“Pandemia e genocídio: a bordo da nau dos insensatos”

Navio dos loucos, Hieronymus Bosch, ~1495

O país poderia ser comparado a uma nau sem rumo levada ao sabor das ondas. Sem liderança efetiva, sem sequer uma autoridade sanitária responsável que aponte possíveis rumos ou, pelo menos, demonstre minimamente solidariedade para com a população. Estamos à deriva em plena tempestade e em alto mar. Sem falar nas medidas de mitigação da crise econômica gravíssima com resultados sociais assustadores. Se por um lado, o desmonte do sistema de saúde, vítima de subfinanciamento, descaso e ataque governamental vem se agravando, por outro, a desigualdade socioeconômica, à qual se junta um persistente racismo estrutural, fragiliza ainda mais uma parcela considerável da população. Por isso, falar em genocídio não é exagero.

Navio dos loucos, Hieronymus Bosch, ~1495

Genocídio. Genocida. São termos que designam o extermínio deliberado de um povo, de uma população ou comunidade. As ações que explicitam isso não se encontram apenas nas entrelinhas, subentendidas ou maquiadas por qualquer subterfúgio. Não é questão de diferenças de entendimento sobre determinados pontos espinhosos. Estas ações são explícitas, declaradas, deliberadas, transmitidas através de diferentes meios de comunicação, veiculadas em rede nacional, em pronunciamentos oficiais. E, o mais assustador: são consentidas por uma parcela significativa da população que se sente representada pela encarnação da pulsão de morte que reproduz um gozo mórbido e perverso.

Estamos nas mãos de líderes neofascistas associados aos interesses do mercado financeiro. O preço da implementação de tais políticas? A vida e a saúde da população. Genocídio.

Infelizmente, a cultura política do bolsonarismo é um sintoma social, uma patologia social enraizada nas entranhas da nossa sociedade. Para expurgá-la, o impeachment não é suficiente. Nossas vísceras estão expostas com tudo o que há de mais perverso e que por muito tempo foi rechaçado. Nosso pensamento colonialista, racista, misógino, nosso analfabetismo político etc. A perversão foi instituída e institucionalizada. Vivemos no império da banalidade do mal.

Uma horda fascista promove a destruição. Mais atual do que nunca, Freud (1921) ao se debruçar sobre a problemática das massas afirmou que o grupo parece uma revivescência da horda primeva. Do mesmo modo como o homem primitivo sobrevive potencialmente em cada indivíduo, a horda primeva pode mais uma vez insurgir. Os processos grupais remontam os processos psíquicos individuais. A patologia social se enlaça e se propaga individualmente. Segundo Freud, a oposição entre psicologia individual e psicologia das massas, que pode parecer muito importante à primeira vista, perde muito de sua nitidez se examinada a fundo. Não é adequado separar os atos psíquicos sociais e narcísicos. A psicologia das massas trata do ser humano enquanto membro de uma linhagem, de um povo, de uma classe ou enquanto parte de uma multidão que se organiza como massa durante um certo tempo para um fim determinado.

A vida psíquica consciente representa apenas uma parte muito reduzida em comparação com a vida psíquica inconsciente. Nossos atos conscientes derivam de um substrato inconsciente formado sobretudo por influências hereditárias. Esse substrato contém inúmeros rastros ancestrais que constituem a “alma” de um povo.

Nas massas, o indivíduo não é mais ele mesmo, mas um autômato em estado hipnótico. A influência de uma sugestão é lançada com uma impetuosidade irresistível. A personalidade consciente desaparece, o indivíduo se torna irreconhecível posto que a predominância dos aspectos inconscientes passa a orientar pensamentos e sentimentos na mesma direção.

Assim, também nos fenômenos de massa nos deparamos com a pulsão de morte, que consiste em um princípio econômico da redução das tensões a zero, uma busca pela inércia ou homeostasia que estaria inteiramente a serviço da pulsão de morte. A compulsão à repetição é característica própria da pulsão. Ela opera uma espécie de fixação da pulsão recalcada e exige um trabalho constante, pois leva o sujeito a se colocar em situações dolorosas, réplicas de experiências antigas.

Historicamente e até os dias de hoje ainda caímos em falsas promessas conservadoras, discursos falaciosos que acertam e manipulam a alma coletiva através do medo, nos lançando direto para as garras do militarismo e do caos. Ainda permanece a necessidade de sermos igual e justamente amados pelo seu líder. O uso do medo para a implementação de políticas de Estado desastrosas faz o Brasil sucumbir. Este uso do medo é histórico! Precisamos recordar para não repetir, no entanto, desconhecemos nossa própria história. Não elaboramos nossa herança simbólica que não cessa de retornar fantasmaticamente.

Em meio ao caos da Covid-19, convivemos com crises políticas artificiais geradas pelo próprio Governo Federal. Trocas sucessivas de ministros, questionamentos extemporâneos a instâncias de outros poderes que são acompanhadas pelo comportamento recorrente do presidente da república de negar a gravidade dos efeitos da pandemia, utilizando recursos antigos de manipulação de massa que se atualizam sorrateiramente.

A luta pela saúde e pela educação é um direito inalienável. Esta não deve cessar. A resistência é necessária e vital.

Como Compreender as Mortes por Desespero Pode Mudar a Psiquiatria

0

Dois investigadores internacionais, Lilly Shanahan da Universidade de Zurique na Suíça e William Copeland da Universidade de Vermont, publicaram recentemente um artigo de opinião na JAMA Psychiatry sobre a compreensão da psiquiatria em relação às “mortes por desespero”.

O termo “mortes por desespero” provém de uma hipótese publicada em 2015, segundo a qual o aumento da taxa de mortalidade prematura em indivíduos brancos de meia-idade, não hispânicos e com baixa educação, devido a suicídio, intoxicação por drogas e doença do fígado por alcoolismo, era uma manifestação de desespero em relação a circunstâncias sociais e econômicas desafiadoras.

Este quadro resultou em investigação em várias áreas diferentes, que revelou outras descobertas: há também uma mortalidade prematura crescente noutras populações demográficas; há outras causas de mortalidade prematura, tais como hipertensão ou diabetes; as causas de morte implicadas em mortes por desespero nem sempre levam à mortalidade prematura, e as tendências diferem consoante a região e o sexo. Isto complicou o quadro proposto.

Tem havido uma escassez de investigação sobre mortes por desespero dentro da psiquiatria, apesar do estudo de uma série de fenômenos semelhantes dentro do campo. Os autores propõem que as “mortes por desespero” têm-se tornado um problema cada vez mais omnipresente para as mortes relacionadas com estagnação econômica, desespero, dependência, capitalismo, e outras doenças relacionadas.

Sugerem a psiquiatria como uma disciplina ideal para estudar as mortes por desespero, embora isso exigisse ir além dos quadros tradicionais do diagnóstico psiquiátrico. Por exemplo, oferecem que a irritabilidade e o comportamento suicida poderiam ser estudados não apenas como sintomas de transtornos psiquiátricos, mas como síndromes dignas de consideração por si só.

Flickr

Para testar o quadro de morte por desespero, tomaram dados do Estudo Great Smoky Mountains, que sugere uma escala de desespero. A escala foi construída com base nas definições do DSM de transtorno disfórico, depressão grave, e sintomas isolados de desespero. Havia baixas taxas de mortalidade no estudo, por causa disso mediram os pensamentos e comportamentos suicidas e os problemas de drogas/álcool, que são hipóteses precursoras de mortes por desespero.

Encontraram uma associação entre o desespero e pensamentos e comportamentos suicidas posteriores, bem como o consumo ilícito de drogas, mas não o transtorno relacionado com o consumo de álcool. Mais amplamente, isto e a investigação psiquiátrica sugerem uma explicação mais complexa e com várias camadas da mortalidade e morbilidade psiquiátrica. Entretanto, as mortes por desespero são uma explicação muito estreita e uni-causal para a morte prematura, ignorando caminhos mais complexos para fenômenos mais complexos como as ECA, problemas de saúde física, vulnerabilidade neurobiológica, e políticas a nível macroeconômico que regulam estes processos.

Desenredar estes processos seria demorado e dispendioso, exigindo estudos longitudinais e uma cuidadosa consideração de como os fatores culturais, sociológicos e econômicos interagem com os fatores biológicos. Isto ajudará a ir além das abordagens reducionistas às mortes por desespero que a psiquiatria parece ansiosa por empreender. Também ajudará a abordar a realidade de que a morbilidade, a incapacidade e a mortalidade psiquiátricas são consideravelmente subestimadas, proporcionando à psiquiatria uma colaboração mais interdisciplinar e uma melhor compreensão do vasto fardo das doenças psiquiátricas.

“As mortes por desespero têm sido importantes para dar destaque à inversão dos ganhos na esperança de vida”, concluem os autores.

“A psiquiatria pode aperfeiçoar este quadro definindo e medindo a noção de desespero, ordenando as cadeias causais que o rodeiam, e infundindo as mortes de uma visão causal limitada do desespero com perspectivas biológicas. Ou no que lhe concerne, a psiquiatria beneficiaria com o aumento do seu foco nas tendências sociais para identificar grupos de risco e causas ao nível macro que poderiam ser alvo de intervenção e com o desenvolvimento de novos métodos para avaliar como a carga psiquiátrica se reflete com precisão nas estatísticas de deficiência e mortalidade. Uma integração de modelos psiquiátricos e populacionais proporcionaria uma oportunidade de enriquecer a psiquiatria muito para além das mortes por desespero e salientaria a necessidade de modelos conceituais que captem a complexa interação dos percursos sociais e biológicos para o suicídio e o uso problemático de drogas e álcool.”

****

Shanahan, L., Copeland, W.E. (2021). Psychiatry and Deaths of Despair. JAMA Psychiatry.Published online March 31, 2021. DOI: 10.1001/jamapsychiatry.2021.0256 (Link)

Abordar as Raízes do Trauma Racial: Entrevista com a psicóloga Lillian Comas-Díaz

0

Lillian Comas-Díaz é uma pioneira no campo das abordagens etnoculturais à saúde mental. Ela é simultaneamente uma clínica e psicóloga feminista multicultural, escrevendo numerosos artigos em periódicos e livros que impulsionam o campo para teorias e práticas mais inclusivas e menos etnocêntricas.

Foi recentemente galardoada com o prémio de ouro da Associação Psicológica Americana de 2019 pela realização da vida inteira e a prática da psicologia, a primeira vez que uma pessoa de cor foi reconhecida com o prêmio. Ela credita o esforço coletivo e a longo prazo dos profissionais da cor que trabalham na expansão das lentes da psicologia para incluir as perspectivas das experiências das pessoas marginalizadas.

Comas-Díaz, juntamente com os seus colegas, introduziu recentemente uma edição especial sobre o conceito a que chamam trauma racial (ver relatório MIA). Ela descreve o trauma racial como “um tipo insidioso de sofrimento que muitas pessoas de cor e outros indivíduos marginalizados experimentam, onde vivem numa sociedade onde o racismo, o heterossexismo, o classicismo, e todos esses tipos de “ismos” estão a fazer com que a sociedade seja opressiva para com esses grupos alvo”.

A transcrição abaixo foi editada para maior compreensão e nitidez. Ouça aqui o áudio da entrevista.

Hannah Emerson: Poderia aproximar-nos de como você evoluiu na investigação de abordagens etnoculturais da saúde mental, talvez tenha sido uma resposta da sua história pessoal ou da sua formação psicológica?

Lillian Comas-Díaz: Sim, sem dúvida, sendo uma mulher mestiça e de cor e tendo um passado transnacional, todas essas experiências informaram o meu desenvolvimento pessoal e profissional como psicóloga clínica, como psicóloga multicultural, e como psicóloga feminista.

Nasci em Chicago com pais porto-riquenhos, voltamos para Porto Rico, e depois voltei e vim para os Estados Unidos. Ter de lidar com diferentes culturas, choque cultural, e adaptações culturais de andar para trás e para a frente sensibilizou-me para a importância de ter uma lente mais ampla para olhar para a cultura. Estas experiências revelaram a importância de ser um psicólogo culturalmente empenhado e culturalmente competente, mas também uma pessoa.

Dado aquilo com que temos estado a lidar neste momento nos Estados Unidos, é muito importante ter uma visão que não seja limitada por uma perspectiva etnocêntrica. Temos de ser mais globais na nossa perspectiva, sobretudo sabendo que os Estados Unidos são uma nação de imigrantes. Portanto, é importante abordar a riqueza que a diversidade traz à nossa cultura.

Emerson: Poderia descrever as formas como pode ser psicologicamente desafiador ser uma pessoa de cor ou um indivíduo indígena nos Estados Unidos hoje em dia?

Comas-Díaz: Racismo é uma questão importante nos Estados Unidos. Embora neste momento se fale de forma mais destacada, tem sido sempre uma questão da maior importância. A história das pessoas de cor nos Estados Unidos tem sido bastante difícil e traumática. Tem havido muitos ganhos, mas mesmo assim, neste momento estamos a assistir a um ressurgimento da xenofobia – o ódio ao estranho, à pessoa diferente.

Os tipos de racismo que vemos neste momento são bastante óbvios, e podemos definir operacionalmente quais são os resultados do racismo só de olhar. Há um aumento dos crimes de ódio. As relações entre as pessoas de cor e as comunidades de cor e a polícia, por exemplo, são extremamente conflituosas. Os sistemas prisionais – temos mais pessoas de cor encarceradas quando comparadas com indivíduos brancos que cometeram tipos semelhantes de crimes. Mesmo o atual clima político neste momento, em que a raça está transformando-se em uma questão política para as pessoas que concorrem a um cargo e, até certo ponto, o racismo está sendo politicamente armado.

Neste contexto, toda a situação da raça é bastante relevante para a nossa realidade. Infelizmente, a investigação mostra que para as pessoas de cor, o racismo não é saudável. Cria muitos problemas de saúde mental e problemas físicos. Ainda mais do que isso, infelizmente, há pesquisas que também mostram que as pessoas de cor que estão expostas ao racismo, quando têm filhos, há um efeito intergeracional. Por outras palavras, os filhos de pessoas de cor tendem a ter mais susceptibilidade a traumas fisiológicos desencadeados pelo racismo. Por isso, é aí que se fala do conceito de trauma racial.

O trauma racial, apesar de partilhar algumas semelhanças com o transtorno de stress pós-traumático (TEPT), é um fenómeno totalmente diferente do TEPT. O trauma racial é único porque o trauma racial é o resultado de um trauma sociopolítico. Por outras palavras, existe um tipo insidioso de sofrimento que muitas pessoas de cor e outros indivíduos marginalizados experimentam. E é o resultado de viver numa sociedade onde o racismo, o heterossexismo, o classicismo, e todos esses tipos de “ismos” estão a tornar a sociedade opressiva em relação a esses grupos alvo.

A outra razão para o trauma racial ser único é que está relacionado com os ataques comunitários que as pessoas minoritárias (particularmente as pessoas de cor) recebem, mesmo que os perpetradores possam não ter a intenção de atacar pessoas. Podem ou não ser intencionais, mas estão sob a forma de micro agressões. Estas experiências incluem ataques, mas também quaisquer ameaças de danos ou ferimentos. Além disso, quando as pessoas são testemunhas de ataques quando os ataques são perpetrados contra outras pessoas de cor, chamamos a isso trauma racial indireto.

Não podemos medicalizar o trauma racial porque, mais uma vez, é diferente de uma situação médica como o transtorno de estresse pós-traumático. Porque as origens, ou as raízes, do trauma racial, têm a ver com a história, com a opressão, e com questões sociopolíticas. Estas são as áreas que precisamos de abordar em um nível mais coletivo. Estão a ser transmitidas individualmente, mas também em comunidades

Emerson: Tem alguns exemplos diretos de micro agressões? Poderia explicá-los aos nossos ouvintes para que entendam como isto se apresenta?

Comas-Díaz: A pessoa que cunhou pela primeira vez o termo micro agressão foi um psiquiatra afro-americano, Chester Pierce, e nós psicólogos popularizamos o termo. Há muita literatura sobre micro agressões. A pessoa que é vítima de uma micro agressão recebe uma mensagem negativa e hostil, por vezes depreciativa, para com um grupo marginalizado, neste caso, pessoas de cor. A questão é muitas vezes que os perpetradores podem não estar conscientes de que estão envolvidos em comportamentos negativos e racistas.

Por exemplo, perguntando aos asiáticos-americanos ou latino-americanos, de que país vieram, apesar de terem nascido e sido criados aqui. Outra micro agressão que é mais comum hoje em dia é: “Voltem para o seu país”, quando estas são pessoas que nasceram e foram criadas aqui. Outros exemplos seriam: “Não parecem asiático-americanos”, “Não parecem latinos”, sendo ignorados pelos funcionários se estiverem numa loja com clientes brancos, e os incidentes que ocorrem quando motoristas negros pardos.

Muitas micro agressões acontecem de forma contínua. Se acontece apenas uma ou duas vezes, a maioria das pessoas consegue lidar com isso. São as micro agressões insidiosas e persistentes que as pessoas de cor são sujeitas que provocam traumas raciais – ou quando é para com os seus entes queridos, ou para com qualquer outra pessoa, que resulta em traumas raciais indiretos.

Tentar lidar com isso enquanto se tenta negociar com a pessoa que comete uma micro agressão, por vezes, pode ter um efeito contrário. Há uma tendência da pessoa que se envolve numa micro agressão para justificar o seu comportamento porque não entende por que é que o seu comportamento é ofensivo ou como é que está a atacar a pessoa.

Devido a isso, em 2000, o Cirurgião Geral dos EUA indicou que a principal causa das disparidades de saúde entre comunidades de cor e americanos brancos tem a ver com o efeito do racismo. É evidente que isto está a acontecer através de micro agressões ou questões sistémicas ou históricas e que muitas pessoas de cor estão a ser expostas ao racismo e particularmente a micro agressões.

Emerson: Como responderia àqueles que dizem que as micro agressões mostram quão frágeis os jovens são hoje em dia? Talvez dissesse que é uma justificação, mas pergunto-me como poderão as pessoas compreender que poderá ser mais, que tem impacto na saúde mental se for persistente e insidiosa, tal como descreveu.

Comas-Díaz: Permitam-me mencionar que o conceito de micro agressão tem sido criticado por psicólogos, dizendo que não há dados científicos específicos – mas temos muita investigação. Em termos de ser susceptível ou de falar de micro agressões, quer isso afete ou não as pessoas, o que a investigação tem mostrado é que mesmo crianças de cor, quando são sujeitas a uma micro agressão, ou experimentam uma micro agressão indireta, que tende a afetar o desenvolvimento da sua identidade cultural e racial.

Por outras palavras, faz com que se sintam negativos por serem negros, porque ser uma pessoa de cor significa que as pessoas podem envolver-se em micro agressões e nada acontece, então poderia haver uma internalização disso, “Bem, talvez sejamos tratados assim porque o merecemos”, esse tipo de coisas. Portanto, a internalização de quando se está a ser atacado, não por nada que se tenha feito, mas apenas por causa da nossa identidade, afeta realmente não só o desenvolvimento da nossa identidade, mas afeta a nossa saúde mental e física, e há muitos dados sobre isso.

Emerson: Isto faz-me voltar a relacionar com o que você disse, que não pode medicalizar o trauma racial, que se sente como um fenômeno completamente diferente do PTSD. Quando se fala de trauma racial dentro do contexto psiquiátrico em que nos encontramos, será que não se corre o risco de patologizar pessoas de cor, como se o problema estivesse dentro delas e não dentro da nossa sociedade?

Comas-Díaz: Não, você tem toda a razão, e é por isso que sempre dissemos que o trauma racial é único e que não podemos medicá-lo porque as raízes e a aplicação da condição têm a ver com histórias e traumas históricos. Isto significa, nativos americanos, e afro-americanos, e latinx, que têm sido historicamente atacados e que isso continua a ser transmitido às pessoas agora.

Há um problema com a medicalização de uma condição que, embora tenha sintomas físicos e mentais como ansiedade, hiper vigilância, alguns sintomas do TEPT, é claro, é singular no sentido em que é contínua. Não há uma resposta a uma questão sistêmica sobre como reduzir ou como lidar com o racismo. Assim, as pessoas que sofrem de traumas raciais não veem qualquer alívio em termos do que o sistema vai fazer para amenizar esta situação. Se há alguma coisa, aquilo que está acontecendo neste momento, assim o esperamos, que irá mudar, é que há uma polarização neste momento no nosso país devido à raça.

Assim, a utilização de uma perspectiva médica é na verdade limitada porque se a pessoa for vista como sofrendo apenas de trauma, o prestador do serviço quer seja um psiquiatra, um prestador de cuidados de saúde mental, ou um médico, não incorporará uma perspectiva sociopolítica e histórica no tratamento, deixando de fora as raízes do problema.

Temos também de recordar que, neste momento, o conceito de trauma está centrado nos valores da Europa Ocidental e Oriental. Como resultado, o conceito de trauma é mais receptivo a uma sociedade individualista onde valores como a auto agência, o lócus de controle interno, as palavras “eu posso fazê-lo, eu posso ser o centro do meu universo”, a meritocracia, são bastante normativas. Sim, o mérito é importante, mas isto não é normalmente aplicável à maioria das pessoas de cor porque ou são excluídas de uma sociedade meritocrática e/ou tendem a ter valores mais coletivistas como a conexão, a solidariedade e a associação com os outros.

O conceito medicalizado de trauma não aborda essas coisas. Portanto, é disso que precisamos. Precisamos de sistemas de tratamento que estejam enraizados na história, no contexto, e nesta situação sociopolítica. Muitas destas abordagens medicalizadas tendem a ser ahistórica, e são descontextualizadas. Perguntam: “Digam-me quais são os seus sintomas”, e é só isso. Tentam lidar com o trauma sem compreender o contexto sociopolítico mais amplo e mesmo geopolítico. 

Emerson: Como se identifica um trauma racial numa pessoa ou numa comunidade se os sintomas podem não ser o marcador? Como sabe que está lá?

Comas-Díaz: Faz uma avaliação clínica, como faria com qualquer pessoa que apresente sintomas de trauma, mas depois também explora com a pessoa a sua história e como se identifica (porque algumas pessoas podem identificar-se como uma pessoa de cor e outras não).

Muitas pessoas que não têm a perspectiva sociopolítica nem sequer perguntarão: “Você teve alguma experiência com o racismo? Por vezes, o cliente pode não falar nisso porque o cliente, a pessoa de cor, pode não sentir que o profissional de saúde vai prestar atenção ao que ele ou ela tem a dizer sobre ser vítima de trauma, de trauma racial. É preciso uma lente particular para identificar isso e dar permissão à pessoa – sim, podemos falar aqui de racismo se isto for algo que lhe aconteceu, ou aos seus entes queridos, ou à sua comunidade.

A primeira coisa é que o terapeuta precisa de estar mais consciente da situação social e política em que se encontra e ter alguma consciência racial; para compreender que sim, a raça pode ser uma razão para as pessoas ficarem doentes, tendo traumas raciais. Esta é uma diferença em relação à abordagem psicoterapêutica dominante.

A outra coisa é envolver-se num processo que pode ajudar a pessoa a desenvolver a “consciência crítica”. Isto significa aplicar o pensamento crítico se a pessoa tiver interiorizado que ele ou ela é a causa do trauma, neste caso, o trauma racial, e isso não está a ajudar, e isso está a piorar a situação. Ajudar essa pessoa a descobrir quais são as causas deste trauma racial, versus o comportamento individual, ajuda muito a não promover a internalização do cliente de “a culpa foi minha”. Isso é algo que acontece em outros tipos de vítimas de trauma. A vítima muitas vezes sente-se como se tivesse causado o trauma.

A consciência crítica significa desenvolver uma consciência de porque é que isto está a acontecer, quem se beneficia, contra quem isto está a ser feito, e qual é o efeito na sociedade desta micro agressão, o racismo. Um efeito é a preservação do status quo. Falamos da utilização daquilo a que se chama abordagens de psicoterapia de libertação, que é basicamente ajudar a pessoa a desenvolver um sentido de consciência, uma consciência clínica, das suas circunstâncias e de como contribuem para o seu trauma, neste caso, o trauma racial. Uma vez que essa consciência exista, eles tornam-se mais libertos em termos de, bem, talvez haja algumas coisas que eu possa fazer sobre isto para lidar com esta situação.

As abordagens descolonizantes envolvem ajudar a pessoa a reconhecer a realidade que tem enquanto pessoa de cor. Por exemplo, falamos de trauma racial, mas há muita resiliência entre as pessoas de cor e as comunidades minoritárias. Porque, caso contrário, se olharmos para a história, muitas pessoas de cor não sobreviveriam. Portanto, a resiliência existe, é inerente, e por vezes, quando as pessoas sofrem de traumas raciais, não conseguem conectar-se com essa resiliência.

Numa abordagem terapêutica com uma perspectiva descolonial libertadora, o profissional ajuda o cliente a conectar-se com essa resiliência, e isso pode ser através da arte, isso pode ser através do envolvimento da comunidade, e isso pode ser através da ação de justiça social.

Há pesquisas que mostram que quando as pessoas são vítimas de trauma, particularmente quando se trata de um trauma sociopolítico ou racial, tomam consciência de que não é por causa de quem são, mas porque são membros de um grupo marginalizado, e isso inicia um processo de cura. Então a pessoa não interioriza e não se vitima a si própria.

A outra coisa é a ação de justiça social. Não dizemos às pessoas o que devem fazer. Dizemos às pessoas para dizerem: “Como pensam que se podem envolver? O que seria para si, uma ação de justiça social”? Para algumas pessoas, dizem que criar os meus filhos e ensinar-lhes o que é ser, por exemplo, um homem negro neste país é importante. Algumas pessoas podem dizer que contribuir para algo, ajudar, ou ser voluntário numa escola. Outras pessoas podem dizer que vão à igreja ou algo do género. O que ouço as pessoas dizer é ou apoiar alguém ou concorrer a cargos públicos para garantir que, a um nível sistémico, as coisas começam a mudar. Penso que estamos a assistir a algumas dessas mudanças neste momento.

Os terapeutas que trabalham com pessoas com trauma racial precisam de estar ligados ao que se passa – as questões sociais, políticas, econômicas e sistêmicas da sociedade – porque neste momento fazer terapia não se trata apenas da pessoa que vem ao consultório e do que está a acontecer entre as quatro paredes. Fazer terapia é também ajudar os clientes a viverem uma vida mais saudável fora da sala de terapia. É por isso que o profissional precisa de saber o que se está a passar fora dessas quatro paredes.

Outra coisa que quero partilhar com vocês que penso ser muito, muito importante é que o racismo não afeta apenas as pessoas de cor ou as pessoas marginalizadas. Afeta-nos a todos. Afeta as pessoas brancas; afeta toda a gente. Quando existe uma situação insidiosa como o racismo, ele divide o nosso país. É por isso que é importante que todos nós, quer sejamos pessoas de cor ou brancos, façamos um autoexame contínuo, uma autoavaliação, questionando-nos a nós próprios.

Emerson: O que acha que encorajaria as pessoas a dizer: “Estou empenhado em tornar-me culturalmente competente” e a empenhar-se neste auto-exame contínuo?

Comas-Díaz: O que a pesquisa mostra é que as pessoas, digamos os brancos, que estão na escola ou na faculdade com uma pessoa de uma raça diferente, tendem a ser mais receptivas a tornarem-se culturalmente competentes. Isto traduz-se em inglês simples para, caso tenha uma relação com alguém diferente da sua cultura ou do seu ambiente, e essa relação não seja manchada pelo racismo, então essa relação motiva-o a tornar-se, se for branco, aquilo a que chamamos um aliado.

Quando se torna cada vez mais consciente das micro agressões raciais, então quando testemunha um acontecimento, e o ignora ou vira as costas, isso realmente o afeta. Quando se é um aliado, e se assiste a uma situação em que se cometem micro agressões raciais, pode-se dizer: “Oh, sabem o que isto é, eu posso compreender por que razão não pensam que isto é, mas isto é racismo da minha perspectiva”.

Estar com a pessoa que diz: “Isto magoa-me, as suas palavras ou as suas ações magoam-me”, é muito importante. Não só o aliado se vai sentir melhor consigo próprio, como também pode estar a ajudar a traduzir a mensagem da pessoa de cor que sofre o trauma racial para o perpetrador, assumindo que ele ou ela não está consciente de que está envolvido em racismo ou na micro agressão.

Penso que uma mensagem importante, a mensagem para levar para casa, é que o racismo nos afeta a todos. Muitas vezes pensamos que só é essa pessoa que é vítima de trauma racial, mas é endêmico, e afeta-nos a todos. Penso que é importante que vejamos isso, porque muitas pessoas que se envolvem em micro agressões como os perpetradores podem não estar cientes de que o estão a fazer. Sem desenvolver a consciência crítica, podem continuar a fazê-lo, e isso significa que se isolarão de pessoas que são diferentes de si próprias.

Emerson: Então, o que diria a estas pessoas? O que diria às pessoas, talvez globalmente ou às pessoas nos EUA neste momento, que poderiam estar sofrendo aquilo a que chama trauma racial?

Comas-Díaz: Ficar criticamente consciente de que isto é algo que não lhes está a acontecer apenas a eles. Parte do problema com o trauma é que é muito isolador. As vítimas geralmente sentem não só que a culpa é delas, mas também que isto é algo que têm de fazer por si próprias. Portanto, comecem por abordar coletivamente esta questão, perguntando: “Quem mais foi afetado por isto?

O que eu diria às pessoas a nível global é: este é um conceito que pode ou não se aplicar a vocês. Caso pense que se aplica à sua pessoa, será importante identificar que partes da sua identidade são afetadas com a opressão que o faz desenvolver traumas. Isto tem alguns componentes em comum com o PTSD, mas é singular porque se não pertencesse a esse grupo marginalizado, você não estaria a sofrer este tipo de trauma.

Emerson: Por último, você sugeriria terapia como um fórum para proporcionar cura a pessoas que sofrem traumas raciais, ou recomendaria a exploração de outras modalidades de cura?

Comas-Díaz: Se é terapia, tem de ser um tipo particular de terapia. Tem de ser um terapeuta que tenha uma perspectiva sociopolítica, que conheça os efeitos da história, sistemas, política e diferenças sociais sobre a saúde da pessoa. Tem de ter uma abordagem descolonizante, certificando-se de que o cliente não está a rejeitar partes dele ou dela, porque a sociedade está a rejeitar isso nele ou nela. Tem de ser abordada através de uma consciência crítica. Tem de incluir uma perspectiva em que a pessoa é convidada a participar numa ação de justiça social definida pelo cliente, não definida pelo terapeuta – uma perspectiva em que há criatividade, em que a arte pode ajudar muito.

Mencionei também o fomento da resiliência inerente à maioria das pessoas de cor que sobreviveram a gerações de lidar com o racismo – também, coligações onde a solidariedade com outros membros do grupo marginalizado pode ser útil. Penso que parte do problema que queremos evitar é a divisão e a superação da situação. Este tipo de solidariedade ajuda a curar e ajuda a desenvolver estratégias para mudar não só a si próprios, mas também o sistema.

Quero terminar com o que já mencionei várias vezes, que o racismo e muitos tipos de opressões afetam-nos a todos. É tão importante para todos nós, quer sejamos perpetradores ou vítimas, que nos tornemos criticamente conscientes do nosso papel e nos comprometamos a mudar para podermos cocriar uma sociedade mais pacífica, mais respeitosa, e que celebre as nossas diferenças.

****

Os Relatórios MIA são apoiados, em parte, por uma doação da Open Society Foundations

Medicina Insana, Capítulo 9: Os Pais Preocupados (Parte 1)

0

 

 

 

[Nota do editor: Ao longo de vários meses, Mad in Brasil está publicando uma versão seriada do livro de Sami Timimi, Medicina Insana (o original disponível para compra aqui). Na Parte 1 deste capítulo, ele discute o Programa de Sensibilização Relacional (RAP) e como as relações familiares se solidificam através das “Guerras da Emoção”. Daqui a quinze dias, abordará ações específicas que as famílias podem tomar para melhorar as relações. Todos os capítulos estão aqui arquivados.]

As ideias delineadas no capítulo anterior podem ser estendidas para ajudar os pais que estão preocupados com o(s) seu(s) filho(s). Quando os pais estão preocupados com o seu filho, quer seja o seu comportamento ou estado emocional ou ambos, a intensidade emocional nessa relação aumenta, resultando em vários efeitos em cascata.

Os diagnósticos (tais como TDAH ou autismo) dão alívio temporário aos pais sitiados, mas convidam a todos a iniciar um processo alienante que encoraja todos a verem os seus filhos como infectados por uma doença que os leva a operar fora dos limites do que é considerado normal.

Mas os pais têm os seus próprios dilemas, dado o quanto a parentalidade tem estado sob escrutínio. Uma das coisas mais comuns que ouvimos ao trabalhar com pais em serviços de saúde mental de crianças e adolescentes é o quanto se sentem julgados por aqueles que os rodeiam quando os seus filhos atuam em público. É fácil ver como um diagnóstico pode proporcionar alívio temporário à medida que os pais mudam do sentimento de que são julgados como pais fracassados para um que pode agora ser visto como um pai heróico lutandor com uma criança problemática.

Penso que a nossa cultura de comparação e competição tornou difícil para os pais e os seus filhos sentirem-se seguros e competentes. A incapacidade de estar à altura de algo (seja para a criança, o pai, a criança sobre o seu pai, o pai sobre o seu filho) persegue as nossas vidas. É mais difícil do que nunca ser uma criança “normal” ou um pai “normal”.

Este capítulo não pode remediar o meio cultural e político; pode apenas fornecer algumas reflexões sobre o que pode melhorar em alguns aspectos da vida de algumas famílias. Também não estou apresentando um modelo de funcionamento “normal” da família, ou não estou a dar sermões a ninguém sobre os valores que devem ter. Como já discuti, os modelos de desenvolvimento infantil e as formas familiares variam em todo o mundo.

Este capítulo não deve ser utilizado para fazer juízos de valor sobre as numerosas famílias que vivem sob o stress da desigualdade, racismo, sexismo, e todas as outras formas de privação de direitos que nos podem afetar. O fato do seu pai ser condenado a uma longa pena de prisão por um delito relativamente insignificante, como acontece com tantos homens negros na ideologia do encarceramento em massa nos EUA, tem efeitos em cadeia para a família e os seus filhos que os podem seguir até à idade adulta. Estas questões requerem ação política, e não apenas as poucas dicas tépidas que esboço neste capítulo.

Na minha opinião, um sentimento de pertença e de sentir que se é amado apenas por ser, e não por fazer algo em particular, mais do que qualquer outra coisa, leva a que as crianças cresçam bem e estejam prontas para o tumulto e os desafios da idade adulta. Claro que poderia começar a desconstruir que significados e indicadores equivalem a “pertencer”, mas por agora deixem-me começar o capítulo com este pensamento: Nenhuma das ideias delineadas neste capítulo é tão importante como a do seu filho sabendo que você o ama e encontra alegria na sua existência, independentemente do que faça ou diga que o preocupa ou o enfurece.

O Programa de Sensibilização Relacional (RAP)

Eu, juntamente com alguns colegas, desenvolvi uma abordagem que utilizamos com pais muito preocupados, que é uma abordagem sem diagnóstico, e que utiliza principalmente um formato de grupo para o qual convidamos os pais, e os seus acompanhantes, que estão preocupados com o seu filho. Chamamos a esta abordagem o “Programa de Sensibilização Relacional” ou RAP. A abordagem RAP foi originalmente inspirada pelas ideias do psicólogo americano Howard Glasser, que desenvolveu a Abordagem do Coração Cultivado (Nurtured Heart Approach – NHA). O RAP introduz a NHA com filosofias sistêmicas e centradas na solução.

Eu penso no RAP como uma “caixa de ferramentas” de ideias. Tem conceitos e exercícios que podem ser utilizados de uma forma flexível para se adaptarem a diferentes circunstâncias. Não são realmente concebidos para serem aplicados como se fossem as únicas “verdades” possíveis. As pessoas reais são mais criativas e diversificadas do que qualquer abordagem única pode permitir. Apenas aqueles que a vivem podem verdadeiramente compreender que desafios e oportunidades as suas vidas contêm. Nesta abordagem, cada pai/mãe/responsável/família/escola precisa de descobrir o que é prático, útil, e adaptável às suas circunstâncias singulares. São-lhes apresentados uma série de conceitos e quadros e depois decidem se e como algum destes pode ser aplicado às suas vidas.

O RAP não é um programa de formação parental, de gestão parental, ou de formação de pais. É mais um programa baseado em competências para ajudar bons pais com aquelas crianças mais “intensas”. Não envolve dizer às pessoas os detalhes do que devem ou não fazer. O RAP fornece conceitos e perguntas para ajudar os pais a resolverem por si próprios como desejam proceder e adaptar as ideias às suas circunstâncias específicas. Dito isto, temos tido alguns resultados inspiradores acumulados ao longo dos anos, em que os pais que procuram ajuda para os seus filhos descobriram algo de novo sobre a relação com a criança com quem estão preocupados, libertando-os para criar novas “danças” e para verem as suas vidas através de uma nova lente.

No RAP concentramo-nos menos em como controlar o comportamento, que está repleto de perigos para a relação pai-filho, e mais em como construir relações positivas na família. Funciona bem para todos os tipos de cuidadores de crianças, desde professores a pais adotivos. Refiro-me aos “pais” no resto do capítulo, de modo a não complicar as sentenças. Onde quer que a palavra “pais” apareça, pode-se substituir todos os outros potenciais prestadores de cuidados. “Ele” e “ela” são utilizados alternadamente, não para denotar o sexo específico da criança, mas por conveniência e em vez de escrever ela/ele em todas as ocasiões. Por razões de conveniência semelhantes, onde usei o singular (como em “pai” ou “filho”) que também poderia referir-se ao plural (como em “pais” ou “filhos”) e vice-versa.

Alguns pressupostos

Eis alguns pressupostos que ajudam a estabelecer alguma base para esta filosofia terapêutica no lado parental da relação:

  • Os pais são motivados por intenções positivas – os pais que procuram ajuda são “bons pais”; eles querem ver as coisas a melhorar para os seus filhos.
  • É difícil para os pais quando o comportamento do seu filho é difícil; eles sentem-se frequentemente julgados e sentem que todos parecem ter uma opinião sobre eles e o seu filho
  • Todos os bons pais passam a maior parte do seu tempo a sentir-se culpados sobre a forma como os pais – devia ter feito isto ou não, devia ter sido mais rigoroso ou mais suave, etc. Presumo, como todos os bons pais, que eles continuarão a sentir-se culpados, aconteça o que acontecer!
  • Os profissionais têm alguns conhecimentos acadêmicos que podem ser úteis, mas ninguém conhece melhor os seus filhos do que os pais e outros prestadores de cuidados envolvidos. A filosofia do RAP partilha ideias, formas de pensar e um quadro de estratégias, mas não fornece conselhos específicos sobre como pô-las em prática. Isto é algo que cada família precisa de descobrir por si própria, com base nos seus próprios conhecimentos e competências.

Qualquer relação, por definição, envolve pelo menos duas pessoas que estão a contribuir para o seu funcionamento. Mesmo que a contribuição de um dos pais na sua relação com o seu filho não seja tão influente como o lado da criança, sobre que lado da relação se pensa que os pais têm controle? Em quem se pode garantir que a mudança pode ser alcançada? Concentrar-se naquilo que você, como pai, pode mudar é mais susceptível de conduzir a uma mudança relacional do que tentar convencer o seu filho a mudar.

Here are a few assumptions that help set some baseline for this therapeutic philosophy on the child side of the relationship:

  • As crianças não nascem no mundo da mesma forma. As pesquisas mostram que as crianças, desde os seus primeiros momentos de vida, têm temperamentos, tendências e diferenças na forma como interagem com o mundo.
  • Algumas crianças mais tarde atraem rótulos psiquiátricos e psicológicos, mas estes rótulos pouco nos dizem sobre o que pode ser útil para qualquer criança específica.
  • m vez disso, podemos simplesmente reconhecer que com algumas crianças a intensidade com que interagem e experimentam o mundo e a sua gente é maior do que a maioria das outras crianças.
  • Estas crianças intensas tendem a produzir fortes reações emocionais por parte daqueles que as rodeiam, incluindo frustração, raiva e preocupação.
  • Isto significa que, enquanto para a maioria das crianças as abordagens mais comuns à parentalidade e à gestão de comportamentos complicados – um pouco de mais de atenção aqui e ali e recompensas aqui e ali – tendem a funcionar, para aquelas crianças que são um pouco mais intensas, podemos precisar de “melhorar o nosso jogo” e trabalhar para as envolver a um maior nível de intensidade emocional.
  • Pode-se pensar nestas crianças como procurando emoções (e não como “procurando atenção”). “Procura de atenção” é uma frase que sugere que as crianças estão pensando logicamente no que fazem; no entanto, na realidade, as crianças estão geralmente apenas a responder a como se sentem e procuram um envolvimento emocional em resposta a este sentimento.

Dança relacional familiar

Agora podemos olhar para alguns impulsionadores emocionais das relações pai/filho. Aqui estão mais alguns pressupostos:

  • As emoções são virais! Temos tendência para “apanhar” as emoções daqueles a quem estamos mais próximos (emocionalmente e geograficamente). Não fique surpreendido com a rapidez com que uma emoção pode irromper para outros membros da família. O riso gera o riso como a raiva gera a raiva.
  • A filosofia básica desta abordagem é a de se concentrar na construção de relações funcionais em vez de se concentrar no controle do comportamento. Deixar que as emoções que queremos mais se derramem e sejam apanhadas. Vamos construir a nossa tolerância e imunidade em relação às emoções que queremos menos.
  • O conceito de emoções “negativas” e “positivas” não é, estritamente falando, exacto. Temos apenas uma variedade de emoções que são formas de energia dirigida que nos colocam num modo de “ação” em vez de “pensar”.
  • Quando os pais lidam com crianças que têm comportamentos desafiadores, procuram frequentemente estratégias para tentar controlar esse comportamento difícil. Podem esperar que os profissionais lhes possam dizer que se fizerem A e depois B, o comportamento irá parar. Podem estar à procura de alcançar a ausência de comportamentos indesejados. A filosofia do RAP não lhe diz o que deve fazer para eliminar comportamentos indesejados – e por boas razões.
  • Um dos problemas em se focalizar no controle do comportamento é que as tentativas de controlar o comportamento podem levar a mais pressão e tensão na relação com a criança, o que pode acabar em um ciclo de feedback negativo, resultando em mais tentativas de controlar o comportamento causando mais tensão na relação, e assim por diante. Quanto mais uma pessoa jovem se sentir alienada ou “agarrada”, mais poderá tentar defender-se, mais raiva poderá sentir, e mais baixa se tornará a sua autoestima. Um laço negativo reforçado pode acumular-se ao longo do tempo.
  • Ao concentrar-se nas relações desde o início, pode-se construir uma base melhor para relações mais fortes que envolvem alguma apreciação mútua.
  • O RAP tenta ajudar a criar uma dança relacional nova e, espera-se, mais agradável.

As Guerras* das Emoções

[Nota do Editor: Em inglês, ‘guerras’ se escreve WARS. O autor irá utilizar cada uma das letras que compõem a palavra ‘WARS’ enquanto abreviatura de palavras cujo sentido irá explorar. Portanto, a expressão ‘guerra das emoções’ não deve ser entendida aqui em seu sentido literal.]

A ideia da “Guerra das Emoções” é ajudar os pais a compreender como a “dança relacional familiar” pode tornar-se problemática. Pode ser pensada como um referencial para dar sentido ao que se está a passar a um nível mais inconsciente.

“W” é para Erros [‘Wrongs’]: A primeira suposição em Emotion WARS é que estamos programados para notar mais o que está a correr mal do que o que está a correr bem. Evolutivamente, a nossa sobrevivência esteve relacionada com a nossa capacidade de procurar sinais de perigo no nosso ambiente e de responder a estes. Como este é um aspecto instintivo, significa que quanto mais estressado nos sentirmos, mais provável é que ativemos este instinto para tentar resolver qualquer problema percebido.

Preocupar-se com o que está a correr mal significa que, qualquer que seja a causa do aumento do estresse, ela se torna irrelevante em comparação com a experiência real do estresse. Assim, quer sejam finanças difíceis, problemas numa relação conjugal, o estresse da escola a soar regularmente, e assim por diante, uma vez que experimentamos um aumento do estresse, é mais provável que acabemos por nos concentrar no que está errado, inclusive com os nossos filhos. Com o tempo, torna-se como um radar interno que analisa o ambiente em busca de sinais do que vai correr mal a seguir, faltando muitas vezes aqueles pedaços que estão OK.

“A” é para Apego [‘Attachment’]: O próximo pressuposto básico é que as crianças nascem como criaturas “à procura de emoção”. Os apegos são criados através das nossas relações emocionais e o que procuramos é energia emocional daqueles a quem estamos apegados. No mundo infantil, não existem emoções boas ou más. Para a bebé e criança em crescimento existe um impulso instintivo para a procura de emoções, de modo que qualquer emoção (seja o amor, a preocupação, ou a raiva) que lhes chegue de um dos pais seja experimentada como sendo de alguma forma gratificante. Se pensarmos sobre isso, não conseguimos tirar a mente de alguém por quem estamos zangados, do mesmo modo que de alguém por quem estamos amando.

A energia emocional cria a ligação. A procura pela energia emocional é uma melhor forma de descrever o que as crianças fazem do que a procura pela atenção. Isto também significa que as crianças conhecerão os pais emocionalmente muito melhor do que os pais alguma vez conhecerão a criança emocionalmente. Um pai terá muitas coisas a considerar e a pensar. Uma criança apenas aprenderá instintivamente (não logicamente) o que lhe dá energia emocional por parte do pai.

“R” is for Relationships: Relationship dynamics are then built up through these emotional energy ties that family members have to each other and over time this develops into a dynamic—a relational dance, where the relationship follows a certain “rhythm” so that each person responds in a predictable way to the other.

“R” é para Relações [‘Relationships’]: A dinâmica da relação é então construída através destes laços energéticos emocionais que os membros da família têm uns com os outros e com o tempo esta desenvolve-se numa dança relacional dinâmica, onde a relação segue um certo “ritmo” para que cada pessoa responda de uma forma previsível à outra.

“S” é para Scripts [‘Scrips’]: Ao longo do tempo, cada um de nós desenvolve papéis dentro de qualquer grupo e estes papéis raramente são os que escolhemos conscientemente, mas antes emergem da coleção de danças relacionais “assentando” num certo padrão reconhecível que todos no grupo (muitas vezes inconscientemente) reconhecem. Por exemplo, é um fenômeno bem conhecido que, quando se tem um parceiro, um deles acaba por ser o que se preocupa em arrumar, outro pode estar preocupado em ordenar as contas ou preparar as crianças de manhã, e assim por diante. Muitos descobrem então que mesmo que queiram que os papéis mudem, não se sentem ” bem” quando o fazem.

Assim, por exemplo, se é você que está preocupado em manter a casa arrumada e anseia que o seu parceiro também o faça, quando o fazem, de alguma forma eles nunca parecem ser capazes de o fazer da forma correta e por isso você tem de o refazer de acordo com o que considera ser o padrão correto! Isto é um pouco como se cada membro da família tivesse um ” script” que segue e que identifica o seu papel, e se qualquer membro vier com um novo script que altere o seu papel habitual, isso afasta qualquer outro porque não parece “natural”.

Existe assim uma força emocional poderosa e geralmente não reconhecida pelos outros membros, empurrando qualquer pessoa que “sai do script” de volta ao script que todos reconhecem – de volta à dança relacional familiar habitual. Se uma criança ocupa o papel de, digamos, “o desordeiro”, os membros da família irão muitas vezes assumir que esta criança está de alguma forma envolvida sempre que há problemas e que a criança se instalará nesse papel e o esperará dentro de si mesma.

As Guerras Emocionais utilizam assim o quadro em que desenvolvemos uma dança relacional familiar através do fluxo de energia emocional; onde quer que esta seja mais forte, então é isto que essa relação “aprenderá” – esta será a sua dança relacional. À medida que o estresse aumenta, então o que está a correr mal será mais notado. Com o tempo, um grupo de pessoas desenvolverá um conjunto de danças relacionais que se tornarão o ” script familiar ” ou a dança relacional familiar.

Quando há uma criança com um comportamento desafiador (para os seus pais), então, com o tempo, a dança relacional familiar pode ter-se estabelecido num padrão em que esse é o papel da criança no script familiar. Por mais que todos queiram e tentem mudar isso, de alguma forma (através do poder destes fluxos emocionais), apesar das melhores intenções de todos, continua a regressar a este script.

O dossier do seu filho

Imagine que você está escrevendo um dossier imaginário sobre como gostaria que o seu filho esteja dentro de 5 anos. Agora faça a si próprio estas perguntas e veja o que sai:

  • O que você gostaria de ver nessa pasta?
  • Que qualidades ou valores gostaria de imaginar que estão a atrair a sua energia emocional?
  • Que tipo de comportamentos você gostaria de os ver expondo?
  • Escalone esses comportamentos/qualidades/valores de 1 a 10 para o quanto os exibem agora, onde 1 nunca é e 10 é sempre. Qual desses comportamentos ou qualidades é que eles já têm ao máximo?
  • Como é que você viu isto?
  • Quando é que você os viu fazer isso?
  • Quanta energia emocional lhes deu quando fizeram este comportamento desejado mesmo que tenha sido por um período muito curto?
  • Como você pode reparar e dar energia emocional a quaisquer pequenos exemplos destes comportamentos/qualidades quando os vê?
  • Que mais poderia fazer para ajudar a aumentar uma dessas pontuações em 0,5?

O pai robô

Em muitos aspectos, o brinquedo favorito das crianças pode ser uma pessoa, como por exemplo um membro da sua família. Há algo de muito satisfatório numa pessoa que faz escolhas independentes e tem intenções autônomas e mesmo assim consegue “brincar” com elas e fazê-las reagir de uma forma que sabe que essa pessoa não quer, quer seja para as enrolar ou para as fazer ceder a uma exigência que você fez.

Imagine que, como pai, você é como um robô de brinquedo com muitos botões. Quando se aperta qualquer botão, o Robô (você, o pai) fica animado e começa a fazer coisas interessantes, à medida que se trabalha emocionalmente para cima. As crianças já há muito que descobriram os seus botões. Agora pergunte-se a si próprio:

  • O que é que eles fazem que lhe aperta os botões? O que é que fazem para lhe darem um impulso emocional?
  • Que comportamentos ou qualidades no seu filho, quando o vê, o “animam” dessa forma?
  • Serão estes botões que gostaria de deixar de funcionar – por outras palavras, botões que despertam emoções que prefere não ter – ou são botões que deseja continuar a ter – botões que despertam emoções que lhe agradam?
  • Se quiser que um botão pare de funcionar, o que pode acontecer se tentar parar de reagir quando esse botão é premido? Consegue lidar com as suas emoções quando elas se esforçam mais para que o botão volte a funcionar? Conseguirá gerir uma situação que envolve gerir riscos sem dar energia emocional?
  • Gostaria de reforçar os botões que fazem sobressair as emoções de que gosta? Gostaria de ter mais deste tipo de botões? Pode dar uma pontuação entre 1 e 10 pela frequência com que vê estes botões ” agradáveis ” (1 nunca, 10 a toda a hora)? O que poderia fazer para aumentar a sua pontuação em 0,5 em qualquer um destes botões ” agradáveis “?

….

[trad. e edição Fernando Freitas]

Maior publicação sobre ‘Antipsicóticos Afilados’ acaba de ser lançada

0

Um novo artigo, publicado no Schizophrenia Bulletin, é o primeiro artigo científico a destacar uma perspectiva de descontinuação gradual dos medicamentos antipsicóticos que mostra ser promissora na redução dos sintomas negativos de abstinência e recaída. O autor principal, Mark Horowitz, da UCL Psychiatry, explicou o ímpeto da publicação:

“Surpreendentemente, não há diretrizes publicadas sobre como sair dos antipsicóticos. Pela minha própria experiência, sei o quão difícil pode ser desabituarmo-nos aos medicamentos psiquiátricos – por isso, propusemos escrever orientações sobre como retirar com segurança os antipsicóticos. Suspender os medicamentos é uma parte importante do trabalho de um psiquiatra, mas tem recebido relativamente pouca atenção.”

Flickr

A pesquisa mostra que mais de metade dos indivíduos que têm tomado antipsicóticos relataram experiências negativas, não se limitando ao suicídio, como o entorpecimento emocional, sedação, aumento de peso e dificuldades cognitivas. O uso de antipsicóticos a longo prazo tem sido associado a efeitos negativos no corpo, tais como perturbações do movimento, aumento da mortalidade, e impactos duradouros no cérebro, incluindo a atrofia cerebral.

Dados os efeitos adversos dos antipsicóticos, é imprescindível o desenvolvimento e a implementação de abordagens seguras para reduzir e colocar um fim ao uso de antipsicóticos. A investigação sugere que as pessoas diagnosticadas com perturbações psicóticas sejam gradualmente retiradas dos seus antipsicóticos, para que possam melhorar o seu funcionamento e os resultados do tratamento a longo prazo.

Considerando que o nosso cérebro se adapta ao uso a longo prazo de drogas como é o caso dos antipsicóticos, a descontinuação abrupta dos medicamentos antipsicóticos é susceptível de levar a recaídas e a sintomas de abstinência. Os sintomas de abstinência podem consistir em sintomas somáticos, como náuseas e sudorese, problemas motores e psicológicos, incluindo a própria psicose. Os sintomas somáticos normalmente começam em dias e duram algumas semanas. Em contraste, os sintomas motores podem se manifestar durante um período de semanas após a redução da dose e podem se prolongar por meses ou mesmo anos.

O Professor David Taylor, do King’s College London, que é um dos autores, explicou o seguinte:

“Os antipsicóticos são tão familiares aos prescritores que é tentador assumir serem simultaneamente eficazes e inofensivos. Ainda que sejam talvez o tratamento mais útil para doenças mentais graves como a esquizofrenia, a sua natureza tóxica torna-os impróprios para as condições menos graves. Os antipsicóticos induzem alterações duradouras nas células nervosas do cérebro, e precisam de ser retirados muito lentamente (e de uma forma adequada às particulares de cada usuário) para dar tempo ao cérebro para se restabelecer.”

Embora a distinção entre as recidivas associadas à abstinência e as que refletem um curso típico de um transtorno psicótico seja um desafio, os sintomas de abstinência associados à recidiva podem ser evidenciados no aumento das taxas de recidiva após a cessação antipsicótica.

A investigação também descobriu que os indivíduos a quem foram prescritos antipsicóticos durante períodos mais longos têm um risco acrescido de recaída, incluindo sintomas psicóticos, após uma interrupção da sua medicação – com o risco a duplicar após 1-2 anos de uso de antipsicóticos, triplicando após 2-5 anos, e aumentando 7 vezes após 8 anos de uso.

Os autores salientam que a recaída após uma interrupção da medicação ocorre com os medicamentos psicotrópicos, em geral:

“Este padrão de recidiva precoce, consistente com os efeitos relacionados com a descontinuação, não se restringe aos antipsicóticos, mas é também evidente no caso dos antidepressivos na ansiedade, bem como do lítio e outros estabilizadores do humor no transtorno afetivo-bipolar, também persistindo durante meses.”

Existe uma falta de informação e orientação no que diz respeito ao processo de redução gradual dos antipsicóticos, o que contribui para a hesitação dos psiquiatras em ajudar os clientes a descontinuar a sua medicação. O afilamento gradual parece ser uma forma eficaz de reduzir a recidiva após a cessação, visto que as alterações neurológicas feitas pelos antipsicóticos se têm mostrado persistentes durante anos após o fim do uso de antipsicóticos. Presentemente, as diretrizes sugerem que a afilação a doses mínimas é eficaz, mas não indicam especificamente como fazer uma afilação.

O coautor Sir Robin Murray, do King’s College London acrescentou:

“Alguns psiquiatras estão relutantes em discutir a redução de antipsicóticos com os seus pacientes. Infelizmente, a consequência é que os pacientes param subitamente a medicação por si próprios, com o resultado de que há uma recaída. Muito melhor será que os psiquiatras se tornem especialistas em quando e como aconselhar os seus pacientes a reduzirem lentamente o seu antipsicótico.”

Os autores oferecem diretrizes sobre como deixar de tomar antipsicóticos em segurança, o que também se alinha com uma investigação recente que publicaram sobre como interromper o uso de antidepressivos em segurança.

Eles identificam os seguintes princípios quando se afunila: “fazê-lo cautelosamente por pequenas quantidades, e assegurar uma estabilidade dos pacientes (com sugestões de intervalos de três até seis meses entre as reduções de dose, ou pequenas reduções feitas a cada mês) antes de fazer mais outras. É necessário haver versões líquidas do fármaco ou formulações em doses pequenas, para ajudar os pacientes a fazer a redução e evitar o esmagamento dos comprimidos como é feito hoje em dia.

Outros peritos de renome na matéria sublinham a importância destas recomendações. Joanna Moncrieff, da psiquiatria da UCL, que está na liderança do ensaio RADAR, o primeiro estudo em Inglaterra para analisar o efeito de reduzir lentamente os antipsicóticos em pessoas com um diagnóstico de esquizofrenia, disse:

 “Muitas pessoas querem desesperadamente tentar parar os seus antipsicóticos, e por boas razões, mas os psiquiatras estão muitas vezes relutantes em ajudá-los. Este artigo irá melhorar a confiança dos psiquiatras em ajudar as pessoas a reduzir e parar os antipsicóticos, o que dará às pessoas mais escolha sobre o seu tratamento.”

O Professor John Read, da Universidade de East London, Presidente do International Institute for Psychiatric Drug Withdrawal, declarou:

“Este documento é um avanço histórico que proporcionará uma orientação há muito esperada por milhares de pessoas que estão atravessando, há décadas, este difícil processo com pouco apoio ou informação. Os psiquiatras envolvidos são verdadeiros pioneiros na caminhada para uma abordagem mais baseada na evidência dos medicamentos psiquiátricos.”

Os autores concluem enfatizando a necessidade de mais investigação e de diretrizes formais para o emprego de antipsicóticos afilados. Uma implementação de tais diretrizes poderia ser transformadora para as pessoas a quem são prescritos antipsicóticos, tal como salientado por aqueles com experiência de vida:

Sandra Jayacodi, que faz parte do painel consultivo de experiência vivida e membro do processo RADAR, disse:

“Os efeitos secundários dos medicamentos antipsicóticos são extremamente desagradáveis, e reduziram a qualidade da minha vida, e as hipóteses são de que a minha esperança de vida também tenha sido reduzida. Por vezes, parece uma sentença de prisão perpétua. Se me fosse dada uma escolha com o apoio e orientação adequados, eu teria deixado de os tomar. Sim, é, portanto, uma questão de tempo, os psiquiatras receberão orientações para ajudar as pessoas a reduzir ou a parar os seus medicamentos antipsicóticos. Saber que existe uma tal orientação também dará às pessoas a confiança para iniciar uma conversa com o seu psiquiatra sobre a redução ou interrupção dos medicamentos antipsicóticos.”

****

Horowitz, M. A., Jauhar, S., Natesan, S., Murray, R. M., & Taylor, D. (2021). A method for tapering antipsychotic treatment that may minimize the risk of relapse. Schizophrenia Bulletin. doi:10.1093/schbul/sbab017 (Link)

Estudo Brasileiro Relata o que Pesquisadores Acham da Retirada das Drogas Psiquiátricas

0

Um importante estudo que procurou investigar o que pesquisadores e profissionais da área pensam sobre os psicofármacos no cuidado em Saúde Mental. O artigo que saiu na revista internacional Journal of Critical Psychology, Counselling and Psychotherapy investigou profissionais dos cinco continentes do planeta e foi resultado de uma parceria entre o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS) e o Centro de Estudos Estratégicos (CEE), ambos da FIOCRUZ.

O que motivou a pesquisa foi o crescente número de pessoa no Brasil e no mundo que consomem alguma categoria de droga psiquiátrica, bem como a dificuldade que estas mesmas pessoas, e os próprios médicos, sentem em realizar a descontinuação farmacológica. Como bem-sabido, a retirada da dose psicofármacos em uso pode ser um processo muito difícil de ser suportado pelos usuários, especialmente devido aos sintomas de abstinência e a falta de tecnologias para que essa descontinuação seja realizada de maneira segura. A indústria farmacêutica não disponibiliza doses personalizadas ou com variações que permitam um processo de redução lento e gradual para evitar que o sofrimento com sintomas de abstinência seja o mínimo possível.

O método empregado foi um questionário ‘online’, com 10 perguntas objetivas, enviado para o endereço de correio eletrônico de autores de publicações científicas sobre o tema. Foram enviados convites da pesquisa para 14. 981 ‘e-mails’, dos quais foram obtidas 384 respostas válidas. A amostra consistiu em 318 questionários totalmente respondidos, o que significa um nível de confiança de 95%, com margem de erro de 5%.

O questionário foi estruturado em duas partes. O primeiro qualificou os respondentes de acordo com seu nível de conhecimento sobre o assunto (‘Bom’, ‘Algum’ ou ‘Nenhum’ conhecimento). Foram excluídos da investigação aqueles que responderam não ter ‘Nenhum’ conhecimento. Na segunda parte da pesquisa, respondentes com ‘Algum’ ou com um ‘Bom’ conhecimento passaram para as demais 9 perguntas do questionário. As respostas eram restritas a “Concordo”, “Discordo” ou “Não sei”.

A ocorrência de sintomas relacionados à retirada dos psicofármacos foi reconhecida pela maioria dos respondentes, bem como a controvérsia sobre a eficácia do tratamento psicofarmacológico. A maioria dos respondentes também concordou sobre a necessidade de proporcionar a descontinuação personalizada das drogas psiquiátricas, respeitando cada características e necessidades individuais e permitindo, assim, uma maior oportunidade de sucesso no procedimento.

“A literatura científica e a experiência de vida dos usuários indicam que quanto mais tempo os indivíduos usam uma droga psiquiátrica, é maior a probabilidade de graves sintomas de abstinência (M. Harrow et al., 2012; M. Harrow & Jobe, 2013; Martin Harrow & Jobe, 2007; Moncrieff, 2006). A maioria dos entrevistados concordou com esta posição.”

Apesar da crescente pesquisa e da abundante quantidade de relatos de experiências de vida de ex-usuários de medicamentos psiquiátricos sobre a dependência química e os sintomas de abstinência, a maioria dos entrevistados (a Academia) disse não ter conhecimento sobre a problemática de abstinência dos medicamentos. No entanto, a maioria concordou sobre a importância da retirada das drogas psiquiátricas para o bem-estar do paciente, isso significa que há o reconhecimento dos efeitos dessa retirada, demandando uma assistência adequada durante o processo.

Os resultados do estudo sugerem a importância de se desenvolver tecnologias para garantir a disponibilidade de medicamentos psiquiátricos em doses adequadas, para assim permitir haver a descontinuação sob medida às singularidades de cada usuário.

***

FREITAS, F., MOTA, F.,  BRAGA L.A.M. and GOMES, Camila M.  Attitudes of researchers
concerning discontinuation of psychopharmacological treatment. Journal of Critical Psychology, Counselling and Psychotherapy, Vol. 20, No. 4, 55-65. (link).

Kit de Sobrevivência em Saúde Mental e Retirada de Drogas Psiquiátricas, cap. 5, parte 1

0
religious fanatic woman. Pop art retro vector vintage illustrations

 

KIT DE SOBREVIVÊNCIA EM SAÚDE MENTAL E RETIRADA DAS DROGAS PSIQUIÁTRICAS

 

Nota do Editor: Por permissão do autor, o Mad in Brasil (MIB) está publicando o recente livro do Dr. Peter Gotzsche, Kit de Sobrevivência em Saúde Mental . Os capítulos estão ficando disponíveis em um arquivo aqui.

CAPÍTULO 5, PARTE 1

Kit de sobrevivência para jovens psiquiatras em um sistema doente

Escrevi este livro para os pacientes e seus parentes para ajudá-los a evitar que fiquem presos pela psiquiatria e fiquem ofuscados pelas drogas psiquiátricas, desperdiçando assim anos de suas vidas, ou, no pior dos casos, morrendo. Mas e a psiquiatria como uma especialidade médica; ela pode ser salva de si mesma?

Não pode. Muitos livros, incluindo este, documentaram que os líderes psiquiátricos desistiram do pensamento racional em favor dos benefícios que eles próprios adquirem ao apoiar um sistema totalmente doente. A única esperança que temos é se o povo protestar tão vigorosamente que isso se torne uma revolução imparável.

Dada a doutrinação generalizada, isto é improvável que venha acontecer. Sempre haverá muitos pacientes que acham que as drogas psiquiátricas têm sido boas para eles e que ficarão do lado da corporação psiquiátrica, e esta força, juntamente com a riqueza e o poder obsceno que a indústria farmacêutica acumulou ao nos vender comprimidos inúteis, é tão grande que nossos políticos, mesmo que tenham percebido o quanto tudo isso é ruim, não se atrevem a agir de acordo. O sistema está bloqueado, como se tivesse sido forçado a entrar em uma camisa de força.

Também é muito conveniente para os políticos que haja uma profissão que lide com os elementos mais perturbadores de nossas sociedades e que exerça um controle social rígido sobre eles, muito mais rígido do que o sistema criminoso permite, às vezes com penas indefinidas, num sistema fechado onde os gritos das vítimas não são ouvidos, como no sistema Gulag soviético ou nos campos de concentração nazistas, onde as mortes causadas por aqueles que detinham o poder eram chamadas de mortes naturais, e onde o sistema de apelação era uma farsa total. Qual é a diferença para a psiquiatria, que também chama as suas mortes de “mortes naturais”, onde o sistema de apelação é uma total farsa, onde a lei está sendo violada sistematicamente, e onde pesquisadores independentes acabam sendo demitidos após um julgamento de fachada, se eles tentarem descobrir por que as pessoas morreram?

Mas temos outra fonte de esperança que são os jovens psiquiatras em treinamento cujos cérebros ainda não foram bloqueados com todas as falsas crenças. Alguns deles haviam ficado tão desesperados que me contataram, embora eu não os conhecesse de antemão, para discutir as suas frustrações intensas a respeito de um sistema que tão claramente torna as coisas piores para os seus pacientes.

Um deles, a médica chefe Klaus Munkholm, de 46 anos, do departamento psiquiátrico do meu próprio hospital, que tinha percebido, ao ler os livros de Robert Whitaker e de mim mesmo, que aquilo em que ela acreditava há tantos anos era claramente errado. Ela me escreveu em julho de 2017 e me explicou que estava preocupada que a psiquiatria biológica não tinha sido útil para o entendimento do transtorno bipolar, o que era o seu principal interesse de pesquisa. Ela tinha preocupações semelhantes a respeito das outras doenças psiquiátricas e queria fazer uma pesquisa nesse sentido.

Sou muito rápido para julgar as pessoas e imediatamente marquei uma reunião que foi muito boa. Iniciamos uma frutífera colaboração em pesquisa, mas ela teve repercussões para Klaus. Já um mês após a nossa primeira reunião, ela havia sido desencorajada – tanto em um e-mail quanto em uma reunião – a colaborar com o meu grupo de pesquisa, e ela havia sido avisada de que isso teria consequências para a sua carreira. Eu respondi: “Você consegue ver a semelhança com o fanatismo religioso? É exatamente assim que as Testemunhas de Jeová, a Cientologia, e todas as outras reagem. Isto é inaudito em um contexto acadêmico, mas nos diz muito sobre onde está a psiquiatria”.

Klaus não cedeu e, a partir de dezembro de 2017, eu a empregava um dia por semana, para o grande desgosto do seu chefe, o professor Lars Kessing.

No mesmo mês, outro psiquiatra chefe, Kristian Sloth, também desconhecido para mim, pediu para ter uma reunião, e ele chamou a minha atenção para um anúncio da Psiquiatria na Região da Capital de que as pílulas da depressão poderiam prevenir a demência. É claro que elas não podem fazer isso; pesquisas mostraram que é mais provável que elas causem demência (ver Capítulo 2). Kristian também observou que ele tinha reduzido as despesas com medicamentos em 35% em apenas um ano desde que começou a trabalhar no departamento. Ele me contou sobre uma paciente que foi diagnosticada com esquizofrenia, recebeu uma dose alta de Leponex (clozapina), tornou-se psicótica, recebeu ainda mais Leponex e que acabou em uma enfermaria de segurança máxima. Quando pararam o Leponex, todos os sintomas psicóticos dela desapareceram.

Kristian abriu uma seção em sua unidade assistencial que ele chama de “espaço livre de força”, onde os seus pacientes têm a garantia de que nenhuma força será aplicada a eles.

Klaus era um tesouro. Brilhante e bondosa, um grande trunfo para todos os projetos psiquiátricos que eu havia iniciado. Não demorou muito até que eu lhe dissesse que queria empregá-la em tempo integral. Ela finalmente abandonou a psiquiatria e se tornou empregada em tempo integral, um ano depois de ter me contatado pela primeira vez. Alguns dos “gorilas” da psiquiatria, que antes a tinham em grande consideração, agora a tratavam como as Testemunhas de Jeová e a Cientologia tratam os desertores.

Uma psiquiatra deixou seu trabalho em um serviço onde o médico-chefe Lars Søndergård tinha prescrito uma overdose tão monstruosa aos pacientes, e contra as diretrizes, que ela não podia mais trabalhar como psiquiatra por causa de sua periculosidade. [1] Ela foi para um outro hospital, mas enquanto isso, Søndergaard foi autorizado a praticar novamente, sob supervisão próxima, e ele apareceu no hospital onde ela estava agora.

Søndergaard continuava a prescrever doses excessivas aos seus pacientes de forma monstruosa. Seu chefe, Michael Schmidt, não o supervisionou, e foi por pura sorte que todos os seus pacientes sobreviveram às enormes overdoses, muitas vezes com vários neurolépticos tomados simultaneamente. As enfermeiras e seus colegas psiquiatras estavam muito preocupados com o que viram e contataram Schmidt sobre isso, mas nada aconteceu. Schmidt respondeu que, “Muitos dos pacientes que encontramos hoje na unidade de emergência são muito extrovertidos e extremamente difíceis de tratar dentro das diretrizes correntes”. Como a cultura no serviço era de medo e intimidação, as enfermeiras decidiram envolver o seu sindicato.

A negligência médica de Søndergaard incluía a suspensão do tratamento correto de delírio alcoólico prescrito por outro médico, que é uma condição muito perigosa, bem como a prescrição de dois neurolépticos, na medida em que aumentam acentuadamente o risco de convulsões, arritmias cardíacas repentinas e morte. [3] Um paciente recebeu metadona, que pode causar arritmias letais, razão pela qual o Conselho Nacional de Saúde recomenda contra o tratamento concomitante com neurolépticos, mas a este paciente foram prescritos três neurolépticos simultaneamente, e recebeu alto no mesmo dia. [3]

A resposta de Schmidt foi extremamente arrogante. [4] Ele não conseguiu reconhecer nenhum dos exemplos horríveis de overdose do jornalista que a ele havia sido enviado.

Levou quatro meses para que a Autoridade de Segurança do Paciente respondesse. O veredicto foi duro.[5] Schmidt foi colocado sob supervisão rigorosa e Søndergård não podia mais trabalhar como psiquiatra. Schmidt tinha aprovado uma proposta de Søndergård que significava que os pacientes ficavam extremamente overdosados, e ele não tinha sido capaz de interpretar um artigo científico profissionalmente, mas concluiu o oposto do que o artigo dizia sobre a dosagem. Schmidt não tinha informado a Autoridade sobre as doses excessivas, embora tivesse o dever de fazê-lo, e ainda que o pessoal o tivesse informado várias vezes. Schmidt tinha até escrito à Autoridade que Søndergård “tem uma abordagem analítica apurada” e tinha “levado o serviço a um nível profissional muito elevado”, ao contrário da opinião da Autoridade, que era de que Søndergård em vários casos tinha exposto os pacientes a sérios perigos.

O Diretor Adjunto Søren Bredkjær, a Gerência de Psiquiatria na Região Zelândia, emitiu imediatamente um comunicado de imprensa enfatizando que eles ainda tinham plena confiança em Schmidt e que ele tinha recebido apenas uma “punição suave”.

A jovem psiquiatra em treinamento que havia relatado Schmidt à Autoridade depois de ter tentado durante meses resolver os problemas por conta própria, Schmidt a rotulou como “uma pessoa rabugenta e insana”, na frente dos colegas. [5]

Por fim, ela desistiu e foi até Bredkjær, a quem ela encorajou a examinar os arquivos relevantes dos pacientes. Ela lhe mostrou uma lista dos pacientes que foram admitidos em um dia em que ela estava de plantão e o deixou ver as suas anotações pessoais. Ela pediu que ele investigasse o caso, mas nada aconteceu. Então ela não viu outra opção a não ser ir à imprensa.

Para o jornalista, Bredkjær brigava o tempo todo e não queria pedir desculpas às enfermeiras e médicos que constantemente avisavam sobre os problemas, mas que haviam sido ignorados também por ele.

Todos os jovens psiquiatras que vieram me ver apreciavam muito trabalhar com os seus pacientes. Eu lhes disse que eles eram exatamente o tipo de médicos que os pacientes e a psiquiatria precisavam, e que eles não deveriam deixar a psiquiatria.

Uma delas foi seriamente repreendida pelo seu chefe quando começou a retirar lentamente os medicamentos de que os pacientes não precisavam mais, após os haver iniciado no ambulatório.

Outro me escreveu: “Você consegue imaginar como é compartilhar café e almoço com essas pessoas dia após dia, durante semanas, meses e anos? Sou forçado a ouvir as divagações loucas dos puristas prescritores até não poder mais suportá-los e pedir-lhes as suas referências científicas para o que afirmam, e isso só os deixa irritados. Sou forçado a ouvir aqueles que sempre querem falar sobre algum psiquiatra que os irrita porque ele é ruim em fazer diagnósticos corretos, até que eu pergunte como eles sabem que a sua marca particular de diagnóstico é a correta, o que os deixa com raiva. O pior de tudo é que preciso ouvir as conversas dos psiquiatras norteadas para o estilo de vida a respeito dos seus últimos apartamentos, carros e viagens, e eles ficam com raiva se eu puxar o assunto para a psiquiatria. O que eu aprendi dolorosamente sobre essas pessoas é que a maioria delas está completamente desinteressada em ler os artigos reais sobre os ensaios clínicos que temos. Em vez disso, eles simplesmente seguem o seu líder.”

Como observado no Capítulo 2, a cineasta dinamarquesa Anahi Testa Pedersen recebeu o diagnóstico de esquizotipia quando ficou estressada por causa de um divórcio difícil. Ela fez piada sobre este diagnóstico em seu filme, e como eu não tinha ideia do que esta coisa estranha deveria ser, procurei na Internet e encontrei um teste para o transtorno de personalidade esquizotípica. [6] Ele é definido de várias maneiras em diferentes fontes, mas o teste reflete muito bem como esta coisa é descrita no site da Mayo Clinical, [7] e como dizem que os sintomas são publicados pelo Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais da Associação Psiquiátrica Americana, [6] eu fui adiante. Havia nove perguntas e você deveria responder verdadeiro ou falso, ou sim ou não, a cada uma delas.

1: “Interpretações incorretas dos eventos, como a sensação de que algo que é realmente são e salvo ou inofensivo tem um significado pessoal direto”. Esta é uma pergunta muito vaga, e muitas pessoas interpretam os eventos de forma incorreta, particularmente os psiquiatras.

2: “Crenças estranhas ou pensamento mágico inconsistente com as normas culturais”. Essa é uma pergunta interessante. Quando um jovem psiquiatra discorda das estranhas “normas culturais” do serviço sobre o tratamento preventivo da esquizotipia, será que ele é anormal? E quanto às monstruosas overdoses de Søndergård, que era uma “norma cultural”, como seu chefe a aceitou? De acordo com a pergunta 2, parece que as pessoas normais da equipe que protestaram deveriam ser consideradas anormais.

3: “Percepções inusitadas, incluindo ilusões”. Eu forneci provas neste livro e em livros anteriores de que a maioria dos psiquiatras precisariam dizer sim a esta pergunta. Basta pensar sobre a ilusão chamada desequilíbrio químico.

4: “Estranhos padrões de pensamento e fala”. Certamente, a maioria dos psiquiatras demonstra um pensamento estranho, mantendo a mentira sobre o desequilíbrio químico e muitas outras mentiras, e também negando totalmente o que outras pessoas veem claramente, incluindo os seus próprios pacientes, por exemplo, que as drogas psiquiátricas fazem mais mal do que bem.

5: “Pensamentos suspeitos ou paranoicos, tais como a crença de que alguém está querendo lhe pegar”. Se você for detido em um serviço psiquiátrico, tal reação é totalmente normal e compreensível. O pessoal certamente quer “pegá-lo”, ou seja, quer tratá-lo energicamente com neurolépticos contra a sua vontade. Quando os líderes psiquiátricos usam termos sobre seus oponentes tais como “antipsiquiátricos” e “conspiração”, pode então ser considerado um “sim” à pergunta 5?

6: “Emoções planas, parecendo distantes e isoladas”. Isto é o que as drogas psiquiátricas fazem às pessoas, portanto, se elas não eram anormais para começar, os psiquiatras se assegurarão de que elas se tornem anormais.

7: “Comportamento ou aparência estranha, excêntrica ou peculiar”. Como observado no Capítulo 2, uma definição de loucura é fazer sempre a mesma coisa, esperando um resultado diferente, que é o que os psiquiatras fazem o tempo todo. Eu chamaria isso de um comportamento estranho, excêntrico e peculiar.

8: “Falta de amigos próximos ou de confidentes, além de parentes”. Isto é o que as drogas psiquiátricas fazem às pessoas, particularmente com os neurolépticos; elas isolam as pessoas e podem fazer delas zumbis.

9: “Excessiva ansiedade social que não diminui com a familiaridade”. Se você for detido em um serviço psiquiátrico, tal reação é totalmente normal e compreensível.

Há um divertido erro ortográfico no site. [6] Diz: “Nosso teste calculará com clareza e precisão seus pontos e dará uma sugestão impotente”. Concordo que o teste é impotente. É inútil e falso. Muitos, talvez até mesmo a maioria dos psiquiatras testariam positivo. Talvez eles devessem tentar um neuroléptico preventivo para a sua esquizotipia?

O que é menos divertido é que o teste fornece provas circulares para os pacientes que, mesmo que sejam normais, podem dar positivo quando tiverem sido tratados de forma desumana por psiquiatras, inclusive sendo tratados à força com neurolépticos.

Um debate na reunião anual de jovens psiquiatras suecos

 Em novembro de 2016, dei uma palestra em Estocolmo e me encontrei com Joakim Börjesson, um psiquiatra em treinamento que queria fazer pesquisa comigo. Ele ficou muito impressionado durante os seus estudos de medicina quando um psiquiatra disse aos estudantes que os psiquiatras sabiam tanto sobre o cérebro e as drogas que podiam usar drogas especificamente destinadas a trabalhar na origem biológica de um transtorno, o chamado desequilíbrio químico. Ele achou isso tão fascinante que decidiu tornar-se psiquiatra.

Mais tarde, quando Joakim trabalhou nessa unidade psiquiátrica, foi solicitado a ele que produzisse relatórios falsos que produziriam benefícios sociais para os compatriotas deste psiquiatra (ele não era da Suécia). Joakim estava em uma situação difícil, pois este psiquiatra era quem deveria aprovar a sua estada no serviço como parte da sua formação, mas ele encontrou uma forma de contornar isso onde ele evitava cometer uma fraude social.

Depois de ter lido os livros de Robert Whitaker e os meus, Joakim percebeu que havia sido totalmente enganado e considerou deixar a psiquiatria. Ele não o fez e veio me ver por três meses em Copenhague onde trabalhamos em uma revisão sistemática dos efeitos do lítio sobre o suicídio e o total de mortalidade. [8]

Em janeiro de 2018, Joakim organizou uma sessão em Götenborg durante a conferência anual de 150 psiquiatras suecos em treinamento, onde debati com o farmacologista clínico e professor Elias Eriksson.

Nossas conversas foram: “Os ISRSs têm um bom efeito e efeitos colaterais leves” e “Por que os ISRSs e antidepressivos similares não devem ser usados para a depressão” nessa ordem. Joakim tinha investido muito em diplomacia para ter isto arranjado, tanto internamente como ao lidar com Eriksson, que tem a reputação de atacar brutalmente os seus oponentes.

Havia outras questões. Durante a discussão, mencionei que Eriksson havia firmado um acordo secreto com a Lundbeck (que vende três ISRSs diferentes) contra as regras de sua universidade, o que significava que a Lundbeck poderia impedir a publicação de sua pesquisa se não gostassem dos resultados. [9,10] Eu disse isto porque Eriksson rotineiramente “esquece” de declarar os seus conflitos de interesse, [10] mas fui imediatamente parado pela presidência. Mais tarde, o Ombudsman criticou a universidade por encobrir o caso. [11] Eriksson declarou que não podia entregar a correspondência da Lundbeck a um jornalista, porque tinha ocorrido em um servidor da Lundbeck, uma arranjo altamente incomum, para dizer o mínimo, e mentiu sobre o que tinha sido o pedido de Liberdade de Informação.[9,10]

As regras para o debate incluíam que cada um de nós deveria escolher cinco artigos, que seriam os únicos que poderíamos discutir. Eriksson quebrou as regras ao me perguntar de repente sobre detalhes minuciosos em uma metanálise que eu havia publicado e que mostrava que a psicoterapia reduz pela metade o número de tentativas de suicídio.12 Felizmente, eu me lembrei dos detalhes e respondi. Eriksson não apenas quebrou as regras, a meta-análise também foi totalmente irrelevante para o debate, que era sobre os ISRSs. Obviamente, Eriksson usou truques sujos em suas tentativas de convencer o público de que eu não podia ser confiável. Joakim me escreveu três semanas antes da reunião que, “Elias Eriksson tinha o seu livro sobre psiquiatria em sua lista de artigos. Quando falei com Elias Eriksson por telefone e lhe perguntei por que ele o havia colocado lá (eu lhe disse que ele não poderia ter encontrado nenhuma evidência em benefício do ISRS em seu livro) ele me disse que tinha a intenção de ‘revelar que Peter Gøtzsche é um charlatão’ durante a sua palestra. Discutimos isto durante cerca de uma hora e eu tentei convencê-lo, sem sucesso, a aderir às regras do debate”.

Eriksson alegou em seu resumo para a reunião que não havia razão para acreditar que qualquer um dos efeitos colaterais dos comprimidos fosse irreversível e também que eles não eram viciantes. Ele opinou que as críticas às pílulas eram “fundadas ideologicamente” e que o uso de suas pílulas de acordo com os críticos era o resultado de uma conspiração mundial que incluía psiquiatras, pesquisadores, autoridades e empresas farmacêuticas. Cinco meses antes, quando debati com Eriksson na rádio sueca, ele disse que as pílulas ajudaram dramaticamente e poderiam evitar o suicídio em muitos casos.[15]

Após a reunião, um psiquiatra me escreveu que você não pode convencer as pessoas religiosas de que não há provas da existência de Deus, mas pode fazê-las perder a confiança em seu padre se você puder mostrar provas de que ele usou doações para a igreja para comprar cocaína em um bar gay. Ele escreveu ainda: “Elias Eriksson é um simples lobista que fez fortuna fazendo jogos políticos ao invés de fazer pesquisas honestas e ele mesmo sabe disso. É por isso que ele pode mentir sobre coisas que ele muito bem sabe que não são verdadeiras, como se houvesse boas evidências de que os antidepressivos funcionam”.

Também me disseram que muitos dos psiquiatras não haviam entendido as minhas explicações sobre as pílulas da depressão como causadoras de suicídio. Isto ilustra a dissonância cognitiva generalizada entre os psiquiatras. Quando eu apresento os mesmos slides para um público leigo, eles sempre os entendem. Os psiquiatras NÃO QUEREM entender o que eu lhes digo, pois é muito doloroso para eles.

Em 2013, quando Robert Whitaker foi convidado para falar em uma reunião em Malmö que os psiquiatras infantis tinham organizado, outros psiquiatras intervieram e conseguiram o controle da reunião. Eles disseram que Bob deveria falar apenas sobre a teoria da supersensibilidade à dopamina e não apresentar quaisquer dados sobre os resultados a longo prazo. Embora isto fosse claramente uma armadilha, Bob concordou em ir. Quando chegou, foi-lhe dito que Eriksson seria o seu “oponente”, e ele gastou o seu tempo denunciando Bob de uma forma inacreditavelmente desonesta. Nas próprias palavras de Bob: “A coisa toda foi uma montagem nojenta que se destaca por sua desonestidade, do início ao fim”. Eriksson declarou que considerava Bob como sendo um “charlatão que tortura os pacientes”.

Eu havia planejado ir, mas Eriksson havia declarado que não participaria se eu aparecesse!

É estranho como os apologistas da psiquiatria constantemente chamam aos seus oponentes de charlatães ou pior e usam falácias de palhaço o tempo todo. Nenhum de nós jamais postulou nada sobre uma “conspiração” ou usou esta palavra, mas ao fazê-lo, os apologistas se associam a um passado recente deplorável. A propaganda nazista falava constantemente de uma conspiração judaica mundial inexistente.

Os Conselhos Nacionais de Saúde não respondem aos suicídios em crianças

 Em 2018-19, alertei os Conselhos de Saúde dos países nórdicos, Nova Zelândia, Austrália e Reino Unido para o fato de que duas simples intervenções, a lembrança do Conselho de Saúde dinamarquês aos médicos de família e as minhas constantes advertências no rádio e na TV, e em artigos, livros e palestras, fizeram com que o uso de pílulas da depressão em crianças fosse quase que reduzido pela metade na Dinamarca, de 2010 a 2016, enquanto que em outros países nórdicos havia aumentado.[14]

Notei que este era um assunto sério porque as pílulas da depressão duplicam o risco de suicídio em comparação com o placebo nos ensaios randomizados e porque os principais professores de psiquiatria continuam a desinformar as pessoas dizendo-lhes que os comprimidos protegem as crianças contra o suicídio. Portanto, exortei os conselhos a agirem: “A consequência da negação coletiva e profissional é que tanto crianças quanto adultos cometem suicídio por causa das pílulas que tomam, na falsa crença de que os ajudarão”.

Não recebi respostas, respostas tardias, ou respostas sem sentido que parecessem besteira para mim, o que o filósofo Harry Frankfurt considera como quase mentindo.  [15] Após cinco meses, o Ministério Finlandês de Assuntos Sociais e Saúde respondeu da forma típica de um “lengalenga” que os funcionários públicos usam quando elogiam um sistema que claramente não funciona, mas se recusam a reconhecê-lo e a tomar medidas: “o aumento dos pensamentos suicidas tem sido relacionado com os ISRSs em alguns estudos”. Isto é terrivelmente enganoso. Quando todos os estudos são tomados em conjunto, fica claro que as pílulas da depressão aumentam tudo, pensamentos suicidas, comportamento, tentativas e suicídios, mesmo em adultos (ver Capítulo 2).

Após seis meses, a Agência Sueca de Drogas respondeu. Foi tudo sobre processos, e me disseram que a agência havia emitido as diretrizes do tratamento em 2016. Fui procurá-las.[16] Sob efeitos colaterais, não havia absolutamente nada sobre o suicídio. Nem uma única palavra. Mais abaixo no documento, foi mencionado que as pílulas da depressão aumentam ligeiramente o risco de suicídio, mas também nos foi dito que “elas não aumentam o risco de suicídio, e há algumas evidências de que o risco é diminuído”. Estas informações contrastam com o texto da bula sueca para a fluoxetina, que menciona que, “o comportamento relacionado ao suicídio (tentativa de suicídio e pensamentos suicidas), hostilidade, mania e sangramento nasal também foram relatados como efeitos colaterais comuns em crianças”. Alguns dos chamados especialistas que a agência havia utilizado, por exemplo, Håkan Jarbin, tinham laços financeiros com os fabricantes de pílulas da depressão, mas nada disso foi declarado no relatório.

Após seis meses, em junho de 2019, a Diretoria de Saúde da Islândia respondeu que havia pedido uma opinião de especialista, mas não tive mais notícias deles.

Em 2020, escrevi novamente aos conselheiros, desta vez anexando o meu trabalho sobre a inação deles. [14] A Direção de Saúde da Islândia respondeu que eles tinham pedido aos psiquiatras encarregados da psiquiatria infantil e da adolescência que dessem a sua opinião, nove meses antes, mas que eles não tinham respondido apesar de um lembrete, e que tinham dito há alguns dias antes que simplesmente não tinham tempo. Eu respondi: “Eles deveriam ter vergonha de si mesmos. As crianças se matam por causa das pílulas e não têm tempo para se preocupar com isso. Que tipo de pessoas são elas? Por que eles se tornaram psiquiatras? Que tragédia para as crianças que eles supostamente devem ajudar”.

Informei Whitaker sobre isso, que respondeu que ele sempre disse que a inação da profissão médica em relação à prescrição de drogas psiquiátricas para crianças e adolescentes é uma forma de abuso e negligência infantil, e de traição institucional.

Não recebi nenhuma resposta da Austrália ou do Reino Unido. Uma carta sem data do Ministério da Saúde da Nova Zelândia disse que a agência reguladora de drogas não havia aprovado o uso da fluoxetina para pessoas com menos de 18 anos de idade. Entretanto, a falta de aprovação das pílulas da depressão em crianças não é um obstáculo para o seu uso, que aumentou em 78% entre 2008 e 2016,17 e um relatório da UNICEF de 2017 mostrou que a Nova Zelândia tem a maior taxa de suicídio do mundo entre adolescentes entre 15 e 19 anos, duas vezes maior do que na Suécia e quatro vezes maior do que na Dinamarca.[18] Quando visitei John Crawshaw, Diretor de Saúde Mental, Psiquiatra-Chefe e Conselheiro- Chefe do Ministro da Saúde, em fevereiro de 2018, pedi-lhe que tornasse ilegal o uso dessas drogas em crianças para evitar alguns dos muitos suicídios. Ele respondeu que algumas crianças estavam tão severamente deprimidas que as pílulas da depressão deveriam ser experimentadas. Quando perguntei qual era o argumento para levar algumas das crianças mais deprimidas ao suicídio com pílulas que não funcionavam para a sua depressão, Crawshaw se sentiu desconfortável e a reunião terminou logo depois.

Os chamados especialistas em prevenção do suicídio parecem ser altamente tendenciosos em relação ao uso de drogas e na forma como escolhem os estudos que decidem citar, apesar de chamarem a sua revisão de sistemática.[19] As estratégias de prevenção de suicídios parecem sempre incorporar o uso de pílulas da depressão, [19] embora aumentem os suicídios, como também foi o caso em um programa de prevenção de suicídios para veteranos de guerra dos EUA.[20]

O título de um dos capítulos do meu livro sobre o crime organizado na indústria farmacêutica é: “Empurrar as crianças para o suicídio com pílulas da felicidade”. [21] Pode ser pior do que isso na área da saúde, dizendo às crianças e aos seus pais que as pílulas são úteis quando elas não funcionam e levam algumas crianças ao suicídio?

Censura nas revistas médicas e na mídia

 É muito difícil publicar qualquer coisa em uma revista psiquiátrica que a corporação psiquiátrica perceba ameaçadora por mostrar as suas ideias errôneas. Os editores de revistas estão frequentemente na folha de pagamento da indústria farmacêutica e os proprietários das revistas têm muitas vezes relações muito próximas com a indústria farmacêutica, o que pode ameaçar retirar o seu apoio se as revistas não prosseguirem com os seus esforços de marketing. Quando o BMJ em 2004 dedicou uma edição inteira a conflitos de interesse e teve uma página de capa mostrando médicos vestidos como porcos empanturrando-se em um banquete com vendedores de drogas como lagartos, a indústria farmacêutica ameaçou retirar a publicidade, e os Annals of Internal Medicine perderam uma receita de publicidade estimada em US$ 1-1,5 milhões depois de publicar um estudo que foi crítico em relação aos anúncios da indústria.[21]

Quando Robert Whitaker deu uma palestra no simpósio inaugural do meu novo Instituto para a Liberdade Científica em 2019, “Censura científica em psiquiatria”, ele apresentou dois tópicos de grande importância para a saúde pública: “Os antidepressivos pioram os resultados a longo prazo?” e “O que sabemos sobre disfunção sexual pós-ISRS?”. [22] Bob observou que nenhum dos 13 e 14 estudos centrais, respectivamente, sobre esses temas havia sido publicado nas cinco principais revistas psiquiátricas. Estas cinco revistas nem sequer pareciam ter discutido os assuntos.

O professor de psiquiatria Giovanni Fava achou tão desesperado publicar resultados que seus pares não gostaram que fundou a sua própria revista, Psychotherapy and Psychosomatics.

A censura nos principais meios de comunicação é enorme. Quando o meu primeiro livro de psiquiatria saiu em sueco, fui convidado a dar uma palestra em Estocolmo e fui entrevistado por jornalistas de dois grandes jornais. Eles estavam muito interessados, mas como nada foi publicado, eu perguntei pelo por quê. Inger Atterstam da Svenska Dagbladet não respondeu aos meus repetidos e-mails, enquanto Amina Manzoor da Dagens Nyheter respondeu que o seu editor achava que seria muito perigoso explicar aos cidadãos suecos que os comprimidos da depressão são perigosos, pois podem causar suicídio! Felizmente, houve uma fenda na censura sueca que nunca dorme, pois um terceiro jornal nacional, Aftonbladet, me permitiu publicar um artigo que preencheu toda a última página.

Quando o meu livro sobre a indústria do crime organizado, que alguns chamam de indústria de drogas, embora cometa crimes mais graves que qualquer outra indústria, [21,23] foi publicado em espanhol em 2014, fui entrevistado por um jornalista do jornal número um de Barcelona, La Vanguardia. A entrevista foi planejada para preencher a última página, que os leitores acham mais atraente do que a primeira página, mas ela nunca foi publicada, embora o jornalista estivesse muito entusiasmado com isso. Soube mais tarde que existiam relações financeiras pouco saudáveis entre o jornal e a indústria farmacêutica.

Também é muito difícil conseguir documentários críticos na TV nacional e, se você for bem sucedido, pode ter certeza de que as melhores partes foram removidas, “para não aborrecer ninguém ou receber demasiadas queixas dos psiquiatras, da indústria farmacêutica ou do ministro”. Eu sei que este é o caso porque tenho aparecido em muitos documentários e falado com muitos cineastas frustrados sobre este tipo de censura. Mesmo depois que os cineastas mataram todos os seus queridos, de modo que o que resta parece tal como o episódio 27 de uma novela britânica inofensiva, haverá uma narração dizendo à plateia que “muitas pessoas estão sendo ajudadas por drogas psiquiátricas”. Realmente?

Também pode ser difícil publicar livros altamente relevantes, como ilustra a próxima história.

Silje Marie Strandberg é uma menina norueguesa que sofria de bullying na escola a partir dos 12 anos de idade e foi admitida em uma enfermaria psiquiátrica com 16 anos de idade,24 mas os psiquiatras a diagnosticaram com depressão moderada e lhe deram Prozac (fluoxetina).

Eles dobraram a dose após três semanas. Silje começou a se cortar, no estômago e nos braços. Ela se tornou agressiva, ouvia uma voz interior e tinha pensamentos suicidas. Foi-lhe receitado Truxal (clorprotixeno), um neuroléptico, e apenas três dias depois ela viu um homem com uma túnica e um capuz negro que disse que ela estava prestes a morrer e ordenou que ela se afogasse em um rio. Ela lutou e chorou quando ele falou com ela; ela disse que não queria morrer, mas ele estava lá o tempo todo, dizendo- lhe que ela não merecia viver. Ela foi para o rio chorando e dizendo que não o faria. Ela voltou a subir.

Ela nunca tinha tido tais sintomas até ter tomado drogas, nem depois de ter deixado de tomá-las.

A psiquiatria roubou 10 anos da vida de Silje onde ela só piorou cada vez mais, com graves danos pessoais e muitas tentativas de suicídio. Ela foi colocada em cintos 195 vezes, foi diagnosticada com transtorno esquizoafetivo, foi isolada e recebeu eletrochoques.

Após 7 anos em psiquiatria, ela conheceu uma cuidadora que viu uma garota por detrás do diagnóstico e cuidou dela. Este esforço humano é a razão pela qual Silje é saudável hoje em dia.

Em 2016, Silje e uma cineasta vieram a Copenhague para me filmar para um documentário sobre a sua vida. Silje tinha um acordo com uma editora de livros sobre o que ela percebia ser uma das histórias de sucesso da psiquiatria. Ela queria me fazer algumas perguntas, incluindo se a depressão é devida a um desequilíbrio químico e sobre o que era a teoria da serotonina.

Eu disse a Silje que o seu percurso era tudo menos uma história de sucesso e que ela havia sido seriamente prejudicada pela psiquiatria. Ela aceitou as minhas explicações, mas quando a sua “carreira” psiquiátrica deixou de ser uma história de sucesso, e sim um escândalo, a editora não quis publicar o seu livro! A editora não queria que ela contasse que os medicamentos que lhe foram prescritos foram o motivo pelo qual ela ficou tão doente durante a sua estada no hospital psiquiátrico.

Silje foi medicada por 95 médicos diferentes. Ela recebeu 21 medicamentos psiquiátricos diferentes: 5 pílulas da depressão, 9 neurolépticos, lítio, 2 antiepilépticos e 4 sedativos/ hipnóticos. Esta não é uma medicina baseada em evidências:

Nome comercial Nome genérico Tipo de droga
Fontex fluoxetina pílula da depressão
Cipramil citalopram pílula da depressão
Effexor venlafaxine pílula para depressão
Zoloft sertralina pílula da depressão
Tolvon mianserin pílula da depressão
Risperdal risperidone neuroléptico
Leponex clozapina neuroléptico
Largactil clorpromazina neuroléptico
Seroquel quetiapina neuroléptico
Zeldox ziprasidone neuroléptico
Abilify aripiprazole neuroléptico
Zyprexa olanzapina neuroléptico
Truxal clorprothixene neuroléptico
Trilafon perfenazina neuroléptico
Lítio lítio “estabilizador de humor”
Tegretol carbamazepina anti-epiléptico
Orfiril valproate anti-epiléptico
Alopam oxazepam sedativo/hipnótico
Stesolid diazepam sedativo/hipnótico
Imovane zopiclone sedativo/hipnótico
Stilnoct zolpidem sedativo/hipnótico
Vallerga alimemazina anti-histamínico

 

O documentário é muito bom, informativo e profundamente comovente. [24] Ele pode ser visto gratuitamente. Seu título é “A pílula da felicidade”: Ela sobreviveu 10 anos de ‘tortura’ na psiquiatria. Silje e a cuidadora que a salvou das garras da psiquiatria viajam ao redor do mundo e dão palestras em conexão com a exibição do filme.

Aqui está outro relato de censura, que envolveu a dinamarquesa Lundbeck, fabricante de medicamentos, que vende várias pílulas da depressão e neurolépticos. [25]

O festival de documentários de Copenhague, CPH: DOC, o maior do mundo, mostrou um filme norueguês muito comovente, “Causa da morte: desconhecida”, em 2017. [26] Esta é uma forma alternativa de disfarçar as mortes em psiquiatria com neurolépticos, sendo uma outra “morte natural”. O filme teve estreia mundial em Copenhague. É sobre a irmã da cineasta que morreu muito jovem depois o que seu psiquiatra prescreveu uma overdose de olanzapina (Zyprexa), o que a transformou num zumbi, como o filme mostra claramente. O psiquiatra dela era tão ignorante que nem sabia que a olanzapina pode causar morte súbita. Eu apareci no filme e a cineasta, Anniken Hoel, pediu aos organizadores que me colocassem no painel de discussão. Meu nome foi o único no anúncio: “Medicina ou manipulação? Filme e debate sobre a indústria de medicamentos psiquiátricos com Peter Gøtzsche.

Sete dias antes do filme ser exibido, fui expulso do painel sob o pretexto de que os organizadores não conseguiam encontrar um psiquiatra disposto a debater comigo. Aconteceu que a Fundação Lundbeck havia concedido uma importante subvenção ao festival. Parece ser um fundo independente, mas não é. Seu objetivo é apoiar as atividades comerciais da Lundbeck. CPH: DOC nunca me contatou sobre isso, mesmo que eu pudesse ter nomeado vários psiquiatras dispostos a debater comigo.

O painel incluiu Nikolai Brun, chefe de pessoal, recentemente empregado pela Agência Dinamarquesa de Medicamentos após uma longa carreira na indústria de drogas, e o psiquiatra Maj Vinberg, que tinha conflitos de interesse financeiros em relação com quem? Sim, é claro: Lundbeck (e AstraZeneca). Ela é muito positiva em relação às drogas psiquiátricas e publicou um completo disparate sobre a depressão ser hereditária e observável nos escaneamentos cerebrais.

No início daquele ano, eu havia respondido a declarações que ela havia feito em uma revista dinamarquesa financiada pela indústria, onde ela havia caracterizado a mais completa meta-análise das pílulas da depressão já feita [27] como sendo “uma campanha de difamação contra as drogas antidepressivas… discussões populistas duvidosas… ginástica na poltrona… realizada por um grupo de médicos, estatísticos e estudantes de medicina sem conhecimentos especiais sobre psiquiatria e, portanto, transtornos depressivos” (o que não era verdade). Esta meta-análise nos disse que as pílulas da depressão não funcionam e são prejudiciais.

Respondi aos delírios de Vinberg na mesma revista [28] explicando que eu havia publicado o artigo, “A reunião foi patrocinada por comerciantes de morte”,[29] que incluía AstraZeneca, um dos benfeitores de Vinberg.

O debate do painel foi uma farsa total. Depois de 25 minutos chatos, exceto as contribuições da cineasta, restaram apenas cinco minutos. Um ex-paciente interrompeu Brun, que havia falado sem parar, gritando: “Perguntas!”. Muitas pessoas na plateia haviam perdido entes queridos, mortos por drogas psiquiátricas, e tinham ficado cada vez mais zangadas porque os painelistas só discutiam entre si e não queriam envolver a plateia. Havia tempo para apenas três perguntas.

Uma mulher perguntou por que os neurolépticos não haviam sido retirados do mercado, pois matavam pessoas. Brun respondeu que não era especialista em drogas psiquiátricas e depois embarcou em outra conversa interminável, sobre drogas cancerígenas.

Eu gritei: “Perguntas do público“! Um jovem disse que havia tentado sair de seus comprimidos da depressão várias vezes sem sucesso e sem qualquer ajuda dos médicos. Anders, mais tarde, o ajudou a se retirar.

A última pergunta foi feita pela cineasta dinamarquesa Anahi Testa Pedersen, que tinha feito um filme sobre mim e suas próprias experiências como paciente psiquiátrica, que teve estreia mundial no mesmo cinema sete meses depois. [30] Anahi perguntou por que eu fui retirado do painel já que eu poderia ter dado uma boa contribuição. Um porta-voz do festival respondeu que eles tinham perguntado a “muitas pessoas”, mas que ninguém queria debater comigo. Anahi interrompeu e nomeou um psiquiatra que gostaria de ter vindo. O porta-voz não respondeu, mas disse que como o filme era crítico, não havia necessidade da minha presença; eles precisavam de alguém para debater as mensagens do filme.

No meio dessas intermináveis desculpas, alguém na plateia gritou: “Não há debate!” O porta-voz respondeu que me convidariam para “o debate de amanhã”, o que eu não aceitei porque tinha sido expulso da estreia mundial do filme.

Segundos antes que o tempo previsto acabasse, eu me levantei e gritei (porque eu duvidava, eu iria pegar o microfone): “Estou realmente aqui. Debato com psiquiatras de todo o mundo, mas não estou autorizado a fazer isso em minha cidade natal”. Houve uma grande gargalhada e aplausos, mas a plateia ficou furiosa. Foi um insulto profundo para eles mostrar um filme sobre uma jovem morta por uma overdose de Zyprexa, sem permitir que qualquer pessoa que tivesse perdido um membro da família da mesma maneira dissesse alguma coisa. Foi uma rejeição brutal e uma prostração total para a Lundbeck.

Anahi escreveu sobre o caso em uma revista jornalística. [31] Ela apontou que antes de eu ser removido, os organizadores haviam anunciado que haveria um forte foco no consumo excessivo de drogas psiquiátricas e se as drogas seriam o melhor tratamento para os transtornos psiquiátricos. Após a minha remoção, o foco passou a estar nas relações entre médicos, pacientes e indústria, o que não poderia ser uma razão para me remover, pois este foi o assunto do meu livro premiado de 2013 que apareceu em 16 idiomas. [21]

CPH:DOX escreve em seu site: “Temos muitos anos de experiência com acordos de patrocínio que atendem tanto a empresas individuais quanto ao festival. Todas as colaborações são criadas em estreito diálogo com essas iniciativas individuais e são baseadas em visões, desafios e oportunidades comuns”. [31]

Em resposta ao artigo de Anahi, Vinberg escreveu que era uma pena que um debate, que deveria ser sobre a melhoria do tratamento futuro das pessoas que sofrem de um transtorno mental grave na forma de esquizofrenia, terminasse em um debate bastante indiferente sobre os indivíduos (eu). [31] Sua declaração não concordou com as suas respostas evasivas durante o debate do painel.

Outro exemplo de censura envolveu a televisão pública dinamarquesa. O documentarista independente Janus Bang e sua equipe haviam me seguido ao redor do mundo por quatro anos, pois queriam que eu desempenhasse um papel central em seus documentários sobre como a psiquiatria é horrível e mortal. Janus encontrou um bloqueio de estrada tão grande que ele precisava se comprometer amplamente para conseguir alguma coisa na TV. Ele conseguiu trazer três programas interessantes em 2019, “O dilema da psiquiatria”, mas o debate público que ele tanto desejava para que grandes reformas fossem introduzidas estava totalmente ausente. Havia locuções de voz totalmente embaraçosas e totalmente falsas fazendo um serviço para a Lundbeck e psiquiatras (a exportação de drogas é a nossa maior fonte de renda). E eu? Eu não tinha permissão para aparecer.

Os jornalistas me disseram que a razão pela qual a TV pública dina- marquesa não ousa desafiar a psiquiatria ou a Lundbeck hoje é devido a dois programas enviados em abril de 2013.

Fui entrevistado para o primeiro programa, “Dinamarca em comprimidos”, em três partes, onde o comediante e jornalista Anders Stjernholm informou aos telespectadores sobre a depressão e o TDAH.

Esta foi a introdução: [32]

“No programa sobre antidepressivos … vamos encontrar Anne, que já aos 15 anos de idade lhe receitaram pílulas da felicidade e hoje vive com efeitos colaterais maciços. E Jimmy aos 53 anos, que, após 4 anos  tomando pílulas da felicidade, perdeu o seu impulso sexual. Agora acontece que ele não deveria ter tomado as pílulas. Jimmy não estava deprimido, mas sofria de estresse. No programa sobre drogas TDAH, Anders Stjernholm questiona a forma como o diagnóstico é feito. Ele se encontra com o menino Mikkel, que foi diagnosticado com TDAH por um psiquiatra que nunca o havia conhecido”.

A mensagem geral era que os comprimidos da felicidade são perigosos e são prescritos com muita frequência. Mas já no dia seguinte, o golpe do império psiquiátrico voltou. Em uma revista para jornalistas, o professor de psiquiatria Poul Videbech disse: [33] “É uma campanha de medo que pode custar a vida das pessoas. Conheço vários exemplos de suicídio depois que amigos e familiares aconselharam o paciente a largar a medicação antidepressiva. É claro que não posso dizer com certeza que foi por causa da mídia, mas enquanto a oportunidade existir, a mídia deve ser muito matizada em sua cobertura deste tópico”.

Videbech comparou isto com os jornalistas que faziam programas aconselhando os pacientes com diabetes a largar a sua insulina. Mesmo que ele, ao mesmo tempo, negue ferozmente que acredita na mentira sobre o desequilíbrio químico (ver Capítulo 2). Parece uma dissonância cognitiva.

Videbech ficou furioso por ter sido deixado de fora do programa e se queixou sobre isso no Facebook e na TV dinamarquesa: “Ficou claro … que eles não queriam informações reais sobre esses problemas – algo do qual os telespectadores podiam realmente se beneficiar – mas, em vez disso, tinham escolhido antecipadamente algumas opiniões que procuravam confirmar”. Videbech descreveu como o jornalista voltou a fazer-lhe perguntas de acordo com a sua própria agenda, que era que “os antidepressivos não funcionam”; “se funcionam, causam suicídio”; e “quando se os interrompe, causam sintomas horríveis de abstinência”.

Videbech é considerado como uma figura de destaque na psiquiatria dinamarquesa quando se trata de depressão e é muito frequentemente entrevistado. Isto lhe dá status de oráculo, que ele usa para influenciar a agenda pública e para moldar o que as pessoas pensam sobre a depressão e as pílulas da depressão. Ele não está acostumado a ser contraditado ou contornado, e isto o deixou furioso.

Fui eu quem documentou para Stjernholm que as pílulas da depressão não funcionam; que elas aumentam o risco de suicídio; e que os pacientes podem ter sintomas horríveis de abstinência quando tentam detê-los.

Houve muitos comentários ao artigo sobre a Videbech na revista. Um observou que eu estava certo que a mídia tem sido acrítica em sua cobertura das drogas psiquiátricas. Ele apontou que muitas pessoas haviam tentado advertir contra elas por muitos anos, mas que haviam sido silenciadas ou demitidas de suas posições de onde podiam chegar à população.

Como já observado, isto também aconteceu comigo, sobre o qual escrevi um livro. [33] Não me afetou economicamente na medida em que estou bem, em contraste com tantos outros que foram injustificadamente demitidos quando falaram a verdade ao poder. Gosto do meu trabalho como pesquisador em tempo integral, palestrante, escritor e consultor indepen- dente, por exemplo, em processos judiciais contra psiquiatras ou empresas farmacêuticas.

Outro comentador achou incrivelmente manipulador que Videbech tenha afirmado que as pessoas cometeram suicídio depois de parar a droga e tenha comparado isto com diabéticos que precisam de insulina: “Este é um exemplo típico da retórica que tem atormentado o debate sobre os compri- midos da depressão durante anos … É razoável prejudicar muitas pessoas para ajudar as poucas”?

Um comentário observou que era interessante ver que não havia praticamente nenhum programa sobre a afilação das drogas na psiquiatria e que cabe exclusivamente à opinião do médico o que pode acontecer com o paciente. Observou que as pessoas muitas vezes acabam tomando medicamentos por toda a vida.

Outro mencionou que era membro de um grande e diversificado grupo de pessoas que haviam advertido durante anos contra o uso acrítico de drogas e que dispensam o seu tempo ajudando as vítimas, seja porque haviam perdido um ente querido, ter visto a vida de uma pessoa próxima a elas ser destruída, seja porque as haviam experimentado em seu próprio corpo. “MAS!! toda vez que abrimos um debate sobre este tema, somos acusados de não pensar naqueles que se beneficiam dos remédios; somos confrontados com o argumento que você [Videbech] também usa, que nós não nos importamos com as vítimas da boa causa e que as nossas informações podem ter consequências fatais!! Pelo amor de Deus, como devemos conseguir daí um debate matizado??? … Quase diariamente, somos contatados por pessoas que, também por médicos especialistas, estão sendo pressionadas a tomar antidepressivos para todos os tipos de indicações. Portanto, algo drástico tem que acontecer para que não hajam mais vítimas”.

Uma pessoa se perguntava porque não ouvimos nada da  psiquiatria sobre os suicídios e as tentativas de suicídio que as drogas causam. “Porque são descartadas como não ocorrendo. No entanto, estava na lista de efeitos colaterais na bula do medicamento que recebi. E eu senti o impulso em meu próprio corpo. MAS me foi dito que era a minha depressão que era o gatilho para pensamentos e planos suicidas. O estranho nisso foi que o impulso veio logo após eu ter começado a tomar o medicamento … Mas a conclusão do médico e de outros envolvidos foi que a minha dose deveria ser aumentada, o que eu felizmente declinei e decidi afilar a droga por conta própria. Que as pessoas mudam totalmente sua personalidade – tornam-se agressivas e de cabeça quente, paranoicas, etc., também é descartado”.

Apenas quatro dias depois, o jornalista Poul Erik Heilbuth mostrou o seu fabuloso documentário de 70 minutos, “A sombra escura da pílula”, que já havia sido exibido internacionalmente.[35] Sua pesquisa foi excelente, e ele documentou em detalhes como Eli Lilly, GlaxoSmithKline e Pfizer esconderam que as suas pílulas da depressão causam algumas pessoas a se matarem ou a cometerem assassinatos, ou que fazem com que pessoas completamente normais e pacíficas comecem de repente uma onda de roubos violentos em lojas e postos de gasolina, sobre os quais eles não conseguiram se explicar depois e ficaram confusas a respeito. As pílulas mudaram totalmente a personalidade dessas pessoas.

Sobre a teoria do desequilíbrio químico, disse o material de fundo (não mais disponível): “Há muito poucos especialistas que mantêm a teoria de hoje em dia. O professor Tim Kendall – o chefe do órgão governamental que aconselha todos os médicos ingleses – chama a teoria de bobagem e disparate. O professor Bruno Müller-Oerlinghausen – o líder da Comissão de Médicos alemães por 10 anos – chama a teoria de uma loucura e de uma simplificação irracional. Ambos os professores dizem que a teoria tem funcionado como uma pura estratégia de marketing para as empresas porque elas poderiam vender às pessoas a percepção de que sua depressão tem algo a ver com um desequilíbrio químico – e que tomar um comprimido pode ajudar a corrigir esse desequilíbrio. Os dinamarqueses que visitarem o site oficial dinamarquês sobre saúde (escrito por professores dinamarqueses de psiquiatria) verão a essência da teoria: Os antidepressivos afetam a quantidade de mensageiros químicos no cérebro e neutralizam o desequilíbrio químico encontrado na depressão”.

Heilbuth tinha Blair Hamrick em seu filme, um vendedor americano da GlaxoSmithKline que disse que a sua palavra de ordem para a paroxetina era que se tratava da droga da felicidade, do tesão e do corpo esbelto. Disseram aos médicos que ela fará você mais feliz, perder peso, parar de fumar, aumentar a sua libido – todos deveriam estar a tomar esta droga. Hamrick copiou secretamente documentos, e GlaxoSmithKline recebeu uma multa de US$ 3 bilhões em 2011 por pagar propinas aos médicos e pela comercialização ilegal de várias drogas, também para crianças.[21]

Um editorial em um dos jornais nacionais da Dinamarca, Politiken, condenou o documentário de uma forma invulgarmente hostil, e Heilbuth respondeu.36 Politiken chamou o seu documentário de “imensamente manipulador”, “sensacionalista”, “simplesmente procurando confirmar ou verificar a tese que o programa tinha concebido como premissa”, e chamaram Müller-Oerling-hausen de “pensador confuso”.

O “pensador confuso” dá palestras em todo o mundo, inclusive em um simpósio organizado meio ano antes pelo Grupo Antidepressivo da Universidade Dinamarquesa. Ele foi muito claro e bem articulado durante todo o filme, e o que ele disse foi absolutamente correto.

David Healy é o professor de psiquiatria que viu os documentos mais secretos nos arquivos das empresas farmacêuticas, como especialista em processos judiciais, e foi também uma das principais fontes do filme.

Heilbuth contou as histórias de várias pessoas que haviam se matado ou de outras pessoas. Já dois dias depois de seu documentário, debati com o professor de psiquiatria Lars Kessing na TV ao vivo no programa noturno sobre suicídios causados pelas pílulas da depressão. Trechos aparecem no filme de Anahi.30 Kessing negou totalmente as advertências da ciência e das agências de drogas, dizendo que sabemos com grande certeza que os ISRSs protegem contra o suicídio. Ele acrescentou que o risco de suicídio é grande quando as pessoas param os ISRSs, mas deixou de mencionar que isso se deve aos efeitos nocivos dos comprimidos, pois os pacientes ficam com os terríveis sintomas da abstinência quando os interrompem subitamente.

Três dias depois, eu estava novamente em um debate na TV com Kessing, desta vez sobre como poderíamos reduzir o consumo das pílulas da depressão. Kessing alegou que eles não são perigosos. O diretor de pesquisa da Lundbeck, Anders Gersel Pedersen, também estava no estúdio e disse que o mais perigoso não é tratar os pacientes, e ele afirmou que os pacientes não se tornam viciados, mas que têm uma recaída da doença quando param de tomar os comprimidos. Kessing alegou que talvez apenas 10% daqueles que visitam o médico de família não são ajudados pelo medicamento, um comentário em tanto sobre os medicamentos que não funcionam e onde os testes defeituosos mostraram um efeito não de 90%, mas apenas de 10%. Quando Kessing foi perguntado pelo entrevistador como o consumo de pílulas poderia ser reduzido – não importa o que ele possa pensar sobre o seu tamanho – ele não respondeu à pergunta. Ele disse que tínhamos certeza de que havia uma incidência crescente de depressão moderada a grave nos últimos 50 anos. Eu respondi que não podíamos dizer porque os critérios para o diagnóstico da depressão haviam sido reduzidos o tempo todo durante este período.

Tenho experimentado que quando os jornalistas reagem violentamente e vão diretamente contra as evidências científicas e as advertências das autoridades, é praticamente sempre porque pensam que os comprimidos os ajudaram ou a alguém próximo a eles, ou porque um parente trabalha para Lundbeck ou é psiquiatra. Tenho sido exposto a muitos ataques extremamente rancorosos. É triste que os jornalistas joguem ao mar tudo o que aprenderam na escola de jornalismo e explodam numa cascata de raiva e ataques ad hominem, mas isso pode acontecer se você disser a verdade sobre as pílulas da depressão. Você está atacando uma religião.

Como exemplo, uma jornalista estampou em sua manchete: “Eu tomo pílulas da felicidade, senão eu estaria morto”.[37] Ela me chamou de uma pessoa em risco de vida, desiludida, não em completo equilíbrio comigo mesmo, mas uma pessoa que poderia precisar de consultar um psiquiatra, e que deveria ter vergonha de mim mesmo e ser privado do meu título de professor. “Meu desejo é que alguém possa deter o professor louco”. Ela escreveu isto em um jornal tabloide, mas eles não deveriam publicar tais delírios.

Em um debate de rádio, o Presidente Nacional da MIND, Knud Kristensen, argumentou que alguns de seus pacientes haviam dito que as pílulas da depressão haviam salvado as suas vidas. Eu respondi que era um argumento injusto porque todos aqueles que as pílulas tinham matado não podiam levantar da sepultura e dizer que as pílulas os mataram.

Vou terminar com a pior parte. Nunca tinha visto uma instituição admitir voluntariamente que ela educa os jornalistas para escrever artigos com erros, repetindo sem críticas as narrativas fortemente enganosas criadas pela indústria das drogas e por psiquiatras corruptos, para o grande mal de nossos pacientes e sociedades.[21,38] Mas lá estava, em 2020, em um país que já negociava abundantemente em notícias falsas.

O Carter Center’s Guide for Mental Health Journalism [o Guia do Centro Carter para o Jornalismo em Saúde Mental] é o primeiro de seu  tipo nos EUA.[39] Os repórteres são instruídos a escrever que as condições de saúde comportamentais são comuns e que as pesquisas sobre as causas  e tratamentos dessas condições levaram a importantes descobertas na última década. Eles devem informar ao público que os esforços de prevenção e intervenção são eficazes e úteis. Isto significa drogas, é claro, e é a mesma mensagem que a Associação Psiquiátrica Americana vem promovendo há mais de 40 anos.

Tudo isso é claramente errado. Mas continua: Os jornalistas devem identificar exatamente o que um profissional diz que está errado com um paciente e usar essa informação para caracterizar o estado mental de uma pessoa. Não há incentivo para que os jornalistas considerem como as pessoas assim diagnosticadas se veem, ou se aceitam o seu rótulo de diagnóstico.

Alguns dos fatos que os jornalistas são chamados a incluir são: “Os transtornos de uso de substâncias são doenças do cérebro”. O guia explica que, “embora a ciência não tenha encontrado uma causa específica para as muitas condições de saúde mental, uma complexa interação de fatores genéticos, neurobiológicos, comportamentais e ambientais muitas vezes contribuem para essas condições”. Os repórteres não são encorajados a explorar o porquê de a carga da saúde pública de transtornos mentais ter aumentado dramaticamente nos últimos 35 anos, ao mesmo tempo em que o uso de drogas psiquiátricas explodiu.[40]

Segundo o Centro Carter, o DSM-5 é um guia confiável para a realização de diagnósticos. Não há menção ao fato de que os diagnósticos são construções totalmente arbitrárias criadas por consenso entre um pequeno grupo de psiquiatras, ou que eles não têm validade, ou que os psiquiatras discordam totalmente quando solicitados a examinar os mesmos pacientes, ou que a maioria das pessoas saudáveis obteriam um ou mais diagnósticos se testadas.

O Guia leva os repórteres a fazer eco da mensagem da Associação Psiquiátrica Americana [APA] de que as condições psiquiátricas muitas vezes não são diagnosticadas e não são tratadas, e que o tratamento psiquiátrico é eficaz. O “tratamento psiquiátrico” é um eufemismo para as drogas, mas evita qualquer discussão sobre quão eficazes e prejudiciais elas são e faz com que todos mordam a isca porque o “tratamento” finge cobrir também a psicoterapia, embora esta raramente seja oferecida.

O Guia afirma que entre 70% e 90% das pessoas com um problema de saúde mental experimentam uma redução significativa nos sintomas e melhora na qualidade de vida após receberem tratamento. A fonte desta informação horrivelmente falsa é a Aliança Nacional de Saúde Mental [National Alliance on Mental Illness], uma organização de pacientes fortemente corrompida.[38] É verdade que a maioria das pessoas melhora, mas isso também teria acontecido sem nenhum tratamento. O Centro Carter parece ter “esquecido” por que fazemos ensaios controlados por placebo e, como expliquei no Capítulo 2, as pílulas psiquiátricas não melhoram a qualidade de vida; elas a pioram.

Os repórteres são aconselhados a enfatizar o positivo e evitar o foco nos fracassos dos cuidados psiquiátricos. O Guia não fornece nenhum recurso para obter as perspectivas das pessoas com experiência vivida, a maioria das quais falaria criticamente da sabedoria convencional. Além disso, não há “usuários de serviços” ou grupos sobreviventes discerníveis nos dois principais conselhos consultivos do Centro.

Infelizmente, o Centro Carter é visto como um líder no treinamento de jornalistas sobre como relatar sobre saúde mental. Ele incentiva os jornalistas a agirem como estenógrafos que repetem o dogma convencional.

É difícil ver muita esperança para a América. O Centro Carter foi fundado pela ex-primeira-dama, Rosalynn Carter.

Referências bibliográficas (Capítulo 5)

 1. Drachmann H. Klinikchef må ikke længere arbejde som psykiater. Politiken 2013; Feb 1.

2. Hildebrandt S. Lars Søndergård mistænkes atter for at overmedicinere. Dagens Medicin 2015; Oct 23.

3. Hildebrandt S. ”Det er monstrøse doser af medicin.” Dagens Medicin 2015; Oct 23.

4 Schmidt M. Svar fra ledelsen i Psykiatrien Vest. Dagens Medicin 2015; Oct 13.

5.  Hildebrandt S. Derfor er Lars Søndergårds supervisor sat under skærpet Dagens Medicin 2016; Mar 3.

6. https://illnessquiz.com/schizotypal-personality-disorder-test/.

7 Mayo Clinic. Schizotypal personality disorder. https://www.mayoclinic.org/dis- eases-conditions/schizotypal-personality-disorder/symptoms-causes/syc- 20353919.

8. Börjesson J, Gøtzsche PC. Effect of lithium on suicide and mortality in mood disorders: A systematic review. Int J Risk Saf Med 2019;30:155-66.

9. Svensson P. Så stoppade GU-professor allmänhetens insyn i läkemedelsforskning. Göteborgs-posten 2018; Jan 20. http://www.gp.se/nyheter/g%C3%B6teborg/ s%C3%A5-stoppade-gu-professor-allm%C3%A4nhetens-insyn-i-l%C3%A4ke- medelsforskning-1.5069930.

10 Sternbeck P. Brallorna nere på professorn Elias Eriksson. Equal 2018; Jan 16.

11. Riksdagens Ombudsman. Kritik mot Göteborgs universitet for handläggningen av en begäran om utlämnande av allmänna handlingar m.m. 2017; Dec 20:Dnr 7571-2016.

12. Gøtzsche PC, Gøtzsche PK. Cognitive behavioural therapy halves the risk of repeated suicide attempts: systematic review. J R Soc Med 2017;110:404-10.

13. Sveriges radio. Striden om de antidepressiva medlen. 2017; Aug 28. http://sverigesradio.se/sida/avsnitt/943828?programid=412.

14. Gøtzsche PC. National boards of health are unresponsive to children driven to suicide by depression pills. Mad in America 2020; Mar 15. https:// madinamerica.com/2020/03/children-driven-suicide-depression-pills/.

15. Frankfurt HG. On bullshit. New Jersey: Princeton University Press; 2005.

16. Läkemedelsbehandling av depression, ångestsyndrom och tvångssyndrom hos barn och vuxna. Läkemedelsverket 2016; Dec 8.

17. Barczyk ZA, Rucklidge JJ, Eggleston M, Mulder RT. Psychotropic medication prescription rates and trends for New Zealand children and adolescents 2008- 2016. J Child Adolesc Psychopharmacol 2020;30:87-96.

18. UNICEF Office of Research. Building the future: children and the sustainable development goals in rich countries. Innocenti ReportCard 14; 2017.

19. Hjelmeland H, Jaworski K, Knizek BL, Ian M. Problematic advice from suicide prevention experts. Ethical Human Psychology and Psychiatry 2018;20:79-85.

20. Whitaker R, Blumke D. Screening + drug treatment = increase in veteran Mad in America 2019; Nov 10. https://www.madinamerica.com/2019/11/ screening-drug-treatment-increase-veteran-suicides/.

21. Gøtzsche PC. Medicamentos mortais e crime organizado. Porto Alegre: Bookman; 2016.

22. Videos of talks presented at the inaugural symposium for the Institute for Scientific Freedom. 2019; Mar 9. https://www.youtube.com/playlist?list=PLoJ5D4KQ1G0Z_ZQo5AIIiuuspAKCn c49T.

23. Medawar C, Hardon A. Medicines out of Control? Antidepressants and the conspiracy ofgoodwill. Netherlands: Aksant Academic Publishers; 2004.

24. Stordrange IL. The happy pill. She survived 10 years of ”torture” in https://www.youtube.com/watch?v=T4kVpNmYzBU&t=1s. Version with Norwegian subtitles: https://ingerlenestordrang.wixsite.com/lykkepillen.

25. Gøtzsche PC. Survival in an overmedicated world: look up the evidence Copenhagen: People’s Press; 2019.

26. Hoel A. Cause of death: unknown. 2017; Mar 24. https://www.imdb.com/title /tt6151226/.

27. Jakobsen JC, Katakam KK, Schou A, et al. Selective serotonin reuptake inhibitors versus placebo in patients with major depressive disorder. A systematic review with meta-analysis and Trial Sequential Analysis. BMC Psychiatry 2017;17:58.

28. Gøtzsche PC. Antidepressiva skader mere end de gavner. Dagens Medicin 2017; Mar 15.

29. Gøtzsche P. The meeting was sponsored by merchants of death. Mad in America 2014; July 7. http://www.madinamerica.com/2014/07/meeting-sponsored-mer- chants-death/.

30. Pedersen AT. Diagnosing Psychiatry. https://vimeo.com/ondemand/diagnosingpsychiatryen.

31. Pedersen AT. Debat: Vi har ret til at undre os. Journalisten 2017; May 8.

32 Christensen AS. DR2 undersøger Danmark på piller. 2013; Mar https://www.dr.dk/presse/dr2-undersoeger-danmark-paa-piller.

33. Ditzel EE. Psykiatri-professor om DR-historier: ”Skræmmekampagne der kan koste liv.” Journalisten 2013; Apr 11. https://journalisten.dk/psykiatri-professor- om-dr-historier-skraemmekampagne-der-kan-koste-liv/.

34. Gøtzsche PC. Death of a whistleblower and Cochrane’s moral collapse. Copen- hagen: People’s Press; 2019.

35. Heilbuth PE. Pillens mørke skygge. DR1 2013; Apr 14.

36. Heilbuth PE. Dårlig presseetik, Politiken. Politiken 2013; Apr 19.

37. Thisted K. Jeg tager lykkepiller, ellers var jeg død! Ekstra Bladet 2015; Oct 24. 38 Gøtzsche PC. Deadly psychiatry and organised denial. Copenhagen: People’s Press; 2015.

38. Spencer M. The Carter Center’s guide for mental health journalism: don’t question, follow the script. Mad in America 2020; Feb 23. https://www.madinamerica.com/ 2020/02/carter-center-guide-mental-health- journalism/.

39. Whitaker R. Anatomy of an epidemic, 2nd edition. New York: Broadway Paper- backs; 2015.

40. Gøtzsche PC. Psychiatry gone astray. 2014; Jan 21. https://davidhealy.org/psychi- atry-gone-astray/.

41. Gøtzsche PC. Unwarranted criticism of “Psychiatry cone astray.” Mad in America 2014; Feb 20. https://www.madinamerica.com/2014/02/unwarranted-criticism- psychiatry-gone-astray/

42. Jorm AF, Korten AE, Jacomb PA, et al. ”Mental health literacy”: a survey of the public’s ability to recognise mental disorders and their beliefs about the effect- tiveness of treatment. Med J Aus 1997;166:182-6.

43. Gøtzsche PC, Vinther S, Sørensen A. Forced medication in psychiatry: Patients’ rights and the law not respected by Appeals Board in Denmark. Clin Neuro- psychiatry 2019;16:229-33.

44. Gøtzsche PC, Sørensen A. Systematic violations of patients’ rights and lack of safety: cohort of 30 patients forced to receive antipsychotics. Ind J Med Ethics 2020. Published online Aug 12. Free access

 

[trad. e edição Fernando Freitas]

A ‘loucuralização’ do Fascismo é a Absolvição da Política Genocida

0

Nos últimos meses alguns assuntos ligados à saúde mental têm mobilizado as pautas jornalísticas e as conversas do dia-a-dia. Porém, desde a publicação do chamado “revogaço” em dezembro de 2020, nenhum tema tem me causado mais incômodo do que a insistente ideia de um processo de interdição do presidente da república.

Alguns partidos da chamada “esquerda” têm tentado essa estratégia e não é de agora, no entanto, mais recentemente deu-se entrada em um processo cujo mérito é justamente a interdição do presidente. Cresce o número de movimentos sociais e entidades coletivas apoiando os argumentos e o discurso ganha força na mídia, ainda mais após a entrevista de um reconhecido psiquiatra forense afirmando um possível diagnóstico de personalidade de Bolsonaro.

Minha análise sobre esta situação é que, para esses setores, parece que não houve nenhum crime (de improbidade, corrupção, ligação com milícias, genocídio etc.) que este homem tenha cometido que seja mais passível de julgamento ou mais grave do que ser supostamente um “louco”. Portanto, só por este motivo conseguiríamos retirar o presidente de seu cargo e ficaríamos livres da tragédia que vive o país.

Esse debate facilmente caiu na conversa do povo e não é incomum as pessoas se referirem ao presidente como um “louco genocida”, “insano” ou qualquer outro adjetivo que possa caracterizá-lo como alguém que está em sofrimento psíquico. Porque pensando bem, que tipo de ser humano seria capaz de deixar mais de 300 mil pessoas morrerem, sem se horrorizar ou se sensibilizar com essas mortes? Só alguém que é “louco”, responderão.

Esta resposta – seja de especialistas em saúde mental ou não – ocorre porque somos socializadas e ensinadas a pensar que a maldade e a falta de sensibilidade são coisas de pessoas que devem ter algum tipo de patologia. E, assim, apoiadas nos ombros dos preconceitos historicamente construídos sobre as pessoas em sofrimento psíquico, esse discurso ganha força. Inclusive, ganha materialidade nas vozes de especialistas da área.

Não é incomum encontrar na internet postagens de pessoas explicando passo a passo as razões de um diagnóstico psicopatológico para o presidente. Diagnósticos estes, que, por sua vez, apoiam-se em um modelo retrógrado, eugênico e que listam uma série de comportamentos considerados inadequados e os denominam “sintomas”, que postos lado a lado formam uma “doença”. São considerados inadequados comportamentos que quebram com a ideologia hegemônica, que escancaram as violências cometidas pelo Estado a serviço da burguesia branca para manutenção dos status quo. A burguesia é violenta e mata trabalhadoras e trabalhadores que atrapalham a manutenção de seu poder e lucro.

As raízes sociais que fazem o Sr. Jair Bolsonaro agir como um genocida, portanto, são as mesmas que acabaram com as políticas assistenciais, são as mesmas que tentam destruir a nossa política de Saúde Mental. Essa é a mesma lógica das pessoas que chamam o genocida da presidência de “louco”, mas denominam de doutores os profissionais da área da saúde adeptos de formas de atuação pautadas em políticas historicamente genocidas e que apoiam as práticas de tortura e modelos manicomiais. O que no Brasil foi expresso na política desumanizadora e violenta dos hospitais psiquiátricos, denunciada no “Holocausto Brasileiro” (Arbex, 2019).

Como escreveu Pinheiro (2020) a patologização do fascismo é um terraplanismo dos setores de esquerda, pois é preciso afirmar que “os delírios de Bolsonaro não são fantasias de um surto, mas reprodução de uma ideologia violenta, sua incompetência e apelo ao senso-comum não tem nada de doentio, pois é tão somente a premiação da ignorância e da lógica formal-abstrata promovida pela decadência ideológica da hegemonia que se apega a qualquer forma tosca para a manutenção do poder e do lucro.”

Usar de instrumento de interdição psiquiátrica, para combater um projeto político em curso, é escoar pelo ralo as pautas da Luta Antimanicomial. É se negar ao efetivo e necessário combate político à ideologia burguesa, é patologizar e, portanto, desresponsabilizar o fascista por seus atos articulados para aumentar a superexploração da classe trabalhadora brasileira. É absolvê-lo das mortes – pela COVID-19 ou pela bala da PM – de grande parte de seu “exército industrial de reserva” e a “massa marginal” que, segundo Lélia Gonzalez (1979/2020), são as subdivisões da classe trabalhadora, composta, majoritariamente, por mulheres negras.

Por fim, patologizar o fascismo é novamente abandonar as lutas fundamentais para a manutenção de nossa existência! É optar por não enfrentar política e ideologicamente (repito), os problemas estruturais de nossa sociedade, é abrir mão da possibilidade da construção de uma nova sociedade com distribuição de renda, de terra, moradia, educação… que não nos enlouqueça!

Referências Bibliográficas

ARBEX, Daniela (2019). Holocausto Brasileiro: Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil. Intrínseca.

GONZÁLEZ, Lélia. (1979/2020). Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos lingüísticos e políticos da exploração da mulher[1]. In: Por um Feminismo Afro Latino Americano. Org. Rios, F. & Lima, M. Zahar.

PINHEIRO, Wescley (2020). A Loucura de Jair Bolsonaro. In: Mad In Brasil. Disponível em: https://madinbrasil.org/2020/08/a-loucura-de-jair-bolsonaro/

[1] Trabalho originalmente apresentado como comunicação no 8º Encontro Nacional da Latin American Sutidies Association, em Pittsburgh em 1979.

—-

Mad in Brasil recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são concebidos para servir de fórum público para uma discussão – em termos gerais – sobre a psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as dos próprios escritores.

Taxa de recuperação seis vezes maior para aqueles que param os antipsicóticos dentro de dois anos

0

Um novo estudo de Martin Harrow, Thomas Jobe e Liping Tong descobriu que as chances de recuperação de “doenças mentais graves” eram seis vezes maiores se o paciente interrompesse os antipsicóticos dentro de dois anos. O estudo seguiu os diagnósticos de pacientes com esquizofrenia e psicose afetiva (bipolar e depressão com características psicóticas) por 20 anos. O estudo foi publicado em Medicina Psicológica.

Especificamente, os pesquisadores descobriram que aqueles que pararam de tomar a medicação antipsicótica dentro de dois anos após a primeira ingestão da droga tinham quase seis vezes (5.989) mais chances de se recuperar de “doença mental grave” e tinham apenas 13,4% de probabilidade de serem re-hospitalizados.

“Independentemente do diagnóstico, após o segundo ano, a ausência de antipsicóticos previu uma maior probabilidade de recuperação e menor probabilidade de re-hospitalização nos seguimentos de acompanhamento subseqüentes após o ajuste para os fatores que confundem”, escrevem os pesquisadores.

Que “após o ajuste para os fatores que confundem” é importante. Os críticos de descobertas como estas argumentam que os dados são explicados por pessoas com sintomas mais graves estarem tomando a droga, enquanto pessoas com psicose menos grave deixam de tomar a droga – apesar de não haver evidência de que este seja o caso.

Entretanto, os pesquisadores deram o melhor de si para explicar esta possibilidade, ajustando seu modelo para levar em conta fatores tais como o diagnóstico específico e/ou a gravidade básica dos sintomas. Isto é chamado de “controle para” ou “ajuste para” o fator de confusão.

Harrow et al. controlaram esta confusão, ao exercerem controle sobre os “potenciais prognósticos”. Na primeira interação, os participantes foram avaliados em várias medidas de “prognóstico” (o Valliant, o Symptomatic Prognostic Index de Stephen e o Prognostic Index de Zigler). Estas medidas permitiram aos pesquisadores classificar os participantes em potencial de prognóstico fraco versus potencial moderado – ou probabilidade de recuperação. As medidas incluíram itens como gravidade dos sintomas e nível de educação; idade, sexo, raça, uso de drogas e álcool, estado civil, e o número de hospitalizações anteriores também foram contabilizados.

“Mesmo quando a confusão por indicação para prescrição de medicamentos antipsicóticos é controlada, os participantes com esquizofrenia e psicose afetiva fazem melhor do que os grupos medicados”.

De acordo com os pesquisadores, alguns estudos mostraram que alguns pacientes obtêm um benefício a curto prazo com o uso de medicamentos antipsicóticos. A maioria desses estudos ocorre durante algumas semanas a meses. No entanto, pessoas diagnosticadas com esquizofrenia, transtorno bipolar e até mesmo depressão são frequentemente prescritos medicamentos antipsicóticos para uso a longo prazo para o resto de suas vidas, em muitos casos.

Mas a pesquisa sobre resultados a longo prazo encontrou um quadro perturbador. De acordo com Harrow et al., “Estudos múltiplos indicam que após 2/3 anos de tratamento antipsicótico, pessoas com esquizofrenia e psicose afetiva não medicada começam a ter melhor desempenho do que pacientes com aqueles medicamentos antipsicóticos prescritos”.

Então, por que tomar um medicamento antipsicótico está associado a resultados piores? De acordo com Harrow et al., a psicose super-sensível induzida por dopamina anti-psicótica pode ter um papel importante. Como os antipsicóticos bloqueiam os receptores de dopamina, o organismo pode compensar aumentando a sensibilidade à dopamina. Isto, por sua vez, pode causar um aumento da psicose.

De acordo com Harrow et al., 30% das pessoas com esquizofrenia que tomam antipsicóticos podem experimentar psicose super-sensitiva; 70% das pessoas diagnosticadas com esquizofrenia “resistente ao tratamento” podem experimentar isso.

As descobertas de Harrow, Jobe e Tong são consistentes com um conjunto crescente de literatura que considera o uso de antipsicóticos a longo prazo mais prejudicial do que protetor. Harrow e Jobe publicaram anteriormente os resultados de 15 e 20 anos deste estudo, ambos consistentes com este resultado.

O estudo de Wunderink sobre pacientes com psicose do primeiro episódio também descobriu que pacientes que interromperam o uso de antipsicóticos tinham duas vezes mais probabilidade de recuperação do que aqueles que continuaram a tomá-los. Os pesquisadores também descobriram que uma grande porcentagem de pacientes não experimenta mais episódios psicóticos apesar de não tomar antipsicóticos; isto levou ao reconhecimento de que os antipsicóticos são desnecessários para pelo menos alguns grupos de pacientes.

Em resumo, Harrow, Jobe e Tong escrevem:

“Estes e os dados anteriores indicam que após 2 anos, os antipsicóticos não mais reduzem os sintomas psicóticos e os participantes que não tomam antipsicóticos têm melhor desempenho”.

****

Harrow M, Jobe TH, Tong L. (2021). Twenty-year effects of antipsychotics in schizophrenia and affective psychotic disorders. Psychological Medicine, 1–11. https://doi.org/10.1017/S0033291720004778 (Link)

Fórum na Internet para a Retirada das Drogas Psiquiátricas Fornece Novas Percepções

0

Um novo artigo publicado na revista Therapeutic Advances in Psychopharmacology revela como a Internet, e o website SurvivingAntidepressants.org em particular, se tornou a principal fonte de informação para a retirada de medicamentos psiquiátricos. O website criou um espaço virtual para o apoio de pares e aconselhamento para o afilamento da medicação, onde milhares de indivíduos com sintomas de abstinência de medicamentos psiquiátricos encontraram ajuda, quando os seus prestadores de cuidados de saúde não podem atender às suas necessidades.

Adele Framer, a autora, é a fundadora do website e do espaço virtual de apoio chamado de SurvivingAntidepressants.org. Ela é também conhecida pelo seu pseudônimo, Altostrata. Framer foi previamente entrevistada por Mad in America – entrevista publicada no MIB – sobre a sua experiência de vida com os sintomas prolongados de abstinência (PWS) após a descontinuação da medicação psicotrópica.

“Aos 50 anos de idade”, escreve Framer, “gozando de excelente saúde física, receitaram-me 10mg de paroxetina para estress laboral, após o que desenvolvi disfunção sexual, anestesia emocional, e após alguns anos, desmotivação. Depois de uma desastrosa mudança psiquiátrica para escitalopram, procurei conselhos para o afilamento … Não recebendo nenhum, em 2004, deixei de tomar paroxetina durante algumas semanas. Sem paroxetina, experimentei inicialmente hipomania, suor, e sensação eléctrica ‘zapping cerebral’, este último continuando durante vários meses. Após várias semanas, o meu padrão agudo de sintomas de abstinência mudou para outros sintomas estranhos, entre eles desorientação, despersonalização, insônia, intolerância à luz e ao calor, indigestão, palpitações e mal-estar, pontuado por episódios de choro espontâneo, ataques de puro terror, ou mergulhos repentinos em ‘buracos negros’ onde sentia um enorme pavor… Não parecia uma ‘recaída’ “.

Framer não está sozinha. Estima-se que metade dos indivíduos que interrompem a medicação psiquiátrica experimentam sintomas de abstinência. No entanto, estes sintomas são muitas vezes mal diagnosticados como sendo uma perturbação funcional ou “recaída” de uma doença mental. Acredita-se que os sintomas de abstinência resultam de adaptações neurofisiológicas induzidas por drogas e podem ser refreados com um cronograma lento e gradual, em vez de uma súbita cessação da droga.

No entanto, a informação sobre o afilamento e a lenta descontinuação das drogas psicotrópicas é difícil de se obter, razão pela qual há atrás Framer começou o site SurvivingAntidepressants.org.

“As pessoas que têm problemas que não são bem compreendidos pela medicina procuram respostas na Internet”, ela explica.” Gostaríamos muito de nos referir a profissionais médicos com conhecimentos, mas os membros do website não os têm conseguido encontrar”.

Framer relata o que aprendeu com a comunidade online ao longo dos anos:

  • Pessoas de todos os estratos sociais solicitam assistência para o afilamento de todos os tipos de medicamentos psiquiátricos. Contudo, SurvivingAntidepressants.org surgiu devido a que quem estava tomando medicamentos psiquiátricos (um em cada seis adultos dos EUA), 95% estavam/estão em antidepressivos.
  • Diferenciar a “recaída” dos sintomas de abstinência requer escuta e paciência. Os sintomas emocionais de abstinência podem ser confusos. Mas Framer salienta que os sintomas emocionais de abstinência aguda são repentinos, ao contrário de uma recaída que é gradual. Os pacientes descrevem frequentemente os seus sentimentos de abstinência como “novos ou excepcionalmente graves”. Por exemplo: “Nunca tinha sentido isto antes”. Causando sensações eléctricas no cérebro, frequentemente descritas como “zaps”, entre outras condições fisiológicas, incluindo tonturas, dores, náuseas e insônias.
  • O processo de afilamento também deve levar em conta os medicamentos mais complicados para o processo, em particular, os antipsicóticos e a paroxetina.
  • Muitas vezes o que torna desafiador todo o processo são as reações adversas e a polifarmácia. Estes fatores tornam difícil determinar qual a droga está causando cada sintoma. De fato, existem inúmeras narrativas em SurvivingAntidepresants.org que recordam as dificuldades com as cascatas de prescrição, reações adversas a drogas e com as interações medicamentosas.

“Muitos que vêm ao site para obter ajuda com a síndrome de afinamento ou de abstinência parecem também sofrer reações adversas, tais como insônia, disfunção sexual, agitação e reações alérgicas”, escreve ela. “Embora estivessem infelizes com os medicamentos, estas pessoas foram aconselhadas a continuar a tomá-los para benefício terapêutico, e assim o fizeram, durante anos”.

  • -Os sintomas de abstinência indicam instabilidade neurológica, necessitando de mais cautela quando os profissionais consideram novos medicamentos ou dosagens de melhoria.
  • Nunca se pode saltar as doses programadas no processo de retirada.

“Qualquer paciente corre o risco de apresentar sintomas psicotrópicos de abstinência e o agravamento do seu estado de saúde devido aos efeitos adversos não reconhecidos, e os sintomas de abstinência podem ser muito fortes. Os doentes precisam de médicos prescritores que revejam as suas suposições e práticas para o bem dos nossos sintomas nervosos”, argumenta Framer.

O artigo de Framer, “O que aprendi ao ajudar milhares de pessoas a afilar os antidepressivos e outros medicamentos psicotrópicos”, e o seu Website abrem portas para os clínicos compreenderem melhor como entender a retirada de medicamentos psicotrópicos. O seu trabalho também dá uma autoridade científica única e poderosa à experiência viva daqueles que tenham visitado SurvivingAntidepressants.org em busca de conselhos e sabedoria comunitária quando os canais mais formais não têm as respostas para ajudar.

****

Framer, A. (2021). What I have learned from helping thousands of people taper off antidepressants and other psychotropic medications. Therapeutic Advances in Psychopharmacology11, 2045125321991274. (Link)

Noticias

Blogues