas que seja gratuito e acessível a todos, independentemente de como eles acessam os psicodélicos – eu só acho que há necessidade disso. É, tipo, realmente fenomenal, porque é transversal”. As compartimentações na forma como os serviços são prestados se foram, disse ela. Desapareceu o dinheiro necessário para acessá-los. Desapareceu é a lacuna no direito de acesso. Há, disse ela, “muito privilégio em algumas dessas experiências”.
‘Acionar um pouco os freios agora mesmo’
E à medida que os psicodélicos continuam a crescer – em popularidade e perfil, em legalização e medicalização – a parte da justiça social é ainda mais urgente. Embora a venda, a posse e o uso continuem ilegais sob a lei federal, 12 municípios em todo o país desprivilegiaram o policiamento e a ação legal sobre a psilocibina; um 13º, Detroit, descriminalizou-a, e outras dezenas de cidades estão considerando medidas semelhantes. Até agora, apenas um estado – Oregon – foi totalmente descriminalizado no uso e legalização do uso médico, mas a legislação ativa está agora sendo considerada em outros 10. (Para informações mais detalhadas), consulte o Rastreador de Legalização e Descriminalização Psicodélica).
Entre eles estão múltiplos estudos sobre o efeito da psilocibina na depressão, com muito mais treinamento sobre a eficácia da droga para pessoas diagnosticadas com TOC, transtorno bipolar, transtorno dismórfico corporal, anorexia, alcoolismo e uso de cocaína. O tabagismo é outra área de pesquisa. Também em breve: Mais pesquisas sobre os efeitos do MDMA em pessoas diagnosticadas com TEPT. Na Suíça, pesquisas sobre os efeitos do LSD em pessoas diagnosticadas com ansiedade e grandes transtornos depressivos. Na Holanda, pesquisa sobre os efeitos do 5-MeO-DMT na depressão. Em outras partes da Europa, estudos explorando a Ibogaine, uma substância derivada da iboga na África Central e utilizada por várias tribos de pigmeus.
Ao mesmo tempo, a nova onda psicodélica se infiltrou ainda mais na cultura e uma ampla cobertura da mídia. Pollan, cujo publicista não respondeu a um pedido de entrevista, enviou tweets sobre o Projeto Fireside e continua sendo uma figura proeminente em todo o espaço psicodélico.
O lançamento desse livro”, disse White, “foi um momento seminal no ressurgimento psicodélico que está acontecendo”. . . . Acho que é realmente impossível subestimar o significado que esse livro teve”.
Muitas pessoas que chamam Fireside o citam como uma influência – o que aponta, mais uma vez, para a necessidade de redução de risco.
“Muitas pessoas que leem o livro leem outros tipos de cobertura da mídia sobre o que está acontecendo no espaço psicodélico – e não percebem que é realmente difícil tomar substâncias psicodélicas. Que a experiência do cogumelo, a experiência da ayahuasca: Pode ser absolutamente brutal”, disse White. “E que pode ser um processo de integração extensivo”. Se você não tem a expectativa de que há esse nível de dificuldade, pode ser traumatizante – e pode tornar o potencial de cura de um psicodélico ainda mais difícil”.
Zamaria compartilha sua preocupação. “Sim, eu estou preocupado com isso”, disse ele. “Há um fervor neste momento tanto na indústria e nos círculos acadêmicos quanto nos círculos sociais e culturais, de que drogas como os psicodélicos podem ter todas as respostas”, disse ele. “E eu acho que elas podem ser tremendamente úteis”. Mas sim, eu acho que há apenas esta onda de, talvez, esperança de que precisamos de algum tipo de remédio para curar o que nos aflige psicologicamente”. . e isso é preocupante”.
Essa onda de ânsia “pode ofuscar os riscos, ou os problemas”. Não sei quantas pessoas teriam que entrar numa sala, mas alguma porcentagem delas, se procurassem substâncias psicodélicas, não seria ajudada por elas. Isso também é um grande problema. Pensar: “Aqui está uma bala mágica – ela funciona para todos”. E depois usá-la em qualquer forma – seja em uma sessão guiada, ou por conta própria, ou seja o que for – e depois não entrega”…”.
Por causa disso, ” acionar um pouco os freios agora mesmo faz muito sentido”. . . Basta ser cauteloso, ter cuidado e olhar para os dados”. Em um e-mail, ele acrescentou: “A terapia assistida por psicodélicos tem o potencial de ser uma ferramenta segura e muito poderosa no trabalho de psicologia e psiquiatria, mas o trabalho precisa ser feito para determinar suas aplicações, inconvenientes, etc.”.
Os princípios da “cidadania psicodélica”
Enquanto isso, White e seus colaboradores na Fireside têm seu próprio trabalho pela frente – olhando para o futuro com uma série de planos ambiciosos. Já está sendo desenvolvida uma Iniciativa de Equidade que treina “coortes de afinidade”, ou apoio cultural que liga um chamador ou um alguém que envia uma mensagem em texto a um colega da mesma origem ou identidade; a primeira coorte se concentrará em pessoas que são negras, trans, indígenas e veteranos militares. O esforço de divulgação e parceria com organizações em comunidades marginalizadas será uma parte do esforço de equidade, que o projeto espera lançar em 2022.
“Sabemos que isto é importante”, disse Washington. “Sabemos que a representação é importante”. Sabemos que a afinidade é importante”.
Outras metas, dependentes da captação de recursos: Aumento das horas, idealmente até 24/7 até o final do ano. Expansão da cobertura para o Canadá, também até o final do ano. Mais pesquisas de prospecção dos dados anônimos da Fireside, possivelmente explorando a natureza da integração. Uma campanha de educação, em breve para começar, avançando os princípios da cidadania psicodélica – quando e como ajudar alguém, reduzir seus danos e suavizar seu caminho para a transformação.
Eles eventualmente esperam alcançar e ensinar “funcionários, e pessoal de serviços de emergência, e todas as faculdades”. Nós temos uma grande visão”, disse Washington. “E isso requer uma espécie de desenrolar as coisas um pouco de cada vez”.
Mais amplamente, todos os entrevistados enfatizaram a necessidade de conscientizar o público em geral – “espalhar a palavra”, como diz o site. Para amarrar o cinto de segurança, é preciso saber que ele está lá.
Mas como Joshua White deixou claro, ninguém na Fireside está tentando persuadir ninguém a tomar substâncias psicodélicas. Eles não estão evangelizando. Essa não é a missão deles.
“Eu não diria que temos o desejo de levar estas experiências às pessoas”, disse ele. Em vez disso, eles têm o desejo de tornar essas experiências tão seguras quanto possível – e, além disso, tão positivas quanto possível, particularmente para aqueles em grupos menos privilegiados.
Como disse Vickers, “Sabemos que as pessoas vão tomar substâncias psicodélicas”. Como, sabemos que as pessoas vão fazer isso. As pessoas estão sempre tomando drogas”. As pessoas têm dificuldades que estão tentando administrar – elas querem se sustentar”.
Usando a mesma ideia sintetizada , Zamaria concordou.
“As pessoas vão fazer o que fazem em seu próprio tempo. E Fireside é criticamente importante”, disse ele, “porque ajudará as pessoas a fazer isso da forma mais segura possível”.
A plate of white pills on a calendar background. A conceptual photo with pills and an hourglass. Medical theme.
Inicio este blog com um pedido de desculpas. Pode haver pessoas lendo que, como eu, olham para trás com frustração e desespero que não podem mudar os anos que passaram dependentes de drogas antidepressivas ou a abordagem que adotaram ao parar. Eu recentemente passei meu segundo aniversário de abstinência da mirtazapina, uma droga altamente sedante, do tipo anti-histamínico. Quanto ao meu progresso nesse tempo, tudo o que posso dizer é que ainda tenho muito trabalho de cura a fazer. Algumas pessoas comentando sobre as minhas dificuldades contínuas apontam como eu procedi o processo de afunilamento da dosagem, particularmente o meu uso de tiras afiladas. Entretanto, acredito que há um fator importante na retirada difícil que precisa ser considerado, e que é o tempo de exposição. Para aqueles de nós, novamente como eu, que não podem voltar atrás no tempo, isto pode ser doloroso de considerar e, por esta razão, peço desculpas se esta nota perturba alguém afetado.
Eu me interessei pela abstinência de antidepressivos pela primeira vez em 2016. Isto não foi por escolha, mas sim foi algo imposto a mim, como a tantos outros, porque tomei consciência de que a pessoa que prescrevia o meu medicamento não tinha a menor ideia de como pará-lo com segurança. Os médicos apenas pareciam realmente interessados em me prescrever e aumentar a dosagem, apesar dos meus protestos de que eu me sentia pior enquanto tomava o medicamento.
Durante a minha retirada, me tornei um voluntário de um grande grupo de pessoas, dando apoio e encorajamento a outros que navegavam nas complexidades de se livrar dos antidepressivos. Embora a grande maioria da interação do grupo de apoio seja inestimável, tomei consciência de abordagens que são potencialmente menos úteis. Desde que comecei a dirigir meu grupo de discussão, Let’s Talk Withdrawal, e estando envolvido em muitos outros, cheguei à conclusão de que há momentos em que a natureza individual da experiência de uma pessoa é ignorada e todos eles recebem conselhos semelhantes. Tive pessoas que me contataram em particular para dizer que foram expulsas de outros grupos de apoio porque não queriam se ater rigorosamente à estratégia de “10% da dose anterior” que atingiu um status quase mitológico em comunidades leigas. Dez por cento da dose anterior é um bom ponto de partida para reduzir os sintomas, mas não é correto para todos. O maior problema com ela é que ela leva a afilamentos muito longos que aumentam o tempo de exposição da pessoa ao agente que pode muito bem estar causando suas dificuldades. Há uma visão predominante de que a forma como você se retira define as suas circunstâncias futuras. Isso pode ser parte da equação, mas não é o todo e o fim de tudo.
É importante dizer que sites de aconselhamento de retirada há muito estabelecidos, incluindo o Inner Compass Initiative e Surviving Antidepressants, não defendem uma abordagem fixa ou um cronograma de redução fixo. Os defensores e apoiadores que aconselham nesses locais conhecem as complexidades causadas pela polifarmácia e a necessidade de adaptar uma abordagem a cada indivíduo. Infelizmente, o mesmo não pode ser dito de todos os conselhos de retirada dados em fóruns on-line. Grande parte vem de um bom lugar, mas alguns conselhos são muito restritivos e não são dados em total consideração às circunstâncias únicas de uma pessoa. Os 10% por mês da dose anterior é uma sugestão, não uma meta. Não vai funcionar para todos, será muito lento para alguns e muito rápido para outros. Precisamos nos distinguir dos prescritores ingênuos, estando abertos a todos os métodos de retirada e a todas as velocidades.
Como exemplo, para alguém que está saindo de uma dose de 20mg de citalopram (Celexa), uma estratégia de “10% da dose anterior por mês” exigirá que leve 29 meses, durante dois anos, para atingir um ponto de salto de 1 miligrama. Para alguém que tem sido tratado por décadas, isto parece sensato; para alguém tratado com a droga por um ano ou dois anos, o afilamento pode muito bem dobrar o tempo de exposição. As pessoas podem argumentar que este tempo de exposição adicional está em uma dose menor. Isto é verdade mas, como vimos em trabalhos recentes sobre a ocupação da serotonina realizados pelo Dr. Mark Horowitz, muitos medicamentos do tipo ISRS retêm grande parte de sua potência em baixos níveis de dosagem. Por exemplo, olhando novamente para o citalopram, esta droga reterá mais de 40% de seu efeito a 5mg. Em uma programação de 10% ao mês, este ponto só será alcançado em 16 meses no processo de afunilamento.
É difícil dizer isto sem temer que possa fazer alguns se sentirem desesperançados, mas uma retirada gradual não é uma bala mágica para evitar problemas durante o afunilamento ou problemas prolongados depois. Não sabemos quase o suficiente sobre as muitas complexidades da experiência de abstinência para saber qual é a abordagem correta. Entretanto, ao insistir que todos sigam um caminho semelhante, podemos inadvertidamente estar prolongando o sofrimento. Embora pareça superficial, a taxa de retirada correta é aquela que você considera tolerável e que não requer grandes ajustes de vida para lidar com isso. Isso será diferente para pessoas diferentes e pode também variar durante o afunilamento. Muitos estarão dispostos a tolerar um período de retirada mais desconfortável se puderem limitar seu tempo total de exposição.
É muito difícil pensar em uma maneira de que isso possa ser estudado empiricamente, pois seria antiético causar sofrimento potencialmente forçando as pessoas a cumprir diferentes taxas de redução que não atendessem às suas necessidades. A falta de um estudo randomizado e controlado por placebo foi apreendida por alguns psiquiatras como um motivo para rejeitar a necessidade de abordagens de redução gradual, mas é difícil ver como isto pode ser estudado a não ser com um grande estudo naturalista e qualitativo que não imponha estratégias de redução gradual.
Conheço pessoas que foram forçadas a levar cinco anos para sair de uma droga e pensamentos sobre a velocidade de seu afunilamento e se erraram ou não ocupando cada dado momento do seu dia-a-dia. Talvez essa pessoa estaria melhor se reduzisse mais rapidamente e chegasse a uma posição estável mais rapidamente. Demorei 2,5 anos para sair e, contra a sabedoria convencional, acelerei ao chegar às dosagens menores. Era a coisa certa a fazer? Quem sabe? Certamente nunca saberei por que não posso repetir o experimento de outra maneira. Embora eu não possa provar isso, não acredito que meus problemas contínuos sejam resultado da maneira como eu fiz o afunilamento ou do tempo que levei. Acredito que é uma consequência direta de passar sete anos e oito meses, incluindo o afunilamento, em uma droga formadora de dependência.
No momento da minha retirada, tive a sorte de ter o apoio de um psicoterapeuta muito respeitado e prestativo. Ele tentou muito me motivar a ir mais rápido, mas minha confiança falhou. A razão pela qual falhou foi porque eu tinha sido influenciado a aceitar que quanto mais lento você for, melhor você se sentirá e menos chances há de dificuldades a longo prazo. Olhando para trás agora, meu conselheiro estava completamente certo. Suspeito agora que eu poderia ter saído em um ano ou menos e estar exatamente onde estou agora, mas com 18 meses menos tempo de exposição.
Submeter-se a um processo de retirada apenas o qualifica em sua própria experiência, isso não lhe diz muito sobre outras experiências. Se você se encontra em um grupo de apoio que o força a se engajar apenas de uma determinada maneira, então encontre outro grupo, mais aberto e mais acolhedor. Há um tremendo trabalho em andamento na comunidade leiga e eu sublinho que estas abordagens rígidas são a exceção e não a regra, mas precisamos apoiar melhor a pessoa que se retira, satisfazendo suas necessidades, não nossas preferências.
Outra questão que os participantes dos grupos de apoio ou discussão verão com freqüência é que as pessoas chegam com a dose máxima de um antidepressivo, tendo por vezes sido rotuladas como “resistentes ao tratamento” porque não responderam melhor à medida que a dosagem foi aumentando. Quando um grupo de pesquisadores psiquiátricos estudou o que chamaram de doses “ótimas” de antidepressivos, descobriram que nos sete medicamentos que selecionaram (citalopram, escitalopram, fluoxetina, paroxetina, sertralina, venlafaxina e mirtazapina) “a faixa inferior da dose licenciada atinge o equilíbrio ideal entre eficácia, tolerabilidade e aceitabilidade no tratamento agudo de depressão grave”. Simplificando, a recomendação de longa data da Associação Psiquiátrica Americana de “ testar até a dose máxima tolerada” foi posta em questão pela pesquisa da psiquiatria.
Como Peter Groot, desenvolvedor de tiras afiladas, nos lembra com freqüência, nossa abordagem da dosagem ao prescrever antidepressivos é tão limitada a ponto de ser quase risível. As dosagens padrão disponíveis para as pessoas são o equivalente a ir a uma sapataria e ser dito “você pode ter qualquer sapato que quiser, mas nós só os temos no tamanho 35 ou tamanho 44”. Dito isto, nós riríamos com razão da escolha limitada e iríamos a outro lugar. Infelizmente, no que diz respeito aos antidepressivos, não há outro lugar aonde possamos ir. Um homem de 120 quilos acabará na mesma dosagem que uma mulher de 60 quilos com pouca ou nenhuma consideração pela sua fisiologia. Pode haver alguns prescritores que levam em conta a fisiologia em sua prescrição, mas eles são a exceção e não a norma. Um atleta vai acabar na mesma dosagem que alguém inativo, um aposentado vai acabar na mesma dosagem que alguém na casa dos vinte anos. Longe da “medicina de precisão”, estas dosagens padrão foram alcançadas observando as médias de grupo em testes de curto prazo. Você pode ter sorte e se encaixar perfeitamente em uma dessas “caixas de dosagem”, mas é igualmente provável que você esteja tomando mais do que precisa para uma resposta.
Muitos de vocês terão animais de estimação e os terão levado ao veterinário, onde poderão obter uma receita médica. Muitas vezes você descobrirá que a dosagem é em miligramas por quilograma de peso corporal. Podemos fazer isso para nossos animais de estimação, mas não para nós? A necessidade de dosagens variáveis e estratégias de afunilamento nunca foi tão importante. O número de prescrições de antidepressivos está aumentando rapidamente; mais pessoas a cada dia estão sendo colocadas em medicamentos que podem ter dificuldade para sair.
Estamos agravando os problemas que as pessoas têm para deixar de tomar o medicamento psiquiátrico tanto por muito tempo sem revisão quanto por um rápido aumento das dosagens até o nível máximo sugerido, aparentemente baseado em adivinhações. Então quando a pessoa finalmente percebe as limitações dos conselhos que lhe foram dados, ela é frequentemente deixada de lado por seu prescritor ou rotulada como “resistente a tratamento” e deixada para se defender.
Graças aos esforços de muitos profissionais, ativistas, defensores e aqueles que têm experiência, estamos começando a progredir na resposta ao desafio de sair dos antidepressivos. No entanto, para garantir que ajudemos os muitos, precisamos de uma abordagem matizada, flexível e aberta para ajudar as pessoas a se livrarem das drogas. Para algumas pessoas, sair daqui a dois anos pode se revelar tão problemático quanto sair daqui a duas semanas. Estamos todos aprendendo à medida que avançamos, mas em contraste com a psiquiatria convencional, precisamos evitar uma visão fixa dos métodos e prazos que as pessoas podem escolher para colocar seus antidepressivos atrás de si.
[Publicado originalmente em Mad in the UK, em 23/12/2021]
Não há “esperança” para o bônus do tratamento psicológico – Outro passo para a consolidação da orientação pseudo-organicista no tratamento do sofrimento psíquico
A notícia da rejeição do bônus para o tratamento psicológico na Itália é recente, após uma série de consultas a nível governamental que não conseguiram compreender a importância do sofrimento emocional que existe no país e que se expandiu como fogo incontrolável durante a pandemia de Covid.
O Bônus, proposto para 2022, com um orçamento de cerca de 50 milhões de euros, destinava-se a estender o acesso a intervenções psicológicas para um número muito maior de indivíduos. A rejeição do bônus, que de fato já tinha sido instituído há algum tempo numa escala mais modesta e não se concretizou, mostra que a saúde mental da população não se encontra entre os principais objetivos do governo.
A rejeição do bónus está também em conflito com o que surgiu na “Conferência sobre Saúde Mental”, realizada em Junho passado, que propôs uma expansão dos serviços de saúde mental a nível territorial e, por isso, pareceu (talvez uma interpretação bastante ingénua) querer sublinhar a importância da abordagem basagliana das questões de saúde mental. A conferência deu a impressão de uma “coisa séria”: vários funcionários governamentais estiveram presentes, incluindo o Ministro da Saúde Speranza. Os usuários também pareciam ter tido uma palavra a dizer. Esperava-se que houvesse uma “sequitur” concreta e substancial para as questões importantes e urgentes discutidas durante o evento.
Mas vamos ao essencial: a negação do bônus terá sem dúvida efeitos negativos sobre a saúde mental dos cidadãos e, em particular, sobre a qualidade de vida.
A negação do bônus terá sem dúvida efeitos negativos sobre a saúde mental dos cidadãos, especialmente crianças e adolescentes, uma vez que, na ausência de tratamento psicológico suficiente, haverá um uso crescente de drogas psicotrópicas, com o risco de um sofrimento psicológico crônico que poderia ser adequadamente tratado com psicoterapia e uma abordagem psicossocial.
As consequências potenciais do uso de drogas psicotrópicas a longo prazo são agora bem conhecidas e têm sido ilustradas em numerosas publicações e sites de confiança. “MAD em Itália e toda a rede de MAD na América e MAD Internacional, por exemplo, abordaram o tema com uma abundância de artigos e intervenções.
Ao mesmo tempo, não se deve esquecer que o uso de drogas psicotrópicas na Itália, tal como no resto do mundo, está constantemente em crescimento. As estatísticas mais recentes para Itália mostram um aumento consistente no uso de drogas psicotrópicas (entre 10 a 20% no sentido global), o que se sobrepõe ao aumento progressivo registado ao longo das últimas duas décadas.
O contexto da saúde mental em que o bônus é negado deve, portanto, ser sublinhado. Refiro-me à tentativa de reduzir cada vez mais intervenções psicossociais, como se viu na recente reestruturação do sistema de Saúde Mental de Trieste, com base numa abordagem psicossocial superlativa.
Poder-se-ia observar: “Mas o que é que a rejeição do bônus tem a ver com Trieste”?
Tem tudo a ver com isto! Ambos são sintomas do mesmo mal: a penetração da orientação pseudo-organicista na gestão do sofrimento emocional.
Links úteis e referências bibliográficas:
O bônus do psicólogo não passou: o que ele teria proporcionado.
Os pesquisadores escrevem: “Pacientes com AVC recente não devem ser tratados rotineiramente com 20 mg diários de fluoxetina para prevenir ou tratar sintomas clinicamente significativos de depressão durante os primeiros seis meses após o AVC”.
O estudo foi conduzido pela Avaliação da Fluoxetina na Recuperação do AVC (AFFINITY) Colaboração em Testes, e foi uma análise do resultado secundário (depressão). O resultado primário foi a recuperação funcional após um acidente vascular cerebral. Entretanto, os autores do estudo relataram em sua publicação anterior (na Lancet Neurology) que os antidepressivos também não melhoraram esse resultado e, na verdade, que os medicamentos “aumentaram o risco de quedas, fraturas ósseas e crises epiléticas”.
O médico examina atentamente a ressonância magnética do paciente. Na última década, os pesquisadores conduziram grandes testes para verificar se os antidepressivos melhoram os resultados funcionais para pessoas que acabaram de ter um AVC. Um pequeno ensaio preliminar em 2011 descobriu que os ISRSs poderiam melhorar a recuperação motora após um derrame, e os pesquisadores entraram na onda, conduzindo estudos mais amplos para tentar detectar este efeito.
Infelizmente, estes estudos maiores e mais rigorosos não conseguiram encontrar um efeito para as drogas e, em vez disso, descobriram que os ISRSs eram prejudiciais, particularmente aumentando o risco de fraturas ósseas.
Entretanto, alguns desses estudos encontraram um intrigante efeito secundário – que os medicamentos antidepressivos poderiam diminuir a ocorrência de depressão em pessoas que acabaram de ter um derrame.
Assim, no ensaio AFFINITY, os pesquisadores incluíram medidas dos resultados da depressão. O estudo atual se concentrou nesses resultados, mas os pesquisadores descobriram que os ISRSs não eram melhores do que placebo:
“Neste ensaio clínico randomizado, duplo-cego e controlado por placebo com 1221 pacientes, o uso diário rotineiro de 20 mg de fluoxetina durante 26 semanas não reduziu a proporção daqueles com um AVC recente que desenvolveram sintomas clinicamente significativos de depressão em comparação com placebo (20% vs. 21%)”.
Em um editorial que acompanha o artigo atual, Michael Hill e Sean Dukelow argumentam que, embora o grande e robusto estudo tenha constatado que os ISRSs não eram melhores do que placebo na redução da depressão após um AVC, “Os inibidores seletivos da absorção de serotonina continuam a ser uma parte razoável do plano de tratamento”.
Eles escrevem que a depressão pós AVC é prevalente, afetando um terço das pessoas que sofrem de AVC – embora o estudo atual tenha descoberto que na verdade era um pouco mais rara, com cerca de um quinto (20%) das pessoas que sofrem de AVC.
No estudo, a depressão foi medida usando o PHQ-9, uma medida que alguns pesquisadores sugerem que a prevalência da depressão é superestimada. No estudo atual, no entanto, os médicos distribuíram o diagnóstico de forma ainda mais liberal: Muitas pessoas que não preenchiam os critérios para depressão no PHQ-9 receberam de fato um diagnóstico de depressão por seu médico:
De acordo com Hill e Dukelow, “O acordo entre um escore PHQ-9 de 9 ou superior e um diagnóstico clínico de depressão (relatado por 218 participantes do estudo) foi pobre (κ = 0,19)”.
Eles sugerem que o PHQ-9 está na verdade subdiagnosticando os casos verdadeiros de depressão, escrevendo que a avaliação clínica do médico é mais confiável do que a medida. Entretanto, eles também sugerem que ter um derrame cerebral pode levar a distúrbios de ajuste, não a uma grande depressão, “à medida que os pacientes passam por um processo de luto, antes de se adaptarem e compensarem”.
Com base nesse argumento, parece que o diagnóstico de depressão é inadequado, pois os “sintomas” são melhor explicados por um período de ajuste e até mesmo de luto após a perda do funcionamento. No entanto, Hill e Dukelow não tentam resolver esta aparente contradição.
Eles sugerem, entretanto, que a resolução da deficiência funcional deve ser o foco principal e que isto provavelmente reduzirá a ocorrência de depressão, escrevendo:
“Uma intervenção positiva que resulte em melhores resultados neurológicos em qualquer domínio (motor, fala ou cinestésico) também resultará, sem dúvida, em melhores resultados nos domínios do humor afetivo”.
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Almeida, O. P., Hankey, G. J., Ford, A., Etherton-Beer, C., Flicker, L., Hackett, M., for the Assessment of Fluoxetine in Stroke Recovery (AFFINITY) Trial Collaboration. (2021). Depression outcomes among patients treated with fluoxetine for stroke recovery: The AFFINITY randomized clinical trial. JAMA Neurology, 78(9), 1072-1079. doi:10.1001/jamaneurol.2021.2418 (Link)
Hill, M. D., & Dukelow, S. P. (2021). Poststroke selective serotonin reuptake inhibitors—Do they work for anything? JAMA Neurology, 78(9), 1053-1054. (Link)
Publicado no The New York Times, matéria assinada por Pam Belluck: “As autoridades do Medicare disseram na terça-feira que o programa federal de seguros de saúde deveria restringir a sua cobertura do controverso novo medicamento para Alzheimer – Aduhelm – aos pacientes que participam em ensaios clínicos aprovados, uma medida que limitaria enormemente o número de pacientes que poderiam usar o dispendioso medicamento.
Numa decisão preliminar, os Centros de Serviços de Medicare e Medicaid afirmaram que, após uma revisão exaustiva das provas científicas e das opiniões de muitos intervenientes diferentes, tinha concluído que subsistem dúvidas significativas sobre se os potenciais benefícios da Aduhelm para os pacientes superam os riscos de segurança.
Como resultado, a agência disse que daria cobertura apenas aos pacientes que recebem o medicamento em ensaios controlados aleatórios – considerados o padrão de ouro da avaliação científica porque comparam os pacientes que recebem um medicamento com um grupo de controlo de pacientes, normalmente os que recebem um placebo.
(…) O Dr. Fleisher acrescentou: ‘O nosso principal objetivo é proteger os beneficiários de danos potenciais de uma intervenção sem benefícios conhecidos na população Medicare. Como médico clínico, nunca é demais sublinhar a necessidade de compreender os riscos e benefícios de um determinado tratamento, a fim de melhor informar os doentes e as suas famílias à medida que tomam decisões sobre os seus cuidados’.
Numa declaração, Biogen, a empresa que faz Aduhelm, disse que a posição da agência ‘nega o fardo diário das pessoas que vivem com a doença de Alzheimer’ e que o requisito do ensaio clínico “excluirá quase todos os pacientes que possam ser beneficiados”.
Em um novo artigo na JAMA Psiquiatry, os pesquisadores sugerem que a “poluição de dados” impede a pesquisa psiquiátrica. Eles escrevem que há muitos aspectos da poluição de dados, e os especialistas em pesquisas psiquiátricas específicas não estão preparados para prestar contas de todos eles.
“A pesquisa neuropsiquiátrica é substancialmente impedida por questões relacionadas à coleta e análise de dados. Embora estas questões tenham sido amplamente discutidas, seu grave impacto sobre os tamanhos dos efeitos neuropsiquiátricos não é tão amplamente reconhecido”, escrevem os pesquisadores.
Os pesquisadores foram Alessandro S. De Nadai da Texas State University, Yueqin Hu da Beijing Normal University, e Wesley K. Thompson da University of California, San Diego.
Empresário trabalhando em situação de poluição do arDe Nadai, Hu, e Thompson se concentram na poluição de dados, que eles definem como “erros inadvertidos” nos dados. Isto é diferente de “envenenamento de dados”, que envolve “tentativas intencionais de alimentar modelos com dados imprecisos”. O artigo atual se concentra em pesquisadores bem intencionados, cujos resultados são enganosos por acidente.
Isto é comum, segundo De Nadai, Hu, e Thompson. Além disso, eles escrevem que os pesquisadores em neuropsiquiatria vêm de origens tão variadas que nenhum deles é especialista em todas as formas potenciais de poluição de dados e em como mitigá-la.
Por exemplo, a poluição de dados pode vir de qualquer uma das seguintes áreas: “(1) medição não confiável, (2) definição de construção heterogênea, (3) misturas populacionais com diferentes mecanismos biopsicossociais, (4) enviesamento comportamental de relato tanto por pacientes quanto por clínicos, (5) enviesamento de seleção, e (6) dados que não faltam por acaso”.
O que estes têm em comum é a falta de confiabilidade ou “ruído”. Todos os testes e definições em psiquiatria têm níveis variados de subjetividade e são influenciados por uma gama quase infinita de fatores na vida de uma pessoa. Especialmente quando um estudo utiliza múltiplos testes ou tentativas de responsabilização pela moderação ou mediação (se certos fatores são influenciados por outros), este ruído pode se somar. No final, os efeitos que os pesquisadores encontram não são confiáveis e muitas vezes inflados.
“A estimativa inconsistente e imprecisa do tamanho do efeito polui a literatura da pesquisa e torna quase impossível construir incrementalmente sobre descobertas pequenas porém importantes, que serão críticas para o progresso futuro”, explicam os autores.
Eles observam que, se a pesquisa física tivesse o mesmo nível de falta de confiabilidade, sistemas como o GPS seriam impossíveis de se desenvolver.
De Nadai, Hu, e Thompson também se concentram na confiabilidade e validade dos diagnósticos psiquiátricos. Eles observam que mesmo os médicos muitas vezes discordam sobre se um paciente atende aos critérios para um diagnóstico específico, e os pacientes muitas vezes têm uma perspectiva muito diferente. Eles acrescentam que diagnósticos como depressão e esquizofrenia são extremamente heterogêneos, unindo pessoas que têm traços, sentimentos e comportamentos muito diferentes. Isto torna muito difícil fazer pesquisas que possam ser generalizadas aos pacientes do mundo real.
Os autores sugerem que existem maneiras específicas de contabilizar os vários tipos de poluição de dados e que os pesquisadores devem ter um “plano de mitigação da poluição de dados” antes de iniciar seu estudo.
“Sem atender à poluição de dados”, eles escrevem, “muito do nosso progresso será ilusório, e as verdadeiras descobertas que melhoram o bem-estar dos pacientes permanecerão sem ser detectadas”.
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De Nadai, A. S., Hu, Y., & Thompson, W. K. (2021). Data pollution in neuropsychiatry—an under-recognized but critical barrier to research progress. JAMA Psychiatry. Published online December 1, 2021. (Link)
Pesquisadores da Yale, escrevendo no American Journal of Psychiatry, descrevem um caso de retirada de cetamina que ilumina muitas das questões com a droga.
“Este caso fornece uma descrição clínica rara de uma possível abstinência grave de cetamina aguda”, escrevem eles.
“Este caso ilustra a gravidade e a urgência da necessidade de coletar dados sobre o uso contínuo de cetamina racêmica fora do rótulo e como estas tendências de prescrição podem ser afetadas pela aprovação e implementação da escetamina”. Dados os efeitos adversos potencialmente graves da cetamina e da escetamina, fazê-lo é essencial para fornecer tratamentos eficazes, seguros e baseados em evidências para nossos pacientes com depressão refratária ao tratamento”.
O sujeito do relatório deles foi um veterano de 35 anos (“Sr. A”) que recebeu cetamina como tratamento para problemas de saúde mental. Como muitos pacientes da vida real, ele teve uma variedade de diagnósticos, incluindo “transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), transtorno bipolar II, transtorno do uso de álcool em remissão total sustentada, transtorno do uso de cannabis e transtorno de personalidade limítrofe”.
Nenhum tratamento médico tinha funcionado para ele, incluindo numerosos medicamentos antidepressivos e outros tipos de medicamentos, terapia eletroconvulsiva (ECT) e estimulação magnética transcraniana (TMS). Depois que todos esses medicamentos e intervenções não conseguiram aliviar os seus problemas, ele se voluntariou para um ensaio clínico de infusões de cetamina. Ele relatou ser este o mais útil – embora não tão útil, pois este trabalho foi escrito depois que ele foi apresentado ao departamento de emergência da Associação de Veteranos (VA), devido ao pensamento de suicídio “várias vezes ao dia”.
Surpreendentemente, os pesquisadores não mencionam se ele já havia recebido alguma psicoterapia ou outro tratamento não-médico.
De acordo com os pesquisadores, o Sr. A desenvolveu rapidamente uma tolerância à cetamina, que lhe foi prescrita fora do sistema VA, e sua dose foi aumentada repetidamente. Quando chegou ao Serviço de Urgência, ele havia tomado uma quantidade enorme de cetamina – 100 mg de cetamina por via oral quatro vezes ao dia, mais injeções mensais.
Os médicos da VA mantiveram o Sr. A durante a noite por causa do suicídio relatado. Eles observaram que, na época, ele era lúcido, “cooperativo”, e capaz de conversar com eles sem problemas. Enquanto eles continuaram com suas outras drogas, os médicos não lhe deram cetamina.
No dia seguinte, o Sr. A foi hospitalizado involuntariamente porque tinha se tornado incoerente, cada vez mais suicida e agitado. E no dia seguinte, o estado do Sr. A tinha piorado ainda mais. Ele foi descrito como “altamente irritável, intenso e disfórico”. Ele foi observado batendo na parede, batendo nos balcões, discutindo com os funcionários e gritando ao telefone” – um choro longe da calma e do homem lógico que eles tinham visto apenas dois dias antes.
A solução deles era dar-lhe mais medicamentos para tentar tranquilizá-lo, incluindo olanzapina, lorazepam e ácido valpróico. Após várias semanas, ele estava alegadamente apto a voltar para a comunidade.
De acordo com os pesquisadores, a causa provável era a abstinência de cetamina, especialmente dado o tempo e o fato de que ele estava em uma dose alta que eles pararam de lhe dar de repente.
Segundo os pesquisadores, este caso destaca a questão da tolerância – que mesmo que a cetamina tenha um efeito antidepressivo legítimo, os pacientes rapidamente necessitarão cada vez mais da droga, elevando-se a níveis perigosos. Também destaca o problema da abstinência, que está mal documentado na pesquisa clínica e pode assumir várias formas. E, de acordo com os pesquisadores, os clínicos ainda não entendem como tratar a abstinência da cetamina.
No entanto, os pesquisadores escrevem que a cetamina ainda tem potencial como um poderoso e rápido antidepressivo e que ela tem mostrado um efeito impressionante em ensaios clínicos. Eles também acrescentam que a escetamina, em particular, é mais bem regulada e pode não criar os mesmos problemas.
Notavelmente, um dos autores do artigo relatou conflitos de interesse financeiros com inúmeras empresas farmacêuticas envolvidas na produção e comercialização de escetamina.
Em última análise, suas declarações sobre o sucesso da cetamina e da escetamina não se encaixam na literatura de pesquisa. Por exemplo, de acordo com um artigo recente no The British Journal of Psychiatry, houve seis ensaios de quatro semanas de esketamina. Cinco desses ensaios constataram que o medicamento não era melhor do que placebo, enquanto o último encontrou um minúsculo efeito estatisticamente significativo, que não satisfazia os critérios de significância clínica.
Esse documento observou que todos esses estudos foram ainda mais curtos do que os ensaios habituais exigidos pelos reguladores, o que significa que não há evidências de um benefício a longo prazo para o medicamento.
O documento também questionava a segurança da cetamina e da escetamina. Os pesquisadores encontraram seis mortes no estudo de Janssen sobre a escetamina, todas no grupo que tomava o medicamento. Essas mortes incluíram três suicídios, dois dos quais ocorreram em pessoas que relataram nunca ter experimentado uma ideação suicida antes. Os problemas de bexiga também se desenvolveram em 20% das pessoas que tomavam a droga, e o aumento dos acidentes de carro foram outro problema que levou a pelo menos uma morte (a cetamina/escetamina causa dissociação).
Outro trabalho na Lancet Psychiatry observou que os ensaios clínicos evitaram documentar – ou mesmo avaliar os efeitos perigosos.
Roxas, N., Ahuja, C., Isom, J., Wilkinson, S. T., & Capurso, N. (2021). A potential case of acute ketamine withdrawal: Clinical implications for the treatment of refractory depression. Am J Psychiatry, 178(7), 588-591. DOI: 10.1176/appi.ajp.2020.20101480 (Link)