Pesquisadores propõem estudo para testar se os antidepressivos impedem a Recuperação

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Uma compreensão evolutiva da depressão enquanto uma adaptação, chamada de hipótese de ruminação analítica (ARH), postula que a depressão pode ter evoluído para permitir um pensamento sustentado sobre problemas sociais complexos. Esta visão sugere que os tratamentos clínicos que favoreçam as funções que a depressão desenvolveu para o enfrentamento de problemas serão mais eficazes do que aqueles – como os medicamentos antidepressivos – que meramente aliviam o sofrimento.

Além disso, a teoria evolucionista sugere que os medicamentos antidepressivos podem ter um efeito iatrogênico que prolonga a duração do episódio subjacente. Em outras palavras, ao mascarar os sintomas, os antidepressivos podem realmente prolongar os episódios depressivos, deixando-os sem solução. Para testar esta teoria, Steven Hollon, Paul Andrews e seus colegas delinearam um estudo simples de pesquisa que pode testar se os medicamentos antidepressivos são, de fato, iatrogênicos por esse motivo.

Os pesquisadores têm sugerido que os antidepressivos podem fazer mais mal do que bem. Os antidepressivos têm sido criticados por uma variedade de razões, incluindo a correlação com a incapacidade a longo prazo, problemas de abstinência, riscos na gravidez e o aumento do risco de suicídio, especialmente para os jovens. Estudos apoiados pela indústria sobre a eficácia do antidepressivo também têm sido criticados pela comunicação incorreta dos resultados de ensaios clínicos. Outros estudos têm levantado preocupações sobre o raciocínio por trás da classificação da depressão como uma doença que requer modificações neuroquímicas, em oposição, por exemplo, a mudanças sociais ou políticas.

Como Hollon escreveu em um estudo anterior, “qualquer intervenção que facilite as funções que a depressão desenvolveu para ajudar é provável que funcione melhor a longo prazo do que um antidepressivo que simplesmente anestesia a dor”.

De acordo com a hipótese de ruminação analítica, a depressão se desenvolveu para manter as pessoas concentradas na fonte de sua angústia até que possam chegar a uma solução para resolver o problema relevante. … [Nesta visão] há razões para se acreditar que os antidepressivos têm um efeito iatrogênico que prolonga a duração do episódio subjacente e que deixa os pacientes em elevado risco de recaída sempre que eles são retirados.

A depressão é o transtorno psiquiátrico diagnosticado mais comumente no mundo inteiro, e os antidepressivo são as intervenções mais comumente prescritas para o tratamento da depressão. Infelizmente, os antidepressivos parecem funcionar apenas pelo tempo em que são tomados. Apesar das preocupações de segurança em relação ao uso a longo prazo, as diretrizes da Associação Americana de Psicologia recomendam o uso indefinido para pacientes com depressão crônica.

Os autores propõem a terapia cognitivo-comportamental (TCC) como um método alternativo de tratamento que é igualmente eficaz como o antidepressivo quando implementado adequadamente, com efeitos terapêuticos de longo prazo não encontrados a partir do uso de medicamentos. Entretanto, a maior parte das evidências dos efeitos duradouros da TCC vem de comparações com o uso anterior do antidepressivo, e a amplitude em que os antidepressivos são iatrogênicos permanece, portanto, pouco clara.

Como os autores argumentam, com base na ARH, há uma possibilidade razoável de que os antidepressivos não só interfiram no efeito duradouro da TCC, mas também tenham efeitos iatrogênicos. Eles escrevem:

“Se o objetivo da ruminação analítica é chegar a uma solução para qualquer problema interpessoal complexo que primeiro desencadeou o sofrimento, então qualquer intervenção que facilite a implementação dessa solução deverá facilitar a função que a ruminação analítica desenvolveu para servir… Há motivos para pensar que acrescentar um antidepressivo pode diminuir o efeito duradouro da TCC”.

Para testar esta hipótese, os autores elaboraram um estudo randomizado que poderá determinar se os antidepressivos evitam o efeito duradouro da TCC.

Estudos anteriores simplesmente compararam resultados para pacientes deprimidos que utilizavam TCC com aqueles que utilizavam apenas antidepressivos O estudo dos autores introduz um terceiro grupo de controle experimental, um grupo pill-placebo. Se a TCC realmente tem um efeito duradouro, então os pacientes que se recuperam da depressão na TCC devem ter menos probabilidade de recorrência do que os pacientes que se recuperam em um placebo (o controle não específico necessário para determinar se a TCC está suportando) ou se o antidepressivo é iatrogênico, ou ambos. Se o antidepressivo for iatrogênico, então os pacientes que se curam com antidepressivo devem se recuperar pior do que os grupos de TCC ou de pill-placebo.

Como Hollon e seus colegas concluem:

“Sabemos que o tratamento com TCC supera o uso anterior do antidepressivo, mas ainda não sabemos por que… O estudo proposto responderá a estas perguntas e merece ser feito”.

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Hollon, S., Andrews, P., Singla, D., Maslej, M., Mulsant, B. (2021). Evolutionary Theory and the treatment of depression: It is all about the squids and the sea bass. Behavior Research and Therapy 143. (Link)

A definição de transtornos mentais é um assunto “confuso”

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Um artigo recente publicado no Psychological Medicine explora a controvérsia em torno do que constitui um ” transtorno mental “. Com base em exemplos empíricos ou “casos de teste” que surgiram durante a redação do DSM-5, os psiquiatras Dan Stein e Kenneth Kendler e a filósofa Andrea Palk discutem as fronteiras “difusas” em torno dos transtornos mentais. Em particular, eles falam sobre casos clínicos onde há “danos” mas não “disfunção psicobiológica”, “disfunção psicobiológica” mas não “danos”, e onde ambos podem estar potencialmente presentes, mas não sem controvérsia.

“A questão do ‘que é um transtorno mental’ é crucial, em parte, porque existe a possibilidade real de classificar erroneamente vários tipos de desvio social ou variação comportamental como ‘transtorno’, quando eles são melhor conceituados usando outras categorias, tais como ‘diferenças individuais não patológicas’, ‘escolha de estilo de vida’ ou ‘crime’, escrevem os autores. “Um exemplo paradigmático do DSM é o da homossexualidade, que foi conceitualizado no DSM-I como um transtorno, mas pelo DSM-5 não foi mais mencionado”.

Desde que a Associação Psiquiátrica Americana publicou o DSM-5 em 2013, tem havido uma quantidade significativa de controvérsias sobre a definição precisa de um ” transtorno mental”. A Divisão 32 da Associação Americana de Psicologia – a Sociedade de Psicologia Humanista – assim como a Sociedade Britânica de Psicologia, ambas fizeram declarações questionando algumas das categorias medicalizantes apresentadas no DSM-5.

Algumas das controvérsias delineadas nestas cartas incluem a redução dos limiares de diagnóstico, na medida que poderiam levar à patologização de muitos comportamentos “normais”, variação sociocultural na psicopatologia, incluindo se o desvio sociopolítico deve ser categorizado como mentalmente desordenado, bem como a novos avanços na promoção de uma abordagem do modelo biomédico.

Muitas dessas controvérsias não são novas e não surgiram com a publicação do DSM-5, naturalmente, tendo uma rica história dentro dos movimentos anti-psiquiátricos e aqueles liderados por pares.

O artigo atual explora em profundidade algumas dessas controvérsias, dando especial atenção aos “casos de teste” clínicos, que ilustram alguns dos problemas com os modelos psiquiátricos convencionais de transtornos mentais.

Entre os “casos de teste” que envolvem danos mas não disfunção psicobiológica, os autores incluem fenômenos como o envelhecimento, racismo e ansiedade associados a ameaças de vida, como perda de emprego e rejeição na relações amorosas.

Os autores explicam que “uma série de condições estão associadas a danos aos indivíduos e/ou à sociedade, mas que não devem ser consideradas transtornos por falta de evidência de disfunção psicobiológica subjacente”.

Em resumo, pode haver mudanças mentais, físicas e comportamentais “indesejáveis” que não estão associadas a disfunções no sentido psicobiológico. O envelhecimento se qualifica aqui, pois embora esteja associado a certos tipos de disfunção (como um espectro de deficiência cognitiva de leve a grave), muitos dos efeitos do envelhecimento são, de fato, bastante “normais”.

O racismo, da mesma forma, pode estar associado a certos aspectos disfuncionais da personalidade, mas os autores afirmam que há poucas evidências para o funcionamento psicobiológico subjacente. Isto apesar do fato de que o racismo obviamente causa muitos danos, tanto pessoal quanto socialmente. Eles afirmam:

“Ao contrário, há um consenso relativamente difundido de que as crenças e comportamentos racistas são em grande parte um produto da socialização e da cultura. Portanto, argumentaríamos que o racismo não é um transtorno; é um fenômeno que, embora sancionado em algumas culturas no passado, é agora uma forma de desvio social que deve ser abordado por uma série de diferentes intervenções sociais e educacionais. Assim, os julgamentos sobre a inclusão de uma entidade na nosologia podem exigir uma reflexão rigorosa sobre os valores culturais e sociais”.

Além disso, os autores também afirmam que apesar desses fenômenos não atenderem necessariamente aos critérios para transtornos mentais clínicos, os indivíduos ainda podem se beneficiar da psicoterapia que trabalha essas questões. Além disso, isto pode ser complicado pelo fato de que o “claro excesso” da atenção para esses comportamentos pode começar a atender aos critérios para as categorias de transtornos mentais.

Para os casos em que há disfunção psicobiológica mas sem dano claro, os autores listam condições tais como deficiência, transtornos do espectro do autismo e transtornos de identidade de gênero. Embora esses tipos de condições possam causar “desvantagem e sofrimento”, os autores localizam isso no âmbito da aceitação social e acomodação, e não em qualquer disfunção subjacente.

Com o exemplo, a surdez:

“A surdez em si não é intrinsecamente prejudicial; ao contrário, são as respostas da sociedade, ou a falta de respostas em termos de garantia de acomodação adequada, o que produz danos”.

Da mesma forma, com o espectro do autismo (particularmente casos mais leves) e condições de identidade de gênero, bem como a audição de vozes, estas questões não são necessariamente disfuncionais, mas podem tornar-se disfuncionais em termos da experiência pessoal e do acesso social, devido a barreiras e preconceitos sistêmicos.

Finalmente, os autores discutem condições onde há tanto possíveis danos quanto possíveis disfunções psicobiológicas. Apesar de algumas evidências para estes dois critérios, estas condições ainda são controversas.

Exemplos aqui incluem transtorno de comportamento sexual compulsivo, jogos pela Internet, transtornos de jogo, síndrome de psicose atenuada, e comportamento suicida. Existem controvérsias em torno destes ” transtornos ” porque seu dano é mais um risco do que um problema necessariamente real. Por causa disso, incluí-los como transtornos psiquiátricos pode levar ao sobrediagnóstico e à sobremedicalização.

Além disso, as etiologias subjacentes a esses transtornos muitas vezes não são totalmente desenvolvidas em um sentido psicobiológico, confiando no julgamento clínico e na gravidade dos sintomas.

Os autores advertem:

“Julgamentos sobre se uma entidade deve ou não ser incluída na nosologia podem exigir uma avaliação cuidadosa do grau de perda de controle, e da deficiência relacionada, particularmente no caso de comportamentos compulsivos ou viciantes”.
Em termos de comportamento suicida, os autores observam que embora possa ser sintomático de certos transtornos mentais, há também casos convincentes a serem feitos para o suicídio tanto como uma escolha racional quanto como uma forma de protesto político ou “resposta culturalmente sancionada à vergonha”.

Os autores concluem:

“Primeiro, embora o dano seja útil para definir transtorno mental, algumas entidades propostas podem exigir uma cuidadosa consideração do dano individual versus dano social, bem como da acomodação social.

Segundo, embora a disfunção seja útil para conceituar os transtornos mentais, o campo se beneficiaria do desenvolvimento de indicadores de disfunção mais definidos.

Terceiro, seria útil incorporar evidências de validade diagnóstica e utilidade clínica na definição de um transtorno mental e esclarecer melhor o tipo e a extensão dos dados necessários para apoiar tais julgamentos”.

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Stein, D. J., Palk, A. C., & Kendler, K. S. (2021). What is a mental disorder? An exemplar-focused approach. Psychological Medicine, 51(6), 894-901. (Link)

Allen Frances: Salve o Sistema de Saúde Mental de Trieste

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Em The Lancet, declaração feita pelo Dr. Allen Frances, coordenador da força tarefa do DSM-IV: “Para pessoas que nunca viram o modelo de Trieste em ação, pode parecer bom demais para ser verdade. Como pode qualquer sistema de saúde mental ajudar pacientes com condições graves e crônicas com tão poucas hospitalizações e tão pouco tratamento involuntário? Eu já estive entre os céticos profundos. Mas a imersão durante cinco visitas me convenceu de que Trieste é o melhor lugar do mundo para ser um paciente com um transtorno mental – onde as visitas aos pacientes nas prisões e nas ruas dos EUA me convenceram de que os EUA estão entre os piores. É impressionante como os pacientes se saem bem quando são bem tratados em Trieste; como ficam mais doentes quando são negligenciados nos EUA.

A abordagem de Trieste se baseia em quatro princípios: os pacientes são cidadãos merecedores de dignidade e respeito; há um grande valor terapêutico em incluí-los nas atividades diárias da cidade; o trabalho com a comunidade cria um tecido social inclusivo que acolhe os pacientes; e os pacientes funcionam melhor quando preservamos a sua liberdade e aproveitamos os seus pontos fortes.

Trieste promove a saúde mental com a sua ênfase nas relações interpessoais, no envolvimento familiar, na melhoria das condições de vida e nas oportunidades de trabalhar e se divertir. Tratamento involuntário, isolamento e portas fechadas são eliminados em um sistema que é marcadamente carinhoso e convidativo. A negligência nos EUA permite que sintomas agudos se tornem crônicos, permite que sintomas piores surjam e promove a desmoralização”.

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Quando a Homossexualidade era uma “Doença”: Minha História de Abuso

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Em setembro de 1962, a Academia Phillips Exeter em New Hampshire forçou meu colega de quarto, Geoffrey, e eu a passarmos por dois anos de tratamento psiquiátrico para sermos curados de nossa homossexualidade. Éramos apenas crianças, 16 anos de idade, e fomos confrontados com o desafio hercúleo de nos tornarmos heterossexuais enquanto vivíamos em uma escola só de meninos sem sequer ver uma menina. Nossa primeira experiência sexual foi tratada como se fosse um crime e um pecado, assim como uma doença mental. A Academia não disse a meus pais por que eu tinha que me submeter a tratamento psiquiátrico, e eles não me perguntaram.

Toda semana meu psiquiatra masculino me bombardeava com ameaças como estas:

“Se as pessoas souberem que você é homossexual, você nunca terá amigos e nunca terá emprego”.

“Todos os homossexuais acabam sendo vagabundos no Bowery”.

“Você é homossexual porque se identificou com as mulheres de sua família, mas não é tarde demais”. Agora você pode se identificar comigo e se tornar normal”.

“Você deve se casar com uma mulher como todo mundo, mas nunca deve dizer a sua esposa que você é homossexual porque se o fizer, ela ficará preocupada toda vez que você for jogar boliche com os homens de seu escritório”.

Percebi que havia um perigo muito real de que meu psiquiatra pudesse me deixar louco, e fiz tudo o que pude para evitar. Minha estratégia consistia principalmente em ler livros de homossexuais famosos, incluindo James Baldwin, Jean Genet, André Gide e Oscar Wilde. Também me perguntei se meu psiquiatra poderia estar trabalhando em mim sua própria homossexualidade reprimida. Afinal, ele havia feito carreira na Marinha como médico examinando os corpos de jovens marinheiros e agora passava seus últimos anos em uma escola preparatória para meninos.

Eu estava sendo torturado e eu sabia disso. Depois de um ano deste abuso psiquiátrico, no verão de 1963, eu tive a minha primeira alucinação. Foi uma visão beatífica. Agora eu tinha que admitir para mim mesmo que meu psiquiatra tinha de fato me levado à loucura, e não havia ninguém com quem eu pudesse falar sobre isso. Eu tinha medo de ficar preso em um asilo pelo resto da minha vida. Como minha alucinação era de natureza religiosa, eu tinha que me perguntar qual era a diferença entre o êxtase místico e o delírio esquizofrênico. Se eles eram a mesma coisa, então toda a teologia tinha que ser questionada. Comecei a ler vorazmente: livros sobre misticismo e teologia, especialmente os do teólogo alemão Paul Tillich.

De Harvard ao Hospital
Em 1962, entrei em Harvard. Durante meu primeiro ano, fiquei totalmente psicótico. Escrevi um ensaio sobre minha experiência religiosa, “A Prova Fenomenológica de Deus”, e entreguei-o a Tillich (um professor de lá) quatro horas antes do último sermão de sua vida, que terminou com as palavras “O Filho do Homem está em nossa presença”. Em seguida, sofri uma aguda reação paranóica esquizofrênica. A polícia de Harvard me levou ao Hospital McLean, anteriormente conhecido como o Asilo McLean para Loucos, e lá passei os 13 meses seguintes. Havia um rosto que reconheci em minha enfermaria: meu colega de quarto Exeter, Geoffrey. Nunca esquecerei a expressão de compaixão e horror que vi no rosto de Geoffrey quando ele percebeu que ambos agora estávamos mentalmente doentes e compartilhando o mesmo destino.

Os psiquiatras aconselharam meus pais a vender a casa deles, pois esperavam que eu ficasse confinado para sempre. Eles também lhes disseram que não deveriam ter mais contato comigo porque era culpa deles que eu estava louco. Durante meses eu não tinha idéia de por que meus pais haviam me abandonado quando eu mais precisava deles. Só descobri 30 anos mais tarde quando minha mãe me contou.

Os psiquiatras fizeram tudo o que puderam para me desencorajar. Depois de um ano de internação, um psiquiatra me informou que, quando eu tinha chegado, eu era o paciente mais gravemente doente mental que já tinha estado neste hospital, que tinha 125 anos de idade. Eles me disseram que eu nunca mais deveria voltar a Harvard. Eles encheram minhas veias com Thorazine e Stelazine. Eles me transformaram em um zumbi.

Depois desses 13 meses, o dinheiro de meus pais acabou e eu fui transferido para um hospital menos caro. Lá fui autorizado a parar de tomar drogas. Depois de dois meses, fui liberado.

Durante esse tempo, eu sabia muito bem porque estava doente. Meu psiquiatra Exeter tinha me deixado louco ao tentar reprimir minha homossexualidade. Eu havia me recusado a discutir a homossexualidade com meus psiquiatras, pois sabia que eles pensavam que era um doente mental e eu não era. Da mesma forma, eu nunca mencionei o misticismo com eles, pois sabia que eles não tinham competência em teologia. Prometi a mim mesmo que nunca mais confiaria em um psiquiatra.

Após minha libertação, a primeira coisa que minha mãe me disse foi isto: “Você nunca poderá comprar um seguro de saúde nos Estados Unidos”. As seguradoras americanas não vendem apólices para pessoas com histórico de psicose. Pensamentos me passaram pela cabeça: Primeiro, a América me deixa louco porque as pessoas pensam que a paisagem americana seria mais bonita se não incluísse nenhum homossexual. Depois, me castiga com o encarceramento e, finalmente, me diz que que para ter direito ao seguro de saúde, terei que passar toda minha vida no exílio. Os Estados Unidos é o único país que conheço que alguma vez obrigou seus cidadãos a emigrar para obter um serviço médico. Como consolo, eu disse a mim mesmo que se minha esquizofrenia me impediu de ter um seguro de saúde, ela também me salvou de ser morto no Vietnã.

O amor e o exílio
Eu sabia então que o único remédio para meus problemas seria viver abertamente. Assim que fui liberado, superei todas as minhas inibições sexuais. Voltei para Harvard, onde logo me apaixonei por Mark, que havia acabado de fugir de um hospital psiquiátrico em Connecticut. Ele tinha 18 anos de idade na época, dois anos mais novo que eu. Sua vida havia desmoronado depois que um padre católico o seduziu quando ele tinha apenas 14 anos. Sua história era tão parecida com a minha: primeiro, os adultos americanos destroem nossas vidas, e depois nos castigam, trancando-nos em asilos insanos.

O carinho de Mark me curou da minha esquizofrenia. E assim que me formei em 1968, fui para o exílio permanente, vivendo na Europa e no Canadá, onde ensinei inglês em várias universidades. Não consultei um psiquiatra nem tomei remédio psiquiátrico desde que tive alta do hospital, em 1966.

A Europa parecia ser um bom lugar para se viver como refugiado. Afinal de contas, eu já falava francês fluentemente e era proficiente em alemão e italiano. Durante os nove anos que ali lecionei, acrescentei o polonês e o espanhol ao meu repertório. A comunicação em línguas estrangeiras é uma terapia maravilhosa para uma pessoa que se recupera de uma psicose. Quando eu falo alemão, por exemplo, tudo o que eu vivi enquanto falava inglês parece pertencer a outra pessoa, a outro país, a outra época. Há também a idéia reconfortante de que se eu disser algo realmente louco em uma língua estrangeira, as pessoas vão apenas assumir que eu não aprendi a língua corretamente, enquanto que se eu disser algo bizarro em inglês, as pessoas suspeitam que eu estou realmente fora de mim.

A mudança para a Europa também ajudou a estabelecer uma barreira entre mim e minhas más lembranças da América. Às vezes, quando eu caminhava por Bonn, ouvia turistas americanos falando uns com os outros. Só o som de suas vozes me fazia pular, assustado, pois me traziam tantas lembranças de traumas que eu havia vivenciado nos Estados Unidos.

Os homens que eu havia amado não foram tão afortunados. Meu colega de quarto Exeter, Geoffrey, continuou vendo psiquiatras até 1974, quando cometeu suicídio. Eu sempre me culpei por arruinar sua vida e causar a sua morte. A maioria das pessoas diria que esta idéia é totalmente irracional, mas eu apenas a chamo de “culpa do sobrevivente”. Geoffrey não merece estar morto, e eu sinto que não mereço estar vivo. Depois que a Academia Phillips Exeter nos separou e nos fez ver psiquiatras, eu jurei nunca mais contatar Geoffrey após nosso breve reencontro no Hospital McLean. Ele precisava esquecer de mim e do que tínhamos feito juntos, eu pensei.

Mas quando ouvi falar de seu suicídio, percebi que havia errado em abandoná-lo. Talvez ele tivesse pensado em mim todos os dias durante os últimos 12 anos, assim como eu tinha pensado nele. Se tivéssemos sido simplesmente deixados sozinhos e deixados nos amar como queríamos, ele não teria se matado e eu não teria me tornado psicótico. Considero que os psiquiatras são responsáveis por sua morte e pelo meu colapso mental, mas eles não assumirão responsabilidade por nenhum de nós.

Algumas semanas após minha saída da América, Mark foi descoberto pelo diretor de cinema italiano Michelangelo Antonioni, que o escolheu para ser a estrela de seu filme Zabriskie Point. Antonioni estava procurando o jovem mais furioso da América para o papel principal em seu filme sobre jovens revolucionários marxistas americanos, e encontrou meu Mark, de 20 anos de idade, parado em uma rua de Boston tendo uma altercação com um marinheiro.

Eu estive na Europa durante toda a carreira cinematográfica de Mark. Em 1973, Mark decidiu iniciar a Revolução encenando um assalto à mão armada em seu banco local, mas seu apocalipse socialista nunca aconteceu. Em 1974, quando Mark estava na prisão e eu estava lecionando em uma universidade alemã, eu lhe disse: “Você é o Cristo sofredor”. Foi a declaração mais sincera que eu já fiz. Um ano depois, ele morreu na prisão aos 27 anos de idade. A história oficial diz que foi um acidente, mas acredito que seus companheiros de prisão o mataram. Eu nunca deixei de adorá-lo.

A luta contra a homofobia
Durante minha vida, a vida dos homossexuais melhorou muito na América do Norte e na Europa Ocidental. Os horrores que fui forçado a sofrer são agora impensáveis, mas continuam a levantar questões sobre a ética da psiquiatria. Durante os anos 50, os psiquiatras usaram diferentes técnicas para “curar” a homossexualidade, incluindo “terapia” de choque elétrico, comas de insulina, lobotomias e castração química. Sob a influência do comportamentalismo, o paciente homossexual foi mostrado a imagem de um homem nu em uma tela e recebeu um choque elétrico. A imagem foi então substituída por uma imagem de uma mulher nua, ao mesmo tempo em que o choque cessou. O objetivo desta tortura era fazer a paciente associar desejos homossexuais com dor e desejos heterossexuais com a remoção da dor.

A Associação Psiquiátrica Americana ainda classificava a homossexualidade como uma doença mental até 15 de dezembro de 1973. Foi quando, em sua reunião anual em Boston, um psiquiatra homossexual (usando uma máscara para esconder sua identidade) suplicou a seus colegas que removessem a homossexualidade do manual de doenças mentais. Enquanto isso, a Associação Psiquiátrica Canadense havia dito ao mesmo tempo que a homossexualidade não era uma doença mental. Permanece um mistério como a orientação sexual pode ser patológica de um lado da fronteira e saudável do outro, ou como ela pode ser uma doença num dia e perfeitamente normal no outro.

Tudo isso prova que a psiquiatria não é uma ciência, mas um ‘potpourri’ de preconceitos, fobias e incertezas dos psiquiatras. A Associação Psicanalítica Americana pediu desculpas por uma época ter tratado a homossexualidade como uma doença mental, mas a Associação Psiquiátrica Americana ainda não o fez. É difícil imaginar quanto dinheiro os psiquiatras já ganharam ao tentar convencer os homossexuais de que estávamos mentalmente doentes e que o remédio poderia ser encontrado dentro de seus consultórios.

Atualmente, a “terapia” de conversão para homossexuais foi proibida em 20 estados americanos, principalmente nas costas do Atlântico e do Pacífico. O Canadá e a Alemanha elaboraram leis para proibi-la, e espera-se que elas entrem em vigor em breve. Entretanto, a Rússia ainda tem uma lei que proíbe a “propaganda homossexual”. Este ensaio se enquadraria nessa categoria. Há cidades na Polônia que se orgulham de anunciar que estão em “zonas livres de LGBT”, o que significa que as minorias sexuais não são bem-vindas lá. Em 72 países, as atividades homossexuais entre homens ainda são consideradas criminosas, 44 países proíbem as relações lésbicas, e 11 países consideram as atividades homossexuais como uma ofensa capital.

O escritor italiano Primo Levi, que sobreviveu a Auschwitz e depois cometeu suicídio quando voltou para casa na Itália, disse: “Chi è stato torturato rimane torturato“: “Aquele que foi torturado permanece torturado”. Esta é a história da minha vida. psyc

Homossexualidade reprimida e esquizofrenia
Durante minha extensa leitura sobre esquizofrenia e homossexualidade, procurei exemplos de homens cuja doença era como a minha; em outras palavras, pessoas cuja esquizofrenia era causada pela repressão de sua homossexualidade. Os psiquiatras de hoje, todos os quais considero charlatães, se recusam a reconhecer que a repressão sexual pode causar doenças mentais, embora o próprio Sigmund Freud tenha sido a primeira pessoa a promover esta idéia.

Através de minhas pesquisas, descobri quatro esquizofrênicos famosos cuja doença parece ter sido causada pela repressão de sua homossexualidade. Eles são o juiz alemão Daniel Paul Schreber (1842-1911), o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), o poeta quebequense Émile Nelligan (1879-1941) e o matemático americano John Nash (1928-2015). Publiquei artigos sobre todos eles na revista chinesa Journal of Literature and Art Studies.

Nietzsche, por exemplo, foi o filósofo alemão mais famoso do século XIX. Como explico em meu artigo, ele se tornou totalmente psicótico em 1889 aos 45 anos de idade e passou os últimos 11 anos de sua vida em estado vegetativo, vivendo primeiro em um asilo de loucos e depois em custódia dada por sua mãe e irmã. Em 1989, Joachim Köhler publicou um livro que revelou a história da homossexualidade de Nietzsche: Zarathustras Geheimnis (Zarathustra’s Secret). Este livro criou um escândalo entre os estudiosos de Nietzsche porque suas idéias demonstram o ponto de vista homofóbico dos muitos biógrafos de Nietzsche que discutem sua vida sexual árida e a falta de relações heterossexuais sem considerar uma vez a possibilidade de Nietzsche ser homossexual. Segundo Köhler, Nietzsche começou a fazer viagens à Itália aos 37 anos de idade em busca de aventuras homossexuais. Na época, a Alemanha tinha uma lei que punia os atos homossexuais com até cinco anos de prisão. A Itália não tinha tal lei, e assim se tornou o destino preferido dos alemães em busca de prazeres homossexuais.

Um dos principais argumentos do movimento anti-psiquiatria é que os psiquiatras nunca concordam entre si, e o caso de Nietzsche oferece um exemplo perfeito. Psiquiatras sérios, respeitados e eruditos escreveram artigos científicos brilhantes “provando” a verdadeira causa da psicose de Nietzsche. O problema é que todos eles discordam uns dos outros. Alguns dizem que sua psicose foi devido a uma doença bipolar, alguns dizem que foi devido à esquizofrenia, alguns dizem que foi devido à sífilis, e outros dizem que foi devido a um tumor cerebral. Seu amigo Richard Wagner alegou que a verdadeira causa era a masturbação excessiva. Como eu digo, acredito firmemente que foi devido a ele ter que negar quem ele era, tanto para o mundo quanto para si mesmo. Não deve ser surpresa que meu artigo sobre Nietzsche tenha causado muita controvérsia entre os admiradores de Nietzsche, cujos preconceitos homofóbicos os cegaram para o que parece óbvio.

Eu consegui passar os últimos 55 anos fora dos hospitais psiquiátricos, enquanto Nietzsche esteve confinado por 11 anos. Uma grande diferença entre ele e eu é que eu sempre soube qual era a causa de minha psicose, e ele aparentemente nunca soube. Nos últimos 25 anos, eu tenho desfrutado de um relacionamento estável e feliz com meu marido, que é um homem local aqui no Quebec. Meu conselho aos jovens americanos que lutam contra doenças mentais é aprender línguas estrangeiras e recomeçar a vida em outro país que seja menos violento e menos confuso.

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Recebems blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são projetados para servir como um fórum público para uma discussão-psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as próprias dos escritores.

 

Pesquisadores criticam o modelo biomédico e propõem uma alternativa

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Em um novo artigo, os pesquisadores fazem uma crítica convincente das práticas atuais no cuidado da saúde mental e propõem uma mudança de paradigma baseada em alternativas existentes e bem sucedidas.

Os autores foram Radosław Stupak, e Bartłomiej Dobroczyński na Universidade Jagiellonian, Polônia, e o artigo foi publicado no International Journal of Environmental Research and Public Health.

Apesar do aumento avassalador dos serviços psiquiátricos, não houve melhora nos resultados para pessoas diagnosticadas com doenças mentais, de acordo com Stupak e Dobroczyński. Ao contrário, os resultados só pioraram desde o início da era da medicação. Por exemplo, o número de pessoas que tomam receitas médicas de longo prazo continua a aumentar, assim como a taxa de suicídio e a taxa de incapacidade devido a “doença mental”.

O foco esmagador em biologia na pesquisa em saúde mental, os autores escrevem, “falhou em abordar o objetivo principal que a pesquisa psiquiátrica deveria servir aos pacientes. O progresso em neurociência não parece se traduzir em melhores tratamentos, e novas drogas não são melhores do que aquelas descobertas por acidente em meados do século 20 e trabalham com os mesmos princípios subjacentes”.

Eles observam que as Nações Unidas se concentraram recentemente nas críticas à psiquiatria biomédica, particularmente no trabalho do Relator Especial da ONU Dainius Pūras.

Por exemplo, Pūras escreveu, em seu relatório sobre o direito de todos ao gozo do mais alto padrão atingível de saúde física e mental, que “os sistemas de saúde mental no mundo inteiro são dominados por um modelo biomédico reducionista que usa a medicalização para justificar a coerção como uma prática sistêmica e qualifica as diversas respostas humanas a determinantes sociais e subjacentes prejudiciais (tais como desigualdades, discriminação e violência) como ” transtornos” que precisam de tratamento”.

Ou seja, as explicações biomédicas do sofrimento encorajam as pessoas a verem suas emoções como respingos aleatórios de produtos químicos desequilibrados no cérebro, em vez de como a resposta natural a traumas e outros fatores sociais como pobreza ou racismo, ou mesmo situações como trabalho estressante ou problemas na vida romântica – tudo isso tem mostrado levar ao sofrimento muito mais do que qualquer hipótese de produtos químicos.

“Uma consequência particularmente preocupante disto”, escrevem Stupak e Dobroczyński, “é o fato de que algumas pessoas com diagnósticos psiquiátricos podem até mesmo perder a capacidade de entender seus estados mentais como algo que está diretamente ligado às vidas que vivem”.

Se alguém vê sua angústia como devida ao assédio no local de trabalho, por exemplo, pode tentar mudar de emprego. Mas se eles pensam que seu “cérebro avariado” é o problema, podem se sentir impotentes para escapar dessa angústia – e se concentrar em tratar sua “doença mental” com medicamentos em vez de mudar essa situação problemática da vida.

Talvez ainda mais importante, quando a sociedade vê a angústia como um problema biomédico individual, então questões como desigualdade social, racismo estrutural, dívida de empréstimo estudantil, etc., podem ser todas colocadas em segundo plano. Mais fundos irão para os cuidados médicos individuais – normalmente drogas – e menos fundos serão usados para resolver problemas estruturais e sociais. Assim, o ciclo continua.

“Compreender os distúrbios psiquiátricos como conseqüências principais de várias circunstâncias da vida e seus significados para os indivíduos exigiria uma remodelação radical dos cuidados de saúde mental”, Stupak e Dobroczyński escrevem.

Drogas psiquiátricas

Uma mudança importante, de acordo com os autores, está na forma como vemos as drogas psiquiátricas. Estes medicamentos não agem de maneira específica e identificável sobre processos biológicos conhecidos. Em vez disso, os medicamentos psiquiátricos têm efeitos generalizados em múltiplos sistemas no cérebro e no corpo. Os pesquisadores não sabem qual destes muitos efeitos – se algum – pode aliviar várias formas de sofrimento.

Em vez disso, os autores sugerem que as drogas psiquiátricas devem ser vistas de forma muito semelhante ao café ou ao álcool. Essas drogas têm efeitos, mas são amplas e funcionam de maneira diferente para pessoas diferentes. Elas também têm efeitos prejudiciais quando usadas a longo prazo. Finalmente, a melhor maneira de entender os efeitos destas drogas é através de pesquisas qualitativas – perguntando às pessoas o que elas acham útil sobre as drogas, por que elas as usam – do que através de ensaios clínicos.

Isto porque os ensaios clínicos forçam os efeitos dos medicamentos em caixas estreitas – redução do sintoma, como definido por uma medida específica, por exemplo. Entretanto, os efeitos reais dos medicamentos são generalizados e o que uma pessoa considera útil pode não ser capturado por essa medida. Além disso, os danos das drogas também são difíceis de serem capturados através de uma simples lista de verificação, especialmente quando esses danos podem envolver confusão de identidade ou outros estados profundamente fenomenológicos que são difíceis de serem avaliados objetivamente.

Portanto, Stupak e Dobroczyński sugerem que as drogas sejam usadas apenas a curto prazo: “Certamente, em algumas circunstâncias, o sono induzido farmacologicamente, por exemplo, é melhor do que não dormir, mas isso não significa necessariamente que o uso prolongado de hipnóticos, sedativos ou neurolépticos seja indispensável ou benéfico. As drogas poderiam então ser usadas principalmente como soluções de curto prazo, ajudando a superar dificuldades temporárias específicas, de uma forma um pouco semelhante, pois pode-se beber uma xícara de café para combater a fadiga ou tomar uma bebida alcoólica para relaxar”.

Da mesma forma, drogas como a cetamina ou a psilocibina podem melhorar as interações terapêuticas quando usadas para induzir estados alucinógenos. Mas ao invés disso, seus efeitos estão sendo reduzidos a mecanismos biológicos, a indústria farmacêutica os está comercializando em baixas doses que não atingem esses estados que alteram a mente, e estão sendo entregues sem terapia de acompanhamento. Tomando uma experiência alucinógena, mística e reduzindo-a a um efeito biológico – removendo a razão pela qual as pessoas realmente querem usar a droga – pode ser por isso que os resultados dos ensaios com cetamina, por exemplo, têm sido tão abaixo do esperado.

Os autores escrevem:

“Geralmente, nosso pensamento sobre o uso de drogas psiquiátricas poderia seguir os princípios da redução de danos, como no caso do uso ilícito de drogas, não apenas nos casos de abstinência, mas como um princípio orientador. As drogas devem ser usadas voluntariamente (como todos os outros serviços – caso contrário falar de “usuários de serviços” é meramente uma distração lingüística; alguém que é tratado contra sua vontade não é um “usuário” nem um “consumidor”) e depende de um consentimento informado real”.

Etiquetas diagnósticas

Sua crítica final envolve o uso de etiquetas de diagnóstico. De acordo com os autores, os diagnósticos psiquiátricos são vagos, ambíguos e subjetivos. Duas pessoas com o mesmo diagnóstico muitas vezes têm experiências e “sintomas” muito variados.

Além disso, a terminologia diagnóstica e as explicações biológicas realmente aumentam o estigma, incluindo o desejo de distância da pessoa com um diagnóstico e a percepção da pessoa com um diagnóstico como sendo mais perigosa e tendo menos controle. Como resultado, até mesmo os trabalhadores da saúde mental são menos empáticos quando acreditam em rótulos de diagnóstico biomédico. Em contraste, explicações que são ambientais – você se sente angustiado por causa de algo que aconteceu com você – e normaliza a angústia como uma reação natural leva a menos estigma e discriminação.

Stupak e Dobroczyński escrevem: “Os diagnósticos podem ser considerados como a principal fonte de estigma, auto-estigma, desequilíbrios de poder dentro do sistema psiquiátrico e uma desculpa para tratamento forçado e violações dos direitos humanos que efetivamente produzem cidadãos de segunda classe”.

Em vez de diagnósticos, os autores sugerem que uma estrutura mais humanista (como o Power Threat Meaning Framework) poderia ser usada, mas até mesmo um simples enfoque nas experiências específicas da pessoa, em vez de tentar encaixá-las em um rótulo de diagnóstico, poderia ser melhor.

“Deveríamos estar fazendo perguntas como: o que aconteceu com você? Como isso afetou você? Que sentido você deu a isso? O que você teve que fazer para sobreviver? em vez de repassar listas de verificação de sintomas para chegar a um diagnóstico”.

Eles sugerem que esta abordagem pode ajudar a capacitar as pessoas a se verem como participantes ativos na melhoria de suas vidas – em contraste com a visão biomédica, que inspira a desesperança e o medo de que seus “cérebros estejam quebrados” e nunca possam mudar.

Reformulando o cuidado com a saúde mental

Então, como pode ser reformulado e melhorado o cuidado com a saúde mental? De acordo com Stupak e Dobroczyński, a solução já está à nossa frente. Ela envolve simplesmente combinar uma série de abordagens que já demonstraram ser eficazes, mas que a psiquiatria convencional ignorou:

  1. Diálogo Aberto
  2. Casas Soteria
  3. Psicoterapia individual e de grupo
  4. Verificação de reações adversas a medicamentos e serviços psiquiátricos para ajudar as pessoas a descontinuar os medicamentos
  5. Auto-ajuda e serviços de apoio contínuo
  6. Serviços de apoio à moradia, atividades cotidianas e emprego

Eles escrevem que as abordagens de Diálogo Aberto são a melhor solução se uma pessoa estiver em crise ou para os primeiros casos de sérias dificuldades. Segundo os autores, o Diálogo Aberto oferece ajuda imediata, tem uma perspectiva de rede social e possibilita o diálogo. Esta abordagem inclui todos os membros do sistema social da pessoa aflita e tenta gerar diálogo para que o sistema possa encontrar novas formas de trabalho em conjunto para atender às necessidades de todos. As etiquetas de diagnóstico são menos importantes, e o problema identificado é visto como uma disfunção no sistema social, não em um indivíduo.

As abordagens de Diálogo Aberto, particularmente as da Finlândia, levam a melhorias poderosas nas pessoas com psicose, incluindo resultados de recuperação, muitas vezes com um uso mínimo de drogas psiquiátricas. Infelizmente, há poucas abordagens como esta nos EUA.

As casas Soteria podem fornecer os cuidados mais intensivos, de estilo residencial, que algumas pessoas precisam. Consistente com o Diálogo Aberto, a Soteria se concentra em “estar com” a pessoa em dificuldade, em vez de um “tratamento” hierárquico. Também enfatiza a natureza interpessoal e sistêmica da angústia, em vez de um modelo de “doença”. Mas a Soteria também fornece moradia e ajuda em tempo integral para as pessoas que estão em grave aflição.

Para pessoas que precisam de cuidados menos intensivos, psicoterapia individual e em grupo pode ser fornecida. Os autores enfatizam particularmente a terapia informada do trauma, mas o foco deve ser permitir que a pessoa escolha a modalidade e a intensidade da terapia que funciona melhor para ela.

Com base nas pesquisas sobre fatores comuns da terapia, eles escrevem: “Pode parecer que, na realidade, a possibilidade de ter uma conversa confortável, cuidadosa e respeitosa com outra pessoa é o mais importante e útil na grande maioria dos casos”.

Quando se trata de medicamentos psiquiátricos, as pessoas precisam receber o consentimento plenamente informado sobre os riscos e benefícios potenciais, e não devem ser administrados contra a vontade de uma pessoa. Além disso, para as pessoas que optam por tomar medicamentos psiquiátricos, é necessário realizar uma triagem constante para detectar os efeitos adversos. Finalmente, o sistema médico deve fazer da ajuda às pessoas para que se retirem dos medicamentos uma prioridade.

Os serviços de avaliação por pares, incluindo grupos de auto-ajuda e centros do tipo clubhouse, poderiam ajudar as pessoas a trabalhar para a recuperação. De acordo com Stupak e Dobroczyński, estes deveriam ser independentes e não hierárquicos o máximo possível, em vez de serem cooptados para o modelo de “tratamento” médico. Eles podem fornecer uma maneira para as pessoas ajudarem umas às outras a darem sentido à sua angústia e trabalharem em prol da recuperação pessoal.

Finalmente, um sistema de saúde mental verdadeiramente humano ajudaria as pessoas a viverem de forma independente, fornecendo moradia, apoiando o emprego e fornecendo apoio de renda.

Stupak e Dobroczyński escrevem que todos estes componentes já existem – eles simplesmente não estão sendo utilizados pelo sistema atual. Portanto, reformular o sistema de saúde mental estruturando-o de acordo com estas seis soluções seria mais eficaz, promoveria melhor a recuperação e a inclusão social e seria mais consistente com uma abordagem de direitos humanos, como a descrita por Pūras e pela ONU.

Os autores enfatizam que o tratamento involuntário é, na melhor das hipóteses, uma abordagem paternalista para as pessoas com deficiência e, na pior das hipóteses – como a ONU tem afirmado – uma violação dos direitos humanos. Eles argumentam que se as pessoas não tiverem mais que temer coerção e ação punitiva se interagirem com o sistema de saúde, então o “tratamento” forçado ou involuntário não será mais necessário.

Eles escrevem:

“Sentimos que em um sistema no qual as pessoas não precisam ter medo de serem abusadas, não será mais necessário um “tratamento involuntário”. As situações que levam ao uso da força muitas vezes decorrem de uma atitude inadequada do pessoal e servem apenas para fins disciplinares, e o uso de restrições às vezes leva à morte. Em geral, pensamos que qualquer forma de tratamento involuntário na saúde mental só poderia ser justificada em circunstâncias muito específicas, como o tratamento de pessoas condenadas por crimes graves durante a duração da sentença – e deve ser evitada a todo custo ou mesmo tornada impossível”.

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Stupak, R., & Dobroczyński, B. (2021). From mental health industry to humane care: Suggestions for an alternative systemic approach to distress. Int. J. Environ. Res. Public Health, 18(12), 6625. https://doi.org/10.3390/ijerph18126625 (Link)

Quatro Estudos Essenciais sobre Retirada de Antidepressivos que Todo Prescritor Deve Ler

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Em um novo artigo publicado no British Journal of General Practice, a pesquisadora e ativista Stevie Lewis escreve sobre sua experiência com a retirada de antidepressivos. Ela aponta para quatro estudos significativos que gostaria que seus médicos tivessem lido antes de prescrever seus antidepressivos em 1996. Ela prossegue resumindo os resultados desses importantes estudos.

A retirada do antidepressivo, há muito negada e ignorada pela comunidade psiquiátrica, está agora na linha de frente da discussão. Numerosos órgãos médicos oficiais e até mesmo importantes psiquiatras têm apontado para os efeitos adversos e duradouros que podem ocorrer quando se descontinua o uso de antidepressivos.

Isto tem exposto metodologias tendenciosas por trás de grande parte da pesquisa antidepressiva existente, com empresas farmacêuticas freqüentemente suprimindo ativamente as taxas de resposta a placebo. Também levantou sérias dúvidas sobre a hipótese de desequilíbrio químico, tanto que muitos psiquiatras estão agora começando a se divorciar dela. Os movimentos e vozes dos usuários de serviços são responsáveis por chamar a atenção para esta questão e exigir mudanças. Este artigo acrescenta a essas preocupações, empreendendo uma análise acadêmica através de uma narrativa em primeira pessoa.

Lewis escreve que enquanto em 1996 já havia algumas pesquisas sobre os efeitos de abstinência dos antidepressivos, campanhas como Defeat Depression [A Derrota da Depressão] haviam conseguido retratá-la com sucesso como um problema de desequilíbrio químico. Como resultado, os antidepressivos foram considerados seguros, eficazes e sem formação de hábito.

Ela observa então que hoje sua experiência de repetidamente tentar sair dos antidepressivos e ser acometida por sintomas graves de abstinência não é incomum nem desconhecida. Além disso, a hipótese de que os antidepressivos podem causar mudanças estruturais e químicas no cérebro e resultar em dependência de drogas está ganhando aceitação generalizada. Por exemplo, o Royal College of Psychiatry divulgou recentemente uma declaração sobre sua dependência severa e duradoura.

Lewis fornece uma visão geral de quatro estudos importantes que são leitura essencial para os clínicos gerais que querem se atualizar e se informar sobre as descobertas recentes sobre a retirada de antidepressivos. Há muitas razões para a prescrição excessiva de antidepressivos: corrupção na indústria, metodologia tendenciosa, prescrição excessiva por médicos da clínica geral, etc. As sugestões de Lewis aos médicos da clínica geral são, portanto, de particular importância aqui.

O primeiro trabalho é uma revisão sistemática da literatura de 2019 pela Davis and Read, que identificou e analisou 24 estudos. Ele descobriu que:

“Mais da metade (56%) das pessoas que tentam sair dos antidepressivos sofrem efeitos de abstinência, sendo que quase metade (46%) das pessoas sofrem efeitos de abstinência descritos como graves. Para os pacientes, não é raro que os efeitos de abstinência durem várias semanas ou meses”.

Lewis escreve que o NIMH tem subestimado durante décadas o quão comum é a abstinência de antidepressivos, mas recentemente admitiu a sua severidade e natureza duradoura.

A segunda peça importante de literatura é um artigo de Guy, Brown, Lewis e Horowitz de 2020 que detalha a experiência em primeira pessoa do usuário do serviço de atendimento ao consumidor de drogas psicotrópicas que confunde abstinência com recaída. Em outras palavras, o que na verdade é a abstinência de drogas é erroneamente assumido como sendo a recaída do paciente na condição original subjacente (como a depressão) ou o surgimento de uma nova condição.

A experiência de 158 respondentes foi analisada por temas, que foram utilizados para petições encaminhadas aos parlamentos escocês e galês. Os autores encontraram 8 pontos separados onde os médicos confundiram a abstinência de drogas psicotrópicas com outra coisa; eles também não tinham conhecimento sobre técnicas de afunilamento. Além disso, muitas vezes os pacientes recebiam informações inadequadas sobre os riscos da abstinência.

O próximo artigo resumido por Lewis é um artigo de Horowitz e Taylor de 2019 sobre formas de afunilar os antidepressivos. Lewis considera que este é o artigo mais importante, uma vez que se seus prescritores soubessem disso, poderia ter aliviado a sua própria provação.

Usando scans PET, os autores concluem que o afilamento deve ser lento e hiperbólico (redução cada vez menor) para doses que são consideravelmente menores do que o que é considerado dose mínima. Isto é essencial para reduzir os efeitos da retirada. Este artigo ajuda a diferenciar entre abstinência (que ocorre em dias, responde a antidepressivos e pode parecer fisiológica e psicologicamente diferente dos sintomas originais) e recidiva. Apesar destas diferenças, às vezes os sintomas originais e a abstinência podem parecer os mesmos, complicando ainda mais as coisas.

Dada a escassez de serviços sistêmicos que ajudam as pessoas a se retirarem de psicotrópicos ou mesmo fornecer informações relevantes e atualizadas, o movimento de usuários de serviços preencheu o vazio. Os grupos de apoio da mídia social são parte integrante disto. Assim, o último artigo sugerido por Lewis é um estudo de 2021 da Framer no Facebook sobre grupos de apoio para a retirada de antidepressivos.

Framer é uma usuária de serviços e lutou com a retirada de antidepressivos; ela também é a fundadora do survivingantidepresants.org. Este artigo aponta como os usuários de serviços se apoiaram mutuamente e ajudaram a afinar os antidepressivos – especialmente na ausência de ajuda psiquiátrica. Ela escreve:

“Framer nos apresenta a PAWS – Síndrome Aguda de Abstinência – que descreve os vários sintomas físicos e emocionais que se desenvolvem à medida que o corpo se reajusta após as adaptações que teve que fazer enquanto tomava a droga. Ela também toca em ‘neuro-emoções’ – emoções geradas pelos efeitos neurológicos da abstinência”.

Seu trabalho tem reunido inúmeras preocupações em torno da retirada de antidepressivos – como afinar, retirada prolongada, identificação de reações medicamentosas, formas de lidar com as drogas, etc.

O artigo de Lewis é mais um passo para tornar os prescritores mais conscientes dos efeitos adversos dos psicotrópicos comumente prescritos.

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Lewis, S. (2021). The four research papers I wish my doctor had read before prescribing an antidepressant. British Journal of Medical Practice. DOI: https://doi.org/10.3399/bjgp21X716321 (Link)

Grupos de Ajuda Mútua como Instrumento de Empoderamento para Familiares e Usuários

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O artigo intitulado Psicoeducação e Terapia de Resolução de Problemas como um modelo integrativo de grupos de ajuda mútua para pessoas com transtornos mentais severos: um relato brasileiro descreve um estudo de caso sobre um Programa de Suporte entre Pares, chamado “Entrelaços”, realizado no Instituto de Psiquiatria da UFRJ.

Entre os anos de 2011 e 2019, 246 pessoas entre usuários e seus familiares participaram de oito seminários seguidos por grupos de resolução de problemas em um ciclo que durou 18 meses. Dos participantes que concluíram os seminários, 90% decidiram criar 7 grupos comunitários de ajuda mútua independente de técnicas e da instituição. O grupo já serviu mais de 214 famílias e tem organizado eventos científicos, sociais e anti – estigma, expandindo sua rede de suporte social e demonstrando empoderamento.

Grupos de ajuda mútua são considerados uma forma de suporte entre pares usualmente conduzido de maneira autônoma apesar de receber ajuda profissional durante a fundação dos grupos. Os princípios fundamentais desse suporte é o respeito, responsabilidade compartilhada e acordo mútuo sobre o que eles identificam útil para eles, sem necessariamente ser baseado em modelos psiquiátricos de doença. A prioridade é o conhecimento através da experiência, por trocas de experiências, habilidades de enfrentamento e o compartilhamento de modelos de recuperação.

A criação dos grupos do programa “Entrelaços” apresenta os seguintes estágios: (1) Boas -vindas e avaliação; (2) produção de conhecimento e reflexão, (3) compartilhamento de experiências e soluções e (4) ação entre pares.

(1) familiares e usuários são recebidos por uma equipe técnica para uma primeira apresentação. Os objetivos e estrutura do programa são explicados.

(2) Dura de 8 a 12 semanas. Tópicos de interesse das famílias são discutidos para a produção de conhecimento sobre os transtornos mentais e para construir reflexões de mudanças.

(3) Terapia de grupo multifamiliar. Cada grupo possui de 6 a 8 famílias e dois membros técnicos. A seleção de famílias obedece dois critérios: participação em pelo menos 75% dos seminários (não obrigatório para usuários) e a região em que reside. Os grupos são misturados entre familiares e usuários. No primeiro encontro realizado um treinamento para que cada família construa seu genograma e apresente para os demais, como uma forma de apresentar sua família. Posteriormente, é apresentado o método da resolução de problemas. Depois de escutar todos os membros é decidido qual problema será discutido pelo grupo, abrindo para discussão de soluções.

(4) Com a vontade e disponibilidade dos membros do grupo em manter as reuniões fora da instituição, eles se responsabilizaram por escolher o par de coordenadores, a identidade do grupo e o local dos encontros. Dois membros da equipe técnica continuou participando dos grupos durante 6 meses, até que o grupo seja considerado maduro para seguir por conta própria.

Os seminários e grupos multifamiliar são baseados no “recovery”, o olhar sobre o transtorno mental como um estado de vulnerabilidade ao estresse, a importância da família e da comunicação, habilidades para a resolução de problemas, o estímulo de novas narrativas e uma nova forma de ver o transtorno e a si mesmos.

Como conclusão, os autores afirmam que os grupos de ajuda mútua são consistentes com as ideias da reforma psiquiátrica e com o movimento de reabilitação, além de preencher a lacuna que existe no Brasil em dar voz ativa a população que ainda não tem suficiente representação e protagonismo. Esta pode ser uma reverberação e um efeito cativante nos serviços de psiquiatria tradicionais, profissionais de saúde, gestores, políticas e sociedade como um todo, transformando aos poucos os serviços de saúde mental e auxiliando na desistigmatização dos transtornos mentais.

 

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Palmeira, L. et al. Psychoeducation and Problem-Solving Therapy as an Integrative Model of Mutual-Help Groups for People with Severe Mental Disorders: A Report from Brazil. Community Ment Healthy J .2020 Apr;56(3):489-497. (link)

 

Sociólogo da Medicina Detalha as Falhas da Psiquiatria Americana

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Em um novo artigo em Psychological Medicine, o sociólogo médico Andrew Scull oferece um olhar crítico sobre o desenvolvimento da psiquiatria americana durante as últimas 3 décadas. Ele critica a confiança da psiquiatria americana na compreensão biológica da doença mental, explorando como o Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM), referido como a “bíblia” da psiquiatria, ainda não captou adequadamente o fenômeno da “doença mental”. Scull também identifica preocupações com futuras pesquisas sobre saúde mental e o fracasso da psiquiatria em lidar com as altas taxas de mortalidade de pessoas rotuladas como “doentes mentais”.

Scull, um ilustre professor de sociologia e estudos científicos da Universidade da Califórnia, San Diego, escreve:

“. . as deficiências da psiquiatria contemporânea também devem, inegavelmente, assumir uma boa parte da culpa por uma situação onde a expectativa de vida de alguém com psicose é décadas mais curta do que a do resto de nós, e onde essa vida abreviada muitas vezes consiste em uma alternância entre a cadeia, o hospício, e a sarjeta – com intervenções psiquiátricas totalmente subordinadas à prescrição de medicamentos antipsicóticos”.

O DSM-5, publicado em 2013, é a última edição do manual de diagnóstico da Associação Psiquiátrica Americana. Os colaboradores do DSM-5 inicialmente esperavam mudar radicalmente a abordagem do diagnóstico de doenças mentais, citando o fracasso das pesquisas atuais sobre doenças mentais para identificar claramente os fatores causais que contribuem para distingüir os transtornos de saúde mental. Suas esperanças eram baseadas na crença de que a pesquisa em neurociência e genética estava próxima de identificar as causas biológicas dos transtornos de saúde mental, crenças que eles utilizavam para justificar o avanço para um sistema de diagnóstico que não se baseasse apenas em sintomas, como os antecessores do DSM-5 tinham feito anteriormente.

O desenvolvimento do DSM-5 foi cercado por controvérsia e amplamente criticado. Alguns críticos argumentaram que o novo DSM, assim como os anteriores, continuaria a expandir as categorias de diagnóstico e, como resultado, a patologizar a normalidade. Outros críticos expressaram preocupação sobre a eliminação do diagnóstico da “Síndrome de Asperger” e o plano da Força Tarefa para reduzir os critérios para o autismo. Por fim, a Task Force criou a categoria ‘transtorno do espectro do autismo’, e o que antes era conceitualizado como síndrome de Asperger caiu sob este guarda-chuva.

Além das críticas de ambos os lados do espectro, o DSM-5 foi fortemente criticado por Robert Spitzer e Allen Frances, que foram os principais desenvolvedores das três edições anteriores do DSM. Spencer criticou a política de porta fechada que a Task Force do DSM-5 adotou para desenvolver a nova edição. Entretanto, as duas forças-tarefa que ele havia mediado também foram mantidas em sigilo. Frances, como outros críticos, expressou preocupação com a expansão das definições de doença mental.

A controvérsia que acompanhou o desenvolvimento da mais nova edição do DSM acabou levando a ataques pessoais e lutas internas na comunidade psiquiátrica. Embora as críticas de indivíduos como Spencer e Frances não tenham impedido a publicação do DSM-5, elas contribuíram para atrasar a publicação e minar a sua legitimidade.

A falta de liderança dentro da Força Tarefa DSM-5 também levou a diferenças de opinião entre os próprios membros da força-tarefa – com alguns promovendo o afrouxamento dos critérios, como na remoção da exclusão por luto no diagnóstico de grandes transtornos depressivos. Em contraste, outros defendiam um endurecimento dos critérios. Como resultado da desorganização da Força Tarefa, um comitê de supervisão foi desenvolvido pelo Conselho Diretor da APA, que foi então seguido por um “Comitê de Revisão Científica” que analisou todas as mudanças propostas e fez sugestões ao Presidente e ao Conselho Diretor da APA.

Enquanto a Força Tarefa DSM-5 esperava passar de diagnósticos baseados em sintomas para diagnósticos fundamentados na compreensão biológica, eles acabaram falhando em sua tentativa:

“O plano ambicioso de passar de uma abordagem de ‘marcar as caixas’ para um sistema enraizado em uma compreensão biológica da doença mental rapidamente se afundou porque a compreensão etiológica necessária das várias formas de transtornos mentais graves simplesmente não existia”.

Além disso, a tentativa de passar de uma abordagem baseada em sintomas para uma abordagem mais dimensional, que entende a doença mental como variando ao longo de um espectro, foi encerrada por clínicos que temiam que clientes com formas leves de problemas de saúde mental não pudessem receber reembolso de seguro por seu tratamento.

Scull destaca como a mudança do foco social na psiquiatria para o entendimento biológico pode ser traçada desde a era Reagan, onde fatores sociais como pobreza, desigualdade e migração eram ignorados a serviço de uma abordagem biológica politicamente favorável às doenças mentais. A abordagem biológica também foi influenciada pelas contribuições financeiras da indústria farmacêutica, o que levou a um afastamento da psicanálise e a um movimento em direção à psicofarmacologia.

O interesse pela genética por trás da doença mental diminuiu após a Segunda Guerra Mundial devido a suas associações com os assassinatos, pelos regimes nazistas, daqueles determinados como sendo “doentes mentais”. Ainda assim, um ressurgimento do interesse ocorreu nos anos 70 e 80 com novas tecnologias no estudo da genética e do DNA. Embora a profissão acreditasse que estas tecnologias levariam à descoberta dos genes por trás dos transtornos da saúde mental, tais descobertas nunca ocorreram.

Embora tenha havido alegações de que a base genética da esquizofrenia tenha sido descoberta, estas alegações não foram verificadas em repetidas vezes, o que é crucial para provar a validade da pesquisa.  Scull escreve:
“Os genes, ao que parece, não são o destino, e os milhares de alelos que contribuem com um pequeno risco adicional de doença não funcionam ‘de uma maneira simples e determinista’. Os fatores de desenvolvimento e ambientais devem desempenhar um papel crucial para que o ‘empurrão’ desses alelos se manifeste em transtorno mental, o que sugere que a ênfase excessiva na biologia do transtorno mental tem sido um erro estratégico”.

Além disso, embora tenha havido grandes avanços em neurociência, esses avanços não contribuíram para qualquer compreensão adicional de doenças mentais. No entanto, isto não impediu que os recentes diretores do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) colocassem um volumoso financiamento na pesquisa biológica.

Um ex-diretor, Thomas Insel, falou de seu pesar:

“Passei 13 anos na NIMH realmente incentivando a neurociência e a genética dos transtornos mentais, e quando olho para trás, percebo que, embora eu ache que consegui publicar muitos artigos muito interessantes a um custo bastante grande – acho que 20 bilhões de dólares – não acho que tenhamos movido a agulha para reduzir o suicídio, reduzir as hospitalizações, melhorar a recuperação para as dezenas de milhões de pessoas que têm doenças mentais”.

Atualmente, as principais causas de doenças mentais são desconhecidas, ainda que cada vez mais se entenda que são o resultado de uma complexa combinação de fatores tanto sociais quanto biológicos. Além disso, tem sido posta em dúvida se certos grupos de diagnósticos, tais como esquizofrenia e transtornos depressivos importantes, devem realmente ser unidos, colocando em questão o atual sistema de diagnóstico.

Além disso, apesar de seu impulso para se afastar de uma compreensão da doença mental baseada em sintomas, o DSM-5 acabou se resignando a uma abordagem baseada em sintomas devido à falta de evidências biológicas e ao grande apoio à abordagem baseada em sintomas por parte das indústrias de seguros e farmacêuticas. Este apoio foi promovido pelo NIMH e pela FDA, que por sua vez respaldaram os clínicos – para serem pagos, eles tinham que apoiar e usar o DSM, apesar de suas maiores falhas.

O DSM-5 tem sido criticado por falta de validade, com críticos argumentando contra uma abordagem baseada em sintomas e apontando para uma falta de consistência, já que as categorias são baseadas em sintomas e dependentes da subjetividade do clínico para determinar.

Examinando como a psiquiatria se saiu em relação à identificação de tratamentos bem-sucedidos, Scull acusa a profissão de ficar aquém de sua dependência de antidepressivos, tranquilizantes e antipsicóticos como “curas”. Ele aponta inconsistências no alívio de sintomas, a ineficácia desses medicamentos e destaca efeitos colaterais prejudiciais e perigosos a longo prazo, como ganho de peso, risco de diabetes e doenças cardíacas, e distúrbios de movimento como a discinesia tardia. Pesquisas em outros lugares descobriram que aqueles que são capazes de lentamente parar de usar drogas antipsicóticas podem ter maior probabilidade de recuperação.

Os dados sobre ensaios clínicos de antipsicóticos são em grande parte retidos por empresas farmacêuticas, que determinam de forma seletiva quais conclusões liberar e suprimir. As empresas farmacêuticas também utilizam pesquisadores acadêmicos para apoiar suas “pesquisas”, emprestando seus nomes a trabalhos escritos por fantasmas que, na realidade, são escritos por indivíduos empregados pelas empresas farmacêuticas. A má conduta das empresas farmacêuticas é bem conhecida, como visto nos vários processos judiciais e nas multas resultantes que lhes são impostas.

Além disso, o movimento de desinstitucionalização afetou os atuais maus-tratos aos que são considerados “doentes mentais”. Embora os hospitais psiquiátricos fossem supostamente substituídos por cuidados comunitários, tais cuidados são muito insuficientes, o que, por sua vez, contribuiu para a prisão e o desabrigo daqueles que lutam com problemas de saúde mental.

Junto com a desinstitucionalização, o afastamento dos psiquiatras da prática institucional para a prática privada mais lucrativa resultou em uma profissão que carece de interesse no cuidado daqueles que são empobrecidos ou rotulados como clientes “difíceis”. Isto, juntamente com um foco político na “reforma do bem-estar”, resultou na falta de recursos adequados disponíveis para tratar os necessitados.

Scull conclui com força sua crítica ao desenvolvimento da psiquiatria americana nos últimos 30 anos:

“Do ponto de vista do paciente, todos esses desenvolvimentos ocorreram junto com o colapso da psiquiatria pública e a remessa de muitos dos doentes mentais para a miséria das ruas e os terrores das prisões americanas. Para aqueles que mantêm qualquer disposição persistente para abraçar uma narrativa de progresso psiquiátrico, existe a realidade brutal de que aqueles que sofrem de doenças mentais graves têm uma vida útil de 20 a 30 anos a menos em média do que o resto de nós – e esta é uma lacuna de mortalidade, além do mais, que está aumentando, não diminuindo”.

Will Carpenter, Presidente do Grupo de Trabalho de Psicose DSM-5, deu seguimento às críticas de Scull em um comentário. Carpenter concordou com a maioria das críticas de Scull, especialmente em geral, que a psiquiatria americana falhou com aquelas que mais precisam de ajuda. Carpenter também oferece medidas potenciais, baseadas nas críticas de Scull, que podem ser tomadas para melhorar a compreensão e o tratamento de doenças mentais.

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Scull, A. (2021). American psychiatry in the new millennium: a critical appraisal. Psychological Medicine, 1–9. https:// doi.org/10.1017/S0033291721001975 (Link)

Psicólogos Tentam Unificar Diferentes Abordagens à Terapia

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O Journal of Contemporary Psychotherapy publicou recentemente um artigo escrito por psicólogos de várias instituições onde eles claramente articulam como diferentes orientações para a psicoterapia estão sendo unificadas na teoria e na prática clínica.

Recentemente, a unificação é uma tendência emergente para integrar teorias e técnicas que abrangem desde orientações psicoterapêuticas variadas até ao melhor atendimento à aflição dos clientes. Segundo o autor principal, Andre Marquis, da Universidade de Rochester:

“A unificação das metatorias não só nos permite manter muitas perspectivas, mas também organizar os dados que emergem dessas diferentes perspectivas, preparando o terreno para uma abordagem baseada em evidências e princípios que leva a sério o indivíduo, a natureza única e o cenário do problema e o complexo trabalho da psicoterapia. Defendemos uma mudança em direção ao ‘pluralismo integrado’, no qual há um quadro comum de entendimento em relação às características centrais da disciplina, a partir do qual muitas visões diversas e pluralistas são adotadas”.

Tem havido um impulso para integrar aspectos complementares de diferentes abordagens da psicoterapia. Por exemplo, terapeutas cognitivos-comportamentais podem integrar técnicas da terapia psicodinâmica para melhorar a eficácia do tratamento.

Tradicionalmente, os terapeutas foram treinados para praticar uma singular orientação teórica – seja psicanalítica, comportamental ou psicoterapia humanista, por exemplo. Com o tempo, uma proliferação de abordagens e orientações foi desenvolvida, e os terapeutas começaram a combinar teorias e práticas através do ecletismo técnico, fatores comuns, integração teórica e integração assimiladora.

A unificação é o quinto caminho de integração e oferece uma perspectiva meta-teórica da psicoterapia. Ao invés de se compreender diferentes orientações como proporcionando uma forma específica de trabalhar e compreender a experiência vivida pelo cliente e encontrar conexões entre abordagens distintas da terapia, a ótica da unificação vê as orientações como fornecendo informações especializadas sobre um fenômeno maior e mais complexo.

Os autores usam uma metáfora para explicar estas diferenças:

“Uma analogia potencialmente útil é que cada um dos paradigmas pode ser considerado como sendo semelhante a uma ‘montanha’, e os outros quatro caminhos para a integração psicoterapêutica estão preocupados em desenvolver conexões entre as montanhas. Em contraste, uma visão unificada retrocede e oferece estruturas para ver toda a cadeia de montanhas a partir de uma perspectiva ampliada”.

Tendo este quadro mais amplo, os clínicos podem compreender a complexidade das preocupações de um indivíduo e encontrar um conjunto holístico e abrangente de ferramentas que seriam mais benéficas para o cliente nesta diversidade de abordagens. Esta integração é facilitada pelo crescente corpo de trabalho que visa conectar conceitos metateóricos à prática psicoterapêutica.

Os autores identificaram três abordagens complementares para a unificação: A Visão Dinâmica dos Sistemas Biopsicossociais, Psicoterapia Integral e a Teoria Unificada da Psicologia.

A Visão Dinâmica de Sistemas Biopsicossociais é a abordagem mais comumente utilizada para a unificação. Ela acentua a inter-relação entre diferentes níveis de análise, desde a dinâmica social em nível macro até a micro neurobiológica, desde a intrapsíquica até a interpessoal e familiar. A maioria dos profissionais da saúde mental, e suas orientações teóricas, muitas vezes se concentram em um desses domínios, ao mesmo tempo em que falham em abordar outros.

A abordagem dos Sistemas Biopsicossociais para a unificação permite que o terapeuta conceitualize cada caso, estando atento a cada domínio e como esses domínios se afetam mutuamente de forma dinâmica (por exemplo, como os processos sociais podem influenciar o autoconceito negativo do cliente). Ter esta flexibilidade conceitual e clínica que permite aos terapeutas utilizar práticas e técnicas de múltiplas orientações teóricas. Eles podem então atender às múltiplas necessidades de seus clientes identificadas a partir de sua análise biopsicossocial abrangente e exaustiva.

A Psicoterapia Integral, assim como a Visão Biopsicossocial Dinâmica, reconhece o valor e a importância de muitas orientações teóricas e adapta a prática clínica de acordo com as necessidades e preocupações do cliente. Em vez de ver a variedade de abordagens da terapia como contraditórias, elas destacam suas construções unificadoras.

Psicoterapeutas integrais também desenvolveram sua própria forma de analisar as experiências e angústias dos clientes de forma completa e complexa, considerando o que está ocorrendo dentro e fora do indivíduo e o que está ocorrendo dentro e fora do coletivo maior. Cada um destes pontos de análise corresponde a diferentes escolas de pensamento psicológico que, quando usados em conjunto, fornecem um quadro complexo e contextualizado das experiências e sofrimentos das pessoas que podem melhorar a prática clínica.

Por fim, a Teoria Unificada da Psicologia salienta que, por não haver consenso sobre o conceito de psicologia humana entre escolas de pensamento, tornou-se difícil unificar o campo. Entretanto, os defensores da Teoria Unificada da Psicologia argumentam que a psicologia pode ser unificada ao se desenvolver uma compreensão mais clara do que a profissão psicológica é e faz. Como as abordagens anteriormente abordadas para a unificação, esta abordagem utiliza um modelo biopsicossocial e integrador de compreensão do bem-estar humano e das doenças mentais.

Além disso, como a maioria das orientações para psicoterapia funcionam para entender como as pessoas se adaptam a seu ambiente e desenvolvem padrões adaptativos ou mal adaptados, Henriques combinou teorias modernas de personalidade em uma Teoria de Sistemas de Adaptação de Personagens. Esta metateoria da personalidade, ele acredita, pode ajudar o terapeuta a entender os diferentes componentes da adaptação e depois adaptar o tratamento usando as habilidades e técnicas de diferentes orientações teóricas.

Embora existam diferentes estruturas para a unificação, os autores enfatizam que compartilham muitos pontos em comum que irão “avançar um consenso central no campo” e na prática profissional.

Eles também identificaram duas abordagens unificadas de avaliação, o Integral Intake e o Well-being Checkup, que “proporcionam tanto ao cliente quanto ao terapeuta uma rica narrativa compartilhada da pessoa em seu contexto biológico, de desenvolvimento e social”. Esta narrativa compartilhada ajuda ambas as partes a focar em problemas particulares, pontos fortes e recursos para orientar o processo terapêutico e a conceituação de casos.

Além disso, estas abordagens unificadas compartilham princípios fundamentais. Primeiro, e mais importante, é a crença de que a relação terapêutica é central para o processo e a cura. A psicoterapia e a relação são entendidas como um processo de desenvolvimento da consciência, compreensão, aceitação e mudança. Tanto o terapeuta quanto o cliente precisam ter uma compreensão mútua da natureza do trabalho.

Os autores também sublinham a importância das emoções no processo de mudança, pois a evitação e a defesa são impulsionadas por fortes influências emocionais que levam ao desenvolvimento de ciclos de angústia e mal-adaptação. Muito do trabalho da terapia é identificar e mudar esses ciclos mal-adaptativos de pensamentos, comportamentos, emoções, relacionamentos e formas de compreensão de si mesmo. A mudança desses ciclos pode alimentar o bem-estar psicológico.

Finalmente, há uma rejeição da tendência de identificação com uma particular abordagem psicoterápica, pois os profissionais devem se engajar em um treinamento mais amplo onde possam aprender a aplicar diferentes estratégias, habilidades, técnicas e estruturas no tratamento.

De acordo com os autores:

“O plano de tratamento é desenvolvido a partir do espectro de intervenções que possam ser apropriadas com base na teoria psicológica e pesquisa empírica, e é construído em colaboração com os clientes, levando em consideração seus valores, cultura, sistemas, estágio de mudança, nível de funcionamento, recursos disponíveis, o contexto do tratamento e a experiência do clínico”.

Enquanto alguns elogiam estes esforços para unificar o campo, outros têm preocupações com esta unificação. A preocupação mais comum é a perda potencial de perspectivas diversas que mantêm vivo um diálogo crítico, questionando a natureza humana e a prática clínica. Outros têm se preocupado que a unificação da orientação teórica ameaçará a abertura dos clínicos para ouvir diferentes experiências fora de sua metáfora desenvolvida. Finalmente, alguns temem que a unificação possa deixar de fora alguns subgrupos.

Os autores respondem a estas preocupações esclarecendo que não parece haver dogmatismo autoritário e que as diferenças continuarão a existir dentro da unificação. Eles também acreditam que a abertura é necessária para a expansão do campo e para a prática terapêutica adequada. Por causa da lente “ampliada” da unificação, os autores acreditam que abordagens menos populares da terapia também podem ser integradas.

O campo da psicoterapia é freqüentemente repleto de conflitos devido às diferenças entre as orientações teóricas e as práticas. A proposta dos autores para unificação tenta combinar essas diferentes orientações para criar estabilidade dentro do campo e melhorar a prática clínica, adquirindo um conjunto mais amplo de ferramentas que podem atender à complexa combinação de fatores que afetam o sofrimento humano.

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Marquis, A., Henriques, G., Anchin, J., Critchfield, K., Harris, J., Ingram, B., Magnavita, J. & Osborn, K. (2021). Unification: The Fifth Pathway to Psychotherapy Integration. Journal   of Contemporary Psychotherapyhttps://doi.org/10.1007/s10879-021-09506-7 (Link)

A Política do Sofrimento Psíquico: Uma discussão com o Dr. James Davies sobre seu novo livro, “Sedated”.

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Dr. James Davies se formou na Universidade de Oxford em 2006 com um PhD em antropologia social e médica. Ele é professor de Antropologia Social e Saúde Mental na Universidade de Roehampton, Londres, psicoterapeuta (tendo trabalhado no NHS), secretário-geral do All-Party Parliamentary Group for Prescribed Drug Dependence e co-fundador do Council for Evidence-based Psychiatry (CEP). Ele é autor do livro best-seller Cracked: Why psychiatry is doing more harm than good e seu novo livro Sedated: How Modern Capitalism Created our Mental Health Crisis acaba de ser publicado.

– Entrevistado por James Barnes.

JB: O tema central de seu excelente novo livro, ‘Sedated’, é a progressiva medicalização e individualização do sofrimento emocional e psicológico que tem moldado todas as nossas vidas no Ocidente desde os anos 80. Esta tendência, como você ilustra, está profunda e intimamente ligada à ascensão do projeto político neoliberal nos EUA e no Reino Unido através de Reagan e Thatcher. Você traça um quadro muito marcante do reenquadramento insidioso de nosso sofrimento freqüentemente sócio-político em termos de disfunções no indivíduo, em última instância servindo ao status quo político, mas prejudicial ao nosso bem-estar. Será que você poderia ampliar o tema do neoliberalismo no que diz respeito à nossa “saúde mental” e nos dar uma idéia dos fios condutores do livro?

JD: Obrigado, James, uma pergunta muito boa para a abertura. Vou tentar, mas deixe-me começar por definir primeiro o termo neoliberalismo, que é geralmente usado para descrever o estilo de capitalismo que tem dominado a maioria das economias ocidentais desde os anos 80 (em particular o Reino Unido e os EUA). Uma vez que o neoliberalismo, sob Thatcher e Reagan, começou a substituir o estilo mais “socialista” do capitalismo que prevaleceu entre os anos 50 e meados dos anos 70, ele alterou a sociedade de muitas maneiras significativas. Ele fez isso expandindo grandemente o domínio e o alcance do mercado através de cortes nos impostos (principalmente para os ricos); fortalecendo as multinacionais através de uma ampla desregulamentação (reduzindo a “burocracia”); e reduzindo drasticamente o papel do Estado na economia através de privatizações e cortes no trabalho, bem-estar e proteções sociais.
Também introduziu uma nova ideologia de individualismo, onde o sucesso é visto como resultado de qualidades individuais excepcionais (em vez de privilégios e vantagens sociais excepcionais), e o fracasso como enraizado em déficits pessoais (em vez de falta de oportunidade, igualdade ou apoio social). Em resumo, o neoliberalismo, em sua forma mais pura, considera o indivíduo como inteiramente responsável por seu próprio destino – a pessoa que foi criada pouco teve a ver com as circunstâncias em que foi criada, assim como a boa vida foi alcançada principalmente através de façanhas heróicas de esforço individual, em vez de ser alcançada principalmente através de ação coletiva, união e apoio.
Agora, para entender como nosso setor de saúde mental foi conivente com este projeto ideológico, recruto uma idéia que tem sido central para muito do pensamento sociológico ao longo do século XX -nomeadamente, que os principais setores da sociedade (direito, educação, saúde, religião etc.) sempre se adaptam ao que o paradigma econômico da época exige deles. Agora, o peculiar sobre nosso setor de saúde mental é que ele tem sido mais hábil do que qualquer outro setor em adaptar-se às exigências do neoliberalismo. Isto porque os fundamentos de nossa saúde mental são relativamente fluidos e caprichosos. Ao contrário de nosso sistema jurídico, por exemplo, onde a prática está enraizada em âncoras legislativas de longa data, ou em nosso sistema biomédico, onde a prática é contida pela base do fato biológico, o setor de saúde mental não encontrou quase nenhum marcador biológico para ancorar seu tratamento do sofrimento mental, enquanto sua “base de evidência” é altamente modificável na direção em que os poderosos interesses instalados exigem que ele vá.
Em “Sedated”, então, explico que a natureza relativamente caprichosa e adaptável do nosso campo da saúde mental pode nos ajudar a entender por que ele não conseguiu melhorar os resultados clínicos desde os anos 80: sua adaptação às diretrizes neoliberais colocou as necessidades do mercado acima das necessidades daqueles que buscam cuidados e apoio à saúde mental. Eu não sugiro que este conluio tenha acontecido de qualquer tipo de forma conspiratória ou calculada, mas que tenha sido uma consequência da luta do setor de saúde mental para sobreviver sob este novo conjunto de arranjos econômicos neoliberais.
Então quais são as principais características deste conluio entre o neoliberalismo e a saúde mental? Como o setor tem sido capaz de prosperar apesar de seus resultados consistentemente pobres? Bem, aqui estão alguns mecanismos que discuto em “Sedated”:
Em primeiro lugar, nosso setor despolitizou o sofrimento: conceitualizando o sofrimento de forma a proteger a economia atual da crítica – ou seja, reenquadrando o sofrimento como enraizado em causas individuais e não sociais, favorecendo assim a auto-reforma em detrimento da reforma social e econômica.
Em segundo lugar, privatizou o sofrimento: redefinindo a “saúde mental” individual em termos consistentes com os objetivos da economia. Aqui a ‘saúde’ é caracterizada como compreendendo aqueles sentimentos, valores e comportamentos (por exemplo, ambição pessoal, diligência e positividade) que servem ao crescimento econômico, ao aumento da produtividade e à conformidade cultural, independentemente de serem realmente bons para o indivíduo e para a comunidade.
Em terceiro lugar, o sofrimento tem sido amplamente patologizado: transformando comportamentos e sentimentos considerados inconvenientes do ponto de vista de certas autoridades (ou seja, coisas que perturbam e perturbam a ordem estabelecida), em patologias que requerem enquadramento e intervenção médica.
Em quarto lugar, tem o sofrimento transformado em mercadoria: transfigurando o sofrimento em uma vibrante oportunidade de mercado; tornando-o altamente lucrativo para as grandes empresas, pois fabrica as chamadas soluções a partir das quais podem ser extraídas receitas tributárias maiores, lucros e maior valor acionário.
Por fim, descaracterizou o sofrimento: dispersando nosso sofrimento socialmente causado em diferentes disfunções autônomas, diminuindo assim as experiências compartilhadas e coletivas que tantas vezes no passado foram um estímulo vital para a mudança social.

JB: O que encontrei em “Sedated” foi o quão arraigada e difundida esta ideologia está em nossa sociedade. A forma como você ilustra como o ethos neoliberal – competição por recursos, produtividade sobre o bem-estar e “sobrevivência do pensamento do mais apto” – está em jogo nas escolas e nos hospitais, por exemplo, deixa isso bem claro. Não é apenas o estresse e a ansiedade habituais que resultam disso, mas toda uma experiência dos outros e do mundo em termos de “nós versus eles, ter versus não ter”. Nosso valor sob esta rubrica é conquistado – pelo que temos e fazemos -, em vez de ter a ver com qualidades humanas intrínsecas. Este ethos se tornou tão incorporado em nossa sociedade que para muitos ele pode simplesmente parecer ser um dado adquirido. Como você acha que ele se tornou tão poderoso?

JD: O neoliberalismo não é apenas um paradigma econômico, mas, como todos esses paradigmas, também implica uma teoria da natureza humana – um conceito do que é saudável e insalubre, do que é moral e funcional; o que nos motiva e o que constitui a vida boa. Neste sentido, o neoliberalismo é um “sistema totalizante” para usar uma frase sociológica – não apenas promove um conjunto de diretrizes econômicas, mas também um conjunto de princípios orientadores da vida (princípios que, por sinal, servem em sua maioria a essas mesmas diretrizes econômicas). Margaret Thatcher compreendeu intuitivamente esta ligação vital entre a economia e a psicologia humana. Ela entendeu como a política econômica (no seu caso, a política econômica neoliberal) tinha o poder de transformar radicalmente o modo como as pessoas se sentem, agem e se comportam. Como ela disse dois anos após seu mandato como primeira-ministra do Reino Unido, seu objetivo era usar a política econômica para mudar a mentalidade e o caráter da nação: “A economia é o método”, ela confessou ao jornalista Ronald Butt, “o objetivo é mudar o coração e a alma”.
O tipo de coração e alma que ela queria formar através de suas políticas era o empreendedor, auto-suficiente, trabalhador e economicamente produtivo. Na verdade, o tipo de personalidade que ela mais venerava, parecia corresponder mais aos contornos de sua própria personalidade: ela não estava muito interessada em introspecção, introversão e auto-cultivo, mas em extraversão, ambição e atividade constante. Ela admirava o conflito e acreditava que o esforço perpétuo e a agitação indicava uma espécie de vida superior – algo que sua economia tanto encorajaria quanto recompensaria. Ela tinha menos imaginação para as felizes minúcias da vida cotidiana, para mais ambições locais, hobbies e afiliações – para as multidões de pequenas gentilezas sobre as quais as comunidades e sociedades são construídas. Ela ficou impressionada com o sucesso, a auto-suficiência e o esforço – por pessoas que sacrificaram tudo para “melhorar a si mesmas” (o que para ela significava principalmente subir a escada econômica).
Durante as décadas de 80 e 90, então, mostrar os sinais exteriores de tal auto-sustentação cresceu em importância cultural. As coisas que consumimos se tornaram os marcadores externos de nosso sucesso. Um número cada vez maior de nós veio a derivar nossa identidade e auto-estima de nossos bens, acreditando que nos definíamos e criávamos principalmente através dos objetos que consumíamos, e que ao adquirirmos mais bens de alto status e elogios, de alguma forma aumentamos nosso valor e dignidade como pessoas. Quanto mais possuíamos, mais acreditávamos ser, um objetivo cultural dominante tornou-se “ter muito” em vez de “ser muito” – para colocar nos termos de Erich Fromm – para fazer da aquisição material um ponto central da vida.
Assim, para responder à sua pergunta sobre por que o ethos neoliberal se tornou tão poderoso na sociedade, bem, a política econômica tem o poder de afetar a direção na qual todos nós viemos a lutar, moldando nossas identidades, objetivos, personalidades e experiência no processo. Esta idéia foi abraçada por aqueles da esquerda e da direita econômica, desde pensadores de esquerda como Karl Marx e Erich Fromm até os grandes arquitetos do próprio capitalismo tardio – Fredrick Hayek e Milton Friedman. E é por isso que a economia é tão eminentemente psicológica; os sistemas econômicos têm o poder de moldar sistemas psicológicos, e às vezes de maneiras insidiosas.
Deixe-me dar-lhe um exemplo concreto se você não estiver convencido. Por que os dados atuais mostram que os estudantes de graduação de hoje são mais deprimidos e desanimados do que eram há 15-20 anos? Bem, os estudantes de graduação de hoje geralmente percebem o mundo em que estão entrando como mais hostil do que os estudantes de graduação do passado, o que é compreensível. Ao contrário do que acontecia no passado, os graduados agora têm enormes dívidas estudantis a pagar; suas perspectivas de ter uma casa própria são cada vez mais fugidias, enquanto o mercado de trabalho é mais competitivo. Além disso, os salários são fixos, as carreiras para a vida estão desaparecendo e os níveis de insatisfação dos trabalhadores estão aumentando. Apesar das óbvias razões econômicas para o maior desânimo dos estudantes universitários atuais, a narrativa em torno do agravamento da saúde mental dos estudantes ainda é em sua maioria despolitizada – o contexto social é até ativamente negado. O grito é de “mais serviços psiquiátricos” e ” consultas de saúde mental”, e não de uma séria reflexão e reforma das políticas nocivas que pesam sobre a vida estudantil. Este último domínio parece muito grande, muito inamovível para até mesmo se entreter, por isso nos concentramos em ” jornadas de saúde mental “, horas de relaxamento, e melhor acesso aos médicos de clínica geral.

JB: Em ‘Sedated’, você argumenta poderosamente que precisamos nos concentrar nas raízes sociais do sofrimento – como a tributação injusta, a precária previdência social, a desigualdade e a exclusão social – que têm sido historicamente negadas pela psiquiatria (e também, deve ser dito, pela psicologia acadêmica). As evidências comprovam que isto é de fato vital para a compreensão de tal sofrimento e para o bem-estar contínuo de nossas sociedades como um todo. Também é verdade que a psiquiatria tem reconhecido cada vez mais o papel destes fatores. Eles serão enquadrados, no entanto, em termos de “gatilhos” do que então se torna um transtorno individual que deve ser medicalizado, algo com o qual você obviamente discorda. Isto é, para mim, a coisa mais complicada do modelo psiquiátrico: ele pode caber em quase tudo em sua narrativa. Pergunto-me como você faz sentido as diferenças?

JD: A psiquiatria não é uma ciência, embora, é claro, ela aspire a fazer uso de descobertas científicas para orientar suas práticas (quanto a quem muitas vezes produz essas “descobertas”, partiremos para outro dia…). Se a psiquiatria não é uma ciência, então o que ela é? Bem, muitos cientistas sociais podem chamá-la de um conjunto de práticas e idéias culturais ou o que o antropólogo e psiquiatra de Harvard, Arthur Kleinmann, chamou de um “modelo explicativo”. O termo “modelo explicativo” creio que se encaixa muito bem na psiquiatria, na medida em que é definido como um sistemas de idéias e práticas interligadas que enquadram e respondem ao sofrimento de formas que, em minha opinião, servem na maioria dos casos a poderosos interesses sociais, políticos e profissionais.
Uma das formas mais óbvias de “modelos explicativos” servir às partes interessadas, é através do uso da linguagem (ou, no caso da psiquiatria, através de seu uso ou uso indevido do simbolismo médico). A psiquiatria usa o simbolismo médico para dotar seus pronunciamentos e práticas com uma aura de autoridade que de outra forma lhes faltaria, e para reenquadrar as experiências humanas de maneiras que façam o próprio modelo parecer altruísta e indispensável. Ao usar símbolos médicos como “doença”, ” enfermidade”, ” transtorno”, “patologia”, “diagnóstico” etc., o modelo explicativo arrasta diversas experiências de sofrimento humano sob a autoridade de sua própria jurisdição; reformulando o sofrimento como um problema essencialmente médico que seu próprio conhecimento especializado e proficiência está posicionado de forma única para tratar.
O modelo explicativo, portanto, implanta simbolismo para reforçar sua credibilidade e poder no mundo, daí a enorme resistência que o modelo tem para desmedicalizar suas idéias, conceitos e práticas (e sua hostilidade quase estrutural em relação a alternativas simbólicas não-médicas). Assim, embora os símbolos não capturem as realidades de nossos mundos emocionais (pode-se até dizer que distorcem essas realidades), eles ainda servem à função de dotar o modelo da autoridade de que ele precisa para dominar e prosperar.
Para dar um exemplo de como este mau uso do simbolismo funciona em uma prática cotidiana, vamos considerar a seguinte frase que inclui uma palavra que você mencionou há pouco, James: “a pobreza desencadeia a doença mental”. Como você sugeriu em sua pergunta, em vez de dizer “a pobreza gera múltiplas formas de sofrimento e angústia humana”, a palavra desencadeamento invoca o poderoso símbolo cultural da “doença mental” para denotar algo que a pobreza supostamente provoca e que o modelo pode supostamente “tratar”. Este movimento faz um par de coisas. Ele garante que o modelo permanece relevante diante dos determinantes sociais do sofrimento, protegendo ou mesmo expandindo a jurisdição do modelo sobre nós, mas também permite que o modelo reivindique sofisticadas credenciais ‘bio-psico-sociais’, apesar de relegar causas sociais a meros ‘gatilhos’ e privilegiar amplamente as intervenções biológicas/de drogas no gerenciamento do que foi desencadeado – a saber – a ‘doença mental’.
Mas vejamos agora também o termo ‘doença mental’ nesta frase. Há algum tempo, pedi a um grupo de estudantes de medicina do Imperial College, Londres, para dar sentido ao seguinte fato: por que no Reino Unido são as taxas mais altas de prescrição de medicamentos psiquiátricos encontradas nas áreas de maior desvantagem sócio-econômica, pobreza e desemprego? Isto é coincidência? Ou há algo causal por trás dessa correlação? Um estudante respondeu, com grande aprovação dos outros, que não foi coincidência alguma, pois estas são precisamente o tipo de circunstâncias sociais (alta privação, pobreza, etc.) que geram maiores índices de doença mental.
Em seguida, pedi aos estudantes que prestassem atenção ao uso da frase “doença mental”. Embora seja verdade, disse eu, que as pessoas em situações de privação provavelmente sofrerão muito mais do que aquelas que são mais abastadas, com que fundamentos estamos corretos para usar o simbolismo médico para descrever esse sofrimento? Usamo-lo porque simplesmente fomos ensinados a usá-lo, ou porque temos evidências objetivas de que é de alguma forma melhor medicalizar tal sofrimento do que vê-lo, como muitos cientistas sociais poderiam, como uma resposta humana não médica, não patológica, mas compreensível às condições sociais, relacionais, políticas e ambientais prejudiciais? Talvez a razão pela qual desigualdade, pobreza e desvantagem social sejam boas notícias para o mercado de antidepressivos, continuei, seja porque nossa resposta ao sofrimento socialmente induzido é agora tão medicalizada. Isto preserva o domínio da autoridade psiquiátrica e da prescrição, sutilmente distrai a atenção da centralidade da má política social e assim ajuda a exonerar as más circunstâncias. Se esses mecanismos melhorassem muito os resultados dos pacientes, então talvez qualquer crítica parecesse grosseira. Mas o fato é que, desde que este modelo explicativo tem dominado amplamente nossos serviços, os resultados clínicos têm, na melhor das hipóteses, sido achatados e, de acordo com algumas medidas, pioraram, o que é o oposto do que você esperaria encontrar se o modelo estivesse funcionando.
Portanto, sim, o modelo explicativo da psiquiatria é escorregadio e adaptável. Ele confere status e poder a intervenções pobres, e induz ao erro quanto às verdadeiras origens da “doença” que se propõe a remediar. Neste sentido, seu poder, status e autoridade é mais derivado dos símbolos que exerce do que do verdadeiro bem social que gera. Isto explica, é claro, sua profunda ligação com os símbolos.

JB: Claramente, grande parte da individualização do sofrimento/ideologia das pessoas com ” transtornos ” remonta diretamente aos anos 80 – neoliberalismo e o DSM-III – como você ilustra e desempacota. Lendo seu livro, não pude deixar de pensar também nas condições que tornaram isto possível. Parece-me que a individualização/transtorno do sofrimento está quase escrita no que poderíamos chamar o amplo “projeto do eu individual” ocidental (por exemplo, quanto mais a experiência é conceitualizada como um fenômeno interno, subjetivo de alguma forma redutível ao cérebro ou ao corpo, mais fácil é dizer que algo “errado” está na pessoa).  Embora possamos chamar a fabricação de mentes e vidas a la neoliberalismo de versão ou resultado mais moderno e extremo, suas raízes, parece-me, remontam à própria concepção do capitalismo e da visão científica do mundo. Qual será a sua opinião sobre isto?  

JD: Eu sou antropólogo por formação, e assim tenho lido inúmeras etnografias de como as comunidades e relações humanas operam fora do domínio dos arranjos neoliberais. Isto me ensinou muitas coisas, mas em particular, me ensinou como os tipos de emoções e estados subjetivos que qualquer sociedade preza, normaliza e recompensa são aqueles que melhor servem ao bom funcionamento de seu sistema social. A antropóloga Emily Martin olhou para isto no contexto dos EUA modernos, onde “estados maníacos” são muito menos estigmatizados do que “estados depressivos”. Por quê? Os estados maníacos são mais ativos, produtivos, consistentes com as exigências frenéticas da vida moderna, enquanto que os “estados depressivos” são contrários à extração e à produtividade, atrasam as pessoas e as tornam introspectivas. Neste sentido, “antidepressivo” não se refere apenas a uma espécie de intervenção, mas a um preconceito cultural difundido em relação ao próprio sofrimento – como sociedade, temos uma relação muito hostil com qualquer emoção que nos faça cair e que ameace a ordem social. Nossas comunidades desenvolveram conseqüentemente uma profunda intolerância ao sofrimento, o que, por sua vez, gerou uma certa dose de medo entre nós. A profissionalização da ” gestão da saúde mental ” nos deixou desorientados e intimidados – e nossas comunidades não confiam mais em sua sabedoria ou em seus recursos para responder de forma eficaz (praticamente ao contrário de qualquer grupo indígena que eu já tenha estudado). E assim exilamos os sofredores para “especialistas” em salas de consulta sentados bem fora dos muros da comunidade, que por sua vez acabam, freqüentemente com boas intenções, transfigurando o sofrimento em uma mera mercadoria da qual se pode obter receita (não esqueçamos que o mercado psicotrópico global vale agora cerca de 70 bilhões de dólares por ano). E nossa idéia de cuidado, uma vez que eles retornam, muitas vezes se resume a: não se esqueça de tomar seus medicamentos – não há comunidade, não há cosmologia compartilhada, não há rituais de encontro ao redor da dor da pessoa. Há isolamento, medo, patologização e medicação em demasia.
Esta profunda intolerância à angústia (que está ligada ao preconceito contra qualquer emoção economicamente inconveniente) foi até explicitamente consagrada no DSM. Em 1980, no mesmo ano em que Reagan chegou ao poder, o DSM pela primeira vez reclassificou o subdesempenho ocupacional como um índice chave do transtorno mental, ao mesmo tempo em que os estados neoliberais começaram a lutar com a necessidade de melhorar a produtividade dos trabalhadores – ou seja, a produção de cada trabalhador por hora de trabalho. Enquanto os governos aspiravam a melhorar a produtividade a partir de fora, através de uma nova política social, os psiquiatras e as empresas farmacêuticas reivindicavam melhorá-la a partir de dentro, através de novas intervenções farmacêuticas que afirmavam alterar a própria dinâmica do eu improdutivo. A preocupação de meados do século entre as psico-profissões com o cultivo da produtividade no sentido mais humanista (trabalhar para realizar e fazer uso produtivo de nossos plenos poderes humanos) foi agora suplantada pela obsessão profissional com a necessidade de cultivar a produtividade no sentido econômico (tornando as pessoas mais capazes de satisfazer medidas econômicas abstratas, como retornar ao trabalho rapidamente). As formas de subjetividade que ameaçavam o funcionamento ideal do mercado tornaram-se assim aquelas mais facilmente patologizadas e desacreditadas, assim como outras formas de ser consideradas antitéticas ao projeto neoliberal mais grandioso.
Para dar apenas um exemplo de outra forma, o eminente sociólogo Richard Sennett escreveu uma vez um excelente livro sobre o capitalismo tardio, chamado Novo Capitalismo. Este livro abordou o quanto as redes sociais e relacionamentos próximos e duradouros podem realmente impedir os projetos do capitalismo tardio. A economia moderna precisa ter uma força de trabalho altamente móvel (por exemplo, o tempo médio que passamos em qualquer trabalho é agora de cerca de 5 anos). Mas ter laços sociais profundos e fortes filiações na comunidade realmente inibe a alta mobilidade, e a rápida rotatividade do pessoal mantém os salários baixos, as corporações ágeis e a ansiedade da força de trabalho em um nível produtivo elevado. Assim, o neoliberalismo se beneficia sutilmente do afrouxamento dos laços comunitários, uma vez que as pessoas desapegadas são mais capazes de se levantar e de se movimentar, e são mais capazes quando se estabelecem em um emprego para fazer do próprio local de trabalho sua principal comunidade. Embora esta possa ser uma excelente notícia para os mercados de trabalho, é uma notícia muito ruim para nossa saúde emocional.
Portanto, o que eu argumento em ‘Sedated’, para chegar à sua pergunta, James, é que nosso setor de saúde mental, de modo geral, não faz nada para problematizar as condições sociais de aflição. É conservador, acrítico e deferente à estrutura dominante. É neoliberal por padrão. Procura apelar servilmente para os objetivos e diretrizes capitalistas tardios (muitas vezes para assegurar o financiamento governamental) mais do que para oferecer qualquer programa radical de reforma. Para usar uma analogia, nosso setor é como o menino bom da classe que traz presentes e elogios a cada dia para o professor tirânico e se torna comprometido em conseqüência. Assim, nosso sistema falha porque conspira com estruturas sociais que, por si só, geram formas nocivas de estar no mundo. O setor, na melhor das hipóteses, sedimenta esses estados e, ao mesmo tempo, exonera arranjos sociais prejudiciais, enfatizando em demasia as chamadas causas internas e desordenadas da angústia estrutural.

JB: Finalmente, sua conclusão geral foi que as coisas precisam mudar de cima para baixo – da política e dos políticos. Eu sei que você faz pressão {lobby] nesse nível, então o seu dinheiro está onde sua boca está! Mas como você vê o papel dos movimentos de usuários de serviços, por um lado, e o discurso crítico nas profissões da saúde mental, por outro, nesse processo? Em outras palavras, o que podemos fazer para ajudar a mudar a narrativa política dominante?

JD: Há duas coisas que eu acredito que devem acontecer para que o setor de saúde mental possa funcionar. Primeiramente, a reforma tem que começar por nós mesmos, identificando onde nós conspiramos com as próprias causas do sofrimento que pretendemos aliviar, divulgando idéias e intervenções que exonerem essas causas. Quando digo “nós mesmos”, me refiro tanto aos profissionais quanto aos usuários de serviços (ou aos muitos que se encontram em ambas as categorias). E estamos dando excelentes passos – não preciso repetir para os leitores do MITUK ou do MIA e MIB uma lista das muitas pessoas e organizações que agora se empenham em pressionar contra o status quo. E, a propósito, não somos mais uma minoria pequena e simbolicamente inconseqüente – somos uma maioria crescente e cada vez mais poderosa, com organizações como a Organização Mundial da Saúde e a ONU alinhando-se gradualmente com este poderoso apelo à mudança.
Mas também sou realista e acredito que, até que tenhamos arranjos políticos mais flexíveis em nossa economia, a reforma será significativamente manietada. Vejam, nosso setor se encaixa tão bem nos arranjos neoliberais que até que haja uma mudança estrutural mais ampla, acho que o estilo de nosso setor atual continuará a dominar, apesar dos maus resultados. Eu realmente lutei para aceitar esta conclusão enquanto pesquisava “Sedated”, porque agora não é particularmente edificante, pois implica um pré-requisito tão importante para a mudança. Por outro lado, também é verdade que a reforma socioeconômica parece muito menos implausível do que no início de 2020, dados os efeitos econômicos que Covid sem dúvida continuará a exercer nos próximos anos (uma área que eu desenvolvo no livro). Assim, e para terminar parafraseando algo que digo em ‘Sedated’: quando a mudança chegar, e ela chegará porque nenhum paradigma econômico jamais existiu em perpetuidade, idéias alternativas no campo da saúde mental só estarão prontas para implementação se continuarmos nos esforçando agora mesmo; se trabalharmos para desafiar as pressões e aliciamentos neoliberais, e se desenvolvermos intervenções que coloquem as necessidades das pessoas e comunidades acima de nossa ideologia econômica fracassada e agora em desvanecimento.

JB: Maravilhoso. Obrigado por ter tido tempo para compartilhar sua sabedoria, James!

JD: Muito obrigado por conversar comigo, James.

[A entrevista com James Davies foi originalmente publicada no Mad in UK]

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