Diagnósticos Falsos Ocultam Altas Taxas de Drogadição em Lares de Idosos

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Matéria do The New York Times.  Nos Estados Unidos, de cada 10 idosos vivendo em lares para idosos pelo menos 2 estão tomando antipsicóticos. A pergunta que não pode deixar de ser feita: Como é a situação dos idosos aqui no Brasil?

“Os medicamentos antipsicóticos – que durante décadas enfrentam críticas por serem ‘camisas de força químicas‘ – são perigosos para pessoas idosas com demência, quase dobrando suas chances de morte por problemas cardíacos, infecções, quedas e outras enfermidades. Mas os lares com pouco pessoal têm usado com freqüência os sedativos para que não tenham que contratar mais pessoal para lidar com os residentes.”

Os riscos para os pacientes tratados com antipsicóticos são tão altos que os lares devem informar ao governo quantos de seus residentes estão tomando esses medicamentos potentes. Mas há uma importante ressalva: o governo não divulga publicamente o uso de antipsicóticos dados aos residentes com esquizofrenia ou duas outras condições.”

“(…) “As pessoas não acordam com esquizofrenia apenas quando são idosas”, disse o Dr. Michael Wasserman, um geriatra e um ex-executivo de lares que se tornou crítico da indústria. “É usado para contornar as regras”.

“(…) Para as casas de repouso, o dinheiro está em jogo. Altas taxas de uso de drogas antipsicóticas podem prejudicar a imagem pública de um lar e a classificação de estrelas que ele recebe do governo. A Medicare projetou o sistema de classificação para ajudar os pacientes e suas famílias a avaliar as instalações usando dados objetivos; uma classificação baixa pode ter grandes conseqüências financeiras. Muitas instalações encontraram maneiras de esconder problemas sérios – como pessoal inadequado e cuidados aleatórios – de auditorias e inspetores do governo.”

Leia a matéria na íntegra →

SETEMBRO AMARELO E ALGUNS MITOS DO MODELO BIOMÉDICO DA PSIQUIATRIA

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Desde 2014, a Associação Brasileira de Psiquiatria – a ABP, em parceria com o Conselho Federal de Medicina – CFM, organiza nacionalmente o chamado Setembro Amarelo. O dia 10 deste mês é, oficialmente, o Dia Mundial da Prevenção ao Suicídio. Conforme o que está dito na homepage da campanha, ​“são registrados mais de 13 mil suicídios todos os anos no Brasil e mais de 01 milhão no mundo. Trata-se de uma triste realidade, que registra cada vez mais casos, principalmente entre os jovens. Cerca de 96,8% dos casos de suicídio estavam relacionados a transtornos mentais. Em primeiro lugar está a depressão, seguida do transtorno bipolar e abuso de substâncias”.

Uma campanha da maior importância. Prevenir o suicídio é uma tarefa de cada um de nós, de toda a sociedade. Como bem é dito, “a campanha acontece durante todo o ano”.

Enquanto profissional de saúde mental, e muito particularmente enquanto pesquisador do campo, eu gostaria de usar este espaço para analisar alguns pressupostos que fazem parte do senso-comum e que considero como “mitos”, senão considerações que cientificamente carecem de evidências científicas. Um alerta: em tempos de negacionismo, o meu compromisso aqui é buscar, na medida do possível, orientar as minhas reflexões a partir das evidências científicas disponíveis.

  1. Mito 1: os antidepressivos são mais eficazes do que as psicoterapias

Os médicos em geral, os psiquiatras em particular, são orientados a seguir as diretrizes oficiais, no nosso caso as orientações da ABP. São as mesmas recomendadas pela Associação Psiquiátrica Americana (APA), para dar um exemplo. O que é dito é que enquanto a psicoterapia é suficiente para tratar depressão leve, os medicamentos antidepressivos devem ser usados para tratar depressão grave no contexto de um transtorno depressivo maior. Não obstante, ao contrário das orientações oficiais, há provas significativas da eficácia a longo prazo da psicoterapia, e que a psicoterapia também oferece uma boa relação custo-benefício.  Senão, examinemos evidências científicas encontradas em estudos científicos.

Tomemos como ponto de partida um grande ensaio de controle randomizado publicado em The Lancet em janeiro de 2016.  E o que é o recomendado pelos pesquisadores? É que os clínicos encaminhem todos os pacientes com depressão resistente ao tratamento à psicoterapia.

Nesse estudo foi examinado um modo particular de psicoterapia, a Terapia Cognitiva Comportamental (TCC), que pesquisas anteriores já haviam mostrado ser um tratamento particularmente eficaz para a depressão. Os pesquisadores explicam que a TCC “ensina aos pacientes habilidades para ajudá-los a administrar melhor o seu humor, e por isso tem o potencial de resultar em um benefício que é sustentado além do final da terapia“. Embora a TCC tenha sido testada e considerada eficaz para a depressão, incluindo a depressão resistente ao tratamento, poucos estudos haviam antes rastreado os resultados a longo prazo desta abordagem – como agora foi feito pelo estudo em tela.

Que você leitor observe que o foco deste estudo é a depressão resistente. A depressão resistente ao tratamento, também conhecida como “depressão refratária”, “depressão crônica” e “depressão difícil de tratar”, é comumente definida pela incapacidade de responder a dois antidepressivos diferentes. As pesquisas anteriores já haviam indicado que aproximadamente 60% dos pacientes não respondem aos antidepressivos e que, portanto, a “resistência ao tratamento” pode ser melhor caracterizada como um “fracasso do paradigma” de diagnóstico.

Faço um parênteses para chamar a atenção para um outro estudo, desta vez é uma análise publicada na JAMA, em novembro de 2015, que descobriu que “pacientes com depressão mais grave não eram mais propensos a precisar de medicamentos para melhorar do que pacientes com depressão menos grave“. O mesmo estudo também havia sugerido que a TCC poderia ser usada como tratamento de primeira linha eficaz para pacientes com depressão severa.

Voltemos ao estudo publicado em The Lancet. O estudo tomou como base os dados de um acompanhamento (follow-up) de longo prazo que constam do CoBalT trial – um ensaio de controle aleatório pragmático e multicêntrico entre setenta e três centros de tratamento no Reino Unido. Investigou-se a terapia cognitivo-comportamental como terapia adjunta aos antidepressivos para depressão resistente ao tratamento. Os autores do estudo CoBalT estimaram que “dois terços das pessoas com depressão não respondem totalmente aos antidepressivos, mesmo após uma dose e duração adequadas do tratamento“.

O objetivo dos pesquisadores foi de “examinar se a TCC (além dos cuidados habituais que incluíam farmacoterapia) era eficaz e econômica para reduzir os sintomas depressivos e melhorar a qualidade de vida a longo prazo (3-5 anos), em comparação com os cuidados habituais, apenas em pacientes em cuidados primários“.

Após receber 12-18 sessões de TCC, os pacientes foram solicitados a responder a um questionário pelo correio, avaliando seus sintomas depressivos durante os próximos três a cinco anos. Depois de controlar as diferenças demográficas e outros potenciais elementos intervenientes, os pesquisadores descobriram que os participantes que receberam terapia tiveram significativamente menos sintomas depressivos no acompanhamento.

Aqueles que receberam TCC também estavam mais propensos a experimentar remissão, a relatar redução da ansiedade e a mostrar maior melhora na saúde mental em geral. Além disso, aqueles que receberam terapia estavam menos propensos a tomar antidepressivos nas 46 semanas.

Para avaliar a relação custo-eficácia da TCC, os pesquisadores obtiveram registros de dados sobre os recursos de saúde e estimaram o custo dos serviços de saúde para os participantes durante o período de acompanhamento. Foi estimado que o custo médio por paciente para a intervenção da TCC foi de £343 (trezentos e quarenta e três libras), enquanto os custos dos serviços de saúde e sociais foram mais altos no grupo de atendimento habitual a longo prazo.

Um outro estudo que vale a pena ser aqui destacado foi uma extensa revisão sistemática dos tratamentos para a depressão grave, que fez com que o Colégio Americano de Médicos emitisse uma recomendação aos clínicos sugerindo a terapia cognitiva comportamental (TCC) como um tratamento de primeira linha para transtornos depressivos graves, juntamente com antidepressivos de segunda geração. Os resultados da revisão revelaram que psicoterapia e os antidepressivos têm níveis similares de eficácia.  O Colégio Americano de Médicos analisou ensaios de controle randomizado de 1990 a 2015 para quatro abordagens diferentes para o tratamento dos sintomas relacionados a transtornos depressivos graves. As abordagens incluem psicoterapia (TCC, terapia interpessoal e terapia psicodinâmica), medicina alternativa (erva de São João, yoga, acupuntura, ômega 3s, meditação), exercício e farmacoterapia. Enquanto as evidências disponíveis mostraram que os antidepressivos tinham maior eficácia do que ômega 3s e escitaloprám, não houve diferença na resposta entre antidepressivos e terapia interpessoal, terapia psicodinâmica, acupuntura, erva de São João, yoga, exercício, ou TCC.

Este estudo faz o alerta de que os antidepressivos apresentam graves efeitos colaterais e taxas mais altas de recaídas, o que não ocorre com a TCC e as psicoterapias em geral. “Embora [os antidepressivos de segunda geração] sejam frequentemente prescritos inicialmente para pacientes com depressão, a TCC é uma abordagem razoável para o tratamento inicial e deve ser fortemente considerada como um tratamento alternativo aos antidepressivos, quando aquele tratamento estiver disponível”, concluíram os pesquisadores.

Embora a TCC seja a modalidade de psicoterapia analisada nesses estudos acima mencionados, não se pode dizer que seja a mais eficaz em comparação com as diversas outras psicoterapias.  Não é por acaso que no Reino Unido há o programa do NHS, o chamado Programa para adultos que melhoram o acesso a Psicoterapias (Adult Improving Access to Psychological Therapies Programme) – IAPT. Conforme o que o próprio NHS diz na homepage do Programa, “começou em 2008 e transformou o tratamento de transtornos de ansiedade e depressão em adultos na Inglaterra. O IAPT é amplamente reconhecido como o programa mais ambicioso de psicoterapias do mundo e só no ano passado mais de um milhão de pessoas acessou os serviços do IAPT para ajudar a superar sua depressão e ansiedade, e administrar melhor sua saúde mental.” São diversas as psicoterapias disponiblizadas pelo Programa.

Sabe-se que entre os problemas mais graves com o uso de antidepressivos é que seus usuários, quando em uso em médio e longo prazos, têm muitas dificuldades para viver livres das drogas antidepressivas. Daí que o recomendado seja o uso o mínimo possível do tratamento psicofarmacológico. O que reforça, inequivocamente, o papel essencial das psicoterapias.

Os problemas com a retirada dos antidepressivos, há muito negada e ignorada pela comunidade psiquiátrica, está agora na linha de frente do debate científico. Numerosos entidades médicas oficiais e até mesmo psiquiatras renomados têm apontado para os efeitos adversos e duradouros que podem ocorrer quando se descontinua o uso de antidepressivos. Por exemplo, o Royal College of Psychiatry divulgou recentemente uma declaração sobre a dependência severa e duradoura.

Quando é seguro fazer a descontinuação dos medicamentos antidepressivos? Eis aí um grande desafio. Se os medicamentos evitassem recaídas, então pará-los poderia levar a um retorno das experiências (como no caso a depressão) que fizeram a pessoa procurá-los em primeiro lugar. Mas um novo estudo – publicado na revista de primeira linha JAMA Psychiatry – descobriu que a psicoterapia é tão boa na prevenção de recaídas quanto a continuação dos antidepressivos. “Esta meta-análise dos dados individuais dos participantes sugere que a realização de uma intervenção psicológica enquanto um paciente é submetido a um tratamento com antidepressivos pode ser uma alternativa ao uso de antidepressivos a longo prazo no tratamento da depressão recorrente“, os pesquisadores escrevem.

Concluindo essas reflexões ao que chamei de Mito 1. Se estamos empenhados de fato a uma reforma da Assistência em Saúde Mental, é vital o desenvolvimento e o fortalecimento das psicoterapias e das abordagens psicossociais em geral. O tratamento psicofarmacológico em geral tem a tendência condenar os seus usuários a um menos-ser. O tratamento psicofarmacológico tende a produzir mudanças no cérebro que podem ser irreversíveis.

  1. Mito 2: os antidepressivos previnem o suicídio

O senso-comum é que os antidepressivos ajudam a prevenir o suicídio. Embora as evidências científicas sugiram exatamente o contrário.

De fato, são inúmeros os estudos que mostram que os antidepressivos são um forte contribuinte para o suicídio. A respeito, recomendo fortemente a leitura do estudo produzido pelo jornalista estadunidense Robert Whitaker, com o título sugestivo Suicídio na Era do Prozac. Como o texto do Whitaker é sustentado por inúmeras evidências, considero desnecessário me deter na análise deste tópico. Não deixem de ler cuidadosamente esse artigo do Whitaker, por favor.

O que eu posso acrescentar? A campanha do Setembro Amarelo, nos termos em que a ABP sugere à sociedade, não leva em consideração os riscos do próprio modelo biomédico para a prevenção ao suicídio.  No mundo inteiro, são abundantes as evidências do fracasso desse tipo de abordagem para a prevenção do suicídio.

São inúmeros os testemunhos das experiências de vida daqueles que sobreviveram aos antidepressivos. Como, por exemplo, que a partir do uso de antidepressivos alguém se tornou um suicida. Senão, aqueles que tiveram as suas vidas arruinadas sob diversos aspectos. Ou ainda, as chacinas em massa. 

É chocante como ainda em 2021, em nome da saúde, sejam prescritos antidepressivos como na forma atual. Isso é que é negacionismo!

  1. Mito 3: tratamento eletroconvulsivo é terapêutico

O senso-comum criado pela psiquiatria é que a terapia eletroconvulsiva (ECT) seja um procedimento recomendado a pessoas que são consideradas em risco de suicídio ou que são refratárias a tratamentos contra a depressão. No entanto, não é isso o que as evidências científicas mostram. Eis aí mais uma outra expressão do negacionismo.

Um estudo recentemente publicado no Journal of ECT desmente o pressuposto que legitamaria o uso de ECT. O estudo incluiu 14.810 pessoas que receberam ECT e 58.369 que não a receberam. Os participantes foram todas as pessoas que utilizaram a Administração de Saúde dos Veteranos (Veterans Health Administration) entre 2006 e 2015. Os participantes foram comparados em características demográficas e clínicas, utilizando escores de propensão ao risco, o que permitiu aos investigadores dar conta de diferentes graus de gravidade dos problemas de saúde mental e diagnósticos psiquiátricos e de fatores tais como idade e sexo. O estudo acompanhou os participantes durante um ano para comparar o número de pessoas que morreram por suicídio. Os investigadores concluíram:“Após comparar e controlar as diferenças entre grupos em uma regressão logística ajustada, as probabilidades de suicídio no ano após a realização da ECT não foram estatisticamente diferentes das dos pacientes que não receberam o procedimento.”

Diferentes estudos já mostraram não haver evidências de que a terapia eletroconvulsivo (popularmente conhecida como tratamento por choque-elétrico) funcione; mas sim, o que não faltam são evidências dos danos produzidos, como a perda da memória. Ademais, há um pobre monitoramento e fiscalização dos estabelecimentos autorizados para o emprego deste tipo de tratamento. São frequentes os processos judiciais movidos por pacientes e familiares vítimas desse tratamento psiquiátrico.

Chocante? Talvez nem tanto. Nada nos surpreende, quando vimos a defesa do tratamento precoce para a Covid-19.

Considerações finais

O modelo biomédico da psiquiatria é objeto de críticas, em particular da própria OMS e ONU.

Se colocarmos entre parênteses o modelo biomédico proposto para se abordar a depressão, e muito em particular o suicídio, campanhas como a do Setembro Amarelo são da maior importância para todos nós.

É urgente que a sociedade se dê conta de um conjunto de condições sociais que comprometem as condições de estar-de-bem consigo próprio e com os outros. São condições para o que consideramos ‘saúde mental’. Condições tais como: ter uma atividade laboral que faça sentido, não viver em isolamento, lidar com valores que façam sentido, estar conectado com os traumas na infância, ter status e respeito reconhecidos, estar conectado com a natureza, contar com um futuro de esperança e seguro etc.  A respeito, dito de uma forma bastante inclusiva, quero dizer, a partir da experiência de vida, eu recomendo essa palestra do jornalista Johann Hari, quem compartilha conosco ideias novas sobre as causas da depressão e da ansiedade, colhidas de especialistas do mundo todo – bem como algumas soluções novas e animadoras.

E para finalizar, a última referência bibliográfica que não posso deixar de citar. A reação normal das pessoas, quando se faz críticas como as que eu acabo de apresentar, é se perguntar quais são as alternativas para que nos orientemos frente ao sofrimento psíquico em suas diversas formas de se manifestar, como as que são apresentadas no DSM/CID. Se a depressão não é uma doença, e se não negamos o fenômeno, como então fazer face a ela? Seja com a depressão, a ansiedade, sejam quaisquer que forem os fenômenos que nos chegam enquanto demandas para a assistência em saúde mental. A referência que eu sugiro é o documento da Divisão Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia, chamado de Abordagem Poder, Ameaça e Sentido (Power Threat Meaning Framework). Aqui está o link. Ali se pode encontrar o documento em sua íntegra, bem como experiências com o uso do modelo, artigos científicos, etc.

As conseqüências do racismo histórico em publicações psiquiátricas

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Em um próximo artigo, a ser publicado no The Canadian Journal of Psychiatry, Imen Ben-Cheikh e colegas exploram a história do racismo em publicações de revistas psiquiátricas revisadas por pares.

Ben-Cheikh observa que muitos periódicos ainda incluem descobertas pseudocientíficas de períodos históricos de colonialismo desenfreado, escravidão e nazismo. Pouco tem sido feito para enfrentar este racismo presente nas publicações científicas. Os autores concluem que embora estes artigos devam continuar disponíveis aos pesquisadores como documentos históricos, eles devem incluir uma declaração de isenção de responsabilidade sobre a natureza pseudocientífica do conteúdo. Eles escrevem:

“Recomendamos que todas as revistas científicas identifiquem quaisquer publicações históricas que tenham um conteúdo racista e acrescentem no início dessas publicações uma declaração sobre a divulgação … Embora esta solução em potencial seja simples, representa, no entanto, uma ação sem precedentes em termos de políticas antirracistas no campo da publicação científica”.

Muitas vozes têm apontado para o racismo institucional dentro do campo da saúde mental. Pesquisas têm mostrado o impacto do racismo tanto no desenvolvimento da psicose em comunidades historicamente oprimidas quanto como o tratamento bem sucedido da psicose pode ser complicado por questões culturais e econômicas.

Também temos visto os perigos de conceitos como “daltonismo” que levam os pesquisadores a ignorar as desigualdades estruturais reais. A pesquisa atual acrescenta a estas críticas citando muitos exemplos de racismo histórico presentes em artigos que ainda estão disponíveis como “pesquisa revisada por pares”.

Ben-Cheikh e colegas encontram mais companhia em uma carta de 2020 assinada por 166 membros do Royal College of Psychiatrists no Reino Unido. Esta carta, escrita após o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, insta o Colégio a criar uma comissão independente para identificar e corrigir os problemas de racismo, colonialismo e preconceito na raiz da psiquiatria.

Além do racismo dentro do campo da saúde mental, a psiquiatria também tem muitos problemas com o viés de publicação. As publicações psiquiátricas frequentemente deturpam a eficácia dos tratamentos para esquizofrenia e depressão e os efeitos positivos dos resultados em geral. Alguns autores têm até apontado a questão de muitos poucos pesquisadores estarem cientes do viés esmagador que existe na publicação científica e basearem erroneamente suas pesquisas em descobertas tendenciosas. A pesquisa atual destaca a grande e iminente área do racismo histórico no viés de publicação.

A pesquisa atual explora vários exemplos de racismo e colonialismo em publicações psiquiátricas para destacar como a psiquiatria tem sido usada para minar os direitos humanos fundamentais dos grupos marginalizados. Os autores apontam em primeiro lugar a cumplicidade preocupante de alguns psiquiatras em relação ao tratamento desumano de comunidades marginalizadas.

Um exemplo é o trabalho de Donald Ewen Cameron, um psiquiatra americano que mais tarde se tornou membro honorário da Associação Psiquiátrica Canadense e foi cúmplice no diagnóstico errado de doenças mentais em crianças órfãs canadenses nos anos 50. Os autores também citam Hans Asperger como tendo sido cúmplice da ideologia nazista da purificação racial.

Além da cumplicidade na violação dos direitos humanos, a pesquisa atual também aponta para autores proeminentes que aceitaram as ideologias racistas como fatos e sua influência em suas pesquisas. Por exemplo, Emil Kraepelin defendeu uma hierarquia de desenvolvimento racial e assim ignorou o contexto social de suas observações. Cesare Lombroso foi um defensor da craniologia, insistindo que “os criminosos se parecem com os selvagens e as raças de cor”.

Os autores também apontam para os 100 anos de história da psiquiatria afirmando a inferioridade do povo negro. Apesar das críticas bem fundamentadas e repetidas, vemos o tema da inferioridade do povo negro em termos de tamanho do cérebro, inteligência e moralidade se repetir ao longo da história da publicação psiquiátrica. Já em 2012, a revista American Psychologist publicou um trabalho de John Philippe Rushtel afirmando a inferioridade intelectual do povo negro.

De acordo com Imen Ben-Cheikh, há uma necessidade esmagadora de abordar a questão muitas vezes designada do racismo sistemático nas publicações psiquiátricas. Para os autores, esta necessidade é óbvia devido aos efeitos devastadores que o racismo tem sobre a saúde física e mental de indivíduos e comunidades. Os autores até apontam o diagnóstico de transtorno de estresse pós-traumático resultante de “trauma racial” como potencialmente ofuscando as raízes políticas, raciais e históricas do sofrimento.

Como remédio, os autores sugerem acrescentar um pequeno desmentido ao prefácio da pesquisa historicamente racista que aparece em revistas revisadas por pares. Esta solução permitiria a manutenção destes artigos como documentos históricos sem permitir que eles possam envenenar o corpo contemporâneo do conhecimento psiquiátrico.

Ben-Cheikh e colegas acreditam que explorar o racismo histórico na publicação psiquiátrica pode nos ajudar a entender melhor os efeitos dessas idéias ultrapassadas na sociedade contemporânea. Eles escrevem:

“A psiquiatria tem sido utilizada política e socialmente, de forma maliciosa, em diferentes períodos da história. Como cientistas, médicos, éticos, psiquiatras, psicólogos, devemos olhar de forma crítica para este passado, que não desapareceu tanto quanto gostaríamos, tanto para reconhecer o impacto embutido de nossa história em nossas sociedades contemporâneas quanto para abraçar nossas responsabilidades coletivas frente a estas derivações”.

Os autores reconhecem que enquanto alguns casos de racismo histórico em pesquisas publicadas são óbvios, outros são mais sujeitos a interpretação. Portanto, a pesquisa atual sugere a criação de um corpo de especialistas para fazer a determinação final em tais casos.

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Ben-Cheikh, I., Beneduce, R., Guzder, J., Jadhav, S., Kassam, A., Lashley, M., Mansouri, M., Moro, M. R., & Tran, D. Q. (2021). Historical Scientific Racism and Psychiatric Publications: A Necessary International Anti-racist Code of Ethics. The Canadian Journal of Psychiatry, 1–5. (Link)

Bebês recém-nascidos sofrem com a retirada de antidepressivos

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Uma nova metanálise revelou evidências de que os recém-nascidos sofrem abstinência de antidepressivos se suas mães estavam tomando ISRSs durante a gravidez. Como resultado, os pesquisadores recomendam que as mães interrompam o uso de antidepressivos antes da gravidez, se possível.

“Vale a pena tentar evitar a ocorrência desta síndrome antes e durante a fase inicial da gravidez”, escrevem eles.

A pesquisa foi conduzida por Jianjun Wang, na Universidade de Medicina Chinesa de Guangzhou, China, e Fiammetta Cosci, na Universidade de Florença, Itália. Foi publicada em Psychotherapy and Psychosomatics.

Wang e Cosci buscaram estudos sobre a exposição in utero a medicamentos antidepressivos e seu efeito sobre os recém-nascidos. Suas análises incluíram 13 desses estudos. Eles se concentraram em ISRSs (como sertralina, citalopram e fluoxetina) e na venlafaxina SNRI.

Eles identificaram os seguintes sintomas de abstinência em recém-nascidos: hipoglicemia, tremores, hipotonia, hipertonia, taquicardia, respiração rápida, e problemas respiratórios.

Estudos anteriores descobriram que a exposição in utero a antidepressivos estava associada ao nascimento prematuro, defeitos de nascença, problemas de desenvolvimento, problemas cardiopulmonares e até mesmo a morte.

Quão prevalentes são estes efeitos?

Em um estudo citado por Wang e Cosci, foi encontrada uma “síndrome de abstinência neonatal” em 30% dos bebês expostos a antidepressivos, e em nenhum dos bebês que não o foram.

Em conclusão, Wang e Cosci escrevem que as terapias não-farmacológicas, como a terapia cognitivo-comportamental, devem ser usadas para mulheres com depressão que estão grávidas.

Mesmo para aquelas com histórico de múltiplos episódios depressivos, elas escrevem que “tratamentos não-farmacológicos devem ser a primeira escolha, e somente se não forem eficazes ou desejados, os antidepressivos devem ser considerados”.

 

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Wang, J., & Cosci, F. (2021). Síndrome de abstinência neonatal após exposição tardia no útero a inibidores seletivos de recaptação de serotonina: Uma revisão sistemática e uma meta-análise de estudos observacionais. Psicoterapia e Psicossomática, 90, 299-307. https://doi.org/10.1159/000516031 (Link)

Psicodélicos – A Nova Loucura Psiquiátrica

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Fotografia da face inferior do homem com um comprimido na língua

Os psicodélicos estão cada vez mais na moda, mas será que são algo diferente do que uma poderosa forma de óleo de cobra, ou diferente de uma experiência recreativa? Eles têm algum benefício objetivo para a saúde? Podemos ter certeza de que eles são seguros? Estas perguntas precisam ser respondidas urgentemente, pois o número de pessoas sendo seduzidas ou persuadidas a ter estes medicamentos está aumentando. Aqui eu chamo a atenção para algumas das questões levantadas pela popularidade atual dessas drogas.

Os psicodélicos originais incluem a psilocibina, o princípio ativo dos ‘cogumelos mágicos’ e a dietilamida do ácido lisérgico, popularmente conhecida como LSD. As drogas recreativas MDMA (ecstasy) e cetamina têm alguns efeitos semelhantes aos psicodélicos, na medida em que há uma qualidade do tipo “viagem” para o estado alterado que elas produzem.

Fotografia da face inferior do homem com um comprimido na língua

Os psicodélicos estão agora sendo recomendados para tratar uma lista cada vez maior de problemas, incluindo depressão, ansiedade, dependência, transtorno do estresse pós-traumático, dor crônica e angústia associada a ter uma doença terminal. Livros sobre eles se tornaram best-sellers e várias fundações estão promovendo e financiando pesquisas sobre substâncias psicodélicas, presumivelmente na esperança de que em breve sejam licenciadas para uso médico.

A cetamina, geralmente administrada por via intravenosa, já está em oferta através de numerosas clínicas privadas nos EUA, e várias abriram no Reino Unido, incluindo pelo menos uma fornecida pelo NHS (embora o tratamento tenha que ser pago a título privado). Isto é possível porque a cetamina é licenciada como anestésico e pode, portanto, ser re-propagada como “off-label” para outros usos médicos. A esquetamina, um isômero da cetamina tomado como spray nasal, foi licenciado para o tratamento da depressão resistente ao tratamento nos EUA, Reino Unido e Europa.

A lógica por trás desta tendência é confusa e contraditória. Por um lado, os psicodélicos são promovidos como auxiliares no processo de psicoterapia através de insights que podem ser gerados pela “viagem” ou a experiência induzida por essas drogas – por outro lado, as drogas psicodélicas representariam um tratamento médico direcionado para vários distúrbios, através da correção de deficiências cerebrais subjacentes.

Em uma entrevista publicada na Nature, o psicofarmacologista e pesquisador de psicodélicos, David Nutt, sugere que os psicodélicos “desligam partes do cérebro que se relacionam com a depressão” e “reiniciam os processos de pensamento do cérebro” através de suas ações sobre os receptores corticais 5-HT2A. Outros afirmam que eles aumentam a ‘conectividade’ do cérebro. O website da Universidade John Hopkins alega que eles oferecem a promessa de “tratamentos de medicamentos de precisão feitos sob medida para as necessidades específicas de cada paciente”. Todas essas afirmações são pura especulação.

Alguns promotores se referem aos psicodélicos como “antibióticos da mente”, argumentando que o tratamento psicodélico é “curativo”, exigindo apenas uma ou duas “sessões dosificadas”, em comparação com o tratamento de longo prazo necessário com antidepressivos ou psicoterapia. Este é um importante argumento de vendas para o que é uma terapia cara. Na realidade, os psicodélicos não produzem as curas milagrosas que as pessoas são levadas a esperar, como confirma a experiência com a cetamina. Algumas pessoas podem se sentir um pouco melhor após um tratamento, e então o efeito desaparece e elas vêm para outro e outro, e se estabelecem no tratamento a longo prazo, assim como ocorre com as pessoas em antidepressivos.

A esquetamina, o isômero cetamina fornecido em um spray nasal, foi lançado pela Janssen e é claramente destinado como um tratamento de longo prazo, com testes aleatórios e proclamando seus efeitos de “prevenção de recaída” (para uma crítica a esta e outras pesquisas sobre a esketamina, veja um blog anterior). O conceito de microdosagem com LSD ou outros psicodélicos segue o mesmo princípio, promovendo a idéia de que pequenas doses dos medicamentos, tomadas diariamente, melhoram o humor, a criatividade e a produtividade das pessoas. Esta prática parece ser cada vez mais comum, com uma pesquisa recente constatando que 17% dos entrevistados, com uma média de idade de 33 anos, tinham se engajado nela regularmente em algum momento. Uma vez desencadeada, parece que as drogas tendem a um padrão de uso a longo prazo, com todas as complicações físicas e psicológicas que isso implica.

Então, será que os efeitos dos psicodélicos podem ser benéficos? A experiência ou “viagem” psicodélica tem sido defendida há muito tempo como um meio de expandir a consciência, de ver o mundo de uma maneira diferente que pode levar a novas percepções e inspirações. O MDMA produz sentimentos intensos de calor e conexão e a cetamina leva a um estado de transe. Todas essas drogas podem tornar as pessoas ‘em alto astral’ ou eufóricas, mas, apesar disso, nem todos gostam dos sentimentos que elas induzem, e alguns delas, particularmente aquelas com efeitos psicodélicos mais intensos, podem produzir experiências que são assustadoras e angustiantes – a ‘má viagem’.

Algumas pessoas podem aprender coisas importantes sobre si mesmas através da experiência dos efeitos das drogas psicodélicas. O autor e psicoterapeuta Gary Greenberg descreve o consumo de ecstasy em seu livro, Manufacturing Depression, e como a emoção que ele sentiu sob a influência da droga o fez perceber a profundidade de seus sentimentos por sua namorada, dos quais ele não tinha tido conhecimento antes.

O desenvolvimento pessoal através das drogas não precisa, no entanto, ser limitado aos psicodélicos. Um paciente que eu conheci comentou que os efeitos do álcool haviam lhe mostrado como superar a sua timidez ou ansiedade social, de tal forma que ele aprendeu a socializar sem ele (é claro que, às vezes, o álcool usado desta forma pode se tornar um problema por direito próprio). Outra paciente descreveu como sua experiência de tomar drogas estimulantes para a doença de Parkinson (que ela teve que parar posteriormente) a ensinou a se soltar e fazer coisas por si mesma em vez de se concentrar apenas nas necessidades de sua família.

Mas estes benefícios não são efeitos médicos ou de saúde. Eles são semelhantes ao desenvolvimento pessoal que as pessoas alcançam através de outros tipos de atividades e experiências de vida como cantar, dançar, estar na natureza, esportes e muitas outras coisas. E embora o conceito de psicoterapia assistida por drogas reconheça que é a forma como os efeitos psicoativos das drogas são usados para promover um processo de aprendizagem pessoal que é relevante, por que não empregar outros métodos, mais seguros e baratos? Por que não a psicoterapia assistida pela natureza (uma caminhada no parque), por exemplo?

Além disso, como descrito acima, cada vez mais o uso dessas drogas é retratado de outras formas, como se elas funcionassem visando os processos disfuncionais do cérebro. Quando, e se, os psicodélicos obtiverem uma licença médica, é provável que a psicoterapia seja abandonada ou minimizada. Como no caso da cetamina, a tendência de todo tratamento psicodélico será para o fornecimento da droga da maneira mais barata possível, o que significa o mínimo de supervisão e terapia.

Como de costume, as pesquisas oficiais exageram os efeitos benéficos reais das drogas. Em um pequeno estudo randomizado comparando a psicoterapia assistida por psilocibina com um antidepressivo e psicoterapia regulares, não houve diferença no resultado primário. O ensaio ainda foi publicado no prestigioso New England Journal of Medicine. Os resultados secundários que encontraram pequenas diferenças foram destacados sem considerar os efeitos ‘placebo’ de ter uma experiência reconhecidamente induzida por drogas, e os participantes recrutados não eram típicos daqueles com depressão, consistindo principalmente de homens bem instruídos, quase um terço dos quais tinham experimentado psicodélicos antes (o que significa que eles certamente sabiam se receberam a psilocibina ativa ou o placebo, e provavelmente ficaram desapontados se receberam o placebo).

A maioria das pesquisas psicodélicas não presta atenção à forma como os efeitos psicoativos imediatos das drogas inevitavelmente afetam os sentimentos e o comportamento das pessoas, de uma forma que influenciará a classificação dos sintomas do humor e poderá produzir a impressão de melhora. Em seu relatório sobre o tratamento com cetamina, a Associação Psiquiátrica Americana (APA) afirma que há “provas convincentes” de que “os efeitos antidepressivos da infusão de cetamina são rápidos e robustos”. Apesar de admitir que eles também são “transitórios”, a APA não explica como esses chamados “efeitos antidepressivos” podem ser distinguidos da euforia e outras alterações mentais associadas à intoxicação aguda por cetamina. Se os efeitos da cetamina são ‘antidepressivos’, também o são os efeitos de todas as outras drogas que produzem euforia a curto prazo, incluindo álcool, cocaína, heroína, anfetaminas, etc.

Junto com as alterações induzidas pela farmacologia, qualquer droga poderosa que altera a mente provavelmente terá efeitos ‘placebo’; em outras palavras, a experiência induzida pela droga levará as pessoas a esperar que elas melhorem, e esta expectativa pode, por sua vez, levá-las a melhorar, ou pelo menos a pensar que melhoraram. Para determinar se os efeitos psicodélicos estão especificamente associados a percepções que ajudam as pessoas a se recuperar da depressão ou de outras condições isso requer uma comparação entre os psicodélicos e outras drogas psicoativas como anfetaminas, benzodiazepinas ou opiáceos, por exemplo. Efeitos similares também podem ser obtidos por outros métodos para induzir estados de transe, tais como meditação ou exercícios extenuantes.

A pesquisa sobre substâncias psicodélicas também negligencia o profundo efeito placebo que provavelmente será produzido pelas horas de supervisão médica e atenção profissional associadas ao tratamento psicodélico, quer isto constitua ou não psicoterapia formal. Alguns dos ensaios com esketamina, por exemplo, descobriram que as pessoas que tomaram o spray de placebo tiveram uma enorme redução em sua pontuação na escala de classificação de depressão. Nesses ensaios, os participantes, que tinham “depressão resistente ao tratamento”, tiveram duas vezes por semana a administração do medicamento ou placebo spray seguido de até 4 horas de observação médica em cada ocasião – são 8 horas de atenção profissional a cada semana! Sabemos que o contato clínico melhora os resultados das pessoas em depressão, e parece que este alto nível de contato nos ensaios de esketamina exerceu um efeito poderoso mesmo em pessoas com sintomas graves e persistentes.

A loucura atual por substâncias psicodélicas também significa que os efeitos adversos estão sendo minimizados ou negligenciados. A “má viagem” é um fenômeno bem conhecido, e pode não ser tão incomum assim. O psiquiatra Rick Strassman, autor de DMT: o Spirit Molecule, descreveu como metade dos 60 voluntários que ele injetou com o poderoso alucinógeno, DMT (N,N-dimetil-triptamina), experimentou alucinações e ansiedade aterrorizantes, e ele suspendeu sua pesquisa, em parte por causa destes efeitos. O jornalista científico John Horgan descreve meses de depressão e flashbacks após uma “má viagem”, e também nos lembra que Albert Hofmann, que sintetizou o LSD pela primeira vez, também teve dúvidas a respeito, chamando seu livro de memórias de 1981 de LSD: Meu filho problemático.

Os defensores ressaltam que o contexto ajuda a determinar a natureza da experiência induzida pela droga, portanto, fornecer pessoal para apoiar as pessoas enquanto elas estão sob a influência da droga, e para processar seus pensamentos e sentimentos depois, deve evitar viagens ruins. Por outro lado, uma situação clínica pode ser uma experiência altamente alienante e pode até induzir a uma má viagem para algumas pessoas. Em todo caso, as experiências psicodélicas são, por sua natureza, imprevisíveis.

Há algo fascinante nas drogas psicodélicas – o fato de que certas substâncias químicas podem distorcer a percepção sensorial e produzir alucinações vívidas coloca em questão nossa experiência normal do mundo cotidiano. Algumas pessoas acham seus efeitos esclarecedores, outras não. Isto depende tanto de como a experiência induzida pelas drogas é interpretada. “Como imaginamos estas substâncias como “medicamentos vegetais”, “drogas”, ou como “uma porta para o divino” é tão importante quanto seus efeitos neuroquímicos”, como aponta Shariq Khan.

No entanto, elas podem ser assustadoras ou perturbadoras às vezes, e faltam evidências de que elas produzem benefícios consistentes para o bem-estar ou a saúde mental das pessoas. Embora seja improvável que uma ou duas doses da maioria das drogas causem muitos danos, a tendência é para o uso a longo prazo, e o uso repetido de substâncias psicodélicas como de outras drogas é improvável que seja completamente inofensivo.

Como acontece com tantos outros tratamentos médicos, eles se tornaram populares através da potente mistura de interesses financeiros e desespero. Se o benefício ocasional dos psicadélicos é promover o desenvolvimento pessoal através de uma experiência incomum, então existem muitos caminhos mais seguros para este objetivo.

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Mad in Brasil recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são projetados para servir como um fórum público para uma discussão em termos gerais sobre a psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as próprias dos escritores.

A Linguagem Estigmatizante nos Registros Médicos Impacta o Atendimento ao Paciente

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Um novo estudo publicado na JAMA Network Open explora a linguagem utilizada pelos médicos nos prontuários médicos dos pacientes. Os pesquisadores examinam como a linguagem tanto positiva quanto negativa nos prontuários médicos pode afetar a forma como os pacientes são tratados pelos profissionais médicos.

Eles encorajam uma maior consciência da linguagem estigmatizante nos prontuários médicos para reduzir as atitudes negativas em relação aos pacientes e aumentar os cuidados informativos e competentes. Os autores, liderados por Mary Catherine Breach, MD, MPH, da Universidade Johns Hopkins, escrevem:

“Os pacientes não são tratados igualmente em nosso sistema de saúde: alguns recebem uma qualidade de atendimento inferior a outros com base em sua identidade racial/étnica, independente da classe social. Outros, como adultos idosos e indivíduos com baixa alfabetização em saúde, obesidade e transtornos relacionados ao uso de substâncias, também podem ser vistos negativamente pelos profissionais de saúde de uma forma que impacta negativamente a qualidade de seus cuidados de saúde. O preconceito implícito entre os médicos é um fator que perpetua essas disparidades. O viés implícito é a ativação automática de estereótipos, que pode anular o pensamento deliberado e influenciar o julgamento de uma pessoa de forma não intencional e não reconhecida, e pode afetar as decisões de tratamento”.

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O preconceito implícito pode ser refletido através da linguagem utilizada pelos médicos, o que é preocupante, considerando que a linguagem tendenciosa tem mostrado afetar negativamente a qualidade do atendimento.

Por exemplo, em um estudo que investigou a linguagem estigmatizante versus neutra sobre um paciente hipotético com doença falciforme, os pesquisadores descobriram que a linguagem estigmatizante levou a atitudes negativas em relação ao paciente, o que, por sua vez, resultou no fornecimento de menos analgésicos ao paciente, apesar de suas informações clínicas serem as mesmas que as do paciente que foi introduzido de forma neutra.

Os pesquisadores conduziram uma análise qualitativa de 600 notas de encontro selecionadas aleatoriamente de um ambiente de medicina interna ambulatorial em um centro médico acadêmico urbano no estudo atual. Aproximadamente 507 pacientes foram escritos nas anotações, com os pacientes sendo predominantemente mulheres negras (80%) (69%).

Os pesquisadores examinaram a linguagem utilizada pelos médicos nas anotações, identificando tanto a linguagem positiva quanto a negativa como temas principais.

A linguagem negativa utilizada pelos médicos foi separada em 5 categorias: questionamento da credibilidade do paciente, desaprovação, estereótipo, paciente difícil, e tomada de decisão unilateral.

Os pesquisadores descobriram que os médicos questionavam a credibilidade de seus pacientes, quer implicando que eles sentiam que o paciente não era suficientemente competente para lembrar quer fornecendo informações precisas e duvidando da genuinidade de seus pacientes. Eles descreveram como “marcadores de dúvida”, tais como “supostamente”, ” alegações” ou “insiste”, e citações dos pacientes usadas em citações de medo foram empregadas pelos médicos como uma forma de indicar a incerteza sobre a credibilidade de seus pacientes.

A linguagem que indica desaprovação enfatizava o que os médicos percebiam como “raciocínio, tomada de decisões e comportamentos deficientes dos pacientes”. Os médicos transmitiram a desaprovação através de uma linguagem que utilizava qualificadores negativos como “infelizmente” e uma linguagem que implicava que eles tinham que se repetir repetidamente para o paciente, como, por exemplo, afirmando: “Eu expliquei novamente”. . .”

A linguagem negativa usada pelos médicos foi além do implícito e explícita quando os médicos estereotiparam pacientes com base na identidade racial ou classe social através do uso de citações de gramática incorreta ou do inglês afro-americano vernacular nas anotações dos pacientes. O preconceito racial demonstrou ter grandes implicações para o diagnóstico e tratamento de pessoas de cor.

Os médicos também retrataram seus pacientes como “difíceis”, por exemplo, apresentando-os como temperamentais ou ignorantes e expressando a frustração dos médicos. Além disso, os médicos usaram linguagem condescendente e emocional e citações para retratar seus pacientes de uma forma negativa.

Os pesquisadores forneceram exemplos do tema do “paciente difícil”, como por exemplo: “isto parece pacificá-lo”, e “ela não vai considerar tomá-lo porque ‘meu coração está bem, não quero que todos vocês mexam com meu coração'”.

Em sua discussão da categoria “tomada de decisão unilateral”, os pesquisadores destacam como a dinâmica de poder médico-paciente foi enfatizada neste tipo de linguagem, pois o paciente foi retratado como ignorante e infantil. Em contraste, o médico se retratou de forma paternalista ou com autoridade, usando uma linguagem como: “Eu a instruí…”. .”

Descobriu-se também que os médicos usavam uma linguagem positiva para descrever seus encontros com os pacientes. Os pesquisadores categorizaram a linguagem positiva em 6 grupos: elogios, aprovação, auto-divulgação, minimização de culpas, personalização e tomada de decisão colaborativa.

Os elogios incluíram o uso de adjetivos positivos, como “inspirador” ou “bondoso”, para descrever os pacientes e estavam freqüentemente no início das anotações.

Os médicos normalmente demonstravam aprovação dos pacientes em relação a suas dificuldades de superação ou sua participação ativa em seus cuidados.

Emoções positivas sobre os pacientes eram por vezes reveladas pelos médicos, como por exemplo, através de uma linguagem como “A paciente expressou sua gratidão pelos cuidados prestados nos últimos anos e expressou seus agradecimentos”. Eu… expressei minha gratidão também por ser uma paciente inspiradora”.

Em algumas notas, os médicos tentaram minimizar a crítica contra os pacientes por não seguirem seus planos de tratamento, promovendo a compreensão através da ênfase em desafios particulares ou barreiras que podem estar impedindo o paciente de se envolver plenamente em seus cuidados.

Tentativas de humanizar o paciente fornecendo detalhes pessoais sobre a vida do paciente da perspectiva do paciente, tais como hobbies ou entes queridos importantes, foram incluídas em algumas das notas de encontro.

A categoria final de linguagem positiva foi identificada como “tomada de decisão colaborativa”, o que contrasta com a categoria de tomada de decisão unilateral que se enquadrava no tema da linguagem negativa do médico. Enquanto a categoria de decisão unilateral indicava um médico paternalista tomando decisões de tratamento em nome de seu paciente, a linguagem na categoria de decisão colaborativa indicava que as decisões de tratamento eram tomadas em conjunto pelo médico e pelo paciente.

A psiquiatria demonstrou lutar para implementar decisões compartilhadas alimentada pela crença equivocada de que os pacientes não são suficientemente competentes para participar do processo de tomada de decisão.

A consciência da linguagem utilizada nos prontuários médicos é crítica. Com o surgimento dos prontuários eletrônicos de saúde nos Estados Unidos, que tornam os prontuários médicos disponíveis em todos os ambientes de saúde, a forma como as anotações são redigidas pode influenciar como outros profissionais médicos que lêem as anotações percebem como tratam seus pacientes.

Além de impactar negativamente a forma como os médicos percebem e tratam seus pacientes, a linguagem estigmatizante pode afetar negativamente a disposição dos pacientes para participar do tratamento. Se os pacientes têm interações negativas com os clínicos devido à linguagem estigmatizada utilizada em suas anotações, isso pode resultar em um ciclo de profecia auto-cumprida onde o paciente é percebido como “difícil” ou desengajado e tratado por profissionais médicos como tal, o que aumenta os sentimentos negativos do paciente, que então transfere experiências passadas negativas para outros clínicos.

Além disso, ambulatórios de medicina interna tendem a ser ambientes de alta tensão, o que pode levar a um viés implícito de ativação, frustração e burnout, o que, por sua vez, pode resultar no uso de linguagem negativa nas anotações do paciente como uma forma de os profissionais médicos desabafarem suas frustrações.

Os pesquisadores sugerem que abordar o estresse e a frustração inerentes a tais ambientes é fundamental para melhorar a linguagem usada nos prontuários médicos, além de trabalhar para tornar os médicos mais conscientes da linguagem que estão usando em suas anotações.

Os pesquisadores descreveram ter dificuldade em chegar a um consenso sobre se parte da linguagem usada nas anotações era negativa ou positiva – em parte devido a algumas das declarações serem percebidas como normais para a profissão médica. Eles deram o exemplo de como os médicos são frequentemente ensinados a escrever usando as próprias palavras dos pacientes em suas anotações, mas que na prática, citações de pacientes tendem a ser usadas como citações assustadoras, que são usadas para retratar uma atitude negativa, nos registros.

Elas também destacam as complexidades da linguagem positiva usada pelos médicos, particularmente elogios e louvores, pois o uso de qualquer linguagem emocional poderia levar a maiores disparidades no tratamento de pacientes, o que leva ao argumento de que os prontuários médicos devem usar apenas linguagem neutra. Além disso, elogios usados para grupos marginalizados como pessoas de cor podem refletir atitudes racistas que implicam que não se espera que pessoas de cor exibam traços como serem “agradáveis”.

Apesar das questões associadas ao uso de elogios e louvores nos prontuários dos pacientes, minimizar a culpa, a personalização e a tomada de decisão colaborativa são formas positivas de os profissionais médicos se engajarem em cuidados e atitudes centradas no paciente que promovam a dignidade e o respeito do paciente.

Uma grande limitação deste estudo foi que embora os pacientes pudessem acessar seus prontuários eletrônicos durante o tempo em que as anotações foram escritas, a maioria ainda não tinha se envolvido com o sistema eletrônico, indicando que a maioria dos médicos não tinha escrito as anotações com o entendimento de que os pacientes poderiam lê-las. Outra limitação foi que as anotações foram coletadas de um ambulatório de medicina interna em um centro médico acadêmico urbano, de modo que os resultados podem não ser generalizados para outros ambientes médicos. Além disso, não havia informações sobre a composição demográfica dos médicos, como idade, raça/etnia, etc., o que pode ter influenciado a forma como a linguagem era usada em suas anotações. Finalmente, os pesquisadores apontam para a natureza excepcional de seu trabalho, pois não puderam conhecer as atitudes dos médicos enquanto escreviam as anotações ou como os leitores as interpretavam.

Em sua conclusão, Breach e colegas enfatizam que o aumento da percepção e consciência de como os profissionais escrevem e lêem as anotações médicas é crucial para reduzir as disparidades de tratamento e aumentar o tratamento respeitoso dos pacientes. Eles sugerem que a pesquisa deve ser conduzida para explorar mais profundamente a freqüência com que a linguagem estigmatizante é usada, como ela muda dependendo do paciente e do clínico, ou a relação entre médico e paciente, assim como como a linguagem estigmatizante afeta os resultados gerais do tratamento.

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Park, J., Saha, S., Chee, B., Taylor, J., & Beach, M. C. (2021). Physician use of stigmatizing language in patient medical records. JAMA Network Open, 4(7), 1-11. doi:10.1001/jamanetworkopen.2021.17052 (Link)

Drogas psiquiátricas Podem Reduzir as Capacidades Sociais e Emocionais

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Embora os déficits na cognição social sejam freqüentemente associados e usados para diagnosticar transtornos psiquiátricos, novas pesquisas sugerem que os medicamentos usados para tratar transtornos psiquiátricos também podem afetar negativamente a cognição social.

Liderados por Zoe Haime no University College de Londres, os pesquisadores que conduziram o estudo levantaram a hipótese de que os medicamentos psiquiátricos que produzem efeitos sedativos podem afetar a cognição social. Eles esperam que a sua revisão ajude a esclarecer a natureza dos déficits subjacentes na cognição social em pessoas diagnosticadas com transtornos psiquiátricos para “ajudar no desenvolvimento de tratamentos específicos para a cognição social, o que também pode melhorar o funcionamento social e os resultados gerais”.

“Há boas razões para se acreditar que os medicamentos psiquiátricos podem influenciar a cognição social, especialmente aqueles com ações sedativas que são conhecidos por prejudicar o funcionamento neurocognitivo em voluntários”, escrevem os autores. “É importante esclarecer estes efeitos para entender a natureza dos déficits cognitivos sociais nos distúrbios psiquiátricos e avaliar os efeitos do tratamento na cognição social e nos resultados associados, tais como o funcionamento social”.

A cognição social é definida como os “processos mentais que fundamentam a capacidade de compreender e agir sobre o pensamento, intenções e comportamentos dos outros”. As drogas psiquiátricas, que funcionam alterando sistemas neurotransmissores específicos, têm fortes efeitos sedativos e podem causar mudanças permanentes no cérebro. Junto com seus efeitos sedativos, os medicamentos psiquiátricos afetam a emoção e a motivação e causam embotamento emocional e perda do contato consigo mesmo e com os outros.

Como os autores observam, a pesquisa sobre as interações medicamentosas com a cognição social limita-se em grande parte a estudos de benzodiazepinas em voluntários saudáveis e estudos de antipsicóticos em pacientes com esquizofrenia. Após realizar uma revisão sistemática de 2931 trabalhos elegíveis, os pesquisadores descobriram que as benzodiazepinas administradas a voluntários saudáveis causam deficiências significativas nas tarefas de cognição social de reconhecimento de emoções, sugerindo que as doses terapêuticas prejudicam o processamento das emoções. Além disso, alguns estudos usaram neuroimagens para comparar a cognição social antes e imediatamente após a administração de benzodiazepinas e descobriram que uma única dose de diazepam resultou em respostas atenuadas às emoções dos outros.

Com relação aos medicamentos antipsicóticos, um estudo descobriu que doses mais altas de antipsicóticos estavam relacionadas a níveis mais altos de comprometimento cognitivo social em pacientes com esquizofrenia. Os autores observam:

“Pesquisas sobre a função neurocognitiva sugerem que os antipsicóticos, em particular, podem ter efeitos especificamente prejudiciais em pessoas com transtornos psiquiátricos”.

Embora sejam necessárias mais pesquisas sobre os efeitos de medicamentos sedativos na cognição social para avaliar seus efeitos na cognição social, as pesquisas disponíveis sugerem uma correlação entre certos medicamentos e a cognição social prejudicada, com implicações importantes tanto para o diagnóstico quanto para o tratamento de deficiências psiquiátricas. Como os autores concluem:

“Embora tenham sido identificados déficits na cognição social em pessoas com diagnósticos psiquiátricos e estejam associados a deficiências no funcionamento social, permanecemos incertos até que ponto estes são atribuíveis aos efeitos do transtorno ou aos efeitos de seu tratamento”.

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Haime, Z., Watson, A., Crellin, N., Marston, L., Joyce, E., Moncrieff, J. (2021). “A Systematic Review of the Effects of Psychiatric Medications on Social Cognition.” (Preprint). 10.21203/rs.3.rs-651572/v1(Link)

Os pacientes têm maior Probabilidade de Recusar o Tratamento quando Apenas com Medicamentos, conclui o estudo

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“Side Effects” de Lee Royal, Flickr

American Psychological Association (APA) publicou em 2017 um estudo descobrindo que os pacientes designados para tratamentos apenas com drogas eram mais propensos a recusar o tratamento, e mais propensos a desistir antes do término do tratamento, do que os pacientes designados apenas para psicoterapia.

“Tanto para a psicoterapia quanto para a farmacoterapia, o benefício do tratamento pode ser encontrado na perspectiva de melhora; no entanto, os clientes podem perceber benefícios adicionais à psicoterapia em relação à medicação, pois a psicoterapia geralmente inclui um contato mais frequente com um indivíduo atencioso que ouve e oferece apoio de uma maneira não julgadora. ”

“Side Effects” de Lee Royal, Flickr

Um ‘corpus’ de pesquisa buscou investigar as circunstâncias que cercam a recusa do paciente ao tratamento e a interrupção prematura. Em vários estudos, observou-se que a recusa do tratamento ocorre com mais frequência com farmacoterapia do que com psicoterapia . No entanto, alguns estudos individuais descobriram que o caso é o oposto, necessitando de uma investigação mais abrangente. A interrupção prematura, ou abandono do paciente antes da conclusão do tratamento, ocorre quando os benefícios do tratamento são superados pelos riscos.

Esta percepção é apoiada por meta-análises que estimam até 30% a 50% dos pacientes abandonam o tratamento farmacoterápico contra aproximadamente 20% na psicoterapia . É provável que esses números variem entre os diagnósticos, visto que eles variam entre os diagnósticos de depressão e anorexia , embora os números gerais pareçam sugerir  uma preferência do paciente por tratamento psicoterápico.

A importância desta pesquisa é enfatizada pelos efeitos deletérios que os indivíduos podem experimentar por não receber o tratamento adequado. Esses efeitos variam da falha em melhorar até a morte. Esses riscos são colocados ao lado das preocupações de que a sociedade em geral incorra em custos significativos associados ao aumento das taxas de mortalidade associadas a ‘transtornos mentais’.

Vários motivos foram apresentados para justificar a recusa do tratamento e o término prematuro, incluindo dois fatores principais, o  estigma associado ao tratamento ( ver relatório recente da MIA) e custos específicos. Os custos financeiros são citados de forma mais direta, mas um custo único para a psicoterapia envolve a experiência de se abrir para outro indivíduo de uma forma que envolve regularmente o confronto de emoções e experiências dolorosas ou angustiantes. Para alguns, essa dificuldade é suficiente para fazer com que a alternativa medicamentosa pareça mais atraente, uma alternativa acompanhada por seus próprios custos exclusivos, mais frequentemente vistos na forma de efeitos colaterais negativos, e preocupações de que esse tratamento não tenha eficácia em longo prazo.

Em um esforço para consolidar e reunir de forma abrangente os dados existentes sobre este tópico, Joshua Swift e pesquisadores examinaram 186 estudos e compilaram uma meta-análise focada especificamente na comparação das taxas de interrupção prematura e recusa ao tratamento.

“Comparar as taxas de recusa e abandono do tratamento é importante porque, mesmo que um tratamento se mostre mais eficaz do que outro, esse tratamento pode ser de poucos benefícios se os clientes não estiverem dispostos a se envolver nele.”

Neste estudo, quatro opções de tratamento foram comparadas: pacientes recebendo apenas farmacoterapia, pacientes recebendo apenas psicoterapia, pacientes recebendo ambas e pacientes recebendo psicoterapia com pílula placebo. Os estudos naturalísticos foram excluídos em favor de comparações diretas apenas, uma decisão tomada para aumentar a validade interna do estudo. Os pesquisadores observam que as circunstâncias que cercam o abandono e a recusa do tratamento em estudos naturalísticos são menos controladas, tornando difícil discernir se o próprio tratamento é a razão da recusa ou abandono do paciente. Os pacientes neste estudo abrangeram uma longa lista de diagnósticos, incluindo, mas não se limitando a, depressão, ansiedade, transtornos alimentares, PTSD, esquizofrenia e TOC.

Os resultados deste estudo demonstram que, em geral, 8% dos pacientes recusaram o tratamento e 20% dos clientes interromperam prematuramente. Embora uma taxa de recusa de 8% pareça mínima, os pesquisadores pedem aos leitores que considerem que esses clientes haviam concordado anteriormente em se envolver no tratamento. Esses resultados apoiam a hipótese dos pesquisadores, apoiada pela literatura existente, de que os pacientes são mais propensos a recusar o tratamento farmacoterápico do que a recusar o tratamento psicoterápico. Os pacientes nesta meta-análise eram cerca de duas vezes mais propensos a recusar a farmacoterapia designada, particularmente clientes com diagnóstico de depressão (2,16), transtorno do pânico (2,79) e transtorno de ansiedade social (1,97).

No entanto, as taxas inconsistentes de recusa entre os diagnósticos enfatizam a necessidade de explorar essas razões em pesquisas futuras. Os autores comentam sobre esta descoberta:

“Independentemente do motivo, é importante reconhecer que clientes com transtorno de ansiedade social, depressão e transtorno do pânico terão maior probabilidade de iniciar o tratamento se tiverem a opção de receber psicoterapia”.

Da mesma forma, os pacientes designados para tratamento farmacoterápico tinham 1,20 vezes mais chance de desistir antes do término do tratamento. Pacientes com diagnóstico de anorexia ou bulimia tiveram 2,46 vezes mais chances de encerrar prematuramente a farmacoterapia e pacientes com diagnóstico de transtornos depressivos 1,26 vezes mais chances. Os dados de um estudo individual nesta meta-análise indicaram que os pacientes com diagnóstico de PTSD tinham 10,8 vezes mais probabilidade de abandonar a condição apenas de farmacoterapia do que a psicoterapia com uma condição de pílula placebo.

As comparações entre as condições singulares e os tratamentos combinados não resultaram em resultados significativos. Isso significa que, nesses estudos, a recusa e o abandono do tratamento não diferiram significativamente entre a farmacoterapia ou psicoterapia sozinha e as condições de tratamento combinadas (farmacoterapia mais psicoterapia e psicoterapia mais pílula placebo).

Os desenhos de estudos metanalíticos são limitados porque é impossível incluir e contabilizar todos os estudos relevantes existentes. Os estudos incluídos podem não fornecer informações completas sobre a recusa ou abandono do tratamento, e aqueles que o fazem podem ser limitados em fornecer todas as circunstâncias contextuais que envolvem as decisões do paciente. Além disso, alguns resultados, como aqueles relativos a diagnósticos específicos, só podem ser extraídos de um pequeno número de estudos incluídos, portanto, devem ser considerados com cuidado.

Os resultados deste estudo apóiam a literatura existente, destacando a preferência do cliente por condições apenas de psicoterapia em vez de tratamentos apenas de farmacoterapia.

“Assim, os resultados desta meta-análise fornecem suporte adicional de que a psicoterapia deve ser considerada um tratamento de primeira linha para muitos transtornos psicológicos”, escrevem os autores.

Além disso, existem poucas informações para explicar o motivo dessa adesão e preferência, enfatizando a necessidade de consultar os pacientes sobre suas preferências, monitorar os resultados ao longo do tratamento, verificar com os pacientes sobre suas experiências ao longo do tratamento e priorizar a colaboração e promoção do paciente -provedor relacionamento, bem como outros fatores comuns . Outras estratégias com foco na acomodação de pacientes com maior probabilidade de abandonar ou recusar o tratamento são descritas . Os pesquisadores observam:

“Embora a psicoterapia tenha mostrado taxas de recusa e abandono mais baixas quando comparada à farmacoterapia, muitos clientes recusaram ou não completaram todas as condições de tratamento. Essa descoberta sugere que um determinado tratamento pode não ser adequado para todos os clientes. Em vez disso, os provedores devem trabalhar para incorporar as preferências, valores e crenças dos clientes no processo de tomada de decisão do tratamento. ”

Os pesquisadores apontam que os estudos têm tradicionalmente focado nos resultados do tratamento, negligenciando as taxas de abandono ou recusa do paciente e sugerindo a necessidade de maior pesquisa e transparência dessas ocorrências dentro da psicoterapia. Isso também traz consigo implicações sobre o quanto se pode saber sobre a eficácia das intervenções atuais.

“Com base nesses resultados, acreditamos que, além de considerar a eficácia do tratamento, os referenciadores e provedores de tratamento e aqueles que desenvolvem diretrizes de tratamento devem considerar as taxas de recusa e abandono ao fazer recomendações de tratamento. Afinal, um tratamento altamente eficaz só pode funcionar se os clientes estiverem dispostos a se envolver nele. ”

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Swift, JK, Greenberg, RP, Tompkins, KA, & Parkin, SR (2017). Recusa de tratamento e término prematuro em psicoterapia, farmacoterapia e sua combinação: Uma meta-análise de comparações diretas. Psychotherapy, 54 (1), 47-57. doi: 10.1037 / pst0000104 (Resumo)

Trazendo Abordagens Baseadas em Direitos à Saúde Mental para o Aconselhamento Universitário

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Encontro de adolescentes com uma psicóloga femininapsychologist

Um novo artigo publicado no Community Mental Health Journal  descreve como o Centro de Aconselhamento e Bem-Estar da Universidade da Flórida (UFCWC) começou a adotar um paradigma baseado em direitos para a saúde mental, consistente com o que foi descrito por Dainius Pūras em seu papel enquanto o Relator Especial das Nações Unidas para o Direito à Saúde.

O artigo “Rumo a uma Abordagem de Direitos Humanos para a Saúde Mental” descreve as etapas que o centro de aconselhamento deu para enfatizar o treinamento profissional baseado em direitos, garantir consentimento informado genuíno e oferecer alternativas de apoio entre pares não comprometidas com o sistema dominante. O artigo foi escrito pelo psicólogo e advogado Jim Probert .

“Ao longo dos anos cultivando relacionamentos colaborativos e diálogos difíceis, o Centro de Aconselhamento e Bem-Estar da Universidade da Flórida (UFCWC) desenvolveu programas de suporte e treinamento de pares que começam a abordar questões essenciais identificadas nos movimentos do usuário do serviço”, escreve Probert.

“Esses programas também estão começando a levar o UFCWC a cumprir os dois ‘indicadores críticos’ formalmente identificados de trabalho de acordo com o relatório da ONU. Esses indicadores são (1) educação e treinamento sobre o uso de medidas não consensuais e (2) a disponibilidade de alternativas de apoio de pares não comprometidas com o sistema dominante”

Encontro de adolescentes com uma psicóloga femininapsychologist

A maneira como entendemos coletiva e globalmente a saúde mental e o bem-estar está mudando. Não apenas as Nações Unidas promoveram os direitos humanos das pessoas com deficiências psicossociais, mas a Organização Mundial da Saúde também  emitiu recentemente orientações sobre como alinhar o tratamento de saúde mental global com os padrões de direitos humanos. Qual é a aparência de uma abordagem baseada-em-direitos quando implementada em um campus universitário?

Probert é um psicólogo conselheiro e professor associado clínico da Universidade da Flórida que foi hospitalizado duas vezes e supervisionou muitas das mudanças descritas em seu artigo. Ele observa que em 2010, sete anos antes de Pūras lançar seu relatório, o UFCWC já havia começado a abordar as falhas em seu sistema de saúde mental em uma pequena escala. Inicialmente, essas pequenas mudanças foram como que seminários de treinamento sobre atendimento informado com relação ao trauma e à prevenção do suicídio, com o objetivo de ser um diálogo aberto e novas formas de pensar.

Com o passar dos anos, Probert e outros do Centro de Aconselhamento e Bem-Estar da Flórida começaram a reconhecer outras formas de pensar sobre a doença mental, o que abriu a porta para novas mudanças baseadas em direitos – mudanças que centralizam o usuário do serviço e a sua experiência.

Em 2020, o Centro organizou seminários que reconheceram “a falta de validade científica das categorias convencionais de diagnóstico” e que os fundamentos biológicos da maioria dos principais transtornos psiquiátricos permanecem desconhecidos. Ao lado dessas falas, surgiu um ambiente para estagiários e estudantes de medicina no internato repensarem a prevenção do suicídio. Probert observa que é extremamente difícil, se possível, estimar o perigo de suicídio e, em seguida, reagir a ele de forma adequada.

O treinamento e os seminários também forneceram a oportunidade para o Centro avançar em direção a ‘alternativas de apoio de pares não comprometidas com o sistema’, uma pedra angular da saúde mental baseada em direitos. Probert escreve:

“Em 2015, o UFCWC passou a oferecer formas de apoio desenvolvidas dentro desses movimentos [liderados pelo usuário do serviço], que podem ser contratados como alternativas ou complementos aos apoios convencionais. Trabalhando com a colaboração de estudantes com experiência de pacientes, quatro membros do corpo docente do UFCWC facilitaram formalmente grupos de apoio de pares enquanto identificavam abertamente suas próprias experiências variadas de sofrimento mental.”

O modelo de apoio de pares levou à criação de diálogos de grupo de Apoio Intencional de Pares, um Grupo Experiencial de Apoio de Pares, um Grupo Ouvidores de Vozes e a integração de um Plano de Ação de Recuperação de Bem-Estar (WRAP). De acordo com Probert, esses esforços têm funcionado para quebrar as barreiras à inclusão e melhorar as experiências de cuidado dos usuários e alunos dos serviços.

O objetivo do esforço não é recriar “uma prática patenteada e feita de maneira mecanizada.”, mas, em vez disso, defender uma mudança no sistema baseada em direitos. Probert argumenta que a saúde mental baseada em direitos em Centros de Aconselhamento Universitários deve integrar as calamidades mais recentes do nosso mundo – as crises atuais de saúde, economia e justiça social – para que os profissionais de saúde mental possam reconhecer coletivamente as responsabilidades compartilhadas pela mudança social.

A implementação de abordagens clínicas mais baseadas em direitos abre espaço para que os usuários dos serviços e indivíduos com experiência de vida em sofrimento psíquico liderem o caminho.

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Probert, J. (2021). Moving toward a human rights approach to mental health. Community mental health journal, 1-13. (Link)

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Iniciativas como essa são um exemplo do que podemos fazer aqui no Brasil no meio universitário. Entre nós, é comum serem disponibilizados programas de assistência estudantil em saúde mental. Contudo, em geral é reproduzido o ‘modelo biomédico’ da assistência em saúde mental: diagnóstico psiquiátrico, tratamento farmacológico, terapias individuais, etc. A experiência em tela, desenvolvida na Universidade da Flórida (USA), abre novas perspectivas, criando espaços dialógicos alicerçados em relações interpessoais não hierárquicas, onde o know-how dos usuários dos serviços ganha protagonismo e a abordagem é orientada pelos direitos humanos. E contribui para a formação de profissionais não comprometidos com o ‘modelo biomédico’ da Psiquiatria. A conferir as diversas matérias publicadas aqui no MIB a respeito das orientações recentes da OMS e da ONU com relação aos direitos humanos dos usuários dos serviços em saúde mental.

NOTA DA EDITORIA DO MIB

Sofrimento Psíquico na Infância: Psicopatologização e Medicalização

Muitos têm sido os trabalhos que se dedicam a analisar mudanças sócio históricas nos tratamentos propostos aos sofrimentos psíquicos. Entre as mudanças estudadas estão os procedimentos diagnósticos propostos a partir da produção da série DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), bem como os avanços da medicalização e a medicamentalização como formas majoritárias de intervenção terapêutica. A associação entre a ampliação irrefreada de categorias diagnósticas, a disseminação do vocabulário psiquiátrico para nomear o sofrimento, a obsessão por detectar indicadores e vestígios de anomalias do desenvolvimento em tempos cada vez mais precoces da existência, são elementos que incidem hoje sobre a infância. Como consequência disso, a psicopatologização do sofrimento infantil apresenta um papel de destaque nos trabalhos acima.

Despertando cada vez mais o interesse de estudiosos e pesquisadores, o movimento de psicopatologização do sofrimento articula-se com o processo de medicalização da existência. Este último refere-se ao caráter político da medicina que enlaça a cultura, o indivíduo contemporâneo e o sofrimento, através do qual ele fala de si mesmo e do mundo ao seu redor.

Na maioria, as análises criticam a presença de diagnósticos psiquiátricos, que estabelecem as bases biológicas para os sofrimentos psíquicos, aproximando os fenômenos mentais das doenças orgânicas, ou seja, vê-se um abandono crescente da descrição causal e de sentido dos sintomas apresentados pelo sujeito em benefício de uma noção em que os sintomas são reconhecidos como manifestações de desordens da bioquímica cerebral (Aguiar, 2004).

Retomando Canguilhem, o campo da saúde mental, por ter fronteiras instáveis, difusas e ambíguas entre o normal e o patológico, teria favorecido o crescente processo de medicalização através do qual determinadas condutas típicas da infância passaram a ser classificadas como “anormais ou patológicas”. A biologia tornou-se  um fundamento da psicopatologia na atualidade, que embasa correntes de pensamento que se autoproclamam “ateóricas” por estarem alicerçadas na ética naturalista ou naturista.

As neurociências fornecem o instrumental que orientam a construção da explicação psiquiátrica. Por esse viés, a psicopatologia pretende ter encontrado, finalmente, sua cientificidade de fato e de direito. Além disso, a nova psicopatologia acredita ter encontrado, enfim, sua vocação médica, em um processo iniciado no início do século XIX fundado no discurso biológico (Birman, 1999).

A psicologização parece ceder lugar à psiquiatrização do discurso familiar e escolar. É relativamente comum que educadores utilizem diagnósticos diante da observação de comportamentos que considerem discrepantes nos alunos e encaminhem para avaliação psiquiátrica, neurológica ou psicológica. Quando este tipo de encaminhamento escolar encontra eco na dinâmica familiar, a nomeação psiquiátrica adquire relevo em detrimento de outras explicações subjacentes.

Kamers (2013) afirma que o discurso médico-psiquiátrico se converteu no principal dispositivo regulador do normal e do patológico na infância. Isso se dá graças às instituições de assistência à infância – a família, a escola, o conselho tutelar, as clínicas privadas, as unidades de saúde – que demandam à medicina uma intervenção medicamentosa sobre a criança. Atualmente, a medicação tem sido utilizada não apenas como a principal forma de “tratamento da infância”, mas como dispositivo de vigilância e controle que as instâncias tutelares realizam sobre a família e a criança. Nesse contexto, os dispositivos assistenciais e tutelares são os que demandam, autorizam e asseguram a intervenção médico-psiquiátrica sobre a criança.

Vorcaro (2004) afirma que a infância se tornou objeto de disputa de poderes, configurada como uma zona limítrofe de confronto entre o público e o privado, gerando novos saberes e modalidades de controle. O discurso médico-psiquiátrico, através de seus dispositivos disciplinares, é convocado a detectar e responder a qualquer entrave que a criança possa representar para o projeto social.

Essas questões estão longe de ter respostas simples, uma vez que a trama dorsal dessa discussão se encontra primordialmente assentada sobre os cuidados dispensados às crianças. Os cuidados com as crianças são cada vez mais perpassados por uma perspectiva excessivamente técnica, diagnóstica e medicalizante.

A cerebralização dos sintomas e transtornos fomentam o encurtamento do debate. A ampliação do espectro diagnóstico da doença mental aumenta o número de categorias clínicas na medida em que sua unidade decresce. A partir dos anos 1980, popularizou-se a noção de desordem ou de transtorno para substituir a antiga noção médica de doença mental. Houve um declínio da ideia de conceituar o sofrimento mental por meio de processos mais complexos, que engendram e explicam inúmeros sintomas.  A despatologização da doença mental, que pode agora ser desestigmatizada por sua renomeação como transtorno, desordem ou dificuldade, corresponde de certa forma a uma repatologização generalizada, pela qual todos nós aceitamos nossos sintomas como “normais” (Dunker, 2015).

Em termos psiquiátricos, especialmente psicopatológicos, o sofrimento infantil vem sendo nomeado, identificado e tutelado com vistas à produção de normalidade e à extinção da diferença subjacente a humanidade. Todavia, se categorias como depressão, ansiedade, TDAH, transtorno opositor desafiador, entre tantas outras, passaram a designar dificuldades infantis, também surgiram – prontamente – terapêuticas que prometem o alívio e até mesmo a “cura” da anormalidade e dos desvios de conduta. As categorias de normal, anormal e patológico passaram a dominar os discursos médicos, familiares, escolares, sociais, assim como as políticas públicas. Ao lado da difusão social massiva do discurso psicopatológico, o discurso psiquiátrico se vangloria de ter o domínio sobre drogas e protocolos que supostamente poderiam regular o mal-estar. Isso porque tais medicamentos oferecidos pela psiquiatria biológica e pela psicofarmacologia seriam capazes de incidir no metabolismo dos neuro-hormônios, não ficando a regulação do mal-estar restrita à imprecisão das psicoterapias (Birman, 2012).

Ora, se nos registros da economia, da política, das ciências, das artes e da cotidianidade o sujeito tem cada vez mais se chocado com o imprevisível que o desorienta (Birman, 2012), como as crianças não estariam sentindo os efeitos de tamanha devastação? Podemos dizer que tanto no registro coletivo como no individual, nas escalas local e global, a subjetividade foi virada de ponta-cabeça. Nas coordenadas da atualidade, as queixas se inscrevem em uma discursividade ao mesmo tempo naturalista e naturista, que constitui nossa atmosfera cultural.

No que se refere à infância podemos pensar que a medicalização incide sobre a criança através do cuidado, trazendo uma resposta rápida para o seu sofrimento, todavia, tampona e enclausura a subjetividade infantil nas classificações diagnósticas. Observamos que o tempo de espera tão necessário para o desenvolvimento infantil, para a elaboração e consolidação de cada etapa, tem sido solapado através do fenômeno da medicalização. Finalmente, o diagnóstico psiquiátrico visa a responder aquilo que não é reconhecível pelo ideal parental e social, indicando terapêuticas que sustentem a promessa de reconduzir a criança à “normalidade” e aliviar o mal-estar que a infância produz ao projeto social para, assim, sustentá-lo. A armadilha produzida por esta promessa tão inalcançável de saúde plena, bem-estar e felicidade encontra seu calcanhar de Aquiles sobre a própria premissa que propõe.  O estabelecimento das bases biológicas do sofrimento psíquico não abarca a complexidade da existência humana.

 

Referências

AGUIAR, Adriano. (2004). A psiquiatria no divã: entre as ciências da vida e a medicalização da existência. Rio de Janeiro: Relume Dumará.

BIRMAN, Joel. (2012). O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira.

CANGUILHEM, G. (2002). O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

DUNKER, C. I. L. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. Boitempo Editorial.

KAMERS, M. (2013). A fabricação da loucura na infância: psiquiatrização do discurso e medicalização da criança. Estilos da clínica, São Paulo, 18 (1), 153-165.

VORCARO, A. (2004). A criança na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

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