Um artigo recente publicado em Philosophy, Psychiatry & Psychology examina várias maneiras de entender a solidão como parte da experiência humana.
Valeria Motta, pesquisadora de doutorado em filosofia da Universidade de Birmingham, sugere uma abordagem que considera a experiência vivida do tempo, da corporificação e da atenção como dimensões fundamentais da solidão. Ela aborda a questão através das lentes da filosofia fenomenológica, ou do estudo da experiência vivida em profundidade.
“Há boas razões para esclarecer o conceito de solidão. A solidão tem efeitos adversos sobre a saúde física e mental. É um fator de risco para a morbidade e mortalidade em humanos. A solidão pode ser transitória – uma consequência de circunstâncias externas – como a solidão resultante de um luto, uma mudança de cidade ou de círculo social, ou a distância de amigos, família ou parceiros”, escreve Motta.
“A solidão também pode ser uma angústia crônica sem características salvadoras. Estas observações levantaram questões sobre se a solidão deve ser caracterizada como patologia por si própria, e se aliviar a solidão deve ser um foco chave para os clínicos”.
Em tempos recentes, especialmente durante a pandemia da COVID-19, tem havido uma onda de preocupação em torno da questão da solidão. Durante a pandemia, os jovens têm sido especialmente vulneráveis à solidão. Algumas pesquisas sugerem que a solidão pode ser mais mortal do que o vírus da COVID-19.
É claro que, mesmo antes da COVID-19, a solidão tem sido estudada e ligada a uma série de efeitos negativos à saúde física e mental, incluindo muitos ” transtornos mentais “. Isto levou alguns pesquisadores a chamar a solidão de “ameaça à saúde pública” ligada à ideologia do capitalismo neoliberal.
O presente documento revisa os entendimentos existentes de solidão em diferentes campos, tais como psicologia, sociologia e filosofia. Motta sugere então outra compreensão da solidão a partir de uma perspectiva filosófica, examinando o fenômeno em algumas de suas dimensões fenomenológicas (baseadas na experiência) e sociais.
Motta esboça cinco definições diferentes de solidão antes de apresentar sua própria perspectiva.
A primeira definição se concentra nas “necessidades sociais”, baseada na teoria psicanalítica e do apego [attachment theory], sugerindo que as pessoas têm uma necessidade inata de relações seguras, acolhedoras e tranquilizadoras. Se estes vínculos não forem formados no início da vida ou se desintegrarem na vida posterior, a solidão pode resultar.
A segunda definição se baseia na “discrepância cognitiva”. Esta abordagem se concentra mais nos processos cognitivos do que nas realidades sociais. Aqui, afirma-se que as pessoas se percebem sozinhas. Elas podem ou não possuir relações sociais de qualidade real, mas existe uma atitude ou percepção de solidão. Isto pode às vezes resultar da percepção de uma discrepância entre a quantidade/qualidade “desejada” das relações sociais de uma pessoa e o que a pessoa experimenta.
Uma descoberta interessante nesta pesquisa é que indivíduos cronicamente solitários têm “expectativas muito altas” para as relações interpessoais.
Uma terceira definição é chamada de “abordagem interacionista”. Esta definição combina “traços de caráter” tais como timidez com fatores situacionais, tais como hospitalização, mudanças de renda, relocalização e fatores e expectativas culturais.
Quarto, há uma perspectiva onde a solidão é “indicativa de déficits nas relações sociais”. Esta perspectiva vê a solidão como um conjunto de atitudes, cognições e comportamentos. Isto inclui realidades sociais em torno da falta de relacionamentos reais, bem como a percepção da solidão.
Finalmente, existe uma perspectiva existencial da solidão que a relaciona a um aspecto fundamental da condição humana. Nesta compreensão, a solidão está relacionada às “últimas experiências da vida”, tais como “nascimento, morte, mudança, tragédia”. Aqui pode haver uma visão positiva, onde a solidão está ligada à criatividade e ao enfrentamento honesto de si mesmo e da própria vida.
A contribuição da Motta para as definições existentes se concentra mais nas dimensões fenomenológicas, ou baseadas na experiência, da solidão.
Em primeiro lugar, ela enfatiza o que ela chama de cronicidade. Definições anteriores de solidão fizeram distinções entre, por exemplo, estado (emocional) e solidão baseada em traços (caráter), assim como solidão transitória e crônica.
Motta argumenta, entretanto, que há muito espaço para melhorias nesta área. Ela sugere algumas direções que uma “experiência vivida” baseada na compreensão da solidão poderia seguir, tais como: se a solidão “é sentida mais duradoura” do que quando as pessoas se sentem socialmente ligadas, como os estados de solidão afetam nossas memórias do passado, bem como como o sentimento de solidão afeta a nossa visão do futuro. Todas essas facetas, e mais, poderiam dar aos pesquisadores uma compreensão mais clara da solidão e de como tratá-la.
A segunda dimensão apresentada por Motta está relacionada à atenção, ou o que ela chama de “espaço atencional”. Isto está relacionado a três tipos de solidão: íntima, relacional e coletiva. A solidão íntima está relacionada ao círculo interno das relações de uma pessoa, geralmente não mais do que cerca de cinco pessoas. Isto pode incluir um cônjuge/companheiro(a) significativo(a) de outra pessoa/companheiro(a). As pessoas que têm uma outra pessoa significativa são menos propensas a experimentar a solidão íntima.
O segundo tipo de solidão é a solidão relacional (ou social). Este é um círculo maior de apoio social que pode incluir a família, amigos, colegas e mais como parte de um “grupo de simpatia”. O número de pessoas aqui é frequentemente de 15 a 50. Na meia-idade e nos adultos mais velhos, “o contato frequente com a família e os amigos é o melhor preditor (negativo) da solidão relacional”.
O terceiro tipo de solidão para Motta é a solidão coletiva. Este é o sistema social de alguém em um nível maior e mais abstrato, como partido político, nação, ou outro tipo de grupo (como os fãs de times esportivos). O número aqui é tipicamente de mais de 150 pessoas. A Dra. Motta descreve este grupo como não oferecendo “laços fortes”, mas como oferecendo “informação” e “apoio de baixo custo”. Os adultos de meia-idade e mais velhos que pertencem a grupos mais voluntários têm menos probabilidade de experimentar a solidão, como um exemplo.
Em última análise, Motta argumenta que novas pesquisas sobre a experiência vivida da solidão podem esclarecer estas dimensões e seus limites, dando-nos uma idéia melhor de como abordar o tratamento da solidão. É claro que ela observa que as pessoas podem sentir uma “ausência” ou solidão mesmo na presença de amigos, família e muito mais, o que coloca em dúvida a utilização desta estrutura como uma compreensão perfeitamente precisa da solidão.
A dimensão final discutida é o corpo, especificamente o corpo vivido, que é diferente do corpo fisiológico de acordo com a filosofia fenomenológica. O corpo vivido fundamenta nossa perspectiva sobre o mundo. É o terreno da experiência e não uma “coisa” à qual prestamos atenção como um objeto externo.
Motta argumenta que a solidão também deve ser entendida em termos do corpo vivido e de suas possibilidades ambientais. Por exemplo, a solidão:
“Uma maneira de ilustrar isto é pensar que uma pessoa em confinamento solitário tem possibilidades muito diferentes de interação com o ambiente de alguém que está na natureza ou em uma grande cidade e que isto altera sua experiência. O encarceramento é um exemplo particularmente bom que ilustra não apenas os efeitos da imobilidade, mas também até que ponto a regimentação do tempo e a fenomenologia da espera podem se tornar diferentes tipos de tortura psíquica”.
Motta conclui:
“As áreas potenciais de pesquisa que já foram identificadas são a temporalidade da solidão e o papel da atenção e percepção na experiência da solidão”. Tenho argumentado que precisamos de definições de solidão que abordem distúrbios (por exemplo, ausências) ou anormalidades experienciais (por exemplo, experiências encarnadas) na estrutura subjetiva. A exploração das questões aqui levantadas teria implicações para nossa terminologia e nossas pesquisas futuras sobre os tipos de solidão. Estes, por sua vez, permitiriam o desenho de novos tratamentos e intervenções”.
Um artigo publicado na Child and Adolescent Mental Health tenta preencher uma lacuna na pesquisa com foco na experiência de ouvir vozes para adolescentes menores de dezesseis anos.
Liderados por Sarah Parry da Universidade Metropolitana de Manchester, os pesquisadores utilizaram respostas qualitativas de pesquisa para compreender a forma e a função tanto das experiências positivas com ouvir vozes, quanto das experiências negativas ou angustiantes. Com base em suas descobertas, os autores fornecem sugestões para melhorar a psicoeducação em formatos públicos sobre as funções úteis das vozes.
“As narrativas singulares dentro deste estudo oferecem uma visão da diversidade de experiências de audição de voz e outras experiências multissensoriais para os jovens”, escrevem os autores. “Os jovens não consideram necessariamente ouvir vozes como sendo problemáticas ou indesejadas, com a maioria dos participantes relatando experiências mistas de vozes acolhedoras e angustiantes, com algumas vozes potencialmente angustiantes reconhecidas como valiosas em certos domínios, tais como a criatividade”.
A expressão “ouvir voz” é mais comumente entendida como ruídos, vozes, ou outras percepções audíveis que contêm conteúdo verbal que outros não podem ouvir. É considerada uma experiência mais típica na infância do que na idade adulta, onde tende a tornar-se mais estigmatizada e associada a doenças mentais.
A extensa literatura sobre a audição de vozes nas crianças tem examinado como as vozes auditivas se relacionam com a fantasia e o jogo, assim como companheiros imaginários. Foi demonstrado que os companheiros imaginários para crianças servem como um agente protetor contra a solidão, bem como uma forma de lidar com o trauma. Entretanto, apesar desses benefícios, se os pais expressarem aprovação negativa dos companheiros imaginários, isso pode levar a um maior isolamento e autoavaliação negativa, uma vez que existem evidências de que dinâmicas sistêmicas como o funcionamento da família influenciam a autoestima e a autopercepção dos jovens, há motivos para examinar como essas dinâmicas significativas de relacionamento poderiam impactar a audição da voz.
Um estudo descobriu que a maioria dos ouvidores de voz relatou ter começado a ouvir vozes antes e durante a adolescência, sugerindo que mais pesquisas são necessárias em grupos mais jovens. Com isto em mente, os autores afirmam:
“Áreas adicionais que necessitam de mais atenção referem-se às características das vozes, relações com as vozes e como essas características podem influenciar as intervenções relacionais. Um foco relacional para intervenções psicossociais é de particular importância para as crianças, já que muitas vezes elas dependem de sua família e amigos para ajudá-las a interpretar e formular experiências de vida, ao lado de fatores socioculturais que moderam as avaliações iniciais dos jovens sobre suas alucinações”.
O estudo atual teve como objetivo avançar a compreensão teórica e fenomenológica dos ouvidores de vozes para um grupo sub-representado de jovens de várias nações ocidentais desenvolvidas; a maioria recrutada do Reino Unido e dos Estados Unidos. Os pesquisadores utilizaram uma análise narrativa informada por estudiosos foucaultianos para conduzir e analisar as respostas de pesquisa qualitativa escrita com 68 adolescentes, com uma média de idade de 15 anos. Especialmente, a elegibilidade dos participantes exigia que eles ouvissem vozes que outros não conseguiam ouvir. Eles não eram obrigados a ter recebido um diagnóstico ou estar conectados a um serviço de saúde mental.
Os resultados revelaram que a idade média de início era de 10 anos. Cinqüenta e seis por cento dos participantes relataram uma resposta emocional negativa ou preocupação com as vozes, 23% relataram apenas sentimentos ou crenças positivas sobre as vozes, e 21% relataram emoções mistas. Os autores se concentraram na forma que essas vozes tomaram e na maneira como as vozes funcionaram para elas.
Vozes Confortáveis e Positivas
Narrativas de vozes reconfortantes e positivas foram frequentemente discutidas em termos de ter qualidades pessoais, pronomes e motivações, o que é semelhante a como as crianças descrevem companheiros imaginários. Muitas vezes descreveram as vozes como querendo ajudá-los, fazendo-lhes companhia e pessoas em quem poderiam confiar. Um participante escreveu que as vozes o fizeram sentir “como se [ele] tivesse uma família novamente”. Os autores sugerem que esta descoberta oferece novas maneiras de conceituar as etapas de desenvolvimento da audição de voz, durante as quais os jovens podem se sentir particularmente vulneráveis social ou emocionalmente.
“No geral, os participantes identificaram experiências agradáveis de ouvir vozes através da personificação, relações recíprocas, companheirismo e motivações benéficas reconhecidas na função da voz”.
Vozes angustiantes
Por outro lado, experiências negativas de audição de voz foram descritas através de metáforas, espelhando opressão sociocultural ou pessoal, muitas vezes levando os participantes a se sentirem desanimados ou assustados. Vozes angustiantes tendiam a capturar uma experiência de comando que levava os participantes a se sentirem ansiosos e fora de controle das próprias vozes, ao contrário daqueles que experimentaram vozes reconfortantes que muitas vezes se sentiam no controle das mesmas. Essas vozes angustiantes levaram a uma diminuição da auto-estima, e os participantes as descreveram como “assombrosas” e se sentindo “presas”.
“A sensação de ter menos controle sobre as próprias ações e emoções devido às vozes levou os participantes a descrever sentimentos de ansiedade, dificuldades de concentração e medos em relação ao futuro, com muitos destacando formas pelas quais as vozes os enfraqueceriam”.
Devido à angústia das vozes negativas, foi mais desafiador para os participantes darem sentido a elas. Isto contribuiu para sua angústia geral e reduziu o bem-estar, pois a criação de sentido é uma forma positiva de lidar com as vozes auditivas. Notavelmente, em todos os relatos, as vozes negativas foram mais freqüentemente discutidas usando pronomes masculinos. Os autores observam que resultados similares têm sido mostrados em pesquisas com ouvintes adultos, refletindo desigualdades socioculturais relacionadas ao gênero.
Para resumir estas descobertas, os autores escrevem:
“Embora muitos participantes tenham tido experiências conflitantes de angústia e conforto causadas por suas vozes e angústia relacionada à voz, alguns participantes tiveram apenas experiências positivas, nas quais pareceram sentir-se fortalecidos pelas vozes… No entanto, a maioria dos participantes sentiu como se eles houvesse perdido um grau de controle em suas atividades cotidianas através da experiência de audição de voz, o que maior angústia relacionada à voz influenciou negativamente seu bem-estar geral”.
Embora muitos jovens tenham experiências positivas e negativas com sua audição de voz, os resultados deste estudo revelam que a capacidade de formular a experiência, contextualizar as vozes e recuperar o controle parece ser mais importante em termos de bem-estar. Isto poderia ter um impacto significativo na forma como o tratamento é conceitualizado e como as intervenções são conduzidas para os adolescentes.
Os autores sugerem que seja dada mais educação psicológica aos adolescentes para normalizar e desestigmatizar as mensagens em torno da audição da voz, independentemente de ter sido feito um diagnóstico de saúde mental. Ao oferecer publicamente uma psicoeducação que inclui a função útil das vozes e a reafirmação de que elas assumem muitas formas (tanto formas reconfortantes quanto formas angustiantes), isto pode agir como uma intervenção preventiva de saúde pública contra a angústia evitável relacionada à voz, enquanto também combate o isolamento e o estigma que impede que os adolescentes se abram sobre sua audição de voz.
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Parry, S., & Varese, F. (2020). Whispers, echoes, friends and fears: forms and functions of voice‐hearing in adolescence. Child and Adolescent Mental Health. https://doi.org/10.1111/camh.12403 (Link)
Um artigo recente publicado no Journal of Mental Health examina a freqüência dos dados clínicos da saúde mental no Reino Unido, incluindo informações relacionadas aos determinantes sociais da saúde, bem como os relatos fenomenológicos (focados em sintomas). Estes dados clínicos são baseados em códigos da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde Relacionados (CID) e vêm do banco de dados eletrônico do UK NHS Trust.
Os autores, incluindo o psicólogo clínico britânico Peter Kinderman, descobriram que tanto os determinantes sociais da saúde quanto os códigos fenomenológicos raramente são usados em relatórios clínicos, apesar de sua conhecida prevalência entre os usuários dos serviços.
“Em 2012, um grupo líder de psiquiatras sociais argumentou que a assistência em saúde mental precisava ser reformada, para levar melhor em conta os determinantes sociais. Da mesma forma, o Relator Especial das Nações Unidas Dr. Dainius Puras argumentou que os problemas de saúde mental estão fortemente ligados às adversidades, desigualdades e abusos da primeira infância, e defendeu uma ‘revolução’ no cuidado da saúde mental; uma mudança no foco de ‘tratamento’ para uma base social mais fundamental para o cuidado. Este tipo de visões para a assistêncua tem como primeiro passo o reconhecimento e registro destes determinantes sociais”, escreve Kinderman e seus co-autores.
As Nações Unidas e muitos outros têm apelado para a necessidade de reconhecer o impacto de fatores sociais e econômicos na saúde mental em vez de uma abordagem individualizada baseada no modelo médico. Estes fatores sociais e econômicos incluem fenômenos como pobreza, imigração, experiências adversas na infância, desabrigo e isolamento.
Kinderman também propôs a reforma do diagnóstico psiquiátrico, colocando uma ênfase renovada no diagnóstico de condições sociais em vez de distúrbios dentro dos indivíduos (ver entrevista MIA). Apesar desses apelos, porém, a psicologia e a psiquiatria continuam sendo regidas por um paradigma dominante baseado no individualismo e em entendimentos restritos do cérebro.
O documento atual examina com que freqüência os determinantes sociais dos códigos de saúde foram relatados nos registros de casos de saúde mental no Reino Unido entre 1 de janeiro de 2015 e 1 de janeiro de 2016. Os autores, reconhecendo a “evidência esmagadora” do impacto dos determinantes sociais da saúde sobre a saúde mental, procuraram analisar com que freqüência as categorias CID-10 e CID-11 relacionadas a estes fenômenos são realmente mencionadas nos registros de casos clínicos.
Eles também analisaram a freqüência dos códigos “fenomenológicos” do CDI sendo relatados, concentrando-se nos sintomas, tais como alucinações auditivas e ideações suicidas, em vez de transtornos diagnosticáveis.
Os autores examinaram 21.701 registros de casos do UK NHS Trust, um banco de dados eletrônico baseado no “sistema ePEX, um sistema de registros eletrônicos de saúde projetado tanto para a atividade clínica interna do Trust quanto para a comunicação obrigatória aos comissários e órgãos reguladores”.
Dos 21.701 registros de casos, 4.656 indivíduos receberam um diagnóstico formal.
10,2% de toda a amostra de usuários de serviços foram diagnosticados com um “transtorno mental, comportamental e de desenvolvimento neurológico”, como a esquizofrenia paranóica.
O uso de códigos “quase-diagnósticos”, consistindo de “sintomas, sinais e achados clínicos e laboratoriais anormais, não classificados em outros lugares”, foi bastante raro. Dezenove pessoas (0,1%) das 21.701 receberam um código relacionado, por exemplo, a alucinações auditivas ou “outros sintomas e sinais envolvendo estado emocional” (R45.8).
O sistema do CID é complexo e pode incluir diagnósticos primários e secundários, no entanto, o que forçou os autores a examinar manualmente muitos casos. Códigos relacionados a “sintomas, sinais e achados clínicos e laboratoriais anormais, não classificados em outros lugares” foram mencionados um total de 66 vezes.
Apenas 43 referências foram feitas a códigos do CID relacionados a determinantes sociais de saúde para 39 indivíduos (0,2%, ou 0,8% dos indivíduos diagnosticados).
Por exemplo, dois indivíduos foram identificados como “desempregados”, um indivíduo recebeu o código para “outra tensão física e mental relacionada ao trabalho”, um foi identificado como “sem-teto”, e três foram classificados como “vivendo sozinho”.
Além disso, dois foram classificados como tendo um “problema relacionado ao ambiente social”, sete foram relatados como tendo “problemas relacionados ao suposto abuso sexual de criança por pessoa dentro do grupo de apoio primário”, e seis foram relatados como lidando com o “desaparecimento e morte de membro da família”. Outros receberam códigos relacionados a problemas legais, circunstâncias psicossociais, “estresse, não classificado em outro lugar”, e outras questões.
Quando indivíduos receberam um diagnóstico mental, como a Síndrome de Estresse Pós-Traumático (SEPT), também foi raro encontrar um código psicossocial de acompanhamento. Por exemplo, de 64 pessoas diagnosticadas com SEPT, apenas dois casos mencionaram vagas “circunstâncias psicossociais”. Além disso, não foram relatados “eventos traumáticos específicos” em nenhum desses casos, apesar de a SEPT estar fundamentado em um histórico pessoal de trauma.
Da mesma forma, dos 151 usuários de serviços diagnosticados com um “transtorno de personalidade emocionalmente instável”, apenas um caso mencionou qualquer coisa relacionada a determinantes sociais da saúde – uma única menção de suposto abuso sexual.
Os autores compararam o uso infrequente desses códigos com a prevalência estimada da população. Por exemplo, apenas três pessoas no banco de dados foram relatadas como vivendo sozinhas, enquanto 11% de todos os usuários de serviços de saúde mental relataram viver sozinhos em uma pesquisa representativa.
Experiências adversas na infância relacionadas a trauma foram relatadas apenas 11 vezes (0,05% do total do conjunto de dados), mas em estudos epidemiológicos, 31% dos participantes relataram eventos de trauma na infância.
Em resumo:
“Em geral, foram usados códigos para possíveis determinantes sociais em apenas 39 casos (0,2% do conjunto de dados completo de 21.701 indivíduos, ou 0,8% dos 4656 que receberam um diagnóstico primário). A comparação com as freqüências de base relevantes revelou uma subnotificação altamente significativa de determinantes sociais chave, conhecidos”.
Enquanto isso, códigos fenomenológicos (focados nos sintomas) foram utilizados em apenas 19 casos. Eles observam que estas estatísticas são semelhantes às descobertas do sistema psiquiátrico dos EUA.
No entanto, eles advertem que estes dados não fornecem informações sobre notas clínicas psiquiátricas e de enfermagem “mantidas individualmente”.
Os autores concluem:
“É provável que informações de diagnóstico possam ter guiado decisões clínicas em pelo menos algumas ocasiões, mas não foram registradas no banco de dados. No entanto, a omissão de registros dos determinantes sociais dos problemas de saúde mental é importante, devido ao provável impacto em nossa compreensão dos problemas, nos caminhos dos cuidados e nas agendas políticas.
A descrição das circunstâncias que podem ter contribuído para o sofrimento psíquico promove a compreensão e, portanto, a compaixão. Pesquisas demonstraram que a inclusão de informações sobre determinantes sociais reduz a probabilidade de que um padrão de comportamento seja visto como patológico. Omitir informações sobre circunstâncias psicossociais significa que é mais provável uma explicação biomédica e patologizante”.
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Kinderman, P., Allsopp, K., Zero, R., Handerer, F., & Tai, S. (2021). Minimal use of ICD social determinant or phenomenological codes in mental health care records. Journal of Mental Health, 1-10. (Link)
Em um novo artigo em Policy and Politics, a pesquisadora Sarah White, da Universidade de Bath, escreve sobre a preocupação cultural difundida com bem-estar e felicidade. Ela afirma que esta preocupação aponta para um mal-estar subjacente que as pessoas experimentam no capitalismo tardio, à medida que seus laços sociais e relacionais são corroídos. Além disso, as soluções individualistas que prometem bem-estar muitas vezes agravam o problema.
A autora baseia as suas afirmações em suas descobertas na Zâmbia e na Índia e, em vez disso, propõe uma compreensão relacional do bem-estar. Esta conceitualização do bem-estar encoraja mudanças no nível político para incluir a reconstrução das relações sociais, concentrando-se nas estruturas sociais e políticas, e valorizando o contexto local.
O bem-estar é um dos temas mais bem pesquisados e populares em Psicologia. Apesar de sua popularidade, os críticos têm apontado inúmeros problemas na forma como medimos e entendemos o bem-estar. Por exemplo, algumas pesquisas têm observado que as mídias sociais ameaçam o bem-estar psicológico. Fatores estruturais como o inconsistente e a constante mudança do horário de trabalho dos pais também foram encontrados para diminuir o bem-estar de seus filhos.
Além disso, descobertas recentes têm sugerido repetidamente que o individualismo, prevalecente nas sociedades capitalistas tardias está ligado a uma saúde mental pior. Isto é especialmente verdadeiro para os jovens, pois está associado a pressões extremas e constantes de desempenho. As pessoas que tendem a reproduzir as ideias capitalistas neoliberais também mostram taxas mais altas de solidão e diminuição do bem-estar, porque esses valores enfatizam a responsabilidade pessoal e minimizam as influências sociais sobre a saúde do indivíduo.
Escrevendo sobre preocupações similares, White começa explorando o declínio dos laços sociais e relacionais sem romantizar formas mais antigas de uma família ou comunidade mítica feliz. Ela escreve que os laços comunitários e relacionais “libertados” no capitalismo tardio permitem a fácil disponibilidade e exploração de mão-de-obra móvel. O mercado e o Estado substituíram muitos papéis anteriormente desempenhados por sistemas de parentesco ou outras instituições comunitárias. Estas mudanças econômicas e políticas levaram a mudanças em nossas ideias de autoestima, família e outros vínculos relacionais – muitas vezes consistentes com a crescente individualização.
Na superfície, parece que as pessoas têm mais agência e escolha, mas White escreve que na verdade elas são:
“Disciplinados e seduzidos pelas forças do Estado e do mercado para fazer certos tipos de ‘escolhas’ e proporcionar não apenas certos tipos de comportamento, mas um certo tipo de self”.
Este self foi transformado em um projeto de aperfeiçoamento onde as pessoas são encorajadas a buscar serviços mais profissionalizados (análise, terapia, autoajuda, livros de autoajuda) para alcançar a perfeição fugidia. O bem-estar é parte deste projeto de autoaperfeiçoamento. Há um foco forçado no positivo, ignorando a insegurança subjacente, a perda e a fragmentação causada pela alienação de laços sociais e relacionais.
White argumenta que houve três grandes formas de bem-estar que dominaram o discurso popular. O Bem-estar geral afirma que o bem-estar deve medir mais do que apenas o crescimento econômico e incluir outras medidas subjetivas relativas ao progresso da sociedade. As críticas a esta abordagem incluíram a problematização da idéia de que existem formas superiores e inferiores de bem-estar, o que poderia refletir preconceitos baseados em classe, etnia e gênero.
O outro tipo de bem-estar é o bem-estar subjetivo, mais popularizado pela psicologia positiva. Isto considera a satisfação com a própria vida o principal indicador de bem-estar – “uma métrica de quão felizes ou satisfeitos as pessoas estão em seus próprios termos”. Há muitos problemas com esta medida, tais como as pessoas podem relatar altos níveis de satisfação por inúmeras razões: “baixas expectativas, opressão internalizada, ou simplesmente um desejo de parecer bem”.
White escreve que esta é também uma medida altamente baseada no mercado – as pessoas que respondem a estas perguntas são tratadas como consumidores que relatam sua satisfação com um produto (suas vidas). Tal abordagem baseada no mercado pareceu absurda na Índia e na Zâmbia, onde as pessoas acharam estranho “abstrair-se de sua experiência vivida e depois fazer um julgamento generalizado ao longo de toda a vida”.
A terceira é o bem-estar pessoal, onde os indivíduos são exortados a assumir a responsabilidade por sua felicidade e saúde, não apenas se sentindo bem, mas fazendo bem. Desta forma, a mudança no comportamento individual está no centro. Apesar das tentativas de vincular o bem-estar pessoal ao social, ele permanece um conceito individualista em sua essência porque o social é visto como importante apenas porque contribui para o bem-estar individual.
A autoperfeição é realizada através de numerosas tecnologias emergentes do self, tais como aplicações de cuidado, relógios de medição de fitness, etc. Tudo isso aumenta o auto-monitoramento e pressiona as pessoas a realizarem um “self” positivo em todos os momentos.
White sustenta que embora existam inúmeros problemas com estas conceptualizações, o fato de estarmos preocupados com o bem-estar como uma sociedade mostra que nos falta algo. Ela então avança sua própria conceituação de bem-estar chamada bem-estar relacional. As abordagens mencionadas acima consideram as relações importantes, mas apenas como um meio de aumentar o próprio bem-estar; elas ainda se concentram no indivíduo.
White emprega uma abordagem totalmente relacional onde as relações não são vistas apenas como um acréscimo ou uma restrição dos sentimentos individuais de bem-estar. Em outras palavras, os relacionamentos não são apenas apoio social ou determinante social do próprio bem-estar pessoal.
Em vez disso, usando o conceito de Gergen, o indivíduo é visto como construído através de suas múltiplas relações. Isto se refletiu em seu trabalho empírico na Índia e na Zâmbia. Ela descobriu que os aldeões têm uma profunda compreensão e experiência relacional do eu, e o bem-estar foi entendido em termos coletivos.
Os aldeões que foram seus participantes descreveram o bem-estar, “suas histórias pessoais e geografias, o que os havia frustrado e lhes trouxe alegria”, em termos relacionais. A ideia de amor estava profundamente interligada com o proporcionar, e “ter o suficiente” trouxe à tona conversas sobre ter o suficiente para compartilhar com os outros na comunidade. O bem-estar relacional, material e subjetivo era inseparável.
Ela descobriu que as estruturas sociais eram críticas, pois as relações de poder da sociedade estavam intrinsecamente ligadas a questões de bem-estar. Isso incluía políticas governamentais, estruturas burocráticas e econômicas. Essas estruturas freqüentemente determinam “riqueza e pobreza, pertencimento e exclusão, justiça e direito”.
Além disso, o ambiente natural desempenhou um papel importante na forma como o bem-estar foi vivenciado e compreendido. Como os participantes eram de comunidades rurais, suas vidas e sua subsistência dependiam dos recursos naturais e de como eles eram compartilhados e utilizados. Havia também um senso de responsabilidade e cuidado com o meio ambiente natural. White cita um aldeão indiano que disse: “Se não cuidarmos do jardim, então Deus não mandará a chuva”.
White escreve que esta compreensão do bem-estar como profundamente relacional, material e subjetivo tem sérias implicações em nível político. Isto significa que devemos nos concentrar na reconstrução dos vínculos sociais e comunitários. Significa também garantir que respeitamos os contextos locais ao medir o bem-estar, perguntando às pessoas como elas o entendem e experimentam; em outras palavras, o que é importante para elas.
Finalmente, enfatiza o papel que as estruturas sociais têm no bem-estar das pessoas. Por exemplo, pedir às pessoas que administrem seu peso não é suficiente se ignorarmos o papel que a pobreza desempenha no mesmo.
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White, S. C. (2021). Relational well-being: re-centering the politics of happiness, policy, and the self. Policy & Politics. DOI: https://doi.org/10.1332/030557317X14866576265970 (Link)
Em um estudo recentemente publicado na PLoS One, pesquisadores investigaram os efeitos da exposição a longo prazo tanto à ficção literária quanto à popular sobre vários aspectos da cognição social. Eles constataram que a leitura da ficção literária previa uma maior capacidade de compreender a vida psicológica dos outros de forma mais complexa e precisa.
O estudo foi liderado pela psicóloga social Emanuele Castano da Universidade de Trento, na Itália. Os autores escrevem:
“Como crianças, ouvimos (e fabricamos) histórias o dia todo, e como adultos, terminamos o dia lendo, observando e, cada vez mais, brincando com histórias. Adoramos histórias porque são divertidas, nos ensinam sobre o mundo em que vivemos e, assim como a interação social, nos ajudam a construir os processos cognitivos necessários para aprender sobre o mundo”. O trabalho acadêmico em teoria evolutiva e antropologia sugere que as histórias desempenharam um papel significativo na evolução da cognição humana. Durante a última década, a pesquisa investigou os processos envolvidos na construção mental de mundos ficcionais, como os leitores são transportados para tais mundos, e o impacto que o envolvimento com a ficção tem sobre a cognição”.
Os autores fazem distinção entre ficção literária e popular, que atrai os leitores por diferentes razões e tem diferentes funções sócio-cognitivas. A ficção popular é considerada divertida, uma fuga da realidade cotidiana, onde o leitor segue principalmente as histórias com significados e temas relativamente evidentes. Por outro lado, a ficção literária é conhecida por ter histórias mais complexas e introspectivas, narradas a partir de múltiplas perspectivas. Os leitores são encorajados a construir seus próprios significados a partir dos eventos da história.
“Uma consequência desta ênfase na vida interior é que a ficção literária destaca o subjetivo sobre o objetivo, a incerteza e a multiplicidade sobre a certeza e a singularidade. Outra conseqüência relacionada é que os leitores são convidados a prestar maior atenção ao funcionamento da mente. Enquanto toda ficção requer a compreensão dos estados mentais incorporados dos personagens, a ficção literária ‘faz[s] o leitor inferir estados mentais implícitos, além de (e às vezes ao invés de) enunciar alguns”.
Os autores supõem que, como a ficção literária encoraja uma leitura mais complexa da psicologia humana em suas histórias, ela se traduziria na compreensão dos leitores de si mesmos, dos outros e de seus mundos. Pesquisas experimentais realizadas no passado demonstraram que a ficção literária melhora a teoria da mente, ou a capacidade de pensar sobre os mundos psicológicos de nós mesmos e dos outros.
Após esta pesquisa, os autores procuraram explorar que outras características da cognição social poderiam ser influenciadas pela leitura da literatura. Eles colocaram a hipótese de aumentar a complexidade atribucional, reduzir o viés egocêntrico e aumentar a precisão na percepção social das pessoas que lêem ficção literária.
A complexidade atribucional refere-se à compreensão do comportamento humano como afetado por interações interpessoais e outras forças externas e motivado por uma propensão para explicações complexas. Se os leitores de ficção literária estiverem engajados em uma maior tomada de perspectiva, é menos provável que caiam no efeito do falso consenso (um viés egocêntrico) de superestimar o quanto os outros são semelhantes a nós mesmos na forma como se comportam e no que valorizam. Os pesquisadores consideram que, ao reduzir o viés egocêntrico, a ficção literária também pode aumentar nossa precisão dos estados mentais dos outros (pensamentos, emoções, atitudes, etc.) em nível individual e social.
Os pesquisadores recrutaram uma amostra de 502 participantes através da plataforma de Mechanical Turk (MTurk). Dos 477 participantes incluídos no estudo, eles completaram várias medidas para avaliar sua exposição aos diferentes tipos de ficção (literária, popular) e aqueles para a complexidade atribucional. Os participantes também completaram tarefas relacionadas ao viés egocêntrico, à precisão social e mental (Reading in the Mind Eyes Test). Finalmente, os pesquisadores usaram múltiplas regressões para medir a correlação entre a exposição à literatura com estas características de cognição social.
A partir dessas análises, os pesquisadores relataram que:
“A exposição à ficção literária e popular previu positivamente e negativamente a complexidade atribucional, respectivamente. Para ambas as medidas de tendência egocêntrica (TFC e PCTF), Literário era um preditor negativo, mas apenas marginal, enquanto Popular não era um preditor de nenhuma das medidas. Para medidas de exatidão, a exposição à ficção literária previu positivamente tanto a Acuidade Mental quanto a Acuidade Social, enquanto a exposição à ficção Popular não previu nenhuma das duas”.
Castano e colegas também analisaram como outros fatores, como nível de educação e gênero, poderiam se relacionar com essas variáveis. Por exemplo, eles descobriram que os participantes com educação superior tinham mais exposição tanto à ficção literária quanto à popular, tinham níveis mais altos de complexidade atribucional e precisão mental.
Além disso, as mulheres tinham padrões semelhantes com a inclusão de maior precisão social, embora não fossem encontradas diferenças de gênero para o viés egocêntrico. Ao controlar para estes dois fatores, os pesquisadores não encontraram nenhuma mudança nos padrões a não ser a exposição à ficção literária sendo um preditor mais confiável do viés egocêntrico.
De acordo com os autores, estas descobertas são importantes porque se baseiam em descobertas de estudos anteriores que examinam como a ficção molda a cognição social e afeta o estilo cognitivo. Além disso, elas são consistentes com descobertas que mostram a complexidade atribucional positivamente associada à precisão mental/individual e social, bem como a percepção dos pares como possuindo mais sabedoria social e consideração.
Os autores mencionam que a compreensão dos preditores de complexidade atribucional poderia ser importante para mitigar o racismo e moldar atitudes em relação a opiniões importantes relacionadas à política.
“No entanto, embora esta lógica seja consistente com o trabalho anterior que é experimental por natureza, devido à natureza correlacional dos dados aqui apresentados, nós advertimos contra tirar conclusões fortes sobre a causalidade. Nossa opinião é que a leitura de diferentes tipos de ficção promove certos processos sócio-cognitivos e estilos cognitivos relativos a outros, mas também concordamos que as diferenças individuais nestes processos e estilos podem tornar as pessoas mais propensas a gravitar em direção a diferentes tipos de ficção”.
Eles mencionam que é possível que o nível de educação, e especificamente o nível universitário, possa afetar sua exposição à ficção literária, levando à melhoria das habilidades sócio-cognitivas. Entretanto, os autores também advertem contra assumir uma superioridade inerente da ficção literária, pois a complexidade atribucional está relacionada à tomada de decisão atrasada ou descarrilada e negativamente relacionada à saúde mental. Em contraste, o viés egocêntrico está positivamente relacionado com a saúde mental.
Citando a Teoria da Gestão do Terror, que sugere que muitas de nossas ações são motivadas por um medo inconsciente da morte (ou seja, ansiedade existencial), os autores especularam que a ficção literária e popular tem efeitos opostos sobre essa ansiedade.
“Um dos mais importantes mecanismos psicológicos através dos quais mantemos esta ansiedade existencial à distância é a visão do mundo cultural: concepções da realidade que imbuem a vida de estabilidade, ordem e permanência. As visões de mundo culturais são elaboradas e mantidas dentro de grupos culturais através de uma variedade de artefatos culturais, entre os quais a ficção. Dadas as características da ficção literária e popular discutidas acima, prevemos que a exposição à ficção popular (porque confirma as expectativas sobre o mundo) reduz a ansiedade existencial, enquanto a ficção literária (porque desafia tais expectativas) a aumenta”.
Os autores contextualizam os processos sócio-cognitivos subjacentes associados à ficção literária e popular como essenciais para facilitar processos sociais centrais de vinculação com os outros e individualização; eles sugerem que estar em uma dialética constante e autodidata ajuda a sociedade a florescer. A vinculação facilita a formação e manutenção de grupos sociais através do desenvolvimento de identidades sociais e da identificação com e promulgação de papéis sociais. A individuação direciona a atenção para dentro e fomenta uma visão do mundo em termos de indivíduos únicos.
“Nesta perspectiva, uma hierarquia de ficção não tem sentido porque tanto a ligação como a individualização são necessárias não apenas no nível social para que as sociedades humanas funcionem e evoluam, mas também, quando dirigidas para dentro, para satisfazer necessidades intra-psíquicas”.
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Castano, E., Martingano, A. J., & Perconti, P. (2020). The effect of exposure to fiction on attributional complexity, egocentric bias, and accuracy in social perception. PLoS ONE, 15(5), e0233378. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0233378(Link)
Minha descida no sistema de saúde mental e medicação psiquiátrica começou aos 19 anos após meu primeiro ano de faculdade, primeiramente na forma de antidepressivos, depois evoluindo para estabilizadores de humor e antipsicóticos. Agora, minha história psiquiátrica é tão extensa que é como se eu estivesse envolta em um bandagem infinita, como uma múmia, medicação que cobre continuamente as minhas feridas, nunca permitindo que elas sejam expostas e cicatrizem.
Pergunto-me como as coisas ficaram tão intrincadas e íntimas, como a minha tristeza inicial e meu impulso para cometer suicídio conspiraram para transformar o meu futuro de desejável ao desolado. Como – quando comecei a entrar e sair das sessões de aconselhamento, dos consultórios de psiquiatras e das enfermarias psiquiátricas em uma base rotineira e rotativa – fiquei entorpecida, e como, à medida que meu brilho diminuía, minha curiosidade, motivação e senso de humor também diminuíam.
Eu finjo confiança na manutenção de minha sanidade com a medicação diária. Mas, na verdade, estou tão ansiosa como sempre, pois o ano cinco se aproxima. Meu padrão de insanidade retorna sempre. Vivi meu primeiro episódio psicótico em 2003 (com 21 anos), o segundo em 2006, o terceiro em 2011, e o quarto em 2017. Os quatro anos desde meu último episódio foram marcados por períodos de produtividade, paz, rotina, estabilidade, hipomania, energia, agitação, indolência e tédio, um agregado de bons e maus hábitos, um conglomerado de qualidades positivas e negativas, altos e baixos normais. Nada tem sido muito desencadeante ou estressante: nada que me mande para além do limite. Nada me fez querer renunciar à minha medicação, e nada me fez esquecer de tomar a minha medicação.
Meus episódios psicóticos estão cheios de mania, nunca de depressão, e durante um episódio, a ação reina suprema. Tomei um trem, peguei carona, me envolvi em caminhar e fugir cronicamente, joguei fora meus pertences e destruí minhas obras de arte. Fui sem teto, fui encarcerada, fui hospitalizada e, apesar de acolher certos aspectos da loucura, nenhuma dessas experiências, como um todo, foi positiva. Eu sou uma contradição ativa: senti-me como deus, senti minha vida ameaçada, senti uma espécie de liberdade última, senti-me quebrada.
No passado, quando deixei de tomar a minha medicação e tive um episódio, sempre fui colocada de volta (às vezes imediatamente, mas sempre contra a minha vontade). Por exemplo, durante o meu último episódio, um psiquiatra de uma unidade de internação hospitalar ameaçou fazer o pessoal forçar a medicação (Haldol, talvez?) através de injeção, se eu continuasse a recusar o tratamento oral. Apesar do tratamento sub-humano do psiquiatra, eu me rendi e comecei a tomar a medicação oral.
Não me sinto necessariamente desconfortável com a medicação, mas sim com a ambivalência. Hoje, continuo esta contradição ativa, muitas vezes professando uma postura anti-medicação. Eu tenho raiva pelo fato de nunca ter sido minha escolha tomá-la. Estou sempre curiosa sobre a minha capacidade de funcionar sem medicação. Estou curiosa sobre a minha natureza e personalidade, sobre as portas que imagino que se abririam para infinitas possibilidades e produtividade em série, para o êxtase incessante, se eu deixasse a medicação e evitasse os antagonistas e a agonia.
Minha experiência apóia a teoria da euforia, e sei que eu ficaria emocionalmente feliz sem a medicação. Mas o sofrimento que sofri nas mãos da autoridade (médicos e policiais) foi muito traumático para fingir que eu poderia evitar o que sempre foi inevitável, pelo menos no passado. Se eu pudesse manter um semblante de sanidade sem a minha pílula diária, eu poderia parar de pontificar e transformar o meu sonho em realidade.
Em todo meu glorioso devaneio, quando me lembro do meu cadastro, a dor retorna. Minha autoestima está envolta em uma condenação criminal de 2006, as consequências que me seguem em minha busca pela utopia. Sim, eu não estava medicada na época das ofensas. Marcada com um registro que não pode ser expungido (de acordo com a lei da Virgínia) porque me declarei culpada, não posso recuperar o meu orgulho, a minha alegria, a minha vida. Demasiado estigma. Demasiado julgamento. Demasiado de outras pessoas, imperfeitas como eu. Minha vida parece roubada, e eu estou perdida, sem um propósito.
Meu consolo é a capacidade de escrever, e embora eu possa nunca ficar rica financeiramente, posso ser rica em um talento que ninguém pode tirar de mim, e as palavras podem ser apenas o poder que preciso para reconstruir a minha autoestima e fazer reparações com tudo e com todos que perdi com a loucura.
Apesar de minha aptidão para escrever e de minhas aspirações, a medicação reduz a ação, diminui a motivação e me encontro em um estado perpétuo de procrastinação. É uma tarefa de exercício, por exemplo, e eu raramente faço algo para além do que me sinto segura. É muito parecido com preguiça. É muito parecido com passar o tempo sentada. No entanto, tenho mantido a mesma dose diária de 10 mg de Abilify durante os últimos anos. É o único medicamento que tomo e, embora esteja em conformidade, não estou satisfeita: Não me sinto inteira. Eu não me sinto autêntica.
Eu iria ao ponto de pular de um trem enquanto tomava medicamentos, ou fazia alguma coisa, qualquer coisa, ao mesmo tempo em que era regida apenas para provar que meus impulsos muitas vezes nada tinham nada a ver com medicação ou com a compostura. Minhas ações fora da medicação estão enraizadas no desejo e na sensação de grandeza, elas são de caminhar 10 milhas sem parar todos os dias até que me encontro dentro das paredes e corredores de uma unidade hospitalar, o remédio começa a fluir, subjugando minha energia inquieta, sufocando a minha engenhosidade. Saí do meu último surto psicótico, 12 kg mais leve. De certa forma, estava grata pela mania que me deixou inquieta e andando sem parar, porque olhava mais de perto para uma versão mais antiga e mais esbelta de mim mesma, uma versão suprema dos meus 20 anos quando eu estava feliz e cheia de confiança.
Descobrir minha identidade é a parte mais difícil da equação. Eu sou alguém que não conheço quando não estou medicada porque, durante a maior parte da minha vida adulta, sempre tomei medicação. E quando estou sob medicação, sou alguém que não gosto. Quando estou sob medicação, estou entorpecida. Fora da medicação, sinto a verdade. Com a medicação, sinto a falsificação. Ofende-me a maneira sutil como a medicação filtra minha identidade: a maneira como torna a minha visão embaçada, protegendo-me da sensação e mascarando minhas tristezas, a maneira como não posso dizer quem realmente sou e o que realmente quero. Embora a medicação subverta a identidade, ela impulsiona a reflexão. Sobre a medicação, penso eu. Muita coisa. E nem sempre o tipo de pensamento produtivo e saudável. É a antítese da minha natureza fisicamente ativa quando sem medicação.
Quero viver a vida sem medicamentos, o que me levaria a tomar medidas: partir, fugir, recomeçar, apenas fazê-lo: com audácia, sem medo, sem olhar para trás. Eu já o fiz antes. Já o fiz mais de uma vez. Suspeito que o farei novamente. Não posso evitar as (e)moções: o impulso que me atrai, o conforto que me frustra. Quero uma experiência alternativa, do tipo que é iluminadora, onde enfrento meus problemas, aprendo com eles e avanço de forma saudável, com as ferramentas para garantir segurança e consciência, sem toda a bruma, sem a simulação sufocante de hospitalizações, sem as impurezas da psiquiatria.
Os principais resultados aparecem de uma forma pró e contra. Reconheço a realidade de minha situação em seu estado atual e sei que não vou renunciar à administração de medicamentos num futuro próximo, mesmo lutando diariamente com consentimento e contentamento.
Aos 20 anos, o mundo estava na ponta dos meus dedos. Aos 39 anos, eu não tenho nada para mostrar. Tudo o que faço agora é me perguntar o que estaria fazendo e onde estaria se conseguisse alcançar a crista e me acalmar no ritmo, com equilíbrio, o suficiente para escapar do sistema cíclico de medicamentos e psiquiatria. Eu vacilo no momento, sem saber se quero estender meu cadastro. Tirar as possibilidades é como gargarejar água salgada morna.
Gargarejo. Gargarejo. Engolir. Soa como um vulcão ativo pronto para entrar em erupção. Penso sobre o futuro, não sobre o passado, não sobre a memória, aquele sinal astuto de imaginário versus real. Enquanto as lembranças me provocam, eu me regurgito.
Passo mais tempo pensando em como não quero estar sob medicação do que estabelecendo um hábito de escrita ou me envolvendo em ‘hobbies’ ou promovendo uma rotina mais produtiva. Estou muito distraída com o gosto salgado da nostalgia.
Escrever está sempre em minha mente (como minhas tramas para fugir ou quebrar o ciclo da medicação diária), mas nunca se torna uma realidade. As histórias que me sinto obrigada a documentar por sua pura singularidade são as mais difíceis de contar porque me levam de paisagens brilhantes a interiores escuros. Você deveria escrever um livro, mais de um amigo já me disse, mas eu luto para contar e moldar estas histórias que deprimem minha mente e enfraquecem meu coração. Às vezes eu ganho, mas nunca por muito tempo. Cinqüenta Primeiros Esboços que se aproximam, eu brinco, mas é verdade: cada vez que me sento para escrever, começo de novo.
Eu continuo a tomar um comprimido todas as manhãs para domar o intangível. O medo me encara e a liberdade me seduz, e eu sonho com o meu verdadeiro eu, quem eu sou (quando não estou medicada e não sofro com a retirada da medicação), minha natureza e personalidade. Quero abraçar meu tipo selvagem, quer seja inclinar-me para o sol, brilhante como um girassol, ou soprar ao vento como um papo de um dente-de-leão. Estou antecipando o dia em que meu corpo se torne fluente na linguagem do meu cérebro; quando eles cooperarem – o físico e o mental, quando eu não for mais um estranho para mim mesma. É romântico, até mesmo uma espécie de fetiche a que reverto, este ideal, sempre consciente de meu objetivo final: a liberdade da mente.
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Mad in Brasil recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são projetados para servir como um fórum público para uma discussão- em termos gerais -da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as próprias dos escritores.
Businessman burying his head in the sand into desert by cloudy day - 3D render
A CPI do genocídio foi prorrogada por mais noventa dias. No Brasil, continuamente assistimos estupefatos às declarações de corrupção na gestão da pandemia. Propinas, acordos escusos que foram firmados às custas da vida de mais de meio milhão de brasileiros. Enquanto os brasileiros precisavam de vacina, estava no balcão do governo a propina associada à compra e venda de vacinas. Medidas mais firmes são levantadas a todo tempo na CPI como pedidos de prisão temporária, preventiva e até mesmo em flagrante, crime contra a vigilância sanitária, prevaricação, corrupção passiva, epidemia dolosa. As gravíssimas declarações realizadas na CPI perfilam a estreita associação entre os escândalos e o “familiarismo” deflagrado no Palácio do Planalto.
Businessman burying his head in the sand into desert by cloudy day – 3D render
O familiarismo em política pressupõe a fantasia social compartilhada da família como núcleo de relações hierárquicas naturalizadas, “não problemáticas”, da autoridade baseada no amor e na devoção. Em núcleos deste tipo os lugares sociais de autoridade e submissão são lugares naturais. Essa sobreposição das relações econômicas sociais complexas à lógica da “casa” não visa apenas à produção ideológica de ilusões de naturalidade dos modos de circulação e produção de riquezas. Ela visa à sobreposição fantasmática entre o corpo social e o corpo do pai, dos irmãos. Sobreposição esta que deve produzir docilidade em relação à autoridade (Safatle, 2020). Esta lógica aproxima a política da lógica religiosa, regida pela fé, pela crença, pelo imaginário. Aspectos que fogem da explicativa racional baseada em argumentos.
Contudo, algo ruiu. O corpo, o pai, a autoridade autoproclamada aos quatro ventos, o mito. Podemos observar fendas e rachaduras profundas que prenunciam o desmantelamento do governo.
O desmoronamento paulatino da narrativa anticorrupção que, mais uma vez, foi utilizada para a ascensão de um poder autoritário, vem produzindo uma reação diametralmente oposta no que se refere a saúde: a redução das taxas de mortes por covid-19 e a ampliação vacinal. Neste momento histórico, parece haver um forte antagonismo entre a saúde enquanto cuidado com a população, valorização da vida e, de outro lado, as ações do poder executivo. Os ataques frequentes à saúde, à saúde pública e a defesa ferrenha de tratamentos “mágicos”, sem embasamento científico, expressavam uma das principais tônicas do negacionismo brasileiro.
O uso político do negacionismo não se encerra na concepção de negacionismo científico. Este mecanismo contamina e se expande como negação dos direitos humanos, negação da gravidade da doença e da morte, negação como mentira e manipulação da realidade em prol de um discurso político-econômico que expressa a mescla entre o neoliberalismo predatório e o discurso fascista. Negacionismo que se utiliza de artifícios psicológicos como o medo, a insegurança e o ressentimento para enraizar profundamente seus alicerces sociais nas bases frágeis da nossa democracia.
Corremos o sério risco do não reconhecimento da legitimidade das eleições presidenciais em 2022. O ressentimento foi depositado nas urnas em 2018, sob a forma de voto, com a secreta esperança de vingança. O ressentimento ainda ressoa e produz efeitos sociais desastrosos.
Pensamos com Kehl (2020) que o ressentido é um escravo de sua impossibilidade de esquecer, vive em função de sua vingança adiada, de modo que em sua vida não é possível abrir lugar para o novo. Como se trata de um vingativo passivo, seu silêncio acusador e suas queixas contínuas mobilizam confusos sentimentos de culpa no outro. O ressentido acusa, porém, não está seriamente interessado em ser ressarcido do agravo que sofreu. A dívida permanece impagável: a compensação reivindicada é da ordem de uma vingança projetada no futuro. Uma fantasia de vingança adiada. O ressentimento seria fruto de uma espécie de solução de compromisso entre os prazeres de cobrar uma dívida não na mesma moeda em que ela foi gerada, mas ao preço do sofrimento do credor. Impedido de vingar-se diretamente, o ressentido aposta na vingança imaginária que lhe permitiria gozar do sofrimento daquele que o ofendeu sem ter que se confrontar com sua própria crueldade.
No âmbito individual e coletivo, o ressentido vive a repetição de um gozo preso na pulsão de morte em vez dos variados prazeres possíveis na dinâmica de pulsão de vida. Para compensar a renúncia autoimposta, consola-se acreditando estar no caminho certo, no caminho do bem. Cidadãos de bem. Conservadores ressentidos. Aqueles que lutam pelo retorno nostálgico de um tempo em que eram felizes. A aspiração nostálgica daquilo que não foi, que não aconteceu, faz com que se negue tudo o que não corrobora com a fantasia compartilhada.
A economia moral neoliberal produz os seus descontentes.
Se no neoliberalismo há desarticulação do bem comum, fica claro na pandemia que ninguém se salva sozinho. O ideal meritocrático, o empresariado de si, a concepção privatista da saúde cai por terra quando se pensa que a vacina funciona enquanto ação coletiva de solidariedade.
Outra questão que deve ser cuidadosamente considerada quando falamos de negacionismo é o problema da subnotificação. Sabemos que os dados referidos ao número de mortes são indispensáveis para organizar os hospitais e as UTI, para saber se a estrutura sanitária existente é apropriada ou deve ser ampliada. Conhecer os dados sociodemográficos das vítimas da doença auxilia na implementação de políticas públicas de prevenção e assistência. No entanto, cada vez parece evidente o problema da subnotificação. Por exemplo, no estado de Santa Catarina, foi recentemente publicado um artigo elaborado por pesquisadores da UFSC que aponta com dados muito claros a existência de subnotificação de casos de Covid-19 no estado (Caponi, 2020).
O artigo, denominado “Estimativa da subnotificação de casos da Covid-19 no estado de Santa Catarina”, propõe duas abordagens sistêmicas para estimar os valores da subnotificação do número de óbitos e de indivíduos infectados por Sars-CoV-2. O estudo confronta a ocorrência de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) registrados nas primeiras 16 semanas epidemiológicas de 2020 (até 26 de abril) com o número de casos confirmados de Covid-19 para o mesmo período em Santa Catarina em anos anteriores. O estudo indica que esse aumento de casos pode ter direta relação com Covid-19, ainda que não tenham sido notificados como doentes da pandemia, mas como pacientes com SRAG, indicando a existência de uma clara subnotificação (Bruna-Romero; Carciofi, 2020; Caponi, 2020).
Hoje, por tratar-se de uma pandemia, parece necessário que os governos assumam o respeito às normativas e regulações internacionais estabelecidas por instâncias como a OMS, a Opas ou a Comissão Interamericana de direitos humanos da ONU. No entanto, dia a dia se multiplicam os argumentos que, desconhecendo os direitos humanos fundamentais, estabelecem parâmetros e pautas sobre quem deve e quem não deve ser assistido, legitimando decisões não éticas sobre a vida e a morte (Caponi, 2020).
De acordo com as diretrizes da ONU relativas ao combate à pandemia de Covid-19, o momento representa um verdadeiro desafio global que exige o respeito irrestrito às normas de direitos humanos. Considera que os valores do conhecimento científico devem prevalecer sobre as fakenews, os preconceitos e a discriminação (Caponi, 2020).
No artigo de Pedro Hallal do dia 25/05/2021 para a Folha de São Paulo intitulado “O negacionismo mata” são salientadas as denominadas cidades suicidas. Para sua análise, Hallal retoma os dados estarrecedores trazidos a público pelo jornalista Ricardo Mendonça no Valor Econômico: 5.570 cidades brasileiras foram divididas de acordo com o percentual de votos em Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais de 2018. Em 108 cidades, Bolsonaro teve menos de 10% dos votos, em 833 cidades teve entre 10% e 20% dos votos, e assim sucessivamente, até chegar nas 214 cidades nas quais Bolsonaro teve entre 80% e 90% dos votos e na única cidade em que Bolsonaro teve 90% ou mais dos votos em 2018.
De posse dessas informações, o passo seguinte foi analisar a quantidade de casos e de mortes por Covid-19 em cada uma das 5.570 cidades. Os dados são de livre acesso, tanto pelo Painel Coronavírus do Ministério da Saúde quanto pelo DataSUS. Nas 108 cidades em que Bolsonaro teve menos de 10% dos votos, o número de casos é de 3.781 por 100.000 habitantes. A quantidade de casos sobe linearmente até atingir 10.477 casos por 100.000 habitantes nas cidades em que Bolsonaro teve entre 80% e 90% dos votos e 11.477 casos por 100.000 habitantes na cidade em que Bolsonaro teve 90% ou mais dos votos. Os dados para mortes são igualmente chocantes. A mortalidade varia de 70 mortes por 100.000 habitantes nas cidades em que Bolsonaro teve menos de 10% dos votos, até a mortalidade de 313 por 100.000 habitantes na única cidade em que Bolsonaro fez 90% dos votos ou mais no segundo turno das eleições de 2018.
Mais do que os resultados isoladamente, o que chama atenção é a escadinha observada nos gráficos. Ou seja, o morador de uma cidade na qual Bolsonaro venceu o segundo turno das eleições de 2018 tem três vezes mais risco de morte por Covid-19 do que o morador de uma cidade em que Bolsonaro foi derrotado com folga. Assim, podemos afirmar que o negacionismo adoece e mata.
Instrumentos da necropolítica foram utilizados fartamente: a liberação de armas, o discurso negacionista, lentidão proposital na aquisição das vacinas e a corrupção vinculada à compra de vacinas. Lógica do “nós versus eles” operou e opera tanto na gestão da pandemia como nos sujeitos inseridos neste tipo de laço social.
Na compreensão de Dunker (2015) houve uma substituição dos condomínios psiquiátricos, carcerários e cronificantes, baseados no modelo de longa internação e recolhimento hospitalar por um modelo de racionalidade diagnóstica adaptada às exigências do capitalismo à brasileira. Essa nova forma de gestão do mal-estar está centrada na produção de espaços de exclusão e anomia de um lado e na definição de condomínios de classificação diagnóstica flexível, de outro. São zonas artificiais de contenção, de excitação, de anestesia e de separação que funcionam como muros de proteção contra o mal-estar e zonas de exceção contra o sofrimento. Esses muros de proteção também compartimentalizaram a realidade.
A pandemia de coronavírus evidencia que, assim como a educação, a saúde não pode ser pensada compartimentalizada e nem em termos neoliberais de investimento e capital. A saúde não é um bem de mercado que deve ser adquirido na medicina privada, deixando a saúde pública para aqueles que não podem pagar. A pandemia ensina que, como afirma o sociólogo italiano Domenico De Masi (2020), nosso planeta é “uma grande aldeia unida por infortúnios”.
Referências
Caponi, S. (2021). Biopolítica, necropolítica e racismo na gestão da covid-19. Revista Porto das letras, 7(2), 21-44.
Katrina Michelle é psicóloga e fundadora e diretora do The Curious Spirit, uma prática psicoterapêutica transpessoal que encoraja a exploração pessoal transcendente para remediar o sofrimento psicológico. Ela é uma psicoterapeuta holística que atualmente serve como professora na Escola de Trabalho Social da Universidade de Columbia e no Instituto para o Desenvolvimento das Artes Humanas.
Além de sua prática, ela também atua como diretora de redução de danos da Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (MAPS) e anteriormente trabalhou como diretora executiva do Centro Americano para Integração de Experiências Espiritualmente Transformativas (ACISTE). Para desmistificar experiências de despertar através da narrativa e da arte, ela também está produzindo o filme When Lightning Strikes.
Começando no mundo do trabalho social tradicional, Michelle foi atraída pela psicologia transpessoal após sua própria experiência espiritualmente transformadora espontânea. Ela agora trabalha para ajudar a criar comunidades capazes de realizar essas experiências muitas vezes difíceis, já que as sociedades ocidentais muitas vezes não têm a linguagem e a compreensão cultural necessárias para integrá-las na vida cotidiana.
Nesta entrevista, discutimos o lugar dos psicodélicos na psicoterapia, como as experiências transformadoras espirituais podem ser confundidas com “doença mental” e as várias resistências que temos a essas experiências.
A transcrição abaixo foi editada para maior extensão e clareza. Ouça aqui o áudio da entrevista.
Richard Sears: Quero começar perguntando como você chegou ao seu trabalho. O que o atraiu para a psicologia transpessoal e seu trabalho na redução de danos para a MAPS?
Katrina Michelle: Psicologia Transpessoal, antes de saber o que era, sempre foi um interesse meu. Está na intersecção dos estudos da consciência, da investigação filosófica, da saúde comportamental e da espiritualidade.
Eu sempre soube que queria ser terapeuta e segui o caminho tradicional de passar pela escola de trabalho social tradicional, mas sentia que faltava algo na prática geral da psicoterapia e sabia que era aquela peça espiritual.
Eventualmente, voltei à escola para estudar psicologia transpessoal. Foi realmente durante esse esforço acadêmico que percebi que o que sempre me atraiu para o campo foi a minha própria experiência transpessoal. Foi aquilo a que Stan Grof se refere como uma experiência unitiva, que é esta fusão não solicitada da consciência com o mundo ao seu redor, este senso de expansão, este estado de amor de coração aberto, e era algo completamente inefável.
Levei mais de 10 anos até mesmo para começar a encontrar palavras para apontar para ele. Foi só uma década depois, quando voltei à escola para a psicologia transpessoal, que percebi que era isto que eu estava aqui para estudar.
Sears: Tendo em vista sua formação e experiência, que lugar você vê para os psicodélicos no tratamento da saúde mental?
Michelle: Estamos num momento tão fascinante porque sabemos que qualquer tipo de tratamento transpessoal pode realmente mudar sua consciência, e os psicodélicos não brincam. Você não pode se esconder deles. Os psicodélicos realmente cortam nossas defesas. Eles podem nos tornar capazes de ver além das formas que nos padronizamos para ver no mundo. Também pode ser realmente assustador ser tão vulnerável.
É por isso que acho que a redução de danos é importante quando se trata de psicoterapia e integração. É um novo estado de ser, e se não for realizada no contexto cultural correto, pode ser um desafio para as pessoas e pode até causar mais traumas.
Sears: E quanto ao trabalho de redução de danos? O que isso parece na prática?
Michelle: A redução de danos é um campo bastante grande. A redução de danos psicodélicos, como temos feito no projeto Zendo, é realmente olhar para onde as pessoas estão, entrando em sua experiência, e onde elas precisam de apoio. Fizemos isso construindo um modelo de apoio entre pares onde os voluntários são treinados para servir uns aos outros.
O trabalho de redução de danos tem várias partes. A primeira é se preparar para a sua jornada: saber que substâncias você vai tomar, explorar considerações sobre como vai tomá-las, com quem vai tomá-las, compreender a história de sua família, o que pode ser desencadeado psicologicamente e se você pode ou não ter a capacidade de administrar isso. Você também precisa planejar seus cuidados após a experiência. As lições que surgirão não terminam com a viagem; elas podem durar meses, anos ou mesmo o resto de sua vida.
Sears: Será que você poderia falar um pouco mais sobre a integração deste tipo de experiências? Por que é importante integrar estas coisas, e como fazemos isso?
Michelle: Na minha experiência, era algo que eu não conseguia guardar. Estava sempre lá na parte de trás da minha cabeça. Me levava às lágrimas quando me lembrava da experiência, e eu realmente não tinha contexto para isso.
Meu primeiro pensamento quando saí dessa experiência, que foi realmente fugaz e intemporal, foi: “Oh, devo estar tendo uma pausa psicótica“. Eu tinha uns 20 anos de idade. Eu estava naquela idade em que é mais provável que você esteja tendo uma pausa. Tive a sorte de não ter descompensado, de ser capaz de manter-me unida.
Havia algo de poderoso nessa experiência que me apontava em direção à minha jornada e ao meu caminho. Até que consegui nomeá-la e ter uma comunidade em torno dela.
É semelhante a qualquer viagem psicodélica onde você pode ter esta experiência incrível. Você pode até mesmo trabalhar com ela durante o fim de semana, se estiver em um retiro, e depois arrumá-la. Mas se você voltar para casa e tiver pessoas dispostas a apoiá-lo no seu processamento, você pode realmente tirar as lições e trabalhá-las em seu estado regular de consciência. Acho que é daí que vem o crescimento, levando esses estados expandidos e nos ajudando a movê-los para nossa vida diária.
Sears: Em sua opinião, por que rotulamos algumas drogas que afetam nossos estados mentais como terapêuticas e não outras?
Michelle: O modelo médico para mim, embora certamente tenha seus benefícios (eu não sou alguém que é antipsiatra), funciona através da supressão dos sintomas. A diferença é que às vezes os sintomas que vêm à tona estão realmente lá para nos ensinar algo. Se pudermos expandir nossa maneira de pensar sobre esses sintomas – além de apenas suprimir a ansiedade com benzos, por exemplo – então existe o potencial para um grande crescimento.
A supressão dos sintomas é uma forma de usarmos drogas tradicionalmente na psiquiatria. Eu acho que este novo modelo com psicodélicos é completamente o oposto. Em vez de suprimir, estamos arrancando o curativo; estamos procurando a verdade, estamos deixando tudo sair. Estamos trazendo as sombras para a superfície, e estamos trabalhando com elas. Essa é a terapia. Esse é o verdadeiro trabalho.
Não se trata de empurrá-los de volta para baixo e de passar o seu dia como se nada tivesse ocorrido. Isto é o que eu acho que a psicologia deve fazer: ela deve nos ajudar a refletir sobre nós mesmos e nossos estados e entender o que está por vir e por quê, para que possamos crescer e nos expandir e evoluir como indivíduos e como um coletivo.
Sears: Como psicoterapeuta transpessoal, como você entende ‘doenças mentais’ ou sofrimento psicológico de maneira diferente do modelo biomédico do cérebro doente?
Michelle: A psicologia transpessoal está lá para capacitar o indivíduo. Não se trata de verificar uma lista de sintomas e chegar ao diagnóstico, que eu então lhe atribuo, e você carrega como um peso sobre seu ombro. Algumas pessoas precisam disso. Às vezes ajuda ter um rótulo para isso, porque depois pensam que têm algum controle sobre ele. Tudo bem se isso funcionar para você.
Acho que a beleza da psicologia transpessoal é que nós também poderíamos fazer isso. Se é por isso que seu seguro vai pagar, fico feliz em lhe dar isso. No entanto, trata-se também de olhar além disso e capacitá-lo a encontrar a linguagem que funciona para você.
Eu uso o trabalho de Stan e Christina Grof e suas lentes de emergência espiritual para realmente explorar o que significa olhar para esses estados extremos como realidades potenciais. Penso que há maneiras de fazer isso que são mais inteligentes e mais abrangentes do que apenas o modelo médico, essencialmente tomando uma pílula pelo tempo em que se pode suprimir os sintomas e ir à terapia.
Há outro tipo de terapia que podemos fazer onde, em vez de suprimir os sintomas, estamos mergulhando nos sintomas e olhando para o que estava lá. Em vez de uma visão reducionista, acho que é uma visão mais expansiva.
Sears: Parece que você está descrevendo uma abordagem holística da saúde mental. Você pode nos dar alguns exemplos do que você poderia trazer para uma prática transpessoal? Há alguma forma de você trazer outras orientações para sua prática?
Michelle: Eu não desconto nada que a saúde mental comportamental nos dê. Certamente, existem ali ferramentas que podem ser super valiosas para as pessoas. Eu não desconto a psiquiatria como um todo. Acho que tem problemas, mas acho que, usada com a devida discrição, a psiquiatria pode desempenhar um papel importante na cura.
Pessoalmente, em termos de minhas técnicas, eu me concentro no que entendo como minhas próprias sensibilidades. Hesito em usar a palavra intuição porque acho que essas palavras podem soar como superficiais e por aí afora. Trata-se realmente de sintonizar uma pessoa na sua frente e estabelecer com ela uma comunicação que está além das palavras, além do físico.
Sabemos que a energia é real, e que está viva. Quando estou me sintonizando com a energia de alguém na minha frente e falando com ele sobre o que estou sentindo, e eles estão refletindo de volta para mim, geralmente entramos em um estado um pouco alterado. Começaremos com uma meditação; passaremos para um espaço de mudança da consciência comum, e então estaremos na sessão. Para mim, é um processo realmente orgânico. Cada pessoa precisa de algo diferente. Eu não acho que um tamanho sirva para todos.
Sears: Você mencionou anteriormente que teve uma experiência transformadora espiritualmente unitiva saindo do metrô. Você poderia nos falar um pouco sobre isso?
Michelle: Eu tinha provavelmente cerca de 20 anos de idade e eu estava apenas passando meu dia saindo do metrô e andando na Lexington Avenue em Nova York. De repente fui levada para este lugar que estava fora do tempo e do espaço, como eu o conhecia. Havia a sensação de entender o tecido do universo, vendo que todos esses estranhos ao meu redor em Nova York são na verdade parte de mim, e eu faço parte deles e senti esse sentimento avassalador de amor e empatia.
Esta não é a estrutura da qual eu estava vindo. Sou um nova-iorquina nascida e criada. Nós não falamos assim. Para mim, ter esta experiência espontânea de repente, foi uma felicidade, e foi lindo.
Depois, ao sair de lá, foi confuso. Não era algo em que eu pudesse envolver minha mente lógica. São aquelas experiências que as pessoas têm que realmente podem ser catalisadoras de mudança. Acho que é a integração que leva a essa mudança. A integração pode durar muito tempo, e pode ser realmente confusa.
Nem todas as experiências são felizes e bonitas como as minhas. Às vezes pode envolver muita dor, o que parece ser um problema médico, mas isso não pode ser diagnosticado. Nós realmente precisamos de uma estrutura para dar às pessoas uma linguagem em torno deste tipo de experiências.
Sears: Nesta resposta e em sua última resposta, você apontou energias e conexões que são mais profundas e observou que você é cuidadosa com sua linguagem porque você pode sair como “superficial”. Nas teorias tradicionais da psicoterapia, existe o termo transferência, que para mim me parece realmente semelhante ao que você está falando a respeito da intuição. Como você navega nisso?
Michelle: Eu não sei, porque que tive que navegar muito pessoalmente. Acho que a minha regra geral é conhecer seu público. Para algumas pessoas, a “transferência” não faria sentido. Mas se eu falo de intuição ou conexão ou empatia, elas estão muito presentes comigo, e suavizam, e se abrem.
A linguagem é importante. Uma palavra como “transferência” pode parecer muito carregada e hierárquica. Como terapeuta que quer se aproximar das pessoas com quem estou trabalhando, como especialista em si mesmo, encontrar uma linguagem clínica pode fazer com que as pessoas se sintam diferentes.
Sears: Como podemos reconhecer essas experiências transpessoais em nós mesmos e naqueles ao nosso redor?
Michelle: Muitas pessoas podem estar experimentando estes surtos energéticos e ir a um médico, mas geralmente não há uma resposta lá. Em contraste, um professor espiritual pode descrevê-la como uma experiência ascendente da Kundalini. Não construímos completamente a ponte entre estas formas de entender a energia ou a espiritualidade e as lentes médicas e os testes diagnósticos. Acho que, em geral, é um processo de queda de nossas defesas.
As pessoas que passam por essas Experiências de Transformação Espiritual (ESTs) tendem a ter mudanças significativas no estilo de vida. Muitas vezes, elas deixam relacionamentos nos quais já estão há muito tempo. Elas mudarão completamente seu caminho de carreira. Elas se tornarão muito menos centradas em torno de dinheiro, status, privilégios e foco em causas humanitárias.
Para generalizar um pouco, as pessoas tendem a se sentir ligadas a algo maior do que elas mesmas, e elas querem estar a serviço disso. Quando de repente você não tem os amigos de 20 anos, ou está lutando pelo fim de um casamento ou seus filhos não o reconhecem mais, isso pode vir com seu próprio trauma.
Sears: Você mencionou que os psicodélicos podem ser um catalisador para este tipo de experiências transformadoras. Você conhece algum outro catalisador semelhante aos psicodélicos?
Michelle: A meditação é uma ferramenta realmente poderosa. As pessoas terão freqüentemente estas experiências nos retiros de Vipassana, onde são 10 dias de silêncio. Às vezes, quando se acalma a mente, chega-se àquele estado em que algo mais se eleva. Isso pode ser aterrorizante para algumas pessoas.
O Ioga se tornou um exercício físico e uma moda. Mas o Ioga é a abertura de canais para se conectar com essa consciência superior. As pessoas estão passando por essas posturas e não estão reconhecendo que estão abrindo o seu potencial para ter experiências que talvez não estejam prontas para ter. Porque, mais uma vez, não há linguagem ou contexto cultural em nossa sociedade ocidental.
Parece ótimo ter uma experiência feliz no topo da montanha, mas você não pode controlar se isso vai ou não acontecer.
Sears: Estas experiências espiritualmente transformadoras podem ser confundidas pelos indivíduos que as têm ou aqueles ao seu redor como doenças mentais?
Michelle: Isso acontece, e é muito comum. Acontece porque não temos uma lente alternativa para olhar através dela.
A maioria das pessoas olhará para alguém com uma experiência como a que estou descrevendo, e lhe chamarão de um estado dissociativo. Se durar, eles o colocarão no hospital, e o medicarão. Essa é uma maneira muito diferente de ver algo que, quando mantido no espaço certo, pode ser transformador de uma maneira positiva.
Agora você dá a alguém medicamentos que talvez ele não precise. Você coloca as pessoas em um hospital, o que pode ser traumatizante por muitas razões. Você lhes dá um diagnóstico, e as pessoas realmente se dão mal por não serem encontradas e compreendidas.
O desafio é que muitos de nossos provedores de saúde mental ainda não estão necessariamente abertos a isso. Precisamos colocá-lo na pesquisa. Precisamos conseguir financiamento para que, uma vez que a pesquisa esteja lá, as pessoas possam começar a adotá-la e incorporá-la em suas práticas de compreensão das pessoas de maneiras que vão além do que somos treinados clinicamente no modelo médico.
Sears: Em sua experiência, que obstáculos externos e resistências internas a essas experiências são mais comuns?
Michelle: Se você está passando por algo que poderia ser considerado uma experiência espiritualmente transformadora, você pode ficar aterrorizada com o que isso significará. Pode significar que eu precise deixar minha esposa ou deixar meu emprego ou dar meu dinheiro. Isso é aterrorizante. É uma perda do seu ego, de como você se entende a si mesmo no mundo. O ego está lá para lutar.
A resistência externa também poderia ser “Eu não quero que as pessoas pensem que sou louco, então como posso compartilhar isso com as pessoas? Eu não quero ser diagnosticado e medicado”. As pessoas resistem, e então este processo é interrompido e não pode ir além daquele espaço daquela primeira experiência.
Sears: O que podemos fazer para apoiar as pessoas ao nosso redor se elas estão tendo esse tipo de experiência?
Michelle: Há profundidades de dor às quais não estamos acostumados a ir em nossa sociedade. No entanto, toda essa dor faz parte do que nos torna humanos.
Ninguém vai dizer que é fácil ver um ente querido sofrer, mas acho que também precisamos capacitar as pessoas que possam estar expressando algo assim para explorar o que elas querem para que não estejamos ditando tratamento a elas. É um processo de tentar trabalhar com elas nesse estado, entendendo o que sua intuição está pedindo. Será que eles querem montar isto em casa com as pessoas que amam? Será que querem ir a um hospital e levar a ser medicado o mais rápido possível?
Penso que parte do desafio ao falar sobre eles é que existem tantos tipos diferentes de experiências, e todos são únicos. Dar às pessoas lentes alternativas, dar às pessoas uma comunidade que possa segurá-las e apoiá-las, como o Projeto Zendo, pode criar recipientes seguros para essas experiências.
Penso que esse é o ideal que podemos esperar: uma comunidade que seja emocionalmente inteligente e de mente aberta o suficiente para poder sentar-se com as pessoas e testemunhá-las em sua dor e em sua escuridão e permitir que se movimentem através delas sem ditar e exigir tratamentos, especialmente se alguém não for uma ameaça para si mesmo ou para os outros. Todos nós somos desencadeados em nossa própria dor ao ver a de outra pessoa. É sempre uma jornada dentro de nós mesmos para nos sentarmos com nosso desconforto em olhar para as pessoas que queremos consertar.
Sears: Alguns de nossos leitores provavelmente tiveram algumas dessas experiências difíceis das quais temos falado. O que você diria a alguém que teve uma experiência que achou difícil de integrar em sua vida diária?
Michelle: Penso que o mais importante é saber que eles não estão sozinhos. Seja o que for que estejam lutando, eles podem encontrar uma maneira de se integrar e trabalhar. Eles só precisam se conectar com a comunidade certa, com o cuidado certo, e dar a eles mesmos uma chance de terminar esse processo.
Tudo isto é complicado pelo fato de que você provavelmente precisa trabalhar e se sustentar e pagar seu aluguel enquanto tenta dar a si mesmo o tempo necessário para montar isto. Não é algo que as pessoas necessariamente entendem e que reconhecem como uma deficiência, mas pode ser como uma deficiência.
Eu não digo deficiência como algo com um período no final. É um período de desafio que, quando lidamos com ela, podemos trabalhar com ela, e podemos crescer a partir dela. Acho que é aí que o trabalho acontece. Acontece na escuridão; acontece na dor.
Sears: Você já experimentou algum recuo, crítica ou conseqüências como resultado de sua orientação transpessoal como psicóloga ou trabalhando com psicodélicos?
Michelle: Eu diria pessoalmente, além de talvez alguns olhos arregalados ou pessoas que simplesmente não querem se envolver na conversa, eu não tenho experimentado muito empurrão em termos do meu trabalho com substâncias psicodélicas.
Eu acho que as pessoas ainda têm muito medo e velhos condicionamentos culturais sobre o que são os psicodélicos, e isso é compreensível. Acho que isso vai mudar quando tivermos mais pesquisa e quando a pesquisa se tornar inegável. Isso não quer dizer que todos vão pular fora e fazer uso de psicodélicos, nem todos deveriam fazê-lo. Não é para todos.
No que diz respeito à minha orientação transpessoal, os terapeutas que conheço podem não falar sempre a mesma língua, mas a maioria das pessoas tem a mente bastante aberta, e eu não levo a peito aqueles que não o são.
Sears: Você pode nos falar sobre algo que aprendeu em seu trabalho e que a maioria de nós talvez não saiba que poderia se beneficiar de saber?
Michelle: Eu acho que o principal é que nós, como humanos, somos inatamente inteligentes, e acho que não nos damos crédito suficiente para a inteligência inata que carregamos dentro de nós. Acho que o corpo tem uma maneira de saber como se curar, assim como a mente. Acho que se trata de entrar em um território obscuro que é desconhecido.
Pode ser assustador, mas confiando que se realmente permitirmos que esses processos naturais evoluam e se desdobrem e apenas limpemos as bordas para que possamos passar o dia, acho que há algumas coisas realmente dinâmicas e belas que podem vir disso.
Há otimismo para mim sobre o fato de que, mesmo quando somos completamente incompreendidos, há sempre alguém por aí que pode se relacionar. É apenas uma questão de encontrar e conectar-se com eles. Às vezes todos nós precisamos de um pouco de apoio, e não há problema.
Sears: Você poderia nos falar um pouco sobre o filme em que você está trabalhando, “Quando um raio ataca“?
Michelle: Quando o Lightning Strikes é um exemplo perfeito de que não temos lentes para algumas dessas experiências que temos discutido. Segue minha amiga Kate, que conheci porque ela começou a me descrever sua própria experiência com a Kundalini e a dor em que ela tem estado. Parte de nossa conversa tem sido sobre como é difícil encontrar outras pessoas com experiências semelhantes quando ela não tem linguagem para isso.
O filme realmente pretende ser sobre essa viagem. Tem a intenção de criar um contexto para pessoas que podem não ter tido uma experiência como esta, mas se você começar a se aclimatar ao idioma, você pode ser capaz de ajudar alguém no futuro, reconhecendo o que ele é. Da mesma forma, se você está passando por esta experiência, agora você pode se conectar com as pessoas e entender do que se trata.
O filme é realmente sobre nossas próprias viagens pessoais e como nos reunimos para sermos curiosos e explorar e falar com pessoas que são “especialistas” porque passaram por suas próprias experiências. É sobre olhar através das diferentes lentes, a perspectiva da saúde mental, a perspectiva da Ioga e vários modelos espirituais, e ver o que podemos aprender enquanto trazemos alguma voz a este tópico, porque não é algo do qual as pessoas estejam falando.
Mais uma vez, não é sequer algo para o qual tenhamos acordado a linguagem, e acho que esse é o primeiro passo. Escolhemos o título “Quando um raio ataca” porque em toda nossa leitura e encontro com as pessoas ao longo do caminho, é a maneira mais comum das pessoas descreverem essas experiências. Elas dirão: “‘Eu tive um relâmpago”, ou “um raio atingiu meu corpo”.
Uma compreensão evolutiva da depressão enquanto uma adaptação, chamada de hipótese de ruminação analítica (ARH), postula que a depressão pode ter evoluído para permitir um pensamento sustentado sobre problemas sociais complexos. Esta visão sugere que os tratamentos clínicos que favoreçam as funções que a depressão desenvolveu para o enfrentamento de problemas serão mais eficazes do que aqueles – como os medicamentos antidepressivos – que meramente aliviam o sofrimento.
Além disso, a teoria evolucionista sugere que os medicamentos antidepressivos podem ter um efeito iatrogênico que prolonga a duração do episódio subjacente. Em outras palavras, ao mascarar os sintomas, os antidepressivos podem realmente prolongar os episódios depressivos, deixando-os sem solução. Para testar esta teoria, Steven Hollon, Paul Andrews e seus colegas delinearam um estudo simples de pesquisa que pode testar se os medicamentos antidepressivos são, de fato, iatrogênicos por esse motivo.
Os pesquisadores têm sugerido que os antidepressivos podem fazer mais mal do que bem. Os antidepressivos têm sido criticados por uma variedade de razões, incluindo a correlação com a incapacidade a longo prazo, problemas de abstinência, riscos na gravidez e o aumento do risco de suicídio, especialmente para os jovens. Estudos apoiados pela indústria sobre a eficácia do antidepressivo também têm sido criticados pela comunicação incorreta dos resultados de ensaios clínicos. Outros estudos têm levantado preocupações sobre o raciocínio por trás da classificação da depressão como uma doença que requer modificações neuroquímicas, em oposição, por exemplo, a mudanças sociais ou políticas.
Como Hollon escreveu em um estudo anterior, “qualquer intervenção que facilite as funções que a depressão desenvolveu para ajudar é provável que funcione melhor a longo prazo do que um antidepressivo que simplesmente anestesia a dor”.
De acordo com a hipótese de ruminação analítica, a depressão se desenvolveu para manter as pessoas concentradas na fonte de sua angústia até que possam chegar a uma solução para resolver o problema relevante. … [Nesta visão] há razões para se acreditar que os antidepressivos têm um efeito iatrogênico que prolonga a duração do episódio subjacente e que deixa os pacientes em elevado risco de recaída sempre que eles são retirados.
A depressão é o transtorno psiquiátrico diagnosticado mais comumente no mundo inteiro, e os antidepressivo são as intervenções mais comumente prescritas para o tratamento da depressão. Infelizmente, os antidepressivos parecem funcionar apenas pelo tempo em que são tomados. Apesar das preocupações de segurança em relação ao uso a longo prazo, as diretrizes da Associação Americana de Psicologia recomendam o uso indefinido para pacientes com depressão crônica.
Os autores propõem a terapia cognitivo-comportamental (TCC) como um método alternativo de tratamento que é igualmente eficaz como o antidepressivo quando implementado adequadamente, com efeitos terapêuticos de longo prazo não encontrados a partir do uso de medicamentos. Entretanto, a maior parte das evidências dos efeitos duradouros da TCC vem de comparações com o uso anterior do antidepressivo, e a amplitude em que os antidepressivos são iatrogênicos permanece, portanto, pouco clara.
Como os autores argumentam, com base na ARH, há uma possibilidade razoável de que os antidepressivos não só interfiram no efeito duradouro da TCC, mas também tenham efeitos iatrogênicos. Eles escrevem:
“Se o objetivo da ruminação analítica é chegar a uma solução para qualquer problema interpessoal complexo que primeiro desencadeou o sofrimento, então qualquer intervenção que facilite a implementação dessa solução deverá facilitar a função que a ruminação analítica desenvolveu para servir… Há motivos para pensar que acrescentar um antidepressivo pode diminuir o efeito duradouro da TCC”.
Para testar esta hipótese, os autores elaboraram um estudo randomizado que poderá determinar se os antidepressivos evitam o efeito duradouro da TCC.
Estudos anteriores simplesmente compararam resultados para pacientes deprimidos que utilizavam TCC com aqueles que utilizavam apenas antidepressivos O estudo dos autores introduz um terceiro grupo de controle experimental, um grupo pill-placebo. Se a TCC realmente tem um efeito duradouro, então os pacientes que se recuperam da depressão na TCC devem ter menos probabilidade de recorrência do que os pacientes que se recuperam em um placebo (o controle não específico necessário para determinar se a TCC está suportando) ou se o antidepressivo é iatrogênico, ou ambos. Se o antidepressivo for iatrogênico, então os pacientes que se curam com antidepressivo devem se recuperar pior do que os grupos de TCC ou de pill-placebo.
Como Hollon e seus colegas concluem:
“Sabemos que o tratamento com TCC supera o uso anterior do antidepressivo, mas ainda não sabemos por que… O estudo proposto responderá a estas perguntas e merece ser feito”.
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Hollon, S., Andrews, P., Singla, D., Maslej, M., Mulsant, B. (2021). Evolutionary Theory and the treatment of depression: It is all about the squids and the sea bass. Behavior Research and Therapy 143. (Link)
Um artigo recente publicado no Psychological Medicine explora a controvérsia em torno do que constitui um ” transtorno mental “. Com base em exemplos empíricos ou “casos de teste” que surgiram durante a redação do DSM-5, os psiquiatras Dan Stein e Kenneth Kendler e a filósofa Andrea Palk discutem as fronteiras “difusas” em torno dos transtornos mentais. Em particular, eles falam sobre casos clínicos onde há “danos” mas não “disfunção psicobiológica”, “disfunção psicobiológica” mas não “danos”, e onde ambos podem estar potencialmente presentes, mas não sem controvérsia.
“A questão do ‘que é um transtorno mental’ é crucial, em parte, porque existe a possibilidade real de classificar erroneamente vários tipos de desvio social ou variação comportamental como ‘transtorno’, quando eles são melhor conceituados usando outras categorias, tais como ‘diferenças individuais não patológicas’, ‘escolha de estilo de vida’ ou ‘crime’, escrevem os autores. “Um exemplo paradigmático do DSM é o da homossexualidade, que foi conceitualizado no DSM-I como um transtorno, mas pelo DSM-5 não foi mais mencionado”.
Desde que a Associação Psiquiátrica Americana publicou o DSM-5 em 2013, tem havido uma quantidade significativa de controvérsias sobre a definição precisa de um ” transtorno mental”. A Divisão 32 da Associação Americana de Psicologia – a Sociedade de Psicologia Humanista – assim como a Sociedade Britânica de Psicologia, ambas fizeram declarações questionando algumas das categorias medicalizantes apresentadas no DSM-5.
Algumas das controvérsias delineadas nestas cartas incluem a redução dos limiares de diagnóstico, na medida que poderiam levar à patologização de muitos comportamentos “normais”, variação sociocultural na psicopatologia, incluindo se o desvio sociopolítico deve ser categorizado como mentalmente desordenado, bem como a novos avanços na promoção de uma abordagem do modelo biomédico.
Muitas dessas controvérsias não são novas e não surgiram com a publicação do DSM-5, naturalmente, tendo uma rica história dentro dos movimentos anti-psiquiátricos e aqueles liderados por pares.
O artigo atual explora em profundidade algumas dessas controvérsias, dando especial atenção aos “casos de teste” clínicos, que ilustram alguns dos problemas com os modelos psiquiátricos convencionais de transtornos mentais.
Entre os “casos de teste” que envolvem danos mas não disfunção psicobiológica, os autores incluem fenômenos como o envelhecimento, racismo e ansiedade associados a ameaças de vida, como perda de emprego e rejeição na relações amorosas.
Os autores explicam que “uma série de condições estão associadas a danos aos indivíduos e/ou à sociedade, mas que não devem ser consideradas transtornos por falta de evidência de disfunção psicobiológica subjacente”.
Em resumo, pode haver mudanças mentais, físicas e comportamentais “indesejáveis” que não estão associadas a disfunções no sentido psicobiológico. O envelhecimento se qualifica aqui, pois embora esteja associado a certos tipos de disfunção (como um espectro de deficiência cognitiva de leve a grave), muitos dos efeitos do envelhecimento são, de fato, bastante “normais”.
O racismo, da mesma forma, pode estar associado a certos aspectos disfuncionais da personalidade, mas os autores afirmam que há poucas evidências para o funcionamento psicobiológico subjacente. Isto apesar do fato de que o racismo obviamente causa muitos danos, tanto pessoal quanto socialmente. Eles afirmam:
“Ao contrário, há um consenso relativamente difundido de que as crenças e comportamentos racistas são em grande parte um produto da socialização e da cultura. Portanto, argumentaríamos que o racismo não é um transtorno; é um fenômeno que, embora sancionado em algumas culturas no passado, é agora uma forma de desvio social que deve ser abordado por uma série de diferentes intervenções sociais e educacionais. Assim, os julgamentos sobre a inclusão de uma entidade na nosologia podem exigir uma reflexão rigorosa sobre os valores culturais e sociais”.
Além disso, os autores também afirmam que apesar desses fenômenos não atenderem necessariamente aos critérios para transtornos mentais clínicos, os indivíduos ainda podem se beneficiar da psicoterapia que trabalha essas questões. Além disso, isto pode ser complicado pelo fato de que o “claro excesso” da atenção para esses comportamentos pode começar a atender aos critérios para as categorias de transtornos mentais.
Para os casos em que há disfunção psicobiológica mas sem dano claro, os autores listam condições tais como deficiência, transtornos do espectro do autismo e transtornos de identidade de gênero. Embora esses tipos de condições possam causar “desvantagem e sofrimento”, os autores localizam isso no âmbito da aceitação social e acomodação, e não em qualquer disfunção subjacente.
Com o exemplo, a surdez:
“A surdez em si não é intrinsecamente prejudicial; ao contrário, são as respostas da sociedade, ou a falta de respostas em termos de garantia de acomodação adequada, o que produz danos”.
Da mesma forma, com o espectro do autismo (particularmente casos mais leves) e condições de identidade de gênero, bem como a audição de vozes, estas questões não são necessariamente disfuncionais, mas podem tornar-se disfuncionais em termos da experiência pessoal e do acesso social, devido a barreiras e preconceitos sistêmicos.
Finalmente, os autores discutem condições onde há tanto possíveis danos quanto possíveis disfunções psicobiológicas. Apesar de algumas evidências para estes dois critérios, estas condições ainda são controversas.
Exemplos aqui incluem transtorno de comportamento sexual compulsivo, jogos pela Internet, transtornos de jogo, síndrome de psicose atenuada, e comportamento suicida. Existem controvérsias em torno destes ” transtornos ” porque seu dano é mais um risco do que um problema necessariamente real. Por causa disso, incluí-los como transtornos psiquiátricos pode levar ao sobrediagnóstico e à sobremedicalização.
Além disso, as etiologias subjacentes a esses transtornos muitas vezes não são totalmente desenvolvidas em um sentido psicobiológico, confiando no julgamento clínico e na gravidade dos sintomas.
Os autores advertem:
“Julgamentos sobre se uma entidade deve ou não ser incluída na nosologia podem exigir uma avaliação cuidadosa do grau de perda de controle, e da deficiência relacionada, particularmente no caso de comportamentos compulsivos ou viciantes”. Em termos de comportamento suicida, os autores observam que embora possa ser sintomático de certos transtornos mentais, há também casos convincentes a serem feitos para o suicídio tanto como uma escolha racional quanto como uma forma de protesto político ou “resposta culturalmente sancionada à vergonha”.
Os autores concluem:
“Primeiro, embora o dano seja útil para definir transtorno mental, algumas entidades propostas podem exigir uma cuidadosa consideração do dano individual versus dano social, bem como da acomodação social.
Segundo, embora a disfunção seja útil para conceituar os transtornos mentais, o campo se beneficiaria do desenvolvimento de indicadores de disfunção mais definidos.
Terceiro, seria útil incorporar evidências de validade diagnóstica e utilidade clínica na definição de um transtorno mental e esclarecer melhor o tipo e a extensão dos dados necessários para apoiar tais julgamentos”.
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Stein, D. J., Palk, A. C., & Kendler, K. S. (2021). What is a mental disorder? An exemplar-focused approach. Psychological Medicine, 51(6), 894-901. (Link)