A Psiquiatria se preocupa com a sua “Marginalização” no novo Documento da OMS

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closeup of the hands of a young man with a piece of paper with the text human rights written in it, with a dramatic effect

Um editorial foi publicado recentemente no British Journal of Psychiatry para abordar as preocupações que alguns psiquiatras têm levantado em relação à iniciativa QualityRights da Organização Mundial da Saúde (OMS). O editorial, intitulado “The WHO QualityRights initiative, building partnerships among psychiatrists, people with lived experience, and other key stakeholders to improve the quality of mental healthcare” [“A iniciativa QualityRights da OMS, construindo parcerias entre psiquiatras, pessoas com experiência vivida e outros atores-chave para melhorar a qualidade da saúde mental”], aborda o papel da psiquiatria na promoção dos direitos humanos na saúde mental global.

“Em um editorial recente no BJPsych, Hoare & Duffy expressaram a preocupação de que as ferramentas de treinamento e orientação QualityRights possam ‘marginalizar’ a psiquiatria e comprometer os direitos das pessoas com condições de saúde mental”, escrevem os autores.

“É importante abordar essas preocupações e outras percepções errôneas e destacar como QualityRights está causando um grande impacto melhorando a qualidade do atendimento psiquiátrico em diferentes países, construindo parcerias e colaboração entre psiquiatras, pessoas com experiência vivida de doenças mentais e outros atores-chave”.

O objetivo principal da iniciativa QualityRights da Organização Mundial da Saúde é mudar tanto as mentalidades quanto as práticas para promover direitos e recuperação para indivíduos com deficiências psicossociais, intelectuais e cognitivas. A OMS já implementou a iniciativa QualityRights em alinhamento com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CRPD) em países de todo o mundo através de um treinamento abrangente que utiliza abordagens educacionais distintas e módulos que ilustram tanto a necessidade de abordagens baseadas em direitos na saúde mental quanto a sua urgência.

Os autores do editorial, Maria Francesca Moro, Soumitra Pathare, Martin Zinkler, Akwasi Osei, Dainius Pūras, Rodelen C. Paccial, e Mauro Giovanni Carta, são todos psiquiatras; sua principal intenção por trás deste editorial é assegurar a seus colegas psiquiatras que a iniciativa de QualityRights foi concebida tendo em mente os psiquiatras.

“Os psiquiatras estiveram envolvidos em cada etapa da produção dos materiais QualityRights, e sua colaboração foi fundamental para o sucesso desta iniciativa. No total, 8 dos 26 especialistas internacionais que contribuíram para a elaboração dos módulos e 31 dos 151 revisores foram psiquiatras. Além disso, na realização do treinamento para psiquiatras, pelo menos um psiquiatra é envolvido como instrutor e ajuda a liderar a discussão sobre os tópicos mais desafiadores”.

Embora algumas vinhetas não dêem a melhor luz sobre a psiquiatria, elas dão um brilho preciso. Uma que faz justiça à experiência vivida daqueles que foram prejudicados pelo sistema de saúde mental de seu país e sua dependência excessiva em psiquiatria, medicação e outras práticas coercitivas de saúde mental. Dito isto, os autores observam que QualityRights ainda reconhece a importância das drogas psicotrópicas no tratamento, mas que estas opções de tratamento não devem vir desprovidas de alternativas.

Em particular, os autores incitam os psiquiatras a procurar e defender alternativas às práticas involuntárias e a serem cautelosos quanto ao perigo de criminalizar pessoas com condições de saúde mental, mesmo em sistemas com recursos limitados. Eles escrevem:

“Há provas crescentes de que as práticas involuntárias são deletérias e minam a dignidade e o bem-estar das pessoas com condições de saúde mental”. As práticas involuntárias freqüentemente também têm impactos negativos sobre a confiança, incluindo a falta de vontade de buscar ajuda e de se envolver com os profissionais”.

Os autores esclarecem que os psiquiatras têm desempenhado um papel essencial na realização contínua da CRPD e são necessários para promover a realização e a promoção da iniciativa QualityRights.

No entanto, também é evidente que discussões francas sobre as realidades coercitivas e abusivas do campo, da ciência e da profissão precisam ser discutidas e aprendidas, pois a falta de conversa é muito provavelmente mais prejudicial do que as conseqüências potenciais da marginalização da psiquiatria.

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Moro, M. F., Pathare, S., Zinkler, M., Osei, A., Puras, D., Paccial, R. C., & Carta, M. G. (2021). The WHO QualityRights initiative: building partnerships among psychiatrists, people with lived experience and other key stakeholders to improve the quality of mental healthcare. The British Journal of Psychiatry, 1-3. (Link)

Quinta edição do Seminário Internacional sobre a Epidemia das Drogas Psiquiátricas

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“Crise Planetária: Pandemia, Desigualdades, Neoliberalismo e Patologização” será o tema da quinta edição do Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas, que acontece nos dias 4 e 5 de novembro. Realizado desde 2017 sob a coordenação do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da ENSP/Fiocruz, a edição deste ano pretende discutir as consequências da crise planetária – agravada pela pandemia de Covid-19 – na patologização da vida. O seminário será transmitido pela VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz.
O evento será coordenado pelos pesquisadores Paulo Amarante e Fernando Freitas, do Laps/ENSP. A abertura acontecerá no dia 4 de novembro, às 9h, e terá a presença de dirigentes da Fiocruz e da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), da presidência da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), do Centro de Estudos Brasileiros de Saúde (Cebes), do Conselho Federal de Psicologia e do GT de Saúde Mental da Abrasco.
“A pandemia do Covid 19 tem agravado a crise que as sociedades contemporâneas estão sofrendo. É a crise de um modelo de produção e reprodução da sociedade que está levando à morte do planeta, à destruição das instituições de suporte e proteção ao bem-estar social, ao aprofundamento das desigualdades, enfim, que está pondo em risco a própria humanidade. O modo como temos enfrentado a pandemia do Covid-19 explicita bem isso: uma sociedade que carece de recursos de compaixão e solidariedade para garantir as condições de vida para todos. Esse modelo de sociedade hoje dominante é o chamado neoliberalismo. O 5o. Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas não poderia deixar de contribuir para melhor entendermos o momento em que vivemos e debater soluções”, afirmou o pesquisador Fernando Freitas.
Paulo Amarante destaca a consolidação do evento na agenda institucional:
“O seminário acontece há cinco anos, de forma ininterrupta, e já está consolidado na agenda política não apenas da Fiocruz e da Escola Nacional de Saúde Pública, mas também em âmbito nacional e internacional. Em 2021, daremos ênfase ao debate sobre como a crise planetária, que foi agravada com a pandemia de Covid-19, trouxe consequências para o aumento das desigualdades sociais e os processos de patologização e mercantilização da vida”.
A palestra principal do evento será proferida pela Dra. Joanna Moncrieff, psiquiatra, cientista, professora sênior da University College London, autora de vários livros e inúmeros artigos científicos. O título da sua apresentação “O Passado e o Futuro da Psiquiatria e as suas Drogas” dá continuidade a uma problemática que vem sendo abordada nos seminários anteriores: a medicalização psiquiátrica da miséria humana e suas alternativas.
A experiência dos ex-usuários da psiquiatria com a retirada das drogas psiquiátricas de suas vidas, o know-how desenvolvido por eles e as experiências de mútua ajuda que eles estão criando, será objeto de uma mesa-redonda com Peter Lehmann, co-fundador de associações de proteção contra a Violência Psiquiátrica e de Sobreviventes da Psiquiatria; Doutor Honoris causa/Universidade Aristóteles Salônica/GR, Ordem do Mérito/Alemanha.
Para debater o papel do neoliberalismo na construção de nossas identidades e as patologias da razão neoliberal, haverá uma mesa-redonda com o Prof. James Davies, antropólogo, professor de Antropologia Social e Saúde Mental na Universidade de Roehampton, Londres/UK, e Esther Solano, cientista social, Profa. Adjunta da UNIFESP/SP, e da Universidad Complutense de Madrid/Espanha.
Confira aqui →
Acompanhe aqui, no MIB, as informações que serão dadas para que você esteja por dentro do Seminário. Em breve: uma entrevista que a Dra. Joanna Moncrieff deu ao MIB.

OS PEQUENOS AJUDANTES DA MAMÃE

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Colorful tablets with capsules and pills on blue background

Por favor, doutor/mais delas/
Fora da porta, ela tomou mais quatro….
A vida é muito difícil hoje em dia
Eu ouço todas as mães dizerem
A busca da felicidade parece tão entediante/
E se você pegar mais algum delas,
Você vai ganhar uma overdose
E nada mais de correr para o abrigo
Do ajudantezinho da mamãe.
Elas apenas a ajudaram no seu caminho
Através de seu dia de trabalho mortal.
Jagger-Richards “Mother’s Little Helper” (minha tradução).

O fim parecia haver chegado numa noite de maio de 2012, quando o meu psiquiatra anunciou por telefone que ele não iria mais prescrever os benzodiazepínicos que havia começado a prescrever para mim três anos antes. Até então eu estava tomando, sob sua suposta supervisão médica, três tipos de ansiolíticos, tomando até 6 miligramas por noite, junto com um antipsicótico que outro psiquiatra me receitara, não me lembro quando, porque, em suas palavras: “Você não pode dormir por causa da ansiedade. É por isso que você vai tomar a Olanzapina” (como se a Olanzapina “curasse” a ansiedade). Agora, além disso, o médico tinha acabado de me receitar outro medicamento, porque, segundo ele, eu também tinha TDAH. Naquela época, eu era então um armário ambulante de medicamentos. E de drogas psicotrópicas. Parecia que eu as usava todas. Então, após o anúncio abrupto do psiquiatra (que nunca me deixou claro porque tomou essa decisão), tive uma onda de terror. O que eu faria sem os ansiolíticos? De todos os que eu estava tomando, os benzodiazepínicos eram os únicos controlados. Ainda me lembro que as instruções dentro das caixas diziam (acho que ainda dizem) que, devido ao seu potencial viciante, eles só são recomendadas em casos muito específicos e em caso de emergência médica. Em outras palavras, apenas para crises temporárias. O psiquiatra os prescreveu, de acordo com isto, para me ajudar a dormir. E quando eu lhe disse, em uma sessão, que estava preocupada com o perigo do vício, porque, depois de alguns meses tomando-as, já me sentia viciada. Ele sorriu desdenhosamente e me disse, num tom paternal, que eu estava sob “controle médico” e que eu não tinha nada com que me preocupar. Eu disse a ele, brincando, que meu revendedor não estava em Tepito, mas no Hospital 20 de Noviembre del ISSSTE. Mas ele não sorriu de volta. Em retrospectiva, eu estava lhe contando uma enorme verdade. Uma verdade que finalmente me atingiu na cara. E também em retrospectiva, sei que ele não se divertiu com a minha piada porque sabia que era verdade. Mas isso não o impediu de prescrever durante três anos. Três anos. E o tempo estimado de início do vício, acho que li isso mais tarde, quando eu estava desesperadamente procurando informações em artigos e livros científicos, é de três semanas.

Assim, inesperadamente, isso me deixou sem os meus Pequenos Ajudantes. Até então, “curada” da insônia e até mesmo da depressão, e, sem me dar conta, eu estava passando o dia, todos os dias, com drogas. Mas eu não era uma “viciado em drogas”: eu tinha uma doença mental (ou, como eles agora eufemisticamente a chamam, “neurodivergência”, como se perfumar o termo o tornasse mais acessível), ou várias doenças, dependendo do médico, causadas por um desequilíbrio químico no cérebro, por isso eu estava sob acompanhamento médico. Não havia nada a temer. Minha vida já estava em pedaços nessa época, mas eu estava tão alta que não sabia disso. Sem emprego, sem relações significativas, sem filha, cuja ausência eu quase não notei. Mas não, não se tratava de drogas. Os dependentes de drogas – e eu deveria saber disso bem, pois sou psicóloga – usam coisas ilegais de proveniência duvidosa que eles conseguem no mercado negro. Eles também são alcoólatras, incapazes de controlar a sua compulsão. Eu, como muitas pessoas, principalmente mulheres, aprendi mais tarde, não era uma viciada em drogas: eu era uma respeitável profissional urbana de classe média que tinha transtornos mentais, o que eu divulgava amplamente porque, por Deus, é hora de remover o estigma da doença mental, e, graças aos avanços da medicina, só tínhamos “desequilíbrios químicos” no cérebro que podiam ser curados com um, ou cinco, ou dez comprimidos. Prescritos por médicos respeitáveis dentro de instituições respeitáveis.

Então, tudo explodiu na minha cara naquela tarde de maio de 2012. Depois que o médico desligou na minha cara, após uma frase que me soou algo como “Faça como quiser”, eu entrei em pânico. Mas acalme-se, o ISSSTE está cheio de médicos que vão continuar receitando para mim, porque preciso disso para continuar funcionando, certo? Ou, na pior das hipóteses, não faltam pessoas que possam comprar receitas médicas no mercado negro. É isso aí. Isso é tudo o que há.

Mas não. Ainda hoje eu me pergunto de onde veio essa voz pela primeira vez. Não era uma personalidade diferente ou um estrangeiro falando comigo. Fui eu. E o que aquela voz me disse foi que iria parar por aí e agora. Que não ia me arrastar para conseguir pílulas. Nessa época eu já estava vivendo sozinha e não precisava depender de ninguém para cuidar de mim. E que eu ia arcar com as conseqüências, quaisquer que fossem elas.

Quando depois de dois dias fiquei sem todos os comprimidos que tinha, começou a síndrome da abstinência. Lembro-me dos primeiros dias em que meu corpo inteiro estava pedindo comprimidos. O engraçado é que me pareceu como se este clamor de todas as minhas células fosse completamente estranho para mim. Eu simplesmente o ignorava. Depois veio o vômito, o tremor e o aperto de cada músculo. E a sensação de congelamento, e dentro de três minutos morrendo de calor. E então veio a vingança das pílulas. Quando depois de três ou quatro dias meu corpo parou de gritar por comprimidos, todas as noites, sem falta, vinham os ataques de pânico, cujo principal sintoma era uma espécie de gelo no sangue. Não sei qual a melhor maneira de descrevê-lo. Uma vez li em uma revista que os ansiolíticos eram como um empréstimo do banco: tudo bem e elegante no início, mas depois você tem que pagar de volta. E assim foi. Parecia que toda a ansiedade acumulada (e supostamente reprimida) de tantos anos se manifestava em infernos gelados todas as noites e que ia até o amanhecer, apenas duas ou três horas de descanso de pesadelo.

Com a única idéia de que isso me ajudaria a superar a retirada, eu implorei por um encontro com o meu psiquiatra. Ele me recebeu com relutância e muito rudeza. Lembro-me que no consultório havia uma mulher com um roupão, sentada em seu lugar habitual enquanto ele se sentava em outro lugar, o que me pareceu estranho. Ele me disse, com um encolher de ombros, para não me preocupar, que eu iria superar isso. Quando lhe perguntei por que ele havia feito isso, ele apenas disse, sem me olhar nos olhos, “era iatrogênico”. Eu não tinha idéia do que ele estava falando; eu não sabia até algum tempo depois, quando estava lendo um livro sobre Direito procurando materiais sobre Bioética, li o que aquela palavra significava, e meus olhos se encheram de lágrimas. Um erro médico. Eu fui um erro médico. E nem sequer me pediram desculpas. Eu me senti como um experimento fracassado que tinha sido enganada para participar. E então teria sido expulsa.

A síndrome de abstinência como tal durou algumas semanas. Eu não pedi ajuda novamente, pelo menos para não passar por isso. Em algum lugar no fundo da minha mente, aquela voz me disse que era importante para mim passar por isso sozinha, para que eu não fosse tentada a tomar pílulas novamente. Na realidade, era algo muito mais do que isso. Ao passar por tudo isso sozinha, sem ajuda de qualquer tipo, eu estava começando a tocar um acorde que eu nunca havia tocado, nem mesmo nos piores momentos de minha vida, e que até então eu não sabia que tinha tocado, porque a partir daquele momento, eu sabia que se não o fizesse daquela maneira eu certamente iria morrer.

Eu ainda me pergunto como consegui fazer isso. Na verdade, toda a minha vida, desde que me lembro, tenho tido medo de estar sozinha, ou, mais especificamente, da solidão. Por causa desse medo, fui viver com o homem que se tornaria o pai de minha filha e me agarrei a ele em onze anos infernais até que ele me deixou. E de lá fui em uma busca angustiada para encontrar um namorado, um parceiro, alguma coisa. Eu não poderia estar sozinha. Só de pensar nisso, eu entrava em pânico. Mas a voz me disse que, para viver, eu tinha que fazê-lo.

O primeiro sinal de que algo estava mudando em mim, para que eu pudesse superar a abstinência, em vez de me agarrar passivamente (e rezar para que eu não morresse nesse meio tempo), foi pura intuição. Uma noite em meio a um ataque de pânico, quando eu não podia mais suportar o sangue gelado, a taquicardia, o terror de cair em um poço sem fundo e que agora eu realmente iria morrer, eu simplesmente me sentei na cama e, fechando os olhos, parei de resistir ao ataque. Não sei como consegui no pânico, mas disse a mim mesma, com aquela voz da parte de trás do meu cérebro, que passaria mais rápido se eu não fizesse nada. Levei várias noites, mas aos poucos os ataques de pânico foram diminuindo até finalmente desaparecerem. Só por não resistir a eles. Até hoje, se algo começa a me deixar ansiosa, eu simplesmente fecho os olhos, respiro e deixo passar. Mais tarde, quando aprendi a meditar (e li sobre a filosofia budista), soube que tinha feito o que os budistas aconselham com base em uma premissa: tudo é transitório.

Lembro-me muito claramente de uma manhã quando, da minha cama, disse a mim mesma que me sentia melhor, que eu tinha sido capaz de lidar com a abstinência e que a tinha vencido. E, naquele momento, a voz me disse gentilmente: “Agora é quando começa o verdadeiro teste, porque tudo, tudo são relações sociais”, me dando a entender que eu teria que enfrentar o mundo exterior, que eu estava sozinha e que não tinha a menor idéia do que fazer.

O mergulho em tudo isso aconteceu numa manhã, pouco depois, quando olhei meu rosto no espelho. Obviamente, eu me olho no espelho todos os dias. Mas daquela vez foi terrível. Descobri meu rosto sulcado de rugas. É claro que, por mais feroz que fossem os sintomas de abstinência, eles não sairiam da noite para o dia. Mas até então eu nem tinha notado. Acho que foi o golpe mais assustador que já recebi. Eu já tinha 50 anos de idade, e meu rosto estava cheio de rugas. Foi um momento que eu ainda tenho dificuldade de lembrar até hoje. Naquele momento eu percebi que havia perdido muito, muito tempo. Todos os projetos que eu havia iniciado há 20 anos, todas as minhas ilusões e o modesto nome que comecei a fazer para mim mesma no meu campo com tão bons presságios foram quebrados quando percebi, não só o enorme desperdício, mas também que fisicamente nunca mais seria a mesma. Por que, então, tanto esforço para sobreviver agarrando-me à minha intuição?

De acordo com a minha trajetória de vida, nesse ponto eu teria muito bem começado a me deixar morrer. Porque, como esse pensamento me inundou, fui tomada de um enorme sentimento de culpa, e a sua irmã, a vergonha. Como eu poderia ter feito isso? Por que eu o fiz? Eu destruí minha vida e só mereço morrer. Uma culpa e uma vergonha que ainda estou trabalhando, embora hoje apenas com o gosto residual. Mas naqueles momentos a sensação era esmagadora. Senti que estava num abismo arranhando as paredes sem saber como sair.

No início, foi tudo raiva dos psiquiatras que me haviam colocado ali. O primeiro, aquele com o Olanzapina para “angústia” e diagnósticos com o etiquetas de post, eu dei o apelido de “O Egocêntrico Cego”, porque era tão óbvio que ele me tinha levado como animal de estimação para fazer experimentos. E, quando eu lhe disse que Olanzapina tinha me engordado (pesava 120 quilos, o dobro do meu peso normal), e que eu tinha desenvolvido diabetes e um problema cardíaco por causa disso, o que eu tinha descoberto lendo artigos científicos, e não porque ele me dissesse, ele me dispensou dizendo que eu estava gorda “por comer batatas fritas”. O outro psiquiatra que apelidei de “O Covarde Sorridente”, porque ele me tornou uma viciada “com rigoroso controle médico”, e depois me jogou no abismo para conseguir o melhor que podia, quando viu o resultado de seu “iatrogênico”, e sempre com um sorriso no rosto. Foi um longo tempo de ódio a eles, de planejamento na minha cabeça de mil e uma exigências. Demandas que eu estava muito fraca e doente demais para enfrentar, e ainda mais porque sabia que estava sozinha.

E então novamente veio a voz: eles têm muita responsabilidade pelo que aconteceu com você, mas por enquanto você não pode fazer nada contra eles, nem mesmo para chamar a atenção para isso para que não continuem a fazer coisas “iatrogênicas” a outras pessoas. E eu também sabia muito bem que, como médicos, eles eram protegidos por uma sociedade que os via (até hoje) como heróis, como salvadores, como messias. Por que não? Eu também tinha caído sob o seu domínio. Eu tinha sido levada por uma fé cega de que eu estava “em boas mãos”, que eles sabiam o que estavam fazendo, e que estavam apenas cuidando do meu bem-estar. E meu foco mudou muito lentamente deles para mim: preciso saber o que aconteceu, o que eu fiz para ter permitido que a minha vida fosse destruída a tal ponto, o que aconteceu? E para fazer isso, eu sabia que tinha que mergulhar no passado. Se eu ia enfrentar as conseqüências, eu tinha que pelo menos saber por quê. Eu não poderia morrer sem pelo menos saber. Embora eu tenha sentido que, se eu tivesse me colocado nessa posição, era para reprimir as memórias. Mas era melhor saber.

Até hoje eu não sei se o AVC foi o resultado da síndrome da abstinência (tão brutal que era) ou se a conseqüência do uso prolongado de ansiolíticos, se eu realmente o tinha, o que ainda duvido muito. O fato é que um dia comecei a perceber que, apesar de saber ler, não conseguia entender nada. Eu podia escrever, mas só podia escrever de forma incoerente. Que houve episódios em minha vida, como uma vez checando a internet e descobrindo, para meu horror, que eu tinha dado uma entrevista na televisão em meus dias de benzodiazepina, e que não me lembrava de absolutamente nada, ou de pessoas falando comigo e nem mesmo lembrando de tê-los conhecido. E o pior foi que, ao falar com alguém em minhas raras saídas fora de casa, quem quer que fosse, fiquei presa em plena conversação porque, embora eu soubesse exatamente o que queria dizer, não conseguia encontrar as palavras para dizê-lo. E as pessoas começaram a me evitar, o que me fez sentir ainda mais só.

Passaria mais de um ano até que me enviassem para uma ressonância magnética e descobrissem que eu tinha 8 microturbações. Em que momento, eu não tenho idéia, e ainda, por várias razões, duvido desse diagnóstico, mas descobri mais tarde que tinha afasias.

Entretanto, naquela época eu pensava que estava, agora eu estava, de fato, caindo vítima de alguma doença mental grave, o que aumentou minha culpa e vergonha. E como sempre preferi morrer em vez de parar de ler (sou uma verdadeira bibliófila), eu disse a mim mesma que nenhuma doença mental seria mais poderosa do que eu, que se eu tivesse sobrevivido à abstinência não iria morrer sem ler novamente. E eu comecei a ler durante horas e horas, lendo em parágrafos. Eu também comprei um livro de palavras cruzadas. Levei meses para resolver o mais fácil, mas chorei lágrimas de alegria quando consegui fazê-lo. E eu voltei, com o passar do tempo, à leitura e à escrita. O discurso foi mais lento para ser resolvido, porque, isolando-me de praticamente todos, eu não praticava muito. Ainda hoje, ocasionalmente, fico com uma palavra presa quando falo, e hoje trabalho na frente de grupos, como fiz tantos anos antes, mas não tenho mais medo: simplesmente digo que não consigo me lembrar da palavra exata, que me lembrarei dela mais tarde, e lembro. Ninguém sabe que passei por isso, assim como praticamente ninguém sabe, até agora, que tudo foi causado pelo meu vício em ansiolíticos. E explicarei o porquê mais tarde.

Levei quase um ano antes de ousar comprar um caderno e começar a escrever, determinada a lembrar. Eu tinha guardado um “diário” desde adolescente e tinha desistido dele quando entrei na universidade. Então, voltei a escrever. Mas não ia ser na forma de um diário. Nela, deixei essa voz como uma espécie de alter ego, cujo diálogo me permitiu refletir mais. Como eu o expressei, não era uma personalidade alternativa, nem mesmo uma que eu tivesse inventado. Fui eu, mas olhando para mim de fora. Como se eu fosse um terapeuta. E se alguém se pergunta por que eu não procurei terapia, é claro que procurei. Fui a neurologistas, até fisiologistas, psicólogos e eles até me enviaram a um psiquiatra que queria me dar terapia (como se eles estivessem treinados para isso) e a quem recusei quando descobri que era ele quem tratava o pai de minha filha. Ele ficou muito ofendido quando lhe disse, com toda a gentileza de que eu era capaz, que isto era um conflito de interesses (por nos tratar simultaneamente) e antiético porque, sabendo disto, ele não me disse, mas eu o descobri. Ele me jogou para fora do consultório, batendo a porta na minha cara. E a psicóloga, supostamente treinada em perspectiva de gênero, me reprovou desde o início por querer que ela me tratasse por Luisa em vez de María Luisa, que é meu primeiro nome, como se isso fosse muito importante. E também o outro psicólogo, a quem fui depois de me lembrar, supostamente um especialista em vítimas de violência sexual, assim como o outro que me tinha visto anos antes, apenas me culpou por tudo. E isso foi demais. Lá fora, sobre um banco e sentindo os olhares curiosos das pessoas que passavam, com meu rosto banhado em lágrimas, eu disse a mim mesma que teria que continuar enfrentando sozinha, sem ajuda.

Mas eu não o fiz. Pelo menos, não foi com a ajuda de profissionais. Quando todos, incluindo meus melhores amigos até então, literalmente me abandonaram, algumas desculpas balbuciantes, outras me julgando duramente por minha “fraqueza”, mas se afastando de mim como se fosse contagiosa, eu não estava completamente sozinha.

Eu sei que muitas pessoas têm pensamentos suicidas de vez em quando. Ao longo da minha vida eu os tive, mas eles não eram nada comparados com os que vieram até mim naquela época, a ponto de planejar seriamente minha morte. Eu sabia que seria um fato quando tudo parasse de ser importante para mim, até mesmo minha filha e meus gatos. Tudo. Isso foi na época da afasia. Eu já tinha o método (overdose de insulina) em mãos. A seriedade do pensamento e a iminência do que eu ia fazer me assustava muito. E então a voz ecoou no meu cérebro novamente, e eu liguei para meu irmão mais velho, dizendo a ele que se ele não fizesse algo, eu me mataria. Quem sabe que tom de voz eu devo ter usado, mas meu irmão, que nunca me levou a sério e que estava certo de dispensar minha ligação novamente, apenas respondeu que ele estaria lá em 10 minutos, para esperar por ele, algo incomum para ele, porque eu estava tirando-o do trabalho, algo sagrado para ele.

E ele chegou em 10 minutos (como ele fez isso, não sei porque não estava tão perto). E conversamos o dia todo. Contei-lhe sobre minha afasia, que na época eu não sabia que tinha e que eram doenças neurológicas, não mentais, sobre o desespero de estar sozinho e ter que enfrentar minha vida inteira em ruínas. Ele me disse que eu já havia feito tanto por mim mesma para sobreviver, e que sabíamos que era muito provável que eu tivesse morrido se não tivesse feito o que fiz. Embora eu considere que não tive ajuda de ninguém, ele, juntamente com o imenso apoio de outro de meus irmãos, que nunca me julgou e sempre esteve ao meu lado, salvou a minha vida. Junto com vários livros sobre Medicina, Bioética, Filosofia, Psicologia, como algumas obras de Freud e Jung que reli para entender o porquê, assim como o livro O Desconforto da Mulher: Tranquilidade Prescrita por Mabel Burín, que finalmente, junto com vários livros sobre filosofia budista, começou a me aliviar do terrível fardo da culpa e da vergonha.

Então embarquei em uma longa jornada de escrita, escrita, escrita. Lembrei que quando eu vivia com o pai de minha filha há dois anos, num ataque de ciúmes, ele me estuprou. Não se tratava de sexo forçado, pois o chamado especialista em violência sexual tentou minimizá-lo. Foi um estupro que ele levou a cabo sabendo muito bem onde ia doer mais, mantendo meu rosto esborrachado contra a cama. Apesar dos meus gritos, apesar da sensação de asfixia, apesar da dor, ele não parou até ficar satisfeito. Quando fui à terapia, o terapeuta me disse que eu tinha ganho “mostrando minhas pernas”, para assumir a responsabilidade. E essa foi a entrada para um túnel escuro, onde fiquei com ele “esquecendo” o que havia acontecido, sentindo-me muito culpada e grata por ele não me ter deixado. Naquela época eu estava começando a emergir como profissional, e a ganhar muito dinheiro. Tudo isso foi para apoiar a casa e nossa filha. Ao mesmo tempo, comecei a ter depressões muito fortes. Com o estupro “esquecido”, eu não tinha idéia da fonte. E então fomos, por sua insistência, ao terapeuta de um casal, para “salvar o relacionamento ou ajudá-lo a ter uma boa morte”, como suas palavras exatas assim foram. Eu era como um zumbi, obediente como sempre. E então o terapeuta me enviou ao primeiro psiquiatra, que prescreveu o antipsicótico para “angústia de não conseguir dormir”.

A violação, no entanto, não foi o começo de tudo. Eu queria ir ainda mais longe e comecei a ver minha vida como uma sucessão de traições a mim mesma. Eu simplesmente não sabia. Nesta longa jornada, comecei a ver minha vida como nunca a tinha visto antes, apesar de ter feito terapia várias vezes. Não era muito agradável, e muitas vezes me forçava a escrever em lágrimas, mas eu sabia que tinha que enfrentá-lo se quisesse viver, não sobreviver. Com a mesma técnica intuitiva da voz alternada que me vê de fora, firme mas amorosa, eu tive muitas epifanias. Entre elas, que eu estava sendo curada do terror da solidão, uma força motriz muito poderosa em minha vida passada. E outra, muito importante, que eu não estava mais dependente das mentiras dos psiquiatras, porque, nem eu tinha tido crises psicóticas quando parei de tomar as pílulas, inclusive antipsicóticos (algo que me era dito constantemente), mas tinha aprendido a lidar com a ansiedade. Eu também estava aprendendo a lidar com a depressão com a mesma técnica que estava escrevendo: eu a vejo dinamicamente, como se fosse uma mortalha muito confortável, porque é algo muito familiar, ao qual recorro quando não quero lidar com algo. Aquela visão da depressão como um cobertor fora de mim que eu coloco e retiro me ajudou a entender algo muito valioso. Tanto que considero que é o maior presente que a vida me deu: que, ao contrário de tudo o que vivi durante toda minha vida, só de dentro de mim mesmo é a resposta para tudo. Para alguém que sempre viveu em torno da opinião, e aprovação, dos outros, que acreditava que olhar para dentro era aterrador e tinha que ser evitado a todo custo, porque estava destinado a ser vazio, fazendo exatamente isso foi o que mudou toda a minha vida.

Mostrar-me continuamente que através das coisas que estava fazendo minha vida estava se transformando, que estava fazendo tudo sozinha com a ajuda de minha intuição, e que tinha que aprender a confiar em mim acima de tudo, foi a revelação de minha vida. Eu tinha começado a olhar para dentro, e o que eu estava encontrando não era um recipiente vazio, mas o oposto.

Algo que foi fundamental em todo este processo foi repensar, como eu nunca ousara fazer antes, as minhas relações com os meus pais, que já estavam mortos. Naquela época, eu estava fervendo com perguntas, especialmente para a minha mãe, que morreu repentinamente aos 55 anos de idade e que me deixou (nos deixou) com uma sensação de orfandade que ainda permanece comigo hoje. Com fotos antigas, muitas lembranças e poucas perguntas para muito poucas pessoas, comecei a reconstruir a história pessoal de minha mãe, tentando chegar ao porquê, se sempre considerei arrogantemente que ela e eu éramos muito diferentes, sabendo então que eu repetia muito de sua história pessoal. E que ela também tinha repetido partes da história de sua mãe. Uma história de mulheres na minha família repetida ao longo de gerações. E o que nos uniu foi uma educação onde o abuso sexual, psicológico, verbal e físico era freqüente, onde nossa obrigação era pegar um homem e suportar o que fosse preciso para que ele não nos deixasse sozinhos. É assim que eu quero colocar as coisas de forma grosseira e sucinta. Cada um de nós, minha avó, minhas tias, eu, e quem sabe quantos outros, repetimos e repetimos os mesmos padrões.

Essa foi minha porta de entrada para entender o que aconteceu, o que fiz para deixar minha vida inteira nas mãos de outros, sem assumir a responsabilidade por isso. Que eu era muito influenciada por minhas idéias feministas? Na verdade, eu tinha sido uma “feminista” muito morna na época. Até ser confrontada com toda aquela dor, eu sabia como era realmente ser uma mulher nesta sociedade, porque sabia que compartilhava esta história com muitas, muitas mulheres. E eu sabia porque somos os clientes favoritos dos psiquiatras, e porque lutamos toda nossa vida sendo clientes de terapeutas que, longe de nos guiar ao nosso próprio confronto para obter resultados reais, nos mantêm por anos em terapias inúteis.

Mas não houve nenhum momento de “libertação”, nenhum “despertar espiritual” que é vendido a você em muitos cenários. Não houve, nem acredito que haverá, um momento “antes” e “depois”. O que quero dizer é que embarquei em um processo ao qual não vou encontrar um fim até morrer. Não me sinto “especial”, nem estou interessada em salvar alguém de nada, ou mesmo avisar alguém sobre qualquer coisa. Quando pedi ajuda a meus então “melhores amigos”, talvez por causa da perplexidade de me ver tão diferente, não sei, eles simplesmente pararam de falar comigo, mas não antes de passar julgamentos muito duros contra o meu “vício em drogas”. Até a minha própria filha, anos depois, gritou “viciada em drogas” comigo na rua quando eu lhe disse, algum tempo depois de não nos vermos, que eu não bebia mais nada e que a minha vida era muito diferente. E então eu me desliguei. Foi, e ainda é, mais fácil dizer que tudo o que eu passei foi por causa do derrame. E há muito tempo desisti, em minhas tímidas tentativas, de dialogar com muitas mulheres, apologistas de medicação psiquiátrica, porque preferem isso a enfrentar e resolver suas vidas. Como eu poderia culpá-las, se o fiz, e até hoje ainda estou lidando com a culpa disso?

Embora fisicamente eu tenha conseguido me recuperar (não parei de agradecer ao meu corpo por ter resistido ao que ele resistiu, e continua resistindo), minha auto-estima foi abalada. No processo, descobri que toda minha auto-estima, toda minha vida, tinha sido baseada apenas em uma coisa: minha suposta “inteligência”, que foi o que todos me elogiaram, até minha mãe seca, que em toda sua vida foi a única coisa que alguma vez me reconheceu, pelo menos verbalmente. Depois disso, não só tive que reaprender a ler, escrever e falar fluentemente, mas também, que inteligência se eu jogasse tudo fora ao permitir tanto? Eu não podia trabalhar porque tinha medo de ficar paralisada ao falar com qualquer pessoa (muito menos na frente de grupos, algo que tinha sido meu modo de vida até então e que me dava enorme prazer), e certamente tive algumas entrevistas para trabalhos realmente bons, mas sempre terminavam mal por causa disso. Para mim, durante muito tempo, o trabalho, uma vez tão abundante, terminou. Eu já estava tão acostumado à solidão, cuja evitação foi minha força motriz para toda a vida, que agora eu só queria estar sozinho. Muito mais fácil. Mas era algo que eu sabia que era insustentável, uma contradição em si mesmo. Eu não tinha sobrevivido tanto só para deixar que outros me apoiassem e para gastá-lo confortavelmente em uma concha. E outro processo começou, muito menos doloroso, mas igualmente desafiador: construir a auto-estima com algo que eu não tinha. Isto é, se eu tivesse que salvar a minha vida, recorrendo a forças e métodos que eu não sabia que tinha, e nunca pensei que tinha, agora teria que construir uma auto-estima sem que ela se baseasse inteiramente na minha “inteligência”. E a única coisa em que eu tive que construir foi exatamente o processo pelo qual tenho passado todos estes anos.

Embora eu saiba que a minha “inteligência” retém muito de sua centelha original, e que a intuição que usei para resgatar algo que precisava desesperadamente para sobreviver, o fato de quase tê-la perdido me tornou muito menos arrogante em relação a ela. Como eu digo: ensinou-me humildade. E isso me ensinou que há muito sobre o qual eu não tenho controle. Mas o que eu posso ter controle, vou planejar e exercitar.

Aprendi a confiar em mim mesma. Não tem sido fácil, mas se alguma vez escrevi para mim mesma que estava apenas escrevendo auto-indulgências, respondi que a prova de que eu não estava eram os resultados que obtive. E tudo, em muitos momentos, foi ter que confiar em mim mesma à força.

Quando eu estava no meio da afasia, quando passei meu tempo na igreja da colônia chorando, pedindo a Deus que por favor me arranjasse um emprego, como se isso fosse me tirar da confusão em que eu estava, um dia uma epifania veio até mim: nenhuma resposta virá de fora. Foi por isso que você esperou toda sua vida, e veja onde você está agora. Qualquer resposta virá sempre de dentro para você. O que é, é, e qualquer tentativa de disfarçar isso só vai desperdiçar seu tempo. Você já enfrentou coisas que só muitas pessoas passam enquanto estão sedadas (como a abstinência), e o fez com plena consciência. Depois disso, é claro que você pode lidar com as dores que você pensava que não poderia. E eu não voltei à igreja desde então. Nenhuma igreja. Eu não o faço por arrogância. Eu simplesmente prefiro, mesmo com todas as minhas dúvidas, e combatendo a vergonha e a culpa que ainda restam, recorrer a mim em qualquer crise. Não fazer isso necessariamente envolve depressão e muita ansiedade.

Então e agora? Em minha passagem pelas redes sociais, principalmente o Facebook, ao qual me uni exclusivamente para me forçar a interagir com outros perfis e onde ao longo do tempo pude me comunicar de forma mais eficaz e coerente, descobri que muitas pessoas entre meus contatos, especialmente mulheres, confessam livremente ser usuárias de drogas psiquiátricas, utilizando supostos diagnósticos psiquiátricos, como a síndrome do pânico Para mim foi uma revelação, que se encaixava perfeitamente em toda a literatura que eu havia revisado (especialmente os livros de Whitaker, sobre a questão médica, e de Burin, referindo-se a toda a cultura dos medicamentos prescritos e das doenças mentais aparentes como uma manifestação cultural onde nós mulheres somos muito bem exploradas – incrivelmente também aqueles que se autodenominam, mas este é um tópico que precisa de muito mais pesquisa do que eu posso dedicar a ele em alguns parágrafos), tanto mais que me identifiquei plenamente com eles: agarrado a um suposto diagnóstico (Desordem Bipolar, que desapareceu magicamente quando eu cortei qualquer medicação psiquiátrica para sempre). E não apenas isso: a reação que eles têm quando tentam falar sobre isso é a mesma reação que eu tive quando alguém me indicou que o uso dessas drogas era uma muleta: de uma defensiva tão visceral que vai até a violência. Por mais racional que você queira aparecer e dizer-lhes o que você passou, a rejeição costuma ser frontal e definitiva. Foi quando percebi que, além de parecer um cristão nascido de novo para eles (algo que me repugna enormemente), esta epidemia não vai ser combatida com comentários. É algo que tem que mudar em nível cultural, algo que nunca será fácil, mas que nunca irá embora se não o descobrirmos. Logo é preciso falar sobre isso. Neste momento até eu questiono não apenas o valor do que estou expressando aqui, mas o medo das conseqüências de começar a falar de um processo pessoal terrivelmente doloroso sem ser julgada ou discriminada. Mas eu tenho que fazer isso. Para mim e para todas as vítimas de um “iatrogênico” cultural que começa por acreditar que somos tão fracos e tão incapazes de pensar por nós mesmos que compramos para a vida a idéia de que a solução está a apenas um comprimido. Esta é a primeira vez que falo, ou melhor, escrevo, fora de muito poucas pessoas, sobre tudo isso. E eu queria me concentrar no que trouxe tudo isso: minha relação com as drogas psiquiátricas. Eu costumava dizer a mim mesma que saber que eu era parte de uma enorme massa que caiu nestes padrões de vida não me torna menos responsável, mas agora eu quero começar a falar sobre isso. Não como um cruzada, não como uma porta-voz. Repito que não estou interessada em ser o Iluminado de nada, nem em falar em nome de ninguém. Simplesmente porque a voracidade das empresas farmacêuticas, a irresponsabilidade dos médicos e suas “iatrogenias” e, acima de tudo, que uma vida além do estupor tão confortável é possível para aqueles que preferem nos ver assim (e em nós que não ousam acreditar em nós mesmos), me impulsiona cada vez mais a abandonar de uma vez por todas minha vergonha e a tentar fazer as coisas um pouco diferentes para alguém. Vamos ver.

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Eu quis intitular este texto com o nome de uma canção dos Rolling Stones. Meu hábito de marcar
algumas passagens da minha vida com canções significativas, tão significativas que, ao ouvi-las em contextos específicos, elas provocam verdadeiras epifanias. Neste caso, a associação veio depois de uma, que chamei de A Decisão.
Em sua essência, a canção se refere a certas pequenas pílulas amarelas que a “mamãe” recorre para
para se acalmar diante das vicissitudes da vida. Os versos que traduzi são os que sempre me fazem chorar. Mas
agora somente porque sei que transcendi aqueles Mama’s Little Helpers.

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Publicado originalmente em Mad in Mexico.

Pesquisa contraria diretrizes oficiais: efeitos Antidepressivos com a Dosagem Mínima Recomendada

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Um novo estudo na Molecular Psychiatry explora os efeitos dos medicamentos antidepressivos na ocupação do transportador de serotonina (SERT). Os achados apoiam o uso de afilamento hiperbólico durante a retirada – diminuindo a dose para uma quantidade muito pequena antes de interromper totalmente a utilização. Eles também desafiam a noção de aumentar a dose se a droga não funcionar.

A pesquisa foi liderada por Anders Sørensen no Nordic Cochrane Center e incluiu Henricus G. Ruhé e Klaus Munkholm. Suas análises utilizaram dados de 17 diferentes estudos de imagem do cérebro sobre os efeitos das drogas moduladoras de serotonia. Eles analisaram a porcentagem dos receptores neurotransmissores de serotonina (SERT) bloqueados pelas drogas em doses diferentes. De acordo com os pesquisadores:

“A ocupação do SERT aumentou com uma dose maior em uma relação hiperbólica, com a ocupação aumentando rapidamente em doses menores e atingindo um patamar de aproximadamente 80% na dosagem mínima recomendada habitualmente”.

Isto tem duas implicações. A primeira é que mesmo na dose mínima recomendada (abaixo da dose normal prescrita), os efeitos dos medicamentos sobre o sistema de serotonina têm platô (ocupando cerca de 80% da SERT). Assim sendo, há um benefício biológico mínimo quando se aumenta a dose, mesmo quando a droga está no nível mínimo recomendado. Isto significa que se os efeitos antidepressivos fossem impulsionados pela neuroquímica, doses mais baixas deveriam proporcionar aproximadamente o mesmo benefício que as doses mais altas – assim, haveria pouco benefício em aumentar a dose, mesmo que a droga não pareça funcionar.

Os pesquisadores escrevem:

“A relação dose-ocupação hiperbólica pode fornecer uma visão mecanicista de relevância para o benefício clínico limitado da escalada da dose no tratamento antidepressivo e o potencial surgimento de sintomas de abstinência”.

A segunda implicação do estudo é que, em doses baixas, até mesmo pequenas mudanças na dose têm um grande impacto sobre os níveis de serotonina. Assim, um pequeno aumento da dose, enquanto em uma dose baixa, pode fazer uma enorme diferença, enquanto mesmo grandes aumentos, uma vez que já está em uma dose alta, não têm muito impacto.

E o mesmo vale para o afunilamento do medicamento – uma grande diminuição de uma dose alta terá pouco efeito sobre os níveis reais de serotonina. Mas uma vez que a dose se torna menor, até mesmo pequenos ajustes de dose podem ter efeitos maiores sobre os níveis de serotonina.

A tabela abaixo para a fluoxetina (Prozac) é o exemplo quintessencial. O aumento acentuado da ocupação do receptor de serotonina (SERT) em baixas doses começa a se nivelar em cerca de 5 mg (cerca de 65% de ocupação). A linha vertical pontilhada a 20 mg representa a dose mínima recomendada. O gráfico demonstra que mesmo metade dessa dose, 10 mg, ocupa quase a mesma porcentagem (um pouco mais de 70%) de receptores de serotonina que 20 mg (um pouco menos de 80%) – portanto, deve ter aproximadamente o mesmo efeito biológico. Doses mais altas fazem ainda menos diferença, com 60 mg ocupando menos de 5% mais SERT do que 20 mg.

Esta relação hiperbólica com a ocupação de SERT também explica por que estudos descobriram que a redução para doses cada vez menores durante meses, antes de eventualmente descontinuar o medicamento, pode ser necessária a fim de minimizar os efeitos de retirada. (Os pesquisadores escrevem que “aproximadamente metade dos pacientes que param ou reduzem a dose de antidepressivos apresentam sintomas de abstinência, que, entre outros, podem incluir sintomas semelhantes aos da gripe, ansiedade, embotamento emocional, diminuição do humor e irritabilidade”).

Outra descoberta surpreendente foi não haver relação entre a ocupação do receptor de serotonina e o efeito clínico.

Os autores escrevem, “os estudos incluídos na presente revisão que mediram a relação entre o efeito clínico e a ocupação do SERT não encontraram correlações significativas”.

Ou seja, a porcentagem de receptores de serotonina bloqueados pelas drogas não têm correlação com a melhora ou não da depressão das pessoas. Isto desafia ainda mais o mito do desequilíbrio químico.

Finalmente, os pesquisadores também observam que as evidências sobre este tópico são limitadas e que problemas metodológicos afligem a literatura da pesquisa.

“A evidência é limitada por relatórios não transparentes, falta de métodos padronizados, tamanho reduzido das amostras e curta duração do tratamento. Estudos futuros devem padronizar os procedimentos de imagem e relatórios, medir a ocupação em doses mais baixas de antidepressivos e investigar os moderadores da relação dose-ocupação”.

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Sørensen, A., Ruhé, H. G., & Munkholm, K. (2021). The relationship between dose and serotonin transporter occupancy of antidepressants—A systematic review. Molecular Psychiatry. Published: on September 21, 2021. https://doi.org/10.1038/s41380-021-01285-w (Link)

Como o modelo biomédico da psiquiatria prejudica a humanidade

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Empathy vector illustration. Understanding other people feeling in flat tiny persons concept. Emotional, cognitive and somatic personality character in abstract visualization with couple affection.

Além da vida, da liberdade e da busca da felicidade, o homem deve acrescentar a regra de ouro: “…você deve amar o próximo como a si mesmo…”. (Levítico 19:18)

O foco na biologia e a utilização da estrutura da doença para se conectar com pessoas que são loucas limita o acesso à plenitude de sua humanidade. Este processo de atribuir a excepcionalidade humana às doenças, quando nenhuma doença biológica está presente, muitas vezes prejudica permanentemente o corpo e a psique. A introdução de drogas que alteram o corpo e a mente não apenas influencia o comportamento, mas muitas vezes altera permanentemente a composição biológica de uma pessoa.

Muitas curas biológicas para perturbações psicológicas causam doenças corporais que alteram ou matam permanentemente as pessoas loucas. Essas pessoas têm um tempo de vida vinte e cinco anos a menos do que o diagnóstico não psicológico.

Nos anos 80, foi-me dado lítio como tratamento por ter sido rotulada como bipolar, tipo II. Isso não aliviou o meu sofrimento. Até mesmo meu prescritor ficou insatisfeito com os resultados a longo prazo. Embora eu tenha sido retirada do lítio após dois anos, nos últimos 40 anos eu precisei suplementar meu hormônio tireoidiano por causa da deficiência adquirida com o lítio. Este é um exemplo dos danos que os “tratamentos” biológicos atuais podem impor a uma pessoa louca, inclusive causando danos permanentes a uma glândula.

Como parte do movimento de libertação dos pacientes mentais por mais de 50 anos, conheço em primeira mão as conseqüências graves e fatais que aconteceram com colegas, pares, amigos e parentes, como a discinesia tardia, epilepsia e danos no coração, fígado, rins e cérebro, que levaram à morte precoce. As drogas foram até mesmo têm sido conhecidas como causadoras de suicídio e assassinato.

Em desespero, outros e eu assumimos riscos. Temos sido inundados e influenciados pela publicidade multimídia sedutora, bem como pela dependência da psiquiatria médica às drogas para alívio comportamental do sofrimento.

Outra área na qual os loucos são obrigados a assumir riscos e fazer sacrifícios é o reino da psique: alma, mente, coração e espírito. A educação e treinamento que os psiquiatras recebem nas escolas médicas para se tornarem médicos que acreditam tratar o cérebro de pessoas loucas é irrelevante para se conectar com a sua psique.

Os médicos são treinados para manter a distância profissional, o olhar clínico, a imodéstia sobre seu único aprendizado, e a mistificação intencional. A intimidade psicológica construtiva através de uma escuta empática e ativa não é procurada. As principais necessidades das pessoas que estão loucas são ignoradas, permitidas a murchar e se afastar ainda mais da vida.

O contato psicológico com uma pessoa que está sofrendo é alimento vital. É preciso tempo e dedicação para desenvolver uma confiança próxima e consciente entre as pessoas que buscam um relacionamento. Mas os psiquiatras não são ensinados a criar desta forma. Em vez disso, eles são ensinados a rotular e classificar o comportamento das pessoas em categorias de doenças e disfunções. Em seguida, eles procedem à entrega de medicamentos a seus pacientes. A exploração da psique de uma pessoa não está na agenda da maioria dos profissionais médicos.

E, por sua vez, os pacientes aprendem a manter essa distância também. Os pacientes nunca aprendem as habilidades para construir um relacionamento ou como se conectar com seu eu interior. Aprendem a temer outra rejeição e represálias por revelarem seus eus existenciais.

Nós nos escondemos um do outro. Mentimos um para o outro. Desenvolvemos formas elaboradas e confusas de evitar estar verdadeiramente com o outro. E o que é que tememos? Tememos a rejeição, a humilhação e a aniquilação, não percebendo que a nossa psique já está vivendo a dor dessa profecia autocumprida.

Eu fiz isso durante anos. Os traumas dos meus primeiros anos me ensinaram a fazer isto. Quando bebê e criança, aprendi que não estava a salvo. O alvoroço, o confinamento, o isolamento, a falta de sensibilidade física, a abundância de dor física e psicológica, tudo isso serviu para facilitar uma espécie de morte da alma. Fiz isto a mim mesma em um esforço para sobreviver, por mais contraditório que isso pareça. Desconectar-me e retirar-me para um lugar de imobilidade muda foi o meu esforço para suportar.

Como o modelo médico é historicamente a origem da psiquiatria, as falhas, transgressões e erros desse modelo são ampliados quando aplicados à alma, mente ou espírito. O método biológico confunde, desorienta e ofusca a psique. Aplicar a medicina que altera a mente, clichês, provérbios, parábolas e rigores comportamentais a uma pessoa que está em busca da verdade, do significado e de ser valorizada como um membro contribuinte da sociedade, exacerba a confusão.

Parece-me que a psique (isto é, a alma, mente, coração e espírito) deve ser examinada, compreendida e confortada de uma maneira que seja única a suas raízes metafísicas e psicológicas. A psiquiatria baseada na biologia não é apenas inadequada, mas é irrelevante quando se busca as causas do sofrimento psicológico e quando se trata das necessidades das pessoas que estão loucas.

O tratamento biológico e médico nunca me curou das doze ou mais doenças mentais crônicas graves com as quais fui rotulada durante meus 76 anos de busca. Atribuo hoje apenas 10 ou 15% de minha alegria e sabedoria ao tratamento médico-modelo.

O dano que os médicos e outros profissionais da área de modelo médico me infligiram teve que ser administrado e superado. Isto atrasou meu progresso, deprimiu minha energia e me levou a buscar a morte por sentimentos de desesperança e desamparo.

Sei que meu primeiro abuso, programação e trauma ocorreram quando eu era um bebê e na minha infância. Em minha jornada por ajuda psicológica através do sistema de saúde mental baseado no modelo médico, sofri (e eventualmente superei) os danos causados por seus tratamentos inadequados. Os atrasos que tive que aceitar a fim de diminuir a minha confusão com os tratamentos oferecidos pelo sistema, e os gastos de tempo e energia que tiveram que ser usados para manter o foco e sobreviver, adiaram meu progresso na resolução de meus traumas originais de infância.

Embora eu veja e experimente a vida de forma mais clara e completa, agora, ela está quase terminada. Acho que a única ajuda que recebi foi a de adquirir a habilidade de alcançar uma intimidade psicológica profunda com outras pessoas. Oitenta e cinco a 90% da minha capacidade de simplesmente me sentir bem vem do contato que tive e continuo a ter com os outros.

Demorei quase metade da minha vida para conseguir esse primeiro relacionamento. Os comprimidos, os tratamentos de choque, as hospitalizações, as variedades de modificação de comportamento, o tratamento com psicocirurgia, minha terapia de re-traumatização de conversas de infância, nada disso teve tanto efeito vital em mim como o de reacender minha mente, coração e alma através da aquisição de conexão e relacionamento com um outro.

É por isso que buscar ajuda para aliviar o sofrimento psíquico causado pelo isolamento doloroso, desconexão e outros traumas deve ser feito em relação a outra pessoa. É por isso que as técnicas do modelo médico estão falhando a humanidade e causando danos, não só aos indivíduos, mas também à sociedade.

Condenar a morte da alma ignorando a sua existência não só é potencialmente letal para indivíduos loucos, mas é contraproducente para o desenvolvimento de uma sociedade funcional.

Quem são os loucos?

Pessoas como eu que estão com raiva por serem mal tratadas e com crueldade por terem formas únicas de sobreviver dentro dos limites de nossa condição humana. Pessoas como eu que, quando estávamos no meio do nosso sofrimento dentro das paredes de um túmulo interno que criamos para sobreviver, se sentiam desesperançadas e desamparadas. Pessoas como eu que se relegaram à autoridade de teorias baseadas em pensamentos difusos, subjetivos, imprecisos e descuidados por homens da classe da elite de seu tempo. Pessoas como eu, que sobreviveram à falsa esperança letal de alcançar a saúde psíquica através da psiquiatria de base médica. Pessoas como eu, que sobreviveram para viver fora da prisão do sistema de saúde mental. Pessoas como eu, que encontraram a oportunidade de aprender as habilidades de conexão e relacionamento humano. Pessoas como eu, que são gratas por uma vida em que agora prosperam. Pessoas como eu que vivem em uma sociedade frenética e caótica, mas que é construída com base em princípios humanitários deficientes. Pessoas como eu.

Um Novo Tipo de Libertação

Desde os anos 60, o Movimento de Libertação do Paciente Mental tem mantido um lema de “Nada sobre nós sem nós”. Sugiro uma imagem mais profunda, mais abrangente da mudança.

A história do “Nada sobre nós, sem nós” deriva da crença psiquiátrica de que os loucos não têm capacidade de controlar a nós mesmos ou nossas vidas. A crença de que necessitamos da autoridade superior constante da psiquiatria médica para tomar todas as decisões em nosso nome.

O Movimento concebeu isto como uma declaração galvanizadora para reunir pessoas loucas a fim de apoiar, organizar, educar e defender a nós mesmos. A declaração é uma negação da validade do controle médico e forense, juntamente com uma demanda inflexível pelo direito de controlar a nós mesmos e nossas vidas. Este conceito foi útil politicamente para obter acesso à administração da saúde mental, comitês, conselhos e outros órgãos de decisão política, incluindo entidades legislativas estaduais e federais e assim por diante.

Também foi útil para abrir portas para o financiamento de alternativas loucas para as instituições psiquiátricas de controle. Este processo tem sido implementado de forma um tanto descuidada pela colaboração excessiva com o sistema de saúde mental que pensa mal. Pode-se argumentar que o movimento de trabalhadores da saúde mental abraçado pelo modelo médico do sistema psiquiátrico não é mais uma alternativa.

Embora este lema tenha sido uma imagem útil e bem sucedida para acender e promover a causa da libertação louca, há mais na vida do que a luta para simplesmente sobreviver para lutar por outro dia. Alcançar o direito de ser libertado de restrições, grilhões, alas e prisões é vital. Ganhar influência nos órgãos políticos não tirou milhares de nós das ruas, no entanto. Os muros das instituições foram derrubados, mas agora estamos sem abrigo em nossa liberdade de sofrer psicologicamente e biologicamente. O direito de sermos tratados com dignidade e respeito, e de sermos valorizados por nossas saídas visionárias únicas, ainda está por ser realizado.

No modelo não-médico é central o reconhecimento do modo como o princípio de estabilidade e equilíbrio contrasta com a variação, a mudança, indo além disso. A loucura pode ser pensada como uma expressão de variação, excepcionalidade, alternativa. Na natureza, a homeostase existe juntamente com as mutações que levam a vida para o novo e anteriormente desconhecido.

Há um lugar na sociedade tanto para o único como para a rotina, o aventureiro, o visionário, o comunicador do profundo expresso através das artes e das ciências. Além de reconhecer os direitos civis e humanos das pessoas loucas, a sociedade pode aprender a abraçar os dons loucos e apreciar as contribuições e os contribuidores.

O que parece ser loucura pode ser uma reação à supressão, repressão, opressão da psique, coração, alma, espírito, mente. A loucura pode ser uma expressão de uma percepção original da vida ou uma expressão da singularidade cognitiva de alguém.

A arte de Frida Kahlo e Vincent Van Gogh tornou-se icônica. O fenômeno que eles se tornaram é um reconhecimento por seus seguidores do valor, singularidade e profundidade de conexão que nossa psique humana, coração, alma, espírito, mente podem alcançar. Esta adoração da arte destes dois pintores pode representar uma profunda compreensão do valor da comunicação única e original no encaminhamento da humanidade. Eles são um exemplo da mudança que pode ser trazida através dos dons de quem a psiquiatria rotulou de doença mental aberrante.

Pode haver uma percepção profunda, única e enriquecedora para a vida através do apoio, do carinho e da intimidade psicológica não apenas com aqueles rotulados como doentes mentais pelo sistema psiquiátrico médico, mas com a exploração das qualidades únicas e enriquecedoras de cada um de nós, quer nos identifiquemos como loucos ou não.

Conclusão
O modelo médico da psiquiatria é baseado na uniformidade do diagnóstico e do tratamento. Diversidade e liberdade são consideradas aberrantes. O Movimento de Libertação do Paciente Mental afirma nosso direito de sermos diferentes e independentes, mas ambos ignoraram a psique e a necessidade de relacionamento.

Minha visão esperançosa é que, mudando o paradigma para longe do modelo médico e em direção a apoiar e nutrir uma relação humana benevolente, um novo tipo de libertação louca pode ser alcançado. Isto não apenas dará acesso a um espírito, mente e alma negligenciados, mas também terá o potencial de facilitar a percepção do valor, propósito e significado da vida para todos nós, quer nos identifiquemos como loucos ou não.

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Mad in America recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são projetados para servir como um fórum público para uma discussão-psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as próprias dos escritores.

A Imposição da Psicologia Ocidental como Colonialismo

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A exportação global da psicologia ocidental – com sua centralização de conceitos eurocêntricas e métricas do Eu – para o Sul Global assume um sujeito universal que é egocêntrico, individualista e desconectado da comunidade. Um novo trabalho de Sunil Bhatia e Kumar Priya detalha como este processo de exportação em países do Sul Global, especificamente a Índia, é um resultado do colonialismo e serve para aprofundar as feridas psíquicas e a violência baseada em castas.

Colonialismo refere-se à subordinação política e econômica de uma nação ou povo a outra nação. Como diferente do colonialismo, a colonialidade se refere aos “padrões de poder de longa data que surgiram como resultado do colonialismo”. Como argumentam Bhatia e Priya:

“O conceito de ‘colonialidade’ lança luz sobre como a psicologia euro-americana aparece como uma forma dominante de conhecimento em todo o mundo. Um exemplo desta dominância é a exportação do conhecimento psicológico euro-americano – testes de personalidade, testes de inteligência, testes de avaliação de desempenho e novos discursos psicológicos de auto-realização, experiências de ponta e treinamento de mindfulness que contribuem para a ideologia de um Eu neoliberal”.

A psicologia ocidental, com seu foco no individualismo, nasce da preocupação da modernidade com o “progresso” e o desdobramento do Eu ocidental como contido, atômico, e separado da comunidade e da história.

Enquanto o período clássico do colonialismo pode ter terminado, a colonialidade ainda está viva no processo de produção de conhecimento e nas condições de vida assimétricas – representadas por enormes disparidades no controle dos meios de produção e subsistência – do Norte e do Sul Global (sem mencionar seus traumas duradouros e intergeracionais).

Extraído de detalhadas etnografias de trauma e violência nas populações indianas, os autores mostram como o sofrimento das vítimas de violência religiosa ou baseada em castas na Índia é experimentado como um ataque à identidade social ou cultural.

Nessas situações, intervenções psiquiátricas de influência ocidental que tanto despersonalizam (a partir de uma lente biomédica) quanto individualizam (divorciando-se das relações sociais e culturais) o sofrimento de uma pessoa causa mais danos do que a cura. Como observam Bhatia e Priya, nestas situações, “o sistema de saúde mental ocidental pode causar uma segunda vitimização para os sobreviventes da violência, retratando seu sofrimento como psicopatologia individual”.

“O desinteresse sutil dos profissionais da saúde mental e a falta de empatia com o sofrimento social dos sobreviventes estão diretamente relacionados à sua forte dependência de categorias diagnósticas universalistas e individualistas eurocêntricas para psicologizar (e assim transformar em mercadoria) o estresse e a violência que surgiram principalmente das condições sociopolíticas”.

Em outras palavras, a dependência e a adoção ou exportação de conceitos e métricas psiquiátricas ocidentais do Eu para outros países fazem mais mal do que bem, especialmente em contextos pós-desastre, onde “os sobreviventes muitas vezes procuram restaurar a coerência cultural e o significado de sua individualidade e das relações que as categorias diagnósticas da psiquiatria euro-americana como o Transtorno do Estresse Pós-Traumático muitas vezes são incapazes de capturar completamente”.

Bhatia e Priya concluem:

“A compreensão da auto-estima e da saúde mental dos sobreviventes no contexto da violência político-religiosa e baseada em castas requer um conhecimento interno da comunidade e explorações críticas e baseadas em narrativas da vida humana. Caso contrário, corremos o risco de decretar uma dupla vitimização – primeiro pelas forças estruturais da violência política e segundo pela má aplicação das concepções coloniais e neoliberais ocidentais de auto-suficiência, bem-estar e saúde mental”.

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Bhatia, S., and Priya, K. R. (2021). Coloniality and Psychology: From Silencing to Re-Centering Marginalized Voices in Postcolonial Times. Review of General Psychology 0(0), pp. 1-15. https://doi.org/10.1177/10892680211046507 (Link)

Antipsiquiatria: Saúde e Doença Mental

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Uma cadeira vazia, iluminada por uma luz que incide de cima, as paredes e o chão da sala são acolchoados, com exceção da cadeira a sala não é iluminada, transmite uma sensação de sujeira, abandono e isolamento.

O LUGAR DO SUJEITO NAS INSTITUIÇÕES

Por

Luis Gerardo Arroyo Lynn

Saúde mental

A ideia de saúde mental sustenta-se a partir de uma posição objetiva, cancelando em certa medida as particularidades de cada indivíduo, interrompendo a subjetividade do sujeito .

A saúde mental está no campo do universal , ela se coloca como uma questão geral, que se dirige a um sujeito, mas o sujeito está do lado do particular. Particular e universal são discursos mutuamente exclusivos, enquanto o universal levanta um todo, o particular aponta para um não-todo .

As abordagens em saúde mental dirigem-se a um objeto teórico, a um pressuposto, a partir de uma universalidade, mas deixando de fora o objeto real, o sujeito em seu sofrimento e em sua situação específica. Esse objeto teórico é o objeto criado pelo discurso da saúde mental e é aqui que encontramos seus porta-vozes, os que se autodenominam especialistas, os dispositivos psi , todos esses ramos que se posicionam como detentores de saberes sobre saúde e doença mental e, portanto. que são considerados capazes de determinar normal e anormal .

Uma cadeira vazia, iluminada por uma luz que incide de cima, as paredes e o chão da sala são acolchoados, com exceção da cadeira a sala não é iluminada, transmite uma sensação de sujeira, abandono e isolamento.

O discurso da saúde mental; a saúde mental se apresenta como um Mestre significativo, comanda a fala e a ação do que se alienou sob seu comando. Sob a ideia de “saúde mental” é como são pensadas nossas ações, nossa maneira de nos relacionarmos, e quem se desvia ainda um pouco daquele caminho traçado pela “normalidade” é marcado como “anormal”, ou seja, em palavras que na minha opinião é algo mais sério … um “paciente mental”.

Um dos problemas mais complexos ao abordar esta questão é pensar sobre qual tratamento é fornecido por esses dispositivos psi.  Encontramos este problema especificado, em que o objetivo de todo tratamento apontaria para um maior “bem-estar” para o sujeito, que isso seria o ideal de trabalho terapêutico ou de tratamento, e essa ideia de bem-estar é determinada pelos profissionais, pela padronização e pela ideia de “normalidade”, porém o bem-estar é relativo em cada caso, então o trabalho deve ser construído segundo o paciente, buscando a invenção de uma “solução” a partir de cada sintoma, de cada sujeito.

Cada tratamento deve considerar o sintoma como o mais particular do sujeito, implica uma forma de comunicar-se com o outro, de envolver a si mesmo e ao outro, é uma forma de desenvolver um discurso, uma mensagem através de uma manifestação sintomática, por isso que um sintoma não pode ser reduzido a uma lista de critérios estabelecidos por um manual de diagnóstico (como  DSM-V ou o ICD-11 mais recente).

É a partir disso que eu gostaria de olhar para uma postura teórica e ética que se tornou relevante na década de 1960, especialmente graças aos trabalhos de David Cooper, Robert Laing, Thomas Szasz e Erving Goffman, sendo isso a antipsiquiatria. Em uma abordagem muito geral, a antipsiquiatria se apresenta como uma corrente radical que descarta os desenvolvimentos psiquiátricos, indo para qualquer ramo encarregado de pensar e agir nas questões relacionadas à saúde mental e à psicopatologia. Na luta contra a estigmatização, parece ir contra todo o trabalho feito por dispositivos psi.

No entanto, podemos pegar algumas ideias levantadas por essa corrente e repensá-las em termos de se pensar as intervenções no campo clínico.

Decidi adotar a abordagem antipsiquiátrica, não por suas críticas aos dispositivos psi como instituição de poder, mas por tomar o sujeito como eixo principal de sua intervenção, voltando ao sujeito em sua particularidade, em seu contexto social, fazendo com seja o protagonista do seu “sofrimento” (se sofre de algo).

Doença mental:

O que significa pensar sobre doença mental? Tem havido muitos debates sobre o que é uma doença mental, se é que pode até ser considerada uma doença, de um nível completamente orgânico. A ideia de uma doença mental é rejeitada pelo fato de que muitas vezes não é possível encontra alterações no sistema nervoso, então apoiado nesta perspectiva em muitos casos é impossível falar em doença mental e mesmo assim encontramos aqueles casos que se desviaram de um comportamento “normal” que apresentam certas ideias ou se expressam de uma forma isto é perturbador do meio em que se encontram pode ser efectuada uma avaliação destes sujeitos sujeitando-os a diversos exames e testes e não encontrando organicamente qualquer anomalia e é apesar disso que são considerados “doentes mentais”.

Com base na abordagem de Thomas Szasz, “nos referimos ao fato de que a pessoa que tem essa condição“ anormal ”procura ou deseja ajuda médica para seu sofrimento e doença. Em outras palavras, o sofredor deseja e deseja ser paciente ” [1]. A doença seria então um papel, um papel que pode ser assumido por si ou designado por outros, dessa forma passamos a abrir o campo para o campo do social e do individual.

Quando se pensa na doença mental como um papel ou lugar que se assume ou se atribui, fica implícito que há outros que fixam um parâmetro ou norma que lhes permite definir o lugar que cada um ocupa entre o saudável e o doentio, saúde mental não seria apenas a norma, mas o ideal e o objetivo que deve ser alcançado e no qual devemos nos manter, esse objetivo é alçado de acordo com as diferentes instituições, com base em um suposto saber, que lhes dá um lugar de poder em relação aos demais, essas instituições designam o local onde estaremos e qual será o procedimento e tratamento que cada um de nós deverá receber.

Este lugar de Poder / Conhecimento é um lugar absoluto, na maioria das vezes indiscutível.

O social para pensar sobre a doença mental

A doença mental se manifesta por meio de atos ou pensamentos dos indivíduos, parte de um ato ou de uma situação completamente singular, porém esta é uma forma muito particular do sujeito lidar com as situações do meio externo, do social.

Através dos sintomas o sujeito procura fazer o seu lugar, elaborar o seu próprio discurso, através dos seus sintomas o sujeito procurará relacionar-se com os outros, com o seu meio e poder conciliar o que não foi possível processar.

Sendo então, a partir desta abordagem, que a psicopatologia (doença mental) pode adquirir um novo estatuto, não mais como deficiência ou impedimento, mas como forma de adaptação.

Existem diferentes abordagens dentro da corrente antipsiquiátrica, cada uma das quais mantém uma posição particular em relação à ideia de doença mental e sobre a qual tratamento ou ação devem ser tomados em relação a esta situação, mas se há um ponto em que convergem as diferentes abordagens de antipsiquiatria é pensar que a condição predominante do adoecimento mental é o meio social, a sociedade como opressora, desenvolvendo diferentes instituições que detêm o poder e subjugam o sujeito, uma sociedade opressora que empurra o indivíduo a buscar novas formas de responder às suas demandas, de alienar a ideais e abordagens normativas.

Alguns autores pensam então na doença mental como uma tentativa de libertação do sujeito, o doente mental passa a ser um “ser livre”, como se lê em Laing, esta abordagem parece ao mesmo tempo romântica e extremista, pois através desta tentativa de libertação o sujeito pode ser “prisioneiro” dos próprios sofrimentos e em certos casos pode ser prisioneiro das instituições, tomando-o como um assunto disruptivo que deve ser “corrigido”.

Berlinguer [2] afirma que o sujeito possui 4 formas de responder às demandas (opressão) do meio social:

  • Integração: sendo essa forma de resposta a de maior funcionalidade, o sujeito consegue conciliar seus desejos individuais com as demandas sociais, o sujeito se “normaliza” permanece dentro dos padrões do cotidiano, o que lhe permite manter relações “adequadas” com as demais, se desenvolvem de forma “satisfatória” em um ambiente social, o que implica em reduzir as frustrações e buscar satisfações socialmente aceitáveis.
  • Fuga: Berlinguer tomou 3 pontos como referência de fuga, o primeiro deles, o suicídio, uma forma de fuga definitiva, onde o sujeito, diante de uma situação intolerável, decide acabar com sua vida, o próximo refere-se a uma forma de fuga que o uso mais frequente de substâncias que modificam a maneira de o sujeito se comportar e se relacionar com o meio (como o uso de drogas), sendo essa fuga uma solução momentânea, que busca apenas apaziguar, mas sem poder dar uma solução definitiva e assim por diante. Ou a despersonalização ou dissociação, onde o sujeito “foge” de sua realidade, dela se afasta, evitando encontrar o intolerável.
  • Transformação artificial da realidade: o sujeito, por meio de diferentes elementos, busca gerar uma mudança em sua situação, Berlinguer retoma aqui o uso de substâncias como álcool ou drogas como elementos que o sujeito pode utilizar para construir uma nova “realidade”, este tipo de transformação é geralmente momentânea, seus efeitos não alcançam uma transformação permanente, então o sujeito deve permanecer em uma tentativa constante de transformar a situação em que se encontra, neste registro eu localizaria as diferentes manifestações psicopatológicas (não apenas episódios dissociativos ), visto que através dos sintomas o sujeito procura enfrentar situações irreconciliáveis, ao invés de uma fuga é uma forma de contornar o que não pode resolver diretamente.
  • Rebelião: uma situação de mudança, que exige organização social, onde o desacordo é maior e o nível de opressão ou demanda não pode ser tolerado, é uma mudança muito mais violenta, que visa a mudança total e permanente da situação.

Berlinguer considera, então, que existe uma relação entre as doenças psíquicas e as situações pré-revolucionárias, uma vez que a doença mental seria então o reflexo da discordância social e da impossibilidade de o sujeito enfrentar as demandas sociais.

De minha parte, não considero a doença mental uma manifestação revolucionária, mas defendo que a doença mental não nos fala apenas sobre o sujeito que a sofre, mas que quando considerada dentro de uma sociedade, a doença nos fala de novas formas de interagir com os outros nos permite pensar nas dificuldades que existem para se adaptar às novas demandas e necessidades, a doença mental é então uma doença social, de uma época, novas formas de sofrimento se atualizam e evoluem.

A saúde mental seria então um problema político e social.

Diagnóstico e classificação

O diagnóstico tem gozado de um lugar privilegiado no discurso psiquiátrico, pois é a partir desta categoria que se pensará o tratamento, o prognóstico de cada paciente, o diagnóstico desloca o sujeito em sua totalidade e deixa o sujeito de lado. Diga-me quando posso resumir todo o seu sofrimento em alguns critérios?

Um diagnóstico ajusta-se perfeitamente ao modo de querer que nos foi imposto a nível cultural, queremos tudo rápido, queremos saber, mas não queremos pensar, que alguém me diga que eu sofro e como faço para livrar-me dele …? De modo que quando um Manual pode me indicar. A psicanálise tem resistido a esses modos, tem se mantido e tem lutado para manter o lugar do sujeito, para permitir que ele faça (a si mesmo) um discurso que possa enunciar o seu próprio sofrimento ( se ele sofre), o que o médico pensa de mim? Pouco importa, quem sabe de si mesmo, do próprio sofrimento, é o assunto … embora as poucos na hora que ele saiba, que ele saiba.

O que acontece quando intervimos pensando no diagnóstico, quando abordamos um critério e não um assunto? O diagnóstico pode chegar a se tornar um preconceito, um rótulo para o sujeito, encerrá-lo em uma classificação, então deixamos de lado o que caracteriza cada sujeito, o que o torna único.

Instituições

O trabalho das instituições psiquiátricas ou encarregadas de lidar com “doenças mentais” sempre esteve envolvido em todo tipo de polêmica, com práticas violentas, desde o confinamento às terapias de eletrochoque (terapia eletroconvulsiva), porém essas instituições sempre foram objeto de fantasias no imaginário social, sempre com a pergunta “O que se passa por trás daquelas portas?”, e neste ponto vale abrir um parêntese para lembrar que este ano marca o 50º aniversário do encerramento da Castañeda, falava-se que a instituição iria fechar e junto com ela os horrores cometidos atrás de suas portas, mas o que talvez não se pensasse naquela época era que certas instituições se tornariam suas herdeiras, como o hospital Samuel Ramírez Moreno,onde até hoje podemos encontrar alguns dos residentes do chamado “palácio da loucura”.

As instituições psiquiátricas, na minha opinião, hoje poderiam ser consideradas instituições de inclusão e exclusão: incluem o sujeito dentro de suas instalações, abrem espaços que o sujeito pode fazer uso, que ele tem e pode ir, o sujeito então é “incluído “no grupo dos loucos, dos doentes mentais, ao mesmo tempo em que no plano social adquire um lugar, mesmo que seja como o“ indesejado ”, enquanto isso acontece o sujeito é excluído do meio externo, ele é separado do social, sua possibilidade de relacionamento se reduz ao que a instituição lhe permite dentro das instalações.

Basaglia afirma que tanto a prisão como a instituição psiquiátrica (asilo) procuram confinar os sujeitos que se desviaram da norma, cujo comportamento se desviou do convencional e representam um “risco” para outrem, esta salvaguarda do outro passa a encobrir-se sob a ideia de proteger o sujeito de suas próprias ações. Atualmente, as instituições psiquiátricas são geridas de uma forma que não permite um reclusão superior a 3 meses (com algumas exceções), mas ainda aponta para uma “normalização”, para a reforma do assunto. Ambos são, então, instituições normativas .

No caso do paciente psiquiátrico os seus sintomas são a sua forma de adaptação, é a forma que encontraram para enfrentar a sua situação, retirá-los dos seus sintomas é desajustá-los, desalinhá-los, então a forma de abordar o trabalho é ir à busca da construção de uma nova solução, uma nova solução que deve se sustentar na singularidade daquele sujeito.

Sujeito

Para onde direcionar os tratamentos então? Ele não faz um objeto de estudo, ele não faz um diagnóstico, mas ele faz o sujeito; faz um sujeito coadjuvante , que é aquele que está inserido em uma estrutura pré-existente, como o social, a cultura, a linguagem; sendo este aquele que se inseriu no lugar que lhe foi atribuído e que é ao mesmo tempo efeito e causa daquelas estruturas, querer intervir apenas sobre um sintoma é esforçar-se em vão, é deixar de fora qualquer consideração às condições em que essa pessoa se desenvolve.

O sujeito é causa de múltiplos discursos, reduzindo-o a um único discurso, o da saúde mental, seria apenas focar nele através de uma parcialidade, focar no sintoma, mas não na causa.

O trabalho que deve ser realizado nas instituições de saúde mental deve trabalhar direcionado a um sujeito, não a um organismo, o organismo refere-se à parte anatômica, enquanto o sujeito é fruto de diferentes discursos sociais, culturais e até familiares, o sujeito se constrói daquilo que antecede o indivíduo, se constrói a partir da estrutura que o precede e o acolhe, então trabalhar com o sujeito é trabalhar com a cultura.

Portanto, a proposta de trabalho em saúde mental não pode se reduzir a hospitais e consultórios especializados, o trabalho a ser feito fora, considerando as condições do ambiente em que nos desenvolvemos, por isso considero relevante retornar à antipsiquiatria como forma de trabalho, uma vez que isto permite-nos perceber que é inútil focar num sintoma ou critério diagnóstico se não prestamos atenção à pessoa, se deixamos de olhar o que está à sua volta, só assim podemos começar a dar o passo seguinte, inclusão.


[1] Franco Basaglia, et. Al (2013) Razão, loucura e sociedade. Ed. Siglo XXI, México.

[2] Berlinguer, Giovanni. Psiquiatria e poder. Granica

* Não compartilho o uso do termo “doença mental” por considerá-lo patologizante, estigmatizante e prejudicial, porém, o conceito foi preservado, visto que os autores aqui discutidos se referem a ele, a intenção é colocar o conceito “em cima da mesa, “para poder debatê-lo e questioná-lo.

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Publicado originalmente no Mad in Mexico.  Clique → para o texto original.

Ressonâncias da (re) Medicalização e as Famílias Contemporâneas

As significativas transformações observadas na configuração familiar contemporânea suscitam cada vez mais reflexões. Mudanças na arquitetura da família, na sua dinâmica e na distribuição dos papéis dos seus membros expressam como ela vem se transformando profundamente. Entre tais mudanças, podemos destacar o declínio do patriarcado e da heteronormatividade, as questões relativas à autoridade, a democratização das relações familiares, entre tantas outras que despertaram possibilidades e rupturas em relação à concepção de família de outrora.

Especificamente nas últimas décadas, as formas de constituição familiar têm surpreendido tanto pela polivalência de expressões como pelo aumento da complexidade de suas relações. Embora as metamorfoses da família venham ocorrendo com certa rapidez, elas são fruto de signos culturais engendrados ao longo da história, construídos e reformulados paulatinamente de acordo com cada época e cultura. Os deslocamentos de lugares e funções de cada membro da família, assim como a determinação de um espaço privilegiado da criança tiveram implicações na trama e afetiva entre os indivíduos (Passos, 2015). Se, por um lado, a família assumiu diferentes facetas na atualidade, por outro, ela permanece sendo uma matriz de significado para o sujeito. Concomitantemente a essas transformações, ocorre um processo global progressivo de medicalização da existência (medicalização da morte, do nascimento, da aprendizagem, do sono, da sexualidade, da maternidade etc.) que se apresenta como um importante fator com sérias repercussões na constituição da subjetividade dos membros da família. A noção de medicalização refere-se à expansão da jurisdição da medicina para novos domínios que não eram médicos, sobretudo a problemas considerados de ordem moral, legal ou criminal. O termo medicalização faz referência a esse processo que se caracteriza pela função política da medicina, pela extensão indefinida e sem limites da intervenção do saber médico.

Há uma associação intrínseca entre o discurso médico e o discurso moral. Detectar indicadores das anormalidades e da delinquência constituem a própria história da psiquiatria

Segundo Lasch (1991), a partir da década de 50 a psiquiatria americana reformulou suas pretensões com uma imperial falta de modéstia. Os psiquiatras demandavam uma mobilização mundial do seu domínio (Sullivan, 1949) contra a guerra, os conflitos de classes, a ansiedade individual e a trágica epidemia de conflitos. A psiquiatria alcançou o status de uma ciência social configurando-se como sucessora da religião e de crenças ultrapassadas, superstições, ortodoxias absolutistas e filosofias massificadas. Os psiquiatras já não se propunham simplesmente a curar pacientes, mas pretendiam mudar padrões culturais (Lasch, 1991).

Conforme Farber (1956), o psiquiatra traduziria tudo o que é humano em termos médicos de enfermidade e, desse modo, assumiria um pesado fardo de responsabilidade: a própria moralidade.

Com Lasch (1991) pensamos que a família, o principal agente de socialização, desempenha um importante papel na reprodução de padrões culturais. Assim, ela não apenas confere normas éticas que proporcionam à criança sua primeira instrução sobre as regras sociais predominantes, mas também molda profundamente a subjetividade infantil utilizando vias das quais nem sempre se tem consciência. Os pais encarnam o amor e ao mesmo tempo o poder, transmitindo à criança, de forma totalmente independente das suas intenções manifestas, os preceitos e as obrigações mediantes as quais a sociedade se organiza. Desse modo, a família é um dispositivo crucial na transmissão da cultura.

Logo, a família medicalizada (ou remedicalizada) configura-se hoje como agente de normalização, como princípio de determinação, de discriminação da sexualidade e ainda como princípio de correção do suposto “anormal”. Os pais ficaram com a missão de serem capazes de diagnosticar as doenças de seus filhos assim como fazem os terapeutas ou agentes de saúde. Entretanto, esse controle familiar deve estar sempre submisso à intervenção do saber biomédico (Caliman, 2016). Intervenções médicas e medicamentosas tornaram-se sinônimos de preocupação e cuidado.

Como uma tendência global que atravessa localmente os nossos modos de existir, os processos de medicalização da vida têm estreita relação com um pensamento autoritário que estabelece comparações regidas pela normalização da existência. A existência normalizada reduz a pluralidade de condutas e modos de estar no mundo a critérios biológicos e externalistas, como a performance e a aparência. Assim, nos processos de medicalização, vemos que o cuidado está atrelado a um saber/fazer que têm a norma como parâmetro central (Caliman, 2016).

Vasquez-Valencia (2016) aponta para a existência de um movimento de higiene mental que se desenvolveu a partir da segunda década do século XX, cujo início se deu concretamente nos Estados Unidos. Segundo a autora, a higiene mental desenvolveu um discurso sobre a criança orientado para a prevenção, a saúde pública, o bem-estar e as políticas educativas que legitimaram a intervenção médica na esfera privada, especialmente, nas relações familiares. Baseando-se em critérios científicos, procurou-se identificar e determinar diversas etapas do progresso fisiológico e psicológico normal dos indivíduos, assim como contribuir para o controle da delinquência juvenil através de uma psiquiatrização da inadaptação infantil ao ambiente familiar, escolar e social (Richardson, 1989).

Ora, se por um lado é inegável os avanços tecnológicos na contemporaneidade, por outro, o desenvolvimento biológico não explica a emergência do sujeito e nem responde à pergunta: como nos tornamos quem somos?

Para Levy (2013), entre as transformações sofridas pela família atual pode-se sublinhar: a substituição do poder paterno por uma autoridade compartilhada; a disjunção entre parentalidade e conjugalidade; a desconexão da filiação e do parentesco em relação à realidade biológica. Assim, o biológico e o conjugal deixam de ser parâmetros fundamentais na definição de parentalidade.

As novas configurações familiares sinalizam as mudanças no funcionamento da família. A renegociação de posições e papéis na família sofreu influência de modelos igualitários e democráticos, transformando a estrutura familiar em uma espécie de rede fraterna, na qual a hierarquização e a autoridade tendem a ser constantemente questionadas (Giddens, 1993).

No início da década de 60, as investigações de Bateson sobre famílias influenciaram outros pesquisadores que se debruçavam sobre o tema. Especificamente, em 1956, no texto “Hacia uma teoria de la esquizofrenia”, Bateson, Jackson, Haley & Weakland propuseram que sintomas esquizofrênicos poderiam ser desencadeados por fatores não-biológicos. Segundo essa proposta, algumas famílias favoreceriam o surgimento de sintomas tipo esquizofrênicos em função de fatores comunicacionais (verbais e não verbais). A partir desse estudo, foi delineada a noção de “duplo vínculo”, cuja presença seria determinante para a eclosão de sintomas esquizofrênicos. Com efeito, a perspectiva de Bateson destaca-se por sua rejeição ao modelo normativo sobre a “saúde” ou a “doença” de uma pessoa ou família.

Segundo Bateson (1977):

“Na teoria do duplo vínculo não existe o pressuposto básico de que o estabelecimento da esquizofrenia seja algo mau. Assim, a teoria não é normativa e, menos ainda, pragmática. Não é sequer uma teoria médica, se é que isso existe. Posso até conceder que a esquizofrenia seja tanto uma “doença” que afeta o cérebro quanto uma “doença” que afeta a família, se o Dr. Stevens conceder que humor e religião, arte e poesia são tantas outras “doenças” que afetam o cérebro, ou a família, ou a ambos” (p. 231).

O duplo vínculo foi concebido por Bateson e cols. (1956) a partir de uma teoria sobre a esquizofrenia baseada na análise das comunicações, especificamente, na teoria dos tipos lógicos.  De acordo com esta teoria, na situação de duplo vínculo, o indivíduo encontra-se preso em uma situação da qual não pode fugir, em geral, uma situação familiar. Assim, conforme a proposta da teoria do duplo vínculo, o problema não se encontra localizado e reduzido ao indivíduo, mas implica de modo abrangente o contexto no qual o indivíduo encontra-se inserido e do qual não pode escapar. O pensamento de Gregory Bateson (1956) pode ser concebido como uma proposta desmedicalizante que buscou fazer face à perspectiva normalizante e potencializou a multiplicidade discursiva.

Em tempos atuais, testemunhamos a difusão do discurso médico tanto nas famílias como nas escolas e no judiciário, colocando em marcha um mecanismo que conecta e articula a medicalização com a judicialização das relações familiares. Esta articulação relega a estas instituições um papel normalizador, normatizador, silenciador da diferença e dos discursos a partir dos quais um sujeito poderá advir. Nesse sentido, podemos supor que as famílias contemporâneas, apesar de plurais e multifacetadas, têm sido convocadas a assumir uma posição normativa/normalizadora fomentada pelo processo de medicalização.

Referências

Bateson, G., Jackson, D. D., Haley, J., & Weakland, J. (1956). Toward a theory of schizophrenia. Systems Research and Behavioral Science1(4), 251-264.

Bateson, G. (1977). Play and paradigm. The Association for the Anthropological Study of Play Newsletter4(1), 2-8.

Caliman, L. (2016). Infâncias medicalizadas: para quê psicotrópicos para crianças adolescentes?. In: S. Caponi, M. F. Vásquez-Valencia & M. Verdi (Orgs.), Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância (pp.47- 60). São Paulo: LiberArs.

Elkaïm, M. (1998). Panorama das terapias familiares 1. São Paulo: Summus.

Giddens, A. (1993). A transformação da intimidade sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Unesp.

Lasch, C. (1991). Refúgio num mundo sem coração. Rio de Janeiro: Ed. Paz & Terra.

Passos, M. C. (2015). Vicissitudes do tempo na formação dos laços familiares. In: Féres-Carneiro, T. (org.) Família e casal: parentalidade e filiação em diferentes contextos. Rio de Janeiro: Ed. PUC- Rio.

Richardson, T. (1989). The century of the child: the mental hygiene movement and social policy in the United States and Canada. Albany, United States of America : State University of New York Press.

Vásquez-Valencia, M. F. (2016). A personalidade doente: higiene mental e medicalização da infância. In: Sandra Caponi, Maria Fernanda Vásquez-Valencia & Marta Verdi (Orgs.), Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância (pp.47- 60). São Paulo: LiberArs.

BMJ: 20% da Pesquisa em Saúde é Fraudulenta

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The businessman wearing mask in hypocrisy concept

Em um novo artigo de opinião no BMJ, Richard Smith argumenta que “pode ter chegado o momento de parar de supor que a pesquisa realmente aconteceu e é honestamente relatada, e assumir que a pesquisa é fraudulenta até que haja alguma evidência que comprove que ela aconteceu e foi honestamente relatada”.

Smith, que foi o editor do BMJ até 2004, tem sido um incansável lutador pela ética na pesquisa científica. Ele foi co-fundador do Comitê de Ética Médica (COPE), presidiu o Comitê de Supervisão da Biblioteca Cochrane, e fez parte da diretoria do Escritório de Integridade de Pesquisa do Reino Unido.

Smith escreve que cerca de 20% das pesquisas em saúde são fraudes, de acordo com dados recentes do pesquisador Ben Mol.

Foto de um homem de terno usando uma máscara em uma mesa com um computador e uma pilha alta de papelada

Smith continua descrevendo o caso de Ian Roberts, que soube que uma revisão que ele co-autorizou incluiu dados de estudos que na verdade nunca aconteceram.

The businessman wearing mask in hypocrisy concept

“Todos eles tinham um autor principal que supunha vir de uma instituição que não existia e que se matou alguns anos depois. Os ensaios foram todos publicados em prestigiosas revistas de neurocirurgia e tiveram múltiplos co-autores. Nenhum dos co-autores tinha contribuído com pacientes para os ensaios, e alguns só sabiam que eram co-autores depois que os ensaios foram publicados. Quando Roberts contatou uma das revistas, o editor respondeu que “eu não confiaria nos dados”. Por que, perguntou Roberts, ele publicou o ensaio? Nenhum dos ensaios foi retirado”.

Smith também cita um estudo do ano passado de J. B. Carlisle, que examinou os estudos publicados na revista Anaesthesia. Usando estudos que forneceram dados individuais de pacientes, Carlisle pôde determinar que 44% incluíam dados falsos. Carlisle escreveu: “Acho que as revistas devem assumir que todos os artigos submetidos são potencialmente defeituosos e os editores devem revisar os dados individuais dos pacientes antes de publicar ensaios controlados aleatórios”.

De acordo com Smith, “muito poucos destes trabalhos são retratados”. Assim, artigos com dados falsificados compõem uma grande parte da literatura de pesquisa, e pode ser difícil para um leitor saber se deve confiar em um estudo, mesmo que este seja publicado em uma revista respeitada.

Smith escreve que a revisão por pares – a etapa chave para a verificação da qualidade na publicação de um artigo de pesquisa – não detecta dados falsificados. Revisores e editores começam com a suposição de que os dados são reais e geralmente não são inventados.

E não há incentivo para que as revistas ou instituições acadêmicas detectem fraudes, retratem estudos fraudulentos ou punam os responsáveis. Os periódicos podem achar sua reputação prejudicada se se souber que publicaram estudos fraudulentos. As instituições acadêmicas enfrentam um risco semelhante, mas também querem proteger seus pesquisadores, que trazem dinheiro de subsídios para a escola (às vezes em milhões de dólares).

Pior ainda, é difícil provar quando um estudo utiliza dados fraudulentos. Em muitos casos, outros pesquisadores não têm acesso aos dados individuais, e mesmo que tenham, é necessário muito trabalho para procurar números com aparência suspeita.

Smith escreve: “Os reguladores muitas vezes não têm a legitimidade legal e os recursos para responder ao que é claramente uma fraude extensa, reconhecendo que provar que um estudo é fraudulento (em oposição a suspeitar que seja fraudulento) é um processo hábil, complexo e demorado”.

Uma solução parcial que disponibiliza todos os dados ao público para que outros pesquisadores possam verificar o trabalho. Outra solução parcial é a lista de verificação REAPPRAISED (descrita aqui), que faz perguntas como quem financiou o trabalho, quão clara é a metodologia e se há algo suspeito sobre onde o estudo foi realizado ou sobre o processo de recrutamento dos participantes. Por exemplo, se as datas dadas para os participantes recrutados não coincidirem ou parecerem muito curtas ou muito longas, isso pode ser um indicador de que os dados foram inventados.

Smith escreve que, no passado, “as autoridades de pesquisa insistiam que a fraude era rara, não importava porque a ciência era auto-corretora, e que nenhum paciente tinha sofrido por causa da fraude científica”. Todas essas razões para não levar a sério a fraude na pesquisa provaram ser falsas”.

Ele acrescenta: “Estamos percebendo que o problema é enorme, o sistema encoraja a fraude e não temos uma maneira adequada de responder”. Talvez seja hora de passar do pressuposto de que a pesquisa foi conduzida honestamente e relatada para o pressuposto de que não é confiável, até que haja alguma evidência em contrário”.

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Smith, Richard. “Time to assume that health research is fraudulent until proven otherwise?”, the BMJopinion, july, 5, 2021.

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N.E. Richard Smith foi o editor do BMJ até 2004.  Confira mais matérias interessantes escritas por ele, clicando aqui →

Regulamentos Necessários para Proteger a Privacidade e a Autonomia das Ferramentas Psiquiátricas Digitalizadas

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Surveillance camera with digital world

Embora o conhecimento digitalizado e a tecnologia da informação tenham melhorado a eficiência nos campos médicos, a falta de processos regulatórios em torno do fenótipo digital e do neuromarketing ameaça a privacidade e a autonomia individual, representando sérias ameaças à democracia.

Em um novo artigo publicado em Frontiers in Psychiatry, o autor principal Hossein Akbarialiabad elabora a natureza dessas ameaças em termos de iniciativas psiquiátricas globais e faz sugestões para se reduzir os danos das conseqüências involuntárias da digitalização.

As ferramentas digitais têm sido utilizadas como um meio para superar as barreiras sistêmicas no aumento da assistência à saúde mental, fechando a chamada “lacuna de tratamento“. Os cuidados de saúde digitais são mais baratos, muitas vezes mais acessíveis, e oferecem mais flexibilidade e escolha aos pacientes e usuários dos serviços. Os serviços de telesaúde expandiram-se drasticamente durante a pandemia da COVID-19. Como os autores observam:

“O uso dessas tecnologias melhorou a liberdade, eficácia e flexibilidade na comunicação para pacientes e médicos em todo o mundo”. Por outro lado, vários estudos mostraram que as aplicações digitais de saúde mental podem alienar alguns e aumentar a ansiedade e o estresse de alguns clientes, incluindo o medo de recaída e até mesmo o pensamento paranóico”.

Surveillance camera with digital world

As preocupações que continuam a não ser abordadas incluem o aumento da vigilância através do uso dos chamados aplicativos de saúde mental como Mindstrong; violação da privacidade, confidencialidade e autonomia dos pacientes; e minar a agência dos pacientes ao usar os dados dos pacientes para outros fins que não os consentidos por eles.

Fenotipagem digital e neuromarketing fornecem dois exemplos do potencial da digitalização de serviços de saúde mental para prejudicar os usuários dos serviços.

A fenotipagem digital visa detectar e categorizar o comportamento, atividades, interesse e características psicológicas de um indivíduo para personalizar adequadamente as futuras comunicações ou cuidados mentais para esse indivíduo.

O Neuromarketing utiliza dados da(s) resposta(ões) neuronal(ais) de um indivíduo para estimular a pessoa a comprar mercadorias. O Neuromarketing também é usado para moldar a opinião de um indivíduo na tomada de decisões de consumo, sociais ou políticas. O Neuromarketing apresenta assim uma clara ameaça tanto à autonomia pessoal quanto, de modo mais geral, à democracia. Como argumentam os autores:

“A interseção do fenótipo digital com o neuromarketing digital pode ser perigosa e pode potencialmente levar ao que podemos chamar de ‘capitalismo de vigilância digital'”.

Esta vigilância intensificada e mais invasiva representa ameaças óbvias à privacidade, liberdade, autonomia e democracia. Para minimizar essas ameaças e, ao mesmo tempo, manter os benefícios da virada digital na área da saúde, os autores fazem as seguintes recomendações:

Primeiro, precisamos de uma avaliação técnica e pública das tecnologias e meios de comunicação antes do lançamento – novas tecnologias para uso na área da saúde devem ser estudadas e avaliadas antes da implementação generalizada.

Segundo, os processos regulatórios devem ser implementados, com protocolos de monitoramento cuidadoso, antes da implementação de novas tecnologias.

Terceiro, medidas políticas devem estar em vigor para garantir que cada ferramenta digital seja transparente sobre os usos potenciais dos dados dos usuários.

Quarto, os autores sugerem que devemos assegurar a conscientização e educação pública sobre aplicações digitais através, por exemplo, de programas educacionais liderados por programas de saúde pública, ONGs e ativistas de direitos humanos.

E, finalmente, deveríamos coletar informações fiscais para empresas gigantes para modular a tendência atual de compilação de grandes quantidades de dados de consumo. A este ponto, os autores sugerem que “tais impostos devem ser usados para a educação pública em direção a soluções de saúde eletrônica sustentáveis e éticas para fortalecer o sistema de saúde em ambientes de poucos recursos”.

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Akbarialiabad, H., Bastani, B., Taghrir, M. H., Paydar, S., Ghahramani, N., Kumar, M. (2021) “Threats to Global Mental Health From Unregulated Digital Phenotyping and Neuromarketing: Recommendations for COVID-19 Era and Beyond.” Frontiers in Psychiatry 12:713987. DOI: 10.3389/fpsyt.2021.713987 (Link)

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