Taxa de recuperação seis vezes maior para aqueles que param os antipsicóticos dentro de dois anos

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Um novo estudo de Martin Harrow, Thomas Jobe e Liping Tong descobriu que as chances de recuperação de “doenças mentais graves” eram seis vezes maiores se o paciente interrompesse os antipsicóticos dentro de dois anos. O estudo seguiu os diagnósticos de pacientes com esquizofrenia e psicose afetiva (bipolar e depressão com características psicóticas) por 20 anos. O estudo foi publicado em Medicina Psicológica.

Especificamente, os pesquisadores descobriram que aqueles que pararam de tomar a medicação antipsicótica dentro de dois anos após a primeira ingestão da droga tinham quase seis vezes (5.989) mais chances de se recuperar de “doença mental grave” e tinham apenas 13,4% de probabilidade de serem re-hospitalizados.

“Independentemente do diagnóstico, após o segundo ano, a ausência de antipsicóticos previu uma maior probabilidade de recuperação e menor probabilidade de re-hospitalização nos seguimentos de acompanhamento subseqüentes após o ajuste para os fatores que confundem”, escrevem os pesquisadores.

Que “após o ajuste para os fatores que confundem” é importante. Os críticos de descobertas como estas argumentam que os dados são explicados por pessoas com sintomas mais graves estarem tomando a droga, enquanto pessoas com psicose menos grave deixam de tomar a droga – apesar de não haver evidência de que este seja o caso.

Entretanto, os pesquisadores deram o melhor de si para explicar esta possibilidade, ajustando seu modelo para levar em conta fatores tais como o diagnóstico específico e/ou a gravidade básica dos sintomas. Isto é chamado de “controle para” ou “ajuste para” o fator de confusão.

Harrow et al. controlaram esta confusão, ao exercerem controle sobre os “potenciais prognósticos”. Na primeira interação, os participantes foram avaliados em várias medidas de “prognóstico” (o Valliant, o Symptomatic Prognostic Index de Stephen e o Prognostic Index de Zigler). Estas medidas permitiram aos pesquisadores classificar os participantes em potencial de prognóstico fraco versus potencial moderado – ou probabilidade de recuperação. As medidas incluíram itens como gravidade dos sintomas e nível de educação; idade, sexo, raça, uso de drogas e álcool, estado civil, e o número de hospitalizações anteriores também foram contabilizados.

“Mesmo quando a confusão por indicação para prescrição de medicamentos antipsicóticos é controlada, os participantes com esquizofrenia e psicose afetiva fazem melhor do que os grupos medicados”.

De acordo com os pesquisadores, alguns estudos mostraram que alguns pacientes obtêm um benefício a curto prazo com o uso de medicamentos antipsicóticos. A maioria desses estudos ocorre durante algumas semanas a meses. No entanto, pessoas diagnosticadas com esquizofrenia, transtorno bipolar e até mesmo depressão são frequentemente prescritos medicamentos antipsicóticos para uso a longo prazo para o resto de suas vidas, em muitos casos.

Mas a pesquisa sobre resultados a longo prazo encontrou um quadro perturbador. De acordo com Harrow et al., “Estudos múltiplos indicam que após 2/3 anos de tratamento antipsicótico, pessoas com esquizofrenia e psicose afetiva não medicada começam a ter melhor desempenho do que pacientes com aqueles medicamentos antipsicóticos prescritos”.

Então, por que tomar um medicamento antipsicótico está associado a resultados piores? De acordo com Harrow et al., a psicose super-sensível induzida por dopamina anti-psicótica pode ter um papel importante. Como os antipsicóticos bloqueiam os receptores de dopamina, o organismo pode compensar aumentando a sensibilidade à dopamina. Isto, por sua vez, pode causar um aumento da psicose.

De acordo com Harrow et al., 30% das pessoas com esquizofrenia que tomam antipsicóticos podem experimentar psicose super-sensitiva; 70% das pessoas diagnosticadas com esquizofrenia “resistente ao tratamento” podem experimentar isso.

As descobertas de Harrow, Jobe e Tong são consistentes com um conjunto crescente de literatura que considera o uso de antipsicóticos a longo prazo mais prejudicial do que protetor. Harrow e Jobe publicaram anteriormente os resultados de 15 e 20 anos deste estudo, ambos consistentes com este resultado.

O estudo de Wunderink sobre pacientes com psicose do primeiro episódio também descobriu que pacientes que interromperam o uso de antipsicóticos tinham duas vezes mais probabilidade de recuperação do que aqueles que continuaram a tomá-los. Os pesquisadores também descobriram que uma grande porcentagem de pacientes não experimenta mais episódios psicóticos apesar de não tomar antipsicóticos; isto levou ao reconhecimento de que os antipsicóticos são desnecessários para pelo menos alguns grupos de pacientes.

Em resumo, Harrow, Jobe e Tong escrevem:

“Estes e os dados anteriores indicam que após 2 anos, os antipsicóticos não mais reduzem os sintomas psicóticos e os participantes que não tomam antipsicóticos têm melhor desempenho”.

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Harrow M, Jobe TH, Tong L. (2021). Twenty-year effects of antipsychotics in schizophrenia and affective psychotic disorders. Psychological Medicine, 1–11. https://doi.org/10.1017/S0033291720004778 (Link)

Fórum na Internet para a Retirada das Drogas Psiquiátricas Fornece Novas Percepções

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Um novo artigo publicado na revista Therapeutic Advances in Psychopharmacology revela como a Internet, e o website SurvivingAntidepressants.org em particular, se tornou a principal fonte de informação para a retirada de medicamentos psiquiátricos. O website criou um espaço virtual para o apoio de pares e aconselhamento para o afilamento da medicação, onde milhares de indivíduos com sintomas de abstinência de medicamentos psiquiátricos encontraram ajuda, quando os seus prestadores de cuidados de saúde não podem atender às suas necessidades.

Adele Framer, a autora, é a fundadora do website e do espaço virtual de apoio chamado de SurvivingAntidepressants.org. Ela é também conhecida pelo seu pseudônimo, Altostrata. Framer foi previamente entrevistada por Mad in America – entrevista publicada no MIB – sobre a sua experiência de vida com os sintomas prolongados de abstinência (PWS) após a descontinuação da medicação psicotrópica.

“Aos 50 anos de idade”, escreve Framer, “gozando de excelente saúde física, receitaram-me 10mg de paroxetina para estress laboral, após o que desenvolvi disfunção sexual, anestesia emocional, e após alguns anos, desmotivação. Depois de uma desastrosa mudança psiquiátrica para escitalopram, procurei conselhos para o afilamento … Não recebendo nenhum, em 2004, deixei de tomar paroxetina durante algumas semanas. Sem paroxetina, experimentei inicialmente hipomania, suor, e sensação eléctrica ‘zapping cerebral’, este último continuando durante vários meses. Após várias semanas, o meu padrão agudo de sintomas de abstinência mudou para outros sintomas estranhos, entre eles desorientação, despersonalização, insônia, intolerância à luz e ao calor, indigestão, palpitações e mal-estar, pontuado por episódios de choro espontâneo, ataques de puro terror, ou mergulhos repentinos em ‘buracos negros’ onde sentia um enorme pavor… Não parecia uma ‘recaída’ “.

Framer não está sozinha. Estima-se que metade dos indivíduos que interrompem a medicação psiquiátrica experimentam sintomas de abstinência. No entanto, estes sintomas são muitas vezes mal diagnosticados como sendo uma perturbação funcional ou “recaída” de uma doença mental. Acredita-se que os sintomas de abstinência resultam de adaptações neurofisiológicas induzidas por drogas e podem ser refreados com um cronograma lento e gradual, em vez de uma súbita cessação da droga.

No entanto, a informação sobre o afilamento e a lenta descontinuação das drogas psicotrópicas é difícil de se obter, razão pela qual há atrás Framer começou o site SurvivingAntidepressants.org.

“As pessoas que têm problemas que não são bem compreendidos pela medicina procuram respostas na Internet”, ela explica.” Gostaríamos muito de nos referir a profissionais médicos com conhecimentos, mas os membros do website não os têm conseguido encontrar”.

Framer relata o que aprendeu com a comunidade online ao longo dos anos:

  • Pessoas de todos os estratos sociais solicitam assistência para o afilamento de todos os tipos de medicamentos psiquiátricos. Contudo, SurvivingAntidepressants.org surgiu devido a que quem estava tomando medicamentos psiquiátricos (um em cada seis adultos dos EUA), 95% estavam/estão em antidepressivos.
  • Diferenciar a “recaída” dos sintomas de abstinência requer escuta e paciência. Os sintomas emocionais de abstinência podem ser confusos. Mas Framer salienta que os sintomas emocionais de abstinência aguda são repentinos, ao contrário de uma recaída que é gradual. Os pacientes descrevem frequentemente os seus sentimentos de abstinência como “novos ou excepcionalmente graves”. Por exemplo: “Nunca tinha sentido isto antes”. Causando sensações eléctricas no cérebro, frequentemente descritas como “zaps”, entre outras condições fisiológicas, incluindo tonturas, dores, náuseas e insônias.
  • O processo de afilamento também deve levar em conta os medicamentos mais complicados para o processo, em particular, os antipsicóticos e a paroxetina.
  • Muitas vezes o que torna desafiador todo o processo são as reações adversas e a polifarmácia. Estes fatores tornam difícil determinar qual a droga está causando cada sintoma. De fato, existem inúmeras narrativas em SurvivingAntidepresants.org que recordam as dificuldades com as cascatas de prescrição, reações adversas a drogas e com as interações medicamentosas.

“Muitos que vêm ao site para obter ajuda com a síndrome de afinamento ou de abstinência parecem também sofrer reações adversas, tais como insônia, disfunção sexual, agitação e reações alérgicas”, escreve ela. “Embora estivessem infelizes com os medicamentos, estas pessoas foram aconselhadas a continuar a tomá-los para benefício terapêutico, e assim o fizeram, durante anos”.

  • -Os sintomas de abstinência indicam instabilidade neurológica, necessitando de mais cautela quando os profissionais consideram novos medicamentos ou dosagens de melhoria.
  • Nunca se pode saltar as doses programadas no processo de retirada.

“Qualquer paciente corre o risco de apresentar sintomas psicotrópicos de abstinência e o agravamento do seu estado de saúde devido aos efeitos adversos não reconhecidos, e os sintomas de abstinência podem ser muito fortes. Os doentes precisam de médicos prescritores que revejam as suas suposições e práticas para o bem dos nossos sintomas nervosos”, argumenta Framer.

O artigo de Framer, “O que aprendi ao ajudar milhares de pessoas a afilar os antidepressivos e outros medicamentos psicotrópicos”, e o seu Website abrem portas para os clínicos compreenderem melhor como entender a retirada de medicamentos psicotrópicos. O seu trabalho também dá uma autoridade científica única e poderosa à experiência viva daqueles que tenham visitado SurvivingAntidepressants.org em busca de conselhos e sabedoria comunitária quando os canais mais formais não têm as respostas para ajudar.

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Framer, A. (2021). What I have learned from helping thousands of people taper off antidepressants and other psychotropic medications. Therapeutic Advances in Psychopharmacology11, 2045125321991274. (Link)

A origem dos serviços de saúde mental no Reino Unido

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A fim de explorar o atual contexto político dos serviços de saúde mental, como farei em alguns blogs que se seguirão, é necessário estabelecer em que consiste realmente o moderno sistema de saúde mental e qual a sua função. Apenas traçando o desenvolvimento histórico dos serviços de saúde mental, e analisando como e por que o sistema surgiu, é que somos capazes de compreender plenamente o seu verdadeiro propósito.

Até ao século XIX, na Inglaterra, a gestão dos problemas colocados por aqueles que perderam o juízo era principalmente da responsabilidade da família, apoiada pelo sistema de assistência social conhecido como as Leis dos Pobres.

Cuidar dos doentes mentais não era muito diferente de cuidar dos doentes físicos. Ambos os grupos precisavam de alimentação, vestuário e alojamento. Se a família fosse razoavelmente rica, as necessidades de um indivíduo poderiam ser suportadas pelo resto da unidade familiar. Como alternativa, a família podia providenciar cuidados privados, tais como pagar a um outro familiar ou a um vizinho para que levasse o indivíduo doente para a sua casa. No século XVIII surgiram “manicômios” privados para atender às famílias que procuravam alguém para cuidar de um parente mentalmente perturbado. Estas casas de loucos acolhiam “pensionistas”, como eles eram referidos, à custa da família do pensionista. Os proprietários podiam empregar “guardas” para vigiar os residentes, e no século XVIII um conjunto de escândalos públicos revelou a natureza inescrupulosa deste “comércio da loucura” (1).

Se a família era pobre, no entanto, ele era dependente da assistência dos contribuinteslocais, especialmente se o doente fosse o ganha-pão da família. As Leis dos Pobres que foram promulgadas a partir do século XVI tornaram as paróquias locais responsáveis pelo cuidado dos pobres, e obrigavam a que todas as áreas cobrassem um imposto para a assistência das pessoas incapazes de se sustentarem a si próprias. O sistema substituiu o sistema medieval de cuidados caritativos prestados por instituições religiosas, tais como os mosteiros.

Os registros da Lei dos Pobres proporcionam uma rica visão sobre como as pessoas eram tratadas antes do surgimento da instituição especializada do asilo de loucos. Indicam uma variedade de disposições para os cuidados e contenção dos doentes mentais, que faziam parte de uma tentativa coerente das comunidades locais de proverprestar assistência aos seus membros dependentes, equilibrando as “prioridades de bem-estar e ordem social com as despesas colocadas aos pagadores de taxas ou impostos” (2) (pp 50).

Quando um indivíduo adoecia ou enlouquecia, a família podia requerer às autoridades paroquiais locais que administrassem assistência ao “pobre”. As autoridades paroquiais podiam conceder ajuda financeira à família, ou ajuda em espécie em termos de alimentação e vestuário. Podiam também pagar aos outros membros da comunidade local para prestar assistência ao indivíduo em causa. No século XVIII, pelo menos nas paróquias maiores, havia um “pequeno exército de pessoas (tanto homens como mulheres) empregadas para ‘vigiar’ os doentes, incluindo os doentes mentais” (2) (pp 43). Os funcionários da paróquia, bem como os magistrados do condado mais próximo, eram também responsáveis por garantir a paz e a segurança da sua jurisdição. Se o doente fosse considerado perigoso, e se os funcionários não ficassem satisfeitos por poder ser tratado em segurança em casa, poderiam tomar medidas alternativas. Inicialmente estas poderiam consistir no confinamento temporário por vizinhos ou funcionários locais, mas nos casos em que tal fosse considerado inadequado, o indivíduo poderia ser encarcerado numa prisão ou “Casa de Correção” mais próxima (3). Este era também o destino de alguns dos vagabundos e mendigos que povoavam cada vez mais a Inglaterra dos séculos XVII e XVIII.

O custo de manter um indivíduo numa instituição como a Casa de Correção, ou mais tarde a ‘Casa de Trabalho’, tinha de ser suportado pelos paroquianos locais, a menos que a família pudesse ser obrigada a pagar. Havia, portanto, um incentivo para que tais indivíduos fossem libertados e devolvidos à comunidade local o mais rapidamente possível.

Nessa época, como agora, os pagadores de taxas queixavam-se de que os funcionários estavam sendo demasiado generosos com o seu dinheiro, e que muitos dos pobres não mereciam os pagamentos que lhes eram concedidos. Esta atitude tornou-se mais estridente com as crescentes exigências de bem-estar causadas pela deslocação e empobrecimento que se seguiram às revoluções agrícola e industrial. A Lei Elizabetana dos Pobres tinha distinguido entre os pobres capazes e os pobres não-capazes, com uma orientação para que os pobres capazes recebessem trabalho. No início do século XIX, com o país sob o domínio da recessão pós-guerra napoleônica, havia quase histeria sobre o fardo dos ‘indigentes pobres’. uma Emenda de Alteração da Lei de 1834 foi concebida para dissuadir os preguiçosos e os trabalhadores indecisos de reclamar aos pagadores de impostos locais.

Contudo, por muito draconiana que a lei possa ter se tornado, o que confrontava os funcionários locais era a necessidade e o sofrimento. O grande número de pobres capazes que iam ser empurrados de volta ao trabalho nunca se concretizou, e as Casas de Trabalho ficaram cheias em grande parte com os velhos e frágeis,bem como com os doentes e os loucos (4).

As exigências do sistema capitalista emergente exacerbaram problemas naturais como a doença. As pessoas tinham de estar aptas a trabalhar em turnos longos e árduos para produzir mais-valia. Havia poucos papeis produtivos para os não capazes para o trabalho, como havia em comunidades agrícolas menores. Além disso, com todos os membros da família capazes indo a trabalhar, menos pessoas eram deixadas em casa para prestar cuidados àqueles que precisavam.

Assim, a era Vitoriana assistiu ao aparecimento e consolidação de uma assistência social em larga escala para aqueles que não eram capazes de se manterem. O sistema incluía a Casa de Trabalho (Workhouse) e, as pobres enfermarias sob a lei, frequentemente conectadas à Casa de Trabalho e ao asilo. A Lei de 1834 exigia que todas as regiões construíssem uma Casa de Trabalho local, e proibia o pagamento de ‘alívio ao ar livre’ àqueles que eram capazes de ser postos a trabalhar. As novas Casas de Trabalho foram concebidas como lugares onde os pobres seriam colocados em trabalhos forçados, e dotadas de condições espartanas tais que dissuadissem qualquer pessoa, exceto os verdadeiramente desesperados (5).

Os trabalhos do filósofo Michel Foucault e do historiador Andrew Scull delinearam como o sistema moderno de saúde mental, inicialmente incorporado ao asilo, surgiu da necessidade de sequestrar a loucura do ambiente de trabalho (ou da instituição anterior, mas semelhante do Hôpital Général em França) (6;7). De fato, a Lei de 1834 aprovou especificamente a separação dos loucos, com o fundamento de que deveriam receber tratamento num ambiente especializado. O início do século XIX foi um período de otimismo terapêutico, e os requerentes de asilo tocaram na apelativa ideia de que o seu tratamento poderia curar uma insanidade, reduzindo assim o fardo de proporcionar cuidados a longo prazo para os dependentes crônicos. Mais importante ainda, talvez, as pessoas mentalmente perturbadas fossem difíceis de serem contidas no local de trabalho, e perturbadoras do regime laboral (8). Os loucos tinham de ser afastados do local de trabalho caso afetassem o esforço de motivar e disciplinar os pobres indigentes; aqueles que precisavam de ser convencidos da necessidade de trabalho.

O asilo era mais caro do que a casa de trabalho, e um asilo com um regime humanitário que evitava o uso de restrições físicas era ainda mais caro (8).

Consequentemente, muitos dos mentalmente perturbados continuavam a definhar no local de trabalho, especialmente se fossem silenciosos e pouco exigentes. Apesar da imagem de que os antigos asilos eram lugares que ninguém saia vivo, havia um incentivo financeiro para libertar as pessoas sempre que fosse possível. Pesquisas históricas ao longo das últimas décadas mostraram que até 60% das pessoas admitidas nos asilos eram libertadas no espaço de um ano. No final do século XIX, dois terços dos doentes ficavam menos de dois anos em um asilo psiquiátrico (9;10).

Assim, os asilos vitorianos, que constituíam o primeiro sistema reconhecível especificamente concebido para atender às pessoas mentalmente perturbadas, surgiram de, e fizeram parte de, arranjos sociais financiados publicamente para proporcionar bem-estar e manter a ordem social. Os asilos proporcionavam simultaneamente um santuário para os temporariamente perturbados, contenção para os agressivamente loucos, e cuidados para aqueles considerados incuravelmente insanos que não eram alojados noutro lugar.

A complexa teia de assistência que consistia na família, comunidade local e em locais de confinamento foi substituída no século XIX por cuidados especializados prestados no âmbito do sistema de asilo, supervisionados a partir de meados do século pela profissão médica. Com o recente desaparecimento do asilo em larga escala, as suas funções foram substituídas por uma rede de instituições e serviços que prestavam uma mistura de assistência financeira, cuidados e controle. Embora as despesas sejam agora em grande parte amparadas pelo Estado ou pelo setor dos seguros de saúde, e não diretamente pela família do doente, a introdução de licitações concorrenciais e o papel crescente do setor privado recriaram um “comércio da loucura”.

Contudo, desde o século XIX que os serviços de saúde mental têm vindo a afirmar que fornecem algo mais do que cuidados e contenção. Como a loucura começou a ser conceitualizada como uma condição médica, a sua gestão tem sido retratada como um esforço terapêutico que visa curar ou corrigir o problema subjacente. Os especialistas que se dedicavam ao negócio no século XIX afirmavam serem capazes de efetuar curas através de um tratamento ‘moral’. No século XX, a atenção voltou-se para vários procedimentos físicos, tais como a insulinoterapia e a ECT, seguidos dos tratamentos medicamentosos que conhecemos hoje em dia. Embora os tratamentos modernos possam efetivamente subjugar algumas das manifestações mais extremas da loucura, há poucas provas de que qualquer uma das numerosas intervenções administradas aos usuários ao longo dos anos influencie o curso natural da condição. O que fizeram, contudo, é obscurecer as funções subjacentes que os serviços de saúde mental ainda servem, sem dúvida. E se quisermos pensar em como abordar os problemas colocados pela perturbação mental da forma mais racional, econômica e humanitária, precisamos de não deixar de considerar atentamente essas  funções.

Referências

(1) Parry-Jones WLI. The Trade in Lunacy: a study of private madhouses in England in the eighteenth and nineteenth centuries. London: Routledge and Kegan Paul; 1972.
(2) Rushton P. Lunatcis and Idiots: mental disability, the community, and the Poor Law in North East England, 1600-1800. Medical History 1988;32:34-50.
(3) The House of Correction was a place of confinement and enforced labour most often used for those who had committed petty offences that threatened the social order. http://www.londonlives.org/static/HousesOfCorrection.jsp
(4) http://www.english-heritage.org.uk/discover/people-and-places/disability-history/1832-1914/the-changing-face-of-the-workhouse/
(5) For information on workhouses and the Victorian Poor Law see http://www.workhouses.org.uk/poorlaws/1834intro.shtml
(6) Foucault M. Madness and Civilisation. London: Tavistock; 1965.
(7) Scull A. The Most Solitary of Afflictions. New Haven: Yale University Press; 1993.
(8) Forsythe B, Melling J, Adair R. The new Poor Law and the county pauper lunatic asylum- the Devon experience. Social History of Medicine 1996;9:335-55.
(9) Ellis R. The asylum, the Poor Law, and a reassessment of the four-shilling grant: admissions to the county asylums of Yorkshire in the nineteenth century. Soc Hist Med 2006 Apr;19(1):55-71.
(10) Wright D. Getting out of the asylum: understanding the confinement of the insane in the nineteenth century. Soc Hist Med 1997 Apr;10(1):137-55.

Medicina Insana, Capítulo 8: Armadilhas de Tratamento e Como Sair Delas (Parte 2)

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Man hands tied with thread playing cats cradle game with birds standing like on a wire and flying around. Trying to lure birds. Some birds are not meant to be caged

 

 

 

Nota do editor: Ao longo de vários meses, Mad in Brasil está publicando uma versão seriada do livro de Sami Timimi, Insane Medicine. Na Parte 1, ele discutiu a desconstrução do diagnóstico, a natureza do dano psicológico, e como a identificação de um problema pode tornar-se uma profecia auto-cumprida. Na Parte 2, ele discute o trabalho com medicação e o abandono da medicação. Todos os capítulos estão aqui arquivados.

Trabalhar com medicamentos

Já devem ter percebido que eu não sou um grande fã de medicação psiquiátrica (também conhecida como medicação psicotrópica). Há muitas décadas que os médicos não são capazes de os utilizar com uma compreensão adequada das suas limitações. Acabam por ser usados durante demasiado tempo com uma dose muito elevada e com um número excessivo de pessoas.

Fomos treinados de uma forma que acaba por nos levar a que nós, médicos, os utilizemos de forma bastante liberal, mas não fomos treinados em como ver a sua utilização no contexto mais amplo da vida de uma pessoa – nem fomos treinados em como ajudar as pessoas a sair deles.

Também pertencemos a sistemas que nos encorajam a sentir que deveríamos ter de oferecer algo concreto aos nossos pacientes (como uma receita médica). Além disso, os nossos pacientes estão numa cultura que os treina a imaginar que o sofrimento mental não tem qualquer significado e pode ser eliminado com os remédios McDonald’s. Tais características da oferta e da procura levaram a uma utilização excessiva de medicamentos psicotrópicos, que é um dos maiores contribuintes para os resultados terríveis e para a redução da esperança de vida daqueles que se tornam doentes de saúde mental a longo prazo.

Isso não significa que os medicamentos não possam ser úteis para algumas pessoas em alguns aspectos, particularmente quando utilizados para intervenções de curto prazo. Embora a maior parte da minha prática relacionada com medicamentos envolva ajudar alguém a reduzir ou retirar completamente os medicamentos psicotrópicos prescritos originalmente por outra pessoa, há também ocasiões em que sou a pessoa que inicia a prescrição. Isto pode ser para ajudar a manter uma aliança terapêutica, devido à pressão compreensível de uma pessoa jovem e/ou da sua família, ou porque eu a sugiro.

Abaixo estão alguns dos contextos que tenho em mente quando trabalho com estes medicamentos psiquiátricos:

  • Os diagnósticos em psiquiatria não são diagnósticos – são descritores fracos e que não explicam.
  • Do mesmo modo, os medicamentos psiquiátricos não têm efeitos específicos sobre a doença – não existe um “antidepressivo”, “anti-psicótico”, “estabilizador do humor”, etc.
  • Medicamentos psicotrópicos, como o álcool ou as drogas de rua, estimulam ou deprimem certos neurotransmissores e têm como resultado efeitos gerais no nosso estado mental.
  • Provocam alterações/desequilíbrios químicos em vez de remediar qualquer desbalanceamento químico.
  • O estado mental alterado resultante que uma droga psiquiátrica produz pode ajudar uma pessoa a lidar com uma situação ou melhorar uma situação a curto prazo.
  • Há poucas provas que sugiram que qualquer medicação psicotrópica conduza a uma melhoria sustentada dos resultados a longo prazo.
  • Todas as substâncias psicoativas podem produzir tolerância se tomadas durante tempo suficiente. Em linguagem corrente, isto significa que todas elas podem ser viciantes e causar sintomas de abstinência se paradas repentinamente.

Este plano de fundo ajuda a orientar-me para o que preciso de ter em mente quando trabalho com indivíduos que tomam medicação psiquiátrica e as suas famílias. Dado que a maior parte do efeito do medicamento é imitado por um comprimido placebo, a narrativa que usamos quando prescrevemos tem um impacto muito maior na forma como o paciente experimenta então o que lhe acontece do que os efeitos químicos do próprio medicamento. Estes são aspectos da prescrição que médicos como eu tiveram de descobrir por nós próprios, uma vez que não nos ensinam isto.

A história principal que utilizo para receitar psicotrópicos é que eles são ” facilitadores” que criam janelas de oportunidade. Lembro aos pacientes que um medicamento não pode tomar uma decisão ou iniciar uma ação; são as pessoas que o fazem. Explico que as drogas psiquiátricas funcionam como qualquer substância que afeta as substâncias químicas do nosso sistema nervoso.

Eles não corrigem nenhum desequilíbrio químico. Ninguém pode encontrar qualquer evidência de que aquilo a que chamamos transtornos mentais sejam o resultado de um desequilíbrio químico. Tal como o álcool, as drogas psiquiátricas fazem-nos sentir um pouco diferentes e isso pode ser útil a curto prazo. Por exemplo, o álcool pode ajudá-lo a superar a sua timidez com os outros, mas a maioria de nós concordaria que o uso de álcool a longo prazo para esse efeito pode levar a todo o tipo de problemas. Isto significa que a droga funciona melhor quando tiramos partido de nos sentirmos um pouco diferentes para fazer as mudanças que pudermos.

Utilizo analogias para acompanhar a narrativa. Se espero que a droga tenha um efeito mais ativador e energizante para alguém que está deprimido, posso usar uma analogia tal como “É como um óleo que ajuda as nossas engrenagens a girar mais livremente novamente”. As engrenagens são você e é você que vai conduzir a mudança, não as drogas“. Se eu estiver esperando um efeito mais calmante, posso usar uma analogia do tipo: “Temos muitas intervenções na medicina que não atuam diretamente sobre o problema. Por exemplo, um molde em gesso à volta de um braço com um osso partido não tem efeito direto sobre o osso, apenas ajuda o osso a ficar parado para que o corpo possa fazer o seu processo natural para curar o osso“.

Estas formas de conceitualizar o trabalho do medicamento ajudam a preparar uma pessoa para a sua participação na cura como agente e dão uma base para a ajudar a compreender porque é que provavelmente só precisarão do medicamento a curto prazo, digamos durante 6 a 12 meses, e depois podem ser gradualmente desmamados.

Uma vez que a pessoa tenha concordado com este enquadramento você pode ajudá-la a desenvolver a sua capacidade de agir utilizando uma simples visualização. Isto é conhecido como a “questão milagrosa”. Quando estamos sobrecarregados com um problema, tendemos a concentrar-nos em como esse problema está a dominar e a tornar a nossa vida pior. Compreensivelmente, pensamos que para a vida melhorar temos de nos livrar ou eliminar esse problema.

Infelizmente, a maioria dos tratamentos que subscrevem a crença de que se trata de um tratamento específico para um diagnóstico específico reforça esta ideia. A “questão milagrosa” ajuda-o a imaginar o que gostaria de ver acontecer se o problema fosse menos dominante. Ajuda-o a concentrar os seus esforços em vez de se livrar de algo em direção ao que se espera em seu lugar.

Assim, como uma forma de introduzir a capacidade de agir do paciente, posso perguntar algo do tipo,

” Considere que eu tenho a prescrição perfeita para dar, só que isto é tão bom que tudo o que você tem de fazer é tomá-la uma vez antes de ir para a cama esta noite. Enquanto se dorme, este medicamento faz a sua magia, para que pela manhã este milagre tenha acontecido e tudo o que se esperava que mudasse tenha mudado. Porque este milagre aconteceu enquanto dormia, não se dá conta de que a mudança tenha acontecido. O que é que poderia reparar que poderia primeiro alertá-lo de que algo parece diferente? O que é que outros que o conhecem podem notar? O que poderia você fazer de diferente?”

Você pode então acompanhá-los durante o dia, tendo o cuidado de os ajudar a passar da ausência de negativismos e generalizações para a presença de comportamentos específicos. Por exemplo: ” Então, assim você se sentirá mais feliz. Estou vendo, você está conseguindo descrever o que eu o veria você fazendo se se sentisse mais feliz.” e “Então, se você não estivesse perdendo a calma, o que estaria a fazer em vez disso?” e assim por diante. Isto ajuda a pessoa a começar a visualizar a alternativa, o esperado para o futuro.

Isto deve dar aos pacientes uma lista de diferentes comportamentos que eles imaginam que irão fazer. Você pode agora ajudá-los, introduzindo outro conceito: Não é raro tentarmos agir demasiado depressa quando queremos ver-nos livres de um problema. Acordamos de manhã em alguns dias e dizemos a nós próprios: “OK, eu vou fazer isto e aquilo e o outro hoje, sem mais lamentos, recomeço, tenho de mudar“.

Mantemos as coisas a funcionar durante um tempo, mas despenhamo-nos em poucas horas ou no dia seguinte. Isto apenas reforça o nosso sentimento em relação ao problema de que ele é demasiado forte para nós e não o podemos derrotar ou superar. O desespero entra e gera os nossos sentimentos de fracasso.

É melhor concentrarmo-nos em pequenas mudanças que são concretas e mais fáceis de notar. Pode pedir à pessoa para escolher um dos comportamentos da sua lista de milagres que pode ser um ponto de partida que ela gostaria de se concentrar em fazer uma pequena, minúscula e quase imperceptível mudança, se a medicação a ajudar a sentir-se um pouco mais livre.

Também observo qualquer exemplo de funcionamento que eles já conseguiram fazer, apesar de se sentirem tal como em: “Como é que você ainda conseguiu levar o seu filho à escola, apesar de se sentir tal como se sente? É a isso que chamamos resiliência, ainda a funcionar apesar de como nos sentimos. Você é claramente uma pessoa resiliente“.

Pode também, em vez de um determinado objetivo de comportamento, pedir-lhes apenas que reparem na diferença, e esse pode ser o seu objetivo. Por exemplo, “eu gostaria que você tomasse nota, mental ou escrita, de qualquer coisa, por mais pequena ou temporária que seja, que é um momento em que você se sente um pouco melhor, algo foi diferente, você fez algo por mais pequeno que não tenha feito durante algum tempo, seja ele qual for. Anote-o porque lhe perguntarei sobre isto da próxima vez que nos encontrarmos“.

Esta é outra forma de ajudar a pessoa a começar a notar a presença de algo e não a ausência de algo.

Também pode ser útil para ajudar essa pessoa a pensar na sua rede de apoio social. As relações de apoio podem ser vitais para a recuperação. É tão simples como perguntar quem mais existe que a pode apoiar e de que forma. “Quem sabe pelo que você está a passar? Quem gostaria de saber sobre o que está a passar? Quantos deles poderão participar numa reunião ou duas conosco?” E assim por diante.

Nas reuniões de acompanhamento, tento ajudar o doente a reconhecer que ele e os seus acompanhantes são os agentes de mudança. Procuro exemplos que os pacientes fornecem e que sugerem que algo diferente aconteceu, quer eles comuniquem ou não qualquer mudança no objetivo que estabeleceram e se notaram ou não algo diferente.

Se ouvir com atenção suficiente, há normalmente algo diferente que pode ser notado. Nunca aceito qualquer inferência de que o medicamento tenha sido o agente de mudança. Lembrarei ao paciente que a medicação não pensa e não pode tomar decisões.

Posso perguntar-lhes algo como, “com que qualidades em si mesmo a medicação o ajudou a reconectar-se?” e depois podemos passar algum tempo a falar sobre esta qualidade (por exemplo, determinação, coragem, paciência, bondade, etc.) e como esta qualidade está ganhando vida novamente e pode continuar a desenvolver-se nas próximas semanas. Isto ajuda os pacientes a reconectarem-se com os seus recursos internos e a resiliência que aí tem estado, ainda que um pouco adormecida, durante todo o tempo.

Não tomar medicamentos psiquiátricos

POR FAVOR, NÃO PARE DE REPENTE QUALQUER MEDICAÇÃO PSIQUIÁTRICA – ISTO É PERIGOSO E PODE SER FATAL.

Infelizmente, os bons conselhos profissionais dos médicos são escassos no terreno, devido à muito pouca formação ou conhecimento que temos sobre a retirada de medicamentos psiquiátricos. A minha abordagem vem de uma mistura de experiência clínica, fontes acadêmicas – e ouvir a experiência daqueles que tiveram problemas em se retirar da medicação psiquiátrica.

Ao desmamar qualquer medicação psiquiátrica, deve ter em mente que alguns sintomas de abstinência são prováveis. Isto porque os medicamentos psiquiátricos atuam nas extremidades nervosas das células cerebrais, e o resultado da sua ação é aumentar ou diminuir a quantidade de um determinado composto químico envolvido na transmissão de sinais de uma célula cerebral para outra (um neurotransmissor).

O que acontece frequentemente depois de algum tempo desta mudança na quantidade de neurotransmissor é que as células cerebrais começam a mudar para se ajustarem aos novos níveis desse neurotransmissor. Por exemplo, se uma droga tiver causado um aumento nos níveis de neurotransmissor, então, com o tempo, a célula cerebral que recebe este neurotransmissor começará a reduzir o número de receptores (que recebem o sinal deste neurotransmissor) que ele tem, em reação ao aumento deste elemento químico.

É por isso que, para muitas pessoas, os efeitos psicológicos dos medicamentos psiquiátricos tendem a passar com o tempo, levando frequentemente à administração de doses gradualmente crescentes. Também significa que não é recomendado retirar a droga de repente, fazendo a “frio,”

A minha regra geral é que se estiver a consumir um medicamento psiquiátrico há mais de um par de meses, então desmame gradualmente durante um período de meses, com doses gradualmente decrescentes. Quanto mais tempo se estiver tomando a medicação, mais longo poderá ser o período de abstinência.

Lembre-se, os sintomas de abstinência podem facilmente ser confundidos com o problema original e normalmente incluem sentimentos de ansiedade, agitação, inquietação, confusão e dificuldade em dormir, mas por vezes incluem também sintomas físicos tais como sensação de gripe, dores musculares e tremores, fadiga, bem como choques muitas vezes referidos como “abanões cerebrais” ou “zaps cerebrais”.

No entanto, sintomas evidentes de abstinência podem aparecer aleatoriamente por vezes com ondas e crises repentinas quando o paciente se sentiria relativamente bem caso contrário.

Os sobreviventes de medicamentos psiquiátricos são frequentemente as melhores fontes de conhecimento sobre esta questão. Seguem-se três recursos em linha que considerei úteis e informativos:

Há alguns livros que podem ajudar no processo de retirada da medicação, como o livro do renomado pesquisador Peter Gøtzsche Mental Health Survival Kit and Withdrawal from Psychiatric Drugs, que vem sendo publicado pelo Mad in Brasil em sua versão em português.

Aqui estão algumas dicas que podem ajudar:

  • Falar abertamente sobre o assunto. Estar preparado para ser flexível no programa de retirada.
  • Sempre que possível, trabalhar com um profissional de saúde, de preferência (mas não necessariamente) um médico, que compreenda os fenômenos de abstinência e possa ajudá-lo a reconhecer e gerir os sintomas de abstinência e as possíveis interações medicamentosas.
  • Envolva pessoas de confiança e de apoio na sua rede social nas discussões e decisões que tomar. Deixar que as pessoas saibam o que está a fazer e descobrir de que forma poderão ser capazes de o apoiar pode ser vital.
  • Se alguém estiver a tomar o psicotrópico há menos de dois meses, pode ser possível retirar rapidamente durante algumas semanas, embora mesmo após algumas semanas com um fármaco, alguns ainda possam sentir sintomas de retirada.
  • A regra geral para reduzir a probabilidade de sintomas de abstinência é pequena (pequenas reduções) e lenta (durante um período prolongado).
  • Para aqueles que tomam o psicotrópico durante mais de alguns meses, então deve-se planejar uma retirada cuidadosamente preparada que pode durar meses, ou mesmo anos. Quanto mais tempo se tiver tomado o psicotrópico, mais longa poderá ser a fase de retirada. Se sentir quaisquer sintomas de abstinência após qualquer redução, então poderá desejar voltar à dose anterior por mais algum tempo antes de tentar uma nova redução. Geralmente trabalha-se com reduções de 10% na dose cada vez que se reduz, embora se possa fazer reduções maiores nas doses mais elevadas e pode ser necessário fazer reduções menores nas doses mais baixas.
  • Como princípio geral, só fazer a próxima redução na dose diária quando quaisquer sintomas de abstinência tiverem estabilizado.
  • Meia-vida mais longa (por exemplo, alguns dias – pode procurar meia-vida de medicamentos no google) os medicamentos tendem a causar menos sintomas de abstinência do que os medicamentos de meia-vida mais curtos.
  • Quando se lida com aquilo a que chamamos “polifarmácia”, que é onde alguém está a tomar mais do que um medicamento psicotrópico, deixar para mais tarde, no programa de retirada, uma quantidade maior de sedativos ou medicamentos prescritos para os efeitos secundários dos outros.
  • Devido à forma como os psicotrópicos atuam nos receptores das células cerebrais, é muito mais provável que surjam sintomas de abstinência à medida que se desabitua das doses mais baixas. Se alguém começar a sentir sintomas de abstinência nas doses mais baixas, tente proceder em cerca de 10% de redução dos intervalos de dose, o que significa que poderá ter de ir para doses muito pequenas. Isto pode significar o corte de comprimidos, ou a separação de cápsulas e a utilização de balanças sensíveis para pesar quantidades, embora se estiver disponível uma preparação líquida isto torne muito mais fácil a realização destes pequenos passos.
  • É sensato evitar transições significativas/eventos de vida e ter uma situação de vida relativamente estável quando se retira.

Fontes de Referência:

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                                                                             [trad. e edição Fernando Freitas]                                                                                         O

Antidepressivos ainda associados ao aumento do risco de suicídio

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Uma nova metanálise de estudos observacionais, incluindo 1,45 milhões de indivíduos, descobriu que os antidepressivos ainda estão associados ao aumento do suicídio. Embora isto tenha sido em grande parte motivado por descobertas de antidepressivos não-ISRS como a venlafaxina, bupropiona, e mirtazapina, os investigadores descobriram que o enviesamento de publicações e pesquisas com um conflito de interesses financeiro (fCOI) também contribuem provavelmente para a subestimação dos estudos de risco e ISRS são especialmente propensos a estes enviesamentos.

“A exposição a antidepressivos da nova geração está associada a um maior risco de suicídio em pacientes adultos com depressão e com outras indicações de tratamento. O viés de publicação e o fCOI provavelmente contribuem para a subestimação sistemática do risco na literatura publicada”, escrevem eles.

O estudo foi conduzido por Michael Hengartner, Simone Amendola, Jakob Kaminski, Simone Kindler, Tom Bschor, e Martin Plöderl e publicado no Journal of Epidemiology and Community Health.

Public Domain

Os defensores do uso de antidepressivos sugerem que uma das suas principais funções é a de proteger contra o suicídio. Se as drogas pudessem salvar vidas, isso seria um argumento substancial a seu favor. Contudo, as provas são, na melhor das hipóteses, pouco claras. Estudos têm encontrado resultados inconsistentes, sendo que muitos sugerem que as drogas aumentam efetivamente o suicídio, especialmente em crianças e jovens adultos. Contudo, alguns estudos encontraram resultados pouco claros, sugerindo que os fármacos podem não aumentar ou diminuir o suicídio.

Em um outro estudo recente, Simone Amendola, Martin Plöderl e Michael Hengartner analisaram as taxas de suicídio a longo prazo em vários países. Verificaram que as alterações na taxa de suicídio não correspondiam às épocas em que grande número de pessoas começou a usar antidepressivos.

Contudo, a maioria destes estudos foram limitados por serem ensaios controlados aleatoriamente (RCTs), que muitas vezes excluem deliberadamente pessoas que já experimentaram suicídio e pessoas com outras condições com comorbidades, tais como o uso de substâncias. Assim, alguns investigadores argumentam que estes estudos não representam com precisão os pacientes realmente vistos na prática da vida real.

Devido a isto, estudos observacionais podem fornecer melhores provas sobre se os antidepressivos reduzem – ou aumentam – o risco de suicídio na vida real. Os estudos deste tipo são grandes e incluem pessoas observadas na prática clínica real, o que os torna importantes para testar a validade dos resultados dos RCTs.

De acordo com Hengartner et al., a última metanálise que incluiu estudos observacionais foi publicada em 2009, incluiu apenas oito estudos com cerca de 200.000 participantes, e não incluiu antidepressivos não-ISRS como venlafaxina, bupropion e mirtazapina. Este estudo também não conseguiu controlar o enviesamento de publicações e o enviesamento de estudos financiados pela indústria farmacêutica (fCOI).

Esse estudo de 2009 concluiu que o risco de suicídio era quase o dobro nos adolescentes que tomavam ISRSs, mas que as drogas reduzem efetivamente o risco de suicídio em adultos. No entanto, esse estudo foi limitado por um tamanho menor, não controlando os vieses, e não incluindo todos os medicamentos que são considerados antidepressivos.

Agora Hengartner et al. atualizaram esse estudo, incluindo 27 estudos com 1,45 milhões de participantes, entre os quais antidepressivos não-ISRS e antidepressivos utilizados para outras indicações que não a depressão, e controlando enviesamentos como publicações seletivas e estudos patrocinados pela indústria farmacêutica.

Descobriram que os antidepressivos estavam associados ao aumento do risco de suicídio em adultos, bem como em adolescentes. Além disso, mesmo considerando apenas os ISRSs estes não reduziram o risco de suicídio – na melhor das hipóteses, o risco de suicídio permaneceu o mesmo.

“Ao contrário de afirmações de pessoas com destaque, não encontramos provas fiáveis de que os antidepressivos protejam contra o suicídio. Pelo contrário, parece que o uso de antidepressivos pode mesmo aumentar o risco de suicídio”.

Hengartner et al. também foram capazes de avaliar o efeito do viés de publicação e do fCOI nos resultados. Quando controlaram para estes enviesamentos, os resultados foram ainda mais fortes, e mesmo os ISRSs foram significativamente associados ao aumento do suicídio. Os estudos financiados pela indústria farmacêutica tinham muito mais probabilidades de encontrar taxas de suicídio mais baixas do que os estudos realizados por investigadores independentes. Os estudos que fazem com que os antidepressivos pareçam pobres têm muito menos probabilidades de serem publicados.

Eles escrevem: “Encontrámos ainda provas empíricas de enviesamento de publicação. Vários estudos com provas de maior risco de suicídio com antidepressivos de nova geração provavelmente permanecem inéditos. Assim, descobrimos que os estudos com fCOI referem estimativas de risco significativamente mais baixas do que os estudos sem fCOI”.

Uma prova fácil de identificar para este efeito é que, em média, estudos financiados pela indústria farmacêutica descobriram que os antidepressivos não tiveram qualquer impacto no risco de suicídio (razão de risco 0.96). Em contraste, estudos realizados por investigadores independentes descobriram que os antidepressivos duplicaram o risco de suicídio (razão de risco 2,02).

Em suma, eles escrevem que os seus resultados verificam o conjunto substancial de investigações que constatam que os antidepressivos aumentam o suicídio:

“Os nossos resultados são, portanto, consistentes com várias análises de sumários de segurança da FDA para ensaios sobre depressão aguda que revelaram um aumento do risco de suicídio com antidepressivos de nova geração como grupo relativo ao placebo. Um risco significativamente maior de eventos suicidas foi também demonstrado meta-analiticamente com ISRS em geral e especificamente com paroxetina em ensaios a curto prazo controlados por placebo. Os nossos resultados também correspondem a duas metanálises de ensaios de depressão a longo prazo, que constataram um aumento do risco de suicídio com qualquer antidepressivo”.

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Hengartner, M. P., Amendola, S., Kaminski, J. A., Kindler, S., Bschor, T., & Plöderl, M. (2021). Suicide risk with selective serotonin reuptake inhibitors and other new-generation antidepressants in adults: a systematic review and meta-analysis of observational studies. J Epidemiol Community Health, Epub ahead of print doi:10.1136/jech-2020-214611 (Link)

COVID-19 e Saúde Mental: Sentir angústia é normal e não é um transtorno mental

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De The Conversation: “Não concordo com o fato de se ter tornado rotina medicar o sofrimento humano, anexando-lhe um diagnóstico de saúde mental. Isto não aborda a origem da angústia das pessoas. Um rótulo de diagnóstico também não permite algo que é essencial para a capacidade das pessoas de lidar e adaptar-se: obter significado a partir das suas próprias experiências.

… Globalmente, tem havido um apelo crescente para uma nova narrativa na saúde mental – e novas abordagens interpretativas para compreender a angústia humana“.

Artigo

KIT DE SOBREVIVÊNCIA EM SAÚDE MENTAL E RETIRADA DAS DROGAS PSIQUIÁTRICAS: CAPÍTULO 4

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KIT DE SOBREVIVÊNCIA EM SAÚDE MENTAL E RETIRADA DAS DROGAS PSIQUIÁTRICAS

 

CAPÍTULO 4

A RETIRADA DE MEDICAMENTOS PSIQUIÁTRICOS

Como foi observado acima, foram necessários quase 30 anos antes da profissão psiquiátrica e as autoridades admitirem que os benzodiazepínicos são altamente viciantes. A propaganda é altamente eficaz, e a razão pela qual demorou tanto tempo é que era um grande artigo de venda para a indústria farmacêutica que eles não criassem dependência química, ao contrário dos barbitúricos que eles substituíram, assim como se tornou um grande artigo de venda por volta de 1988 que as novas pílulas da depressão não fossem viciantes, ao contrário dos benzodiazepínicos aos quais elas substituíram.

As mentiras não mudam, pela simples razão de que a indústria farmacêutica não vende drogas ilegais, mas mente que não são drogas, que é a parte mais importante das suas atividades criminosas organizadas. [1] A indústria é tão boa em mentir que levou cerca de 50 anos até que as autoridades finalmente admitissem que as pílulas da depressão igualmente são viciantes. Mesmo após este atraso colossal, ela ainda não está pronta para chamar as coisas pelos nomes. A indústria farmacêutica se nega a fazer o uso de palavras como vício e dependência e fala sobre sintomas de abstinência.

O pior argumento que já ouvi – de vários professores de psiquiatria – é que os pacientes não são dependentes na medida em que não desejam doses mais altas. Se for verdade, esta seria uma boa notícia para os fumantes que, depois de fumarem um maço de cigarros todos os dias durante 40 anos, podem parar de um dia para outro, sem sintomas de abstinência.

Os pacientes não se importam com os jogos de palavras acadêmicos cuja única justificativa é permitir que as empresas farmacêuticas continuem a intoxicar populações inteiras com medicamentos que alteram a mente. Os pacientes sabem quando são dependentes (ver Capítulo 2); não precisam da aprovação de um psiquiatra para que a sua experiência esteja correta, e alguns dizem que a retirada de um comprimido de depressão foi pior do que a depressão deles. [2]

O progresso é muito lento. Em um programa da BBC em 2020, a organização de saúde mental Mind disse estar aconselhando as pessoas a que fossem para instituições de caridade de rua para ajudá-las a arrumar pílulas da depressão por causa da falta de alternativas disponíveis.

Infelizmente, sempre se presta homenagem às ideias erradas com as quais as pessoas se deixaram levar pela lavagem cerebral: “Embora não sejam viciantes, elas podem levar a problemas de dependência”, disse uma locução aos telespectadores. Já não ouvimos disparates suficientes?

Uma das coisas mais significativas que um médico pode fazer é ajudar algumas das centenas de milhões de pessoas a se livrarem das drogas das quais se tornaram dependentes. Pode ser muito difícil. Muitos psiquiatras me disseram que é muito mais fácil desabituar um viciado em heroína do que tirar um paciente de uma benzodiazepina ou de uma pílula da depressão.

Os maiores obstáculos à retirada são a ignorância, falsas crenças, medo, pressão de parentes e profissionais de saúde, e questões práticas como a falta de medicamentos em doses adequadamente pequenas.

Muitos poucos médicos sabem algo sobre a retirada e cometem erros horríveis. Se eles reduzem a dose, o fazem muito rapidamente porque a sabedoria predominante é que a retirada é apenas um problema para com as benzodiazepinas, ou porque seguem as poucas diretrizes existentes que recomendam uma redução muito rapidamente.

A situação no Reino Unido melhorou em 2019 (ver Capítulo 2), mas ainda não vi melhorias em outros países e aqui está um exemplo. Em novembro de 2019, o Conselho Nacional de Saúde da Dinamarca emitiu uma diretriz sobre os comprimidos da depressão para médicos de família, que foi incluída no Journal of the Danish Medical Association, garantindo que todos a vissem.

O remetente foi “Farmacoterapia Racional“, mas não foi racional. Como as diretrizes são perigosas, eu queria advertir as pessoas contra elas, mas sabia por experiência que não funciona reclamar com as autoridades, pois elas acham que são irrepreensíveis. Por isso, publiquei as minhas críticas em um jornal. [3] A Diretoria de Saúde teve a oportunidade de responder, mas se recusou – outro sinal da arrogância no topo de nossas instituições, pois é uma questão de saúde pública altamente importante.

Embora o grupo de autores da diretriz incluísse um psiquiatra e um farmacologista clínico, eles não pareciam saber como é uma curva de ligação das pílulas da depressão aos receptores. Como com outros medicamentos, é hiperbólica. É muito íngreme no início quando a dose é baixa, e depois se aplana e se torna quase horizontal na parte superior (veja figura). [4]

Isto é importante de se saber. A diretoria recomenda reduzir pela metade a dose a cada duas semanas, o que é muito arriscado. Nas dosagens habituais, a maioria dos receptores está ocupada porque estamos no topo da curva de ligação onde ela é plana. Uma vez que todos os pacientes estão em doses altas, eles podem permanecer na parte plana da curva de ligação após a primeira redução da dose e não apresentar nenhum sintoma de abstinência.

Portanto, pode ser correto reduzir a dose pela metade na primeira vez. Mas já na próxima vez, quando se passa de 50% da dose inicial para 25%, as coisas podem dar errado. Se os sintomas de abstinência também não ocorrerem desta vez, eles quase certamente virão quando você der o próximo passo e descer para 12,5%.

Relação hiperbólica entre a ocupação do receptor e a dose de citalopram em mg.

Também é muito rápido para muitos pacientes mudar a dose a cada duas semanas. A dependência física das pílulas pode ser tão pronunciada que leva meses ou anos para se retirar totalmente das pílulas.

A retirada rápida é perigosa. Como o observado anteriormente, um dos piores sintomas da retirada é a extrema agitação (acatisia), que predispõe ao suicídio, violência e homicídio.

Um processo de retirada deve respeitar a forma da curva de ligação e, portanto, tornar-se cada vez mais lento, quanto mais baixa for a dose. Estes princípios são conhecidos há décadas e foram explicados em um trabalho instrutivo na Lancet Psychiatry em 5 de março de 2019 por Horowitz e Taylor.4 Na medida em que meus colegas, que retiraram muitos pacientes, e eu tenho escrito repetidamente sobre os princípios nos jornais nacionais dinamarqueses e em outros lugares desde 2017, não havia desculpa alguma para que as pessoas que trabalhavam no Conselho Nacional de Saúde não soubessem sobre eles.

As drogas psiquiátricas são o Santo Graal para os psiquiatras, e são a única coisa que os separa dos psicólogos, além da sua qualificação como médicos. Portanto, seria de se esperar enormes recuos da guilda psiquiátrica e seus aliados quando se conta a verdade sobre estas drogas e se começa a educá-los sobre como se retirar delas com segurança.

Isto aconteceu comigo, em muitas ocasiões. Como observado no Capítulo 2, a minha palestra de abertura na reunião inaugural do Conselho de Psiquiatria Baseada em Evidências em 2014 foi imediatamente atacada pelo topo da psiquiatria britânica. O Conselho foi criado pelo cineasta e empresário Luke Montagu, que havia sofrido horrivelmente com os sintomas de abstinência por muitos anos depois de ter saído de suas drogas psiquiátricas, e ele queria chamar a atenção para os seus danos.

Mencionei o nome de Luke em 2015 em um artigo que fui convidado a escrever para o Daily Mail. [5] Saiu duas semanas depois de ter publicado o meu livro de psiquiatria onde estavam todas as provas.[6] O editor fez muitas mudanças no meu artigo e insistiu que eu acrescentasse esta declaração: “Como investigador da Colaboração Cochrane independente – um órgão internacional que avalia a pesquisa médica – meu papel é procurar com um olhar forense as evidências para tratamento”.

Minha pesquisa foi publicamente denegrida pelos líderes da Cochrane que fizeram o upload de uma declaração que ainda está de pé. [7] Eles alegaram que as minhas declarações sobre as drogas psiquiátricas e o seu uso por médicos no Reino Unido poderiam ser mal interpretadas como indicando que eu estava conduzindo o meu trabalho em nome da Cochrane. Eles também disseram que as minhas opiniões sobre os benefícios e danos das drogas psiquiátricas não eram as da organização.

A Cochrane tem três grupos de saúde mental que publicaram centenas de revisões sistemáticas de drogas psiquiátricas muito enganosas, onde os autores não prestaram atenção suficiente às falhas nos ensaios, mas que atuaram como porta-voz da indústria das drogas. [6]

A Cochrane tentou negar as minhas conclusões sobre as drogas psiquiátricas, mas a organização não pode ter nenhuma “opinião” sobre tais questões que tenham mais peso do que as de um pesquisador que as estudou em detalhes. Mas a tática funcionou, é claro. Cinco dias depois de terem baixado a sua declaração, BMJ publicou uma notícia, “Cochrane se distancia de visões controversas sobre drogas psiquiátricas”.[7]

Tanto na época como posteriormente, o apoio da Cochrane à guilda psiquiátrica e à indústria farmacêutica foi amplamente abusado pelas lideranças psiquiatras. David Nutt (veja mais sobre ele no Capítulo 2) disse durante uma palestra na Nova Zelândia em fevereiro de 2018 que eu havia sido expulso da Cochrane. Ele estava sete meses sendo prematuro. [7]

Luke escreveu sobre sua a própria “carreira” como paciente psiquiátrico no artigo do Daily Mail. [5] Os sintomas eram de tal natureza e severidade que a princípio me foi difícil acreditar nele. Eu nunca havia aprendido nada remotamente semelhante a isto durante os meus estudos médicos ou mais tarde. Mas rapidamente percebi que Luke não estava brincando e não tinha nenhuma condição psiquiátrica, mas que era uma pessoa adorável que havia caído involuntariamente na armadilha da drogadição psiquiátrica.

Luke, herdeiro do Earl de Sandwich, teve uma operação sinusal aos 19 anos de idade que o deixou com dores de cabeça e uma sensação de afastamento do mundo. Seu médico de família lhe disse que ele tinha um desequilíbrio químico em seu cérebro. O verdadeiro problema foi provavelmente uma reação à anestesia, mas foi prescrito a Luke várias pílulas da depressão que não o ajudaram.

Nenhum dos outros médicos e psiquiatras que Luke consultou o ouviu também quando ele disse que tudo havia começado com a cirurgia. Eles lhe ofereceram diagnósticos diferentes e todos lhe deram medicamentos; nove pílulas diferentes em quatro anos. Como acontece com tanta frequência, Luke relutantemente concluiu que havia algo de errado com ele. Ele tentou sair das drogas um par de vezes, mas sentiu-se tão horrível que voltou a tomá-las. Ele pensou, o que também é típico, que ele precisava da medicação, embora o que aconteceu foi que ele entrava em abstinência a cada vez.

Em 1995, ele recebeu Seroxat (paroxetina) e tomou por sete anos. Quando tentou sair dela, sentiu-se tonto, não conseguia dormir e tinha uma ansiedade extrema. Pensando que estava gravemente doente, viu um psiquiatra que lhe deu quatro novas drogas, incluindo um comprimido para dormir. Ele rapidamente se sentiu melhor, não percebendo que havia se tornado “tão dependente quanto um drogado da heroína”.

Ele funcionou bem por alguns anos, mas aos poucos foi ficando cada vez mais cansado e esquecido. Assim, em 2009, acreditando que fosse devido às drogas, ele se inscreveu em uma clínica para viciados. Seu psiquiatra o aconselhou a sair imediatamente do comprimido para dormir e em três dias ele foi atingido por um tsunami de sintomas horríveis – seu cérebro sentiu como se tivesse sido dilacerado em dois, havia um zumbido alto em seus ouvidos e ele não conseguia pensar.

Foi uma negligência médica horrível. A rápida retirada do uso de um comprimido para dormir em uso a longo prazo é um desastre. A desintoxicação foi o início de quase sete anos de inferno. Era como se partes de seu cérebro tivessem sido apagadas.

Três anos mais tarde, ele começou a se recuperar muito lentamente, mas ele ainda tinha uma sensação de alfinetes e agulhas queimando por todo o corpo, zumbido alto e uma sensação de intensa agitação.

Quando me encontrei pela última vez com Luke, em junho de 2019, ele ainda sofria de sintomas de abstinência, mas era capaz de trabalhar em tempo integral.

Ele está determinado a tentar ajudar os outros a evitar a terrível armadilha do drogado. Depois de criar o Conselho, Luke fundou o Grupo Parlamentar Composto por todos os Partidos sobre Dependência a Drogas Prescritas (APPG), que fez lobby com sucesso junto ao governo britânico pelo reconhecimento da problemática. Ele recrutou a Associação Médica Britânica e o Colégio Real de Psiquiatras para apoiar a sua iniciativa. Isso levou a uma revisão pioneira da Saúde Pública da Inglaterra com várias recomendações-chave, incluindo uma linha nacional de ajuda 24 horas e serviços de apoio à retirada.[8] Estas recomendações não se concentram apenas nos tradicionais culpados, os opiáceos e os benzodiazepínicos, mas também nas pílulas da depressão. Em dezembro de 2019, a APPG e o Conselho publicaram em 112 páginas a “Orientação para terapeutas psicológicos: Possibilitando conversas com clientes que tomam ou se retiram de medicamentos psiquiátricos prescritos”.[9] Este guia é muito detalhado e útil, tanto em relação aos medicamentos que descreve quanto em termos da orientação concreta que oferece aos terapeutas.

Tornou-se cada vez mais difícil ignorar o enorme problema com os pacientes que dependem de comprimidos da depressão. Em 2016, fui cofundador do Instituto Internacional para Retirada de Drogas Psiquiátricas (iipdw.org), sediado na Suécia. Tivemos várias reuniões internacionais e estabelecemos uma rede de pessoas com ideias semelhantes em muitos países, e o interesse em finalmente fazer algo está se espalhando rapidamente.

Há mais de dez anos faço lobby sobre a saúde no Parlamento dinamarquês e os parlamentares sempre foram positivos quando expliquei por que são necessárias grandes mudanças na psiquiatria. Mas eles têm medo de ir contra os psiquiatras, que são rápidos em dizer-lhes que a psiquiatria está fora da área de especialidade deles. Portanto, nada de substancial aconteceu ainda.

Em dezembro de 2016, houve uma audiência no Parlamento sobre porque a retirada das drogas psiquiátricas é tão importante e como devemos fazê-lo, que também foi o título da minha palestra. Houve contribuições de um psicólogo e de um farmacêutico com experiência na retirada de medicamentos e de um parente de paciente. Não houve um único psiquiatra com experiência na retirada de medicamentos no programa. O único psiquiatra foi Bjørn Epdrup que explicou quando e porque são necessários neurolépticos – e esqueceu de nos dizer quando não são necessários – e ele disse que podia ver esquizofrenia em um exame cerebral. Isto não é possível. Estudos de escaneamento em psiquiatria são bastante impossíveis,6 mas Epdrup deixou a reunião antes que alguém pudesse confrontá-lo com a sua reivindicação. A única coisa que pode ser vista em um escaneamento cerebral é o encolhimento do cérebro que os neurolépticos têm causado! [6,10,11]

Em janeiro de 2017, fui convidado a dar uma palestra, em Sherbrooke, Canadá, em uma reunião sobre o sobrediagnóstico e os tratamentos excessivos na psiquiatria. A reunião foi credenciada e constou no portfólio da educação continuada dos médicos. Embora a maioria da audiência fosse de psiquiatras, 74 dos 84 participantes sentiram que a minha apresentação tinha respondido às suas necessidades. Eu não esperava isto, particularmente depois de uma discussão um tanto quanto tensa.

Eu pensei que uma mudança estivesse a caminho. Dois meses mais tarde, o psicólogo Allan Holmgren e um partido político organizaram uma conferência no Parlamento com o tema: “Uma psiquiatria sem drogas”.

Robert Whitaker falou sobre a epidemia das drogas psiquiátricas e o meu título também foi direto: “O mito sobre a psiquiatria biológica; o uso de drogas psiquiátricas faz muito mais mal do que bem”.

A MIND Dinamarca não quer ajudar os pacientes a se retirarem

Em junho de 2017, fiz um curso de um dia inteiro sobre a retirada de medicamentos psiquiátricos em Copenhague. Já o havia planejado há algum tempo, mas a minha iniciativa foi demais para a psiquiatria convencional que tentou sabotá-la.

O primeiro recuo que levei veio quando tentei conseguir um anúncio para o curso em Mind, a revista da mais importante organização para pacientes psiquiátricos da Dinamarca: “Como você deve se retirar dos medicamentos psiquiátricos e evitar os piores sintomas de abstinência? O curso é para todos, tanto pacientes, quanto parentes e profissionais de saúde. O curso consiste em palestras e discussões em pequenos grupos. Os palestrantes são o professor Peter C. Gøtzsche, a psiquiatra infantil e adolescente Lisbeth Kortegaard, a farmacêutica Birgit Toft, a psicóloga Olga Runciman e o farmacêutico Bertel Rüdinger”.

Em 6 de fevereiro, liguei para o jornalista da MIND, Henrik Harring Jørgensen, que também é responsável pela revista MIND, para perguntar se eles estariam interessados em contar aos seus membros sobre o nosso curso. Como isso não foi possível, perguntei se poderia colocar um anúncio na revista. Jørgensen ficou consideravelmente desconfortável e disse que, sendo um agente oficial, não deveria se envolver no debate sobre drogas psiquiátricas. Expliquei que ele não precisava, porque o que quer que se pensasse sobre as drogas psiquiátricas, era um fato que muitos pacientes queriam desistir, mas não conseguiam obter ajuda, e era exatamente por isso que queríamos oferecer o nosso curso, que era para todos, tanto pacientes quanto médicos.

Não consegui nenhum compromisso do Jørgensen para conseguir o meu anúncio na revista. Eu estava convencido de que ele não poderia tomar esta decisão sozinha, mas que precisava de uma luz verde vinda de mais alto, e que provavelmente eles não aceitariam o meu anúncio.

Eu sabia muito bem que o Presidente Nacional da MIND, Knud Kristensen, não gostava de mim, o que ele contou aos outros, e que ele gosta muito das drogas psiquiátricas, o que ele sempre elogiava na mídia quando eu as criticava. Quando dei uma palestra para a MIND em Copenhague, em maio de 2016, Kristensen viajou do outro extremo do país para presidir a reunião e para fazer perguntas críticas após o meu discurso. Suas perguntas foram pouco amigáveis e ele foi muito crítico em relação a mim enquanto pessoa. Mas os participantes o desafiaram repetidamente e disseram que o que eu lhes havia dito era verdade, por exemplo, sobre os sintomas de abstinência e como é difícil parar as drogas psiquiátricas, o que eles mesmos já haviam experimentado.

Eu enviei o meu anúncio para Jørgensen no dia seguinte a ter falado com ele ao telefone. Silêncio total. Liguei várias vezes e fui trocado para Jørgensen pela secretária que disse que ele estava em seu escritório, mas ele não atendeu o telefone quando fui eu que liguei. Enviei uma mensagem que ele deveria ligar, o que ele não fez.

Eu comecei a ficar nervoso porque a revista MIND só sai a cada dois meses e o prazo para o anúncio era 2 de março. Era a minha única oportunidade de fazer propaganda na revista.

Em 17 de fevereiro, escrevi para Jørgensen, observando que ele não atendeu o telefone quando eu liguei para ele. Disse-lhe que muitos dos membros da MIND me escreviam e perguntavam a quem deveriam ir para pedir ajuda com a retirada de medicamentos psiquiátricos. Também escrevi para o endereço de e-mail geral da associação, mas ainda assim não obtive resposta.

Em 22 de fevereiro, fui à sede da MIND para obter uma resposta. Encontrei-me com três pessoas de fora que estavam fazendo documentários sobre psiquiatria e que se juntaram a mim no prédio.

Ficou claro imediatamente que a MIND não queria anunciar o nosso curso. O diretor da MIND, Ole Riisgaard, tratou-me de forma incrivelmente rude e condescendente, como quando um mestre da escola repreendia um aluno malcriado nos anos 50. Aparentemente, Riisgaard também não conseguiu tomar uma decisão sobre o meu anúncio sem a aprovação de Kristensen; ele disse que daria um retorno “dentro de alguns dias”.

Todos nós concluímos que o diretor foi plenamente informado sobre o meu caso antes de saber que apareceríamos em nossa visita sem aviso prévio e que a MIND havia planejado impedir que o meu anúncio fosse colocado na sua revista. Quando lhe disse que esta era a minha impressão, a mesma que tive quando havia tentado conversar ao telefone duas semanas antes, Jørgensen tornou-se altamente agressivo e perguntou se eu havia gravado a conversa.

No dia seguinte, Riisgaard escreveu que eles trariam o meu anúncio, acrescentando: “Na continuação de seu comportamento muito ruim e totalmente inaceitável ontem, onde você apareceu sem acordo ou permissão, e com as câmeras ligadas filmando o pessoal da MIND, vários dos quais são mentalmente vulneráveis e empregados sob disposições especiais, a condição para trazer o anúncio é que você, antes do prazo final, me envie uma garantia escrita (assinada) de que nenhum dos funcionários da MIND participará de qualquer tipo de transmissão sem o consentimento por escrito de cada um deles”.

As câmeras não estavam ligadas, e nós três que estávamos na sala estávamos todos muito calmos. As únicas pessoas que demonstraram mau comportamento foram Riisgaard e Jørgensen, a quem gravamos com um microfone escondido porque era importante documentar o bullying e os outros abusos de poder.

Um dos cineastas escreveu a Riisgaard que seu pessoal já me seguia há algum tempo e, portanto, também à MIND, e que ele havia pedido permissão para filmar, o que um funcionário da MIND lhe havia concedido. Assim que isto foi rejeitado em outro andar, o trabalho do filme parou. A única pessoa que tinha sido filmada havia sido eu.

Escrevi à Riisgaard que a nossa percepção dos eventos era diferente. Tínhamos cumprido todas as regras, mas como Jørgensen nunca atendeu o telefone, não tínhamos outra opção senão visitar a sede da MIND para saber se a MIND traria o nosso anúncio. “Você explicou que a MIND é uma pequena associação e que você tem muito o que fazer, e foi por isso que eu não tinha ouvido nada”. Permita-me salientar que houve muito tempo quando liguei para Henrik para perguntar sobre um possível anúncio. E que ele teria levado apenas alguns segundos para responder bem quando lhe enviei o anúncio no dia seguinte.

Não é mais difícil do que isso. Teria sido natural para você, quando nos encontramos, dizer que eu, é claro, receberia o anúncio na revista MIND, porque é tão obviamente uma ajuda para os muitos membros da MIND que querem parar as drogas psiquiátricas, mas não conseguiram obter ajuda de seu médico, entre outras coisas porque muito poucos médicos sabem como fazê-lo. Outros médicos têm a concepção errônea de que se precisa tomar as suas drogas para o resto de sua vida, o que está cientificamente comprovado como sendo muito prejudicial. Ao invés disso, você disse que eu teria uma resposta dentro de alguns dias. Você acha que esta é uma boa maneira de tratar um cliente que lhe paga para conseguir um anúncio em sua revista que, além disto, é muito relevante para os seus membros”?

No dia anterior à nossa visita à MIND, Riisgaard recebeu um e-mail de uma filial local explicando que eles haviam discutido em uma reunião de diretoria uma correspondência que eu havia tido com Jørgensen sobre um anúncio para um curso de retirada. “Com base nisso, parece que alguma forma de censura está sendo aplicada. É nossa impressão que muitos de nossos membros estão interessados no trabalho de Peter Gøtzsche. Nós não entendemos esta atitude”.

Riisgaard respondeu à filial local, depois de nos termos encontrado com ele e de nos termos correspondido com ele: “Com relação às propagandas certamente temos censura (edição), por exemplo, não aceitamos propagandas da indústria farmacêutica. Mas a Gøtske [sic] não foi negada a oportunidade de fazer propaganda. Se ele dá outra impressão, é apenas para chamar a atenção”.

Riisgaard mentiu e continuou sendo arrogante. Escrevi à filial local que alguém no topo da MIND acredita que as drogas psiquiátricas só podem ser boas para as pessoas; que ninguém deve receber ajuda para parar; e que os psiquiatras estão no controle de tudo, o que eles não estão de forma alguma.

O Presidente Nacional da MIND, Knud Kristensen, tem muito poder e nutre os seus próprios interesses, não os de seus membros.

A corporação psiquiátrica não quer ajudar os pacientes a se retirarem

O segundo recuo que levei veio quando informei a Psiquiatria na Região da Capital, em janeiro de 2017, sobre o nosso curso. Escrevi que colaborei com psiquiatras, psicólogos e farmacêuticos qualificados em vários países e com muitos usuários com ampla experiência em retirada; que éramos 11 pessoas de 7 países que se reuniram em Gotemburgo em outubro de 2016 e decidiram criar o Instituto Internacional para Retirada de Drogas Psiquiátricas; que um de nós era um psiquiatra norueguês que havia acabado de abrir a primeira enfermaria livre de drogas na Noruega; que eu tinha um estudante de doutorado que estudou como retirar drogas psiquiátricas com segurança; e que faríamos o nosso melhor para atender às necessidades e aos interesses dos participantes.

Três dias depois, o professor psiquiatra Poul Videbech reclamou com a Autoridade de Segurança do Paciente: “Um Peter Gøtzsche, especialista em medicina interna, anunciou o curso abaixo para pacientes e outros. É claro que, na minha opinião, ele assume uma tremenda responsabilidade, na medida em que ele não tem conhecimento algum. Os médicos podem simplesmente fazer esse tipo de coisa sem ter os conhecimentos profissionais necessários? É também uma empresa privada que abusa do nome do Centro Cochrane”.

A arrogância de Videbech não pode ser negligenciada. “Um Peter Gøtzsche” é uma frase que você usa sobre pessoas desconhecidas, e eu era muito conhecido, tanto por Videbech como pelo pessoal da Autoridade. A Autoridade não levou a sério a reclamação de Videbech. Levou quatro meses para me pedir uma opinião indicando em que medida o aconselhamento individual dos profissionais de saúde seria fornecido aos participantes do curso. Informei à Autoridade em 19 de maio que não havia nada na descrição do curso sobre como dar conselhos individuais.

Um processo de retirada leva tempo, e obviamente não pretendíamos começar a retirar os participantes durante o curso.

Também me perguntaram sobre quais qualificações ou experiências tive com a retirada individual de medicamentos neurolépticos. Respondi que isto não era relevante porque o objetivo do curso era que aprendêssemos uns com os outros, incluindo ouvir sobre as experiências atuais e passadas dos pacientes. Acrescentei que na sala haveria psiquiatras, assim como outros profissionais de saúde.

Finalmente, a Autoridade me pediu para declarar qual o papel do Centro Nórdico Cochrane na organização do curso, uma vez que eu havia utilizado esta afiliação em meu e-mail para a Região da Capital. Como não havia menção do Centro no anúncio do curso, não respondi a esta pergunta, que era irrelevante e estava além das tarefas de controle da Autoridade.

Em 1 de junho, a Autoridade me pediu as informações que eu já havia enviado a eles e que eles haviam ignorado. Quatro dias depois de termos realizado o nosso curso, a Autoridade anunciou que não pretendia tomar nenhuma medida.

Eu baixei vídeos das nossas palestras e outras informações em minha página na internet, deadlymedicines.dk. Também realizamos várias reuniões para o público e dei muitas palestras, em vários países. Sempre explicamos que a retirada precisava ser muito mais lenta do que as diretrizes oficiais recomendadas. Portanto, a Autoridade de Segurança do Paciente deveria ter se interessado pelas diretrizes, que não eram seguras, e não em nós!

Considerando os empurrões levados no caminha e em nossa crescente rede internacional, sentíamos que estávamos avançando. Em outubro de 2017, houve a estreia mundial em Copenhague no filme de Anahi Testa Pedersen, “Diagnosticando a Psiquiatria” (ver Capítulo 2). Ela me perguntou se eu tinha alguma sugestão para um título, então eu sugeri esse título porque o filme mostra que a psiquiatria é um paciente doente que infecta outros pacientes também. Eu poderia ter escolhido o mesmo título para este livro, mas eu não queria usar a palavra psiquiatria, mas sim o termo positivo, saúde mental.

Em novembro de 2017, o psiquiatra Jan Vestergaard tentou obter um simpósio de duas horas sobre as benzodiazepinas no programa para a reunião anual da Associação Psiquiátrica Dinamarquesa quatro meses depois. Embora a reunião tenha durado quatro dias, com sessões paralelas, a diretoria declarou que não havia espaço para o simpósio. Tratava-se de dependência e retirada, e eu estava programado para falar sobre retirada em geral, não limitada aos benzodiazepínicos.

Como o hotel da conferência é enorme, eu liguei para ver se havia quartos livres. Reservei um e realizei um simpósio de duas horas para os psiquiatras pela manhã, que repetimos à tarde. Dei-lhes a oportunidade de aprender algo sobre dependência e abstinência, mesmo que a diretoria tivesse pouco interesse no assunto.

Depois veio outro choque na estrada, que foi dado pelo professor de microbiologia clínica, Niels Høiby, eleito para um partido político conservador na Região da Capital. Eu me perguntava por que ele se sentia obrigado a interferir em nossa iniciativa altruísta (não cobramos taxa de entrada), pois as bactérias não têm muito a ver com a retirada de medicamentos psiquiátricos. Ele levantou uma suposta razão política e mencionou que eu havia escrito um livro sobre o uso de drogas psiquiátricas e realizado cursos para levar os pacientes a reduzir o uso de drogas psiquiátricas. Høiby perguntou se o Conselho Executivo do Hospital Nacional e a Região da Capital, possivelmente em colaboração com o Conselho de Saúde para psiquiatria, tinham informado os psiquiatras da Região, os psiquiatras na prática especializada e os clínicos gerais da região se eles se apoiavam ou se se distanciavam das atividades do diretor do Centro Cochrane a respeito do uso de drogas psiquiátricas.

A resposta é tão interessante quanto a pergunta tola e maligna de Høiby. A Psiquiatria na Região da Capital declarou ter informado todos os seus centros sobre as atividades que Høiby mencionou e foi crítico em relação à minha oferta e solicitou que fosse dada atenção aos pacientes que pudessem aceitar a oferta. Além disso, eles observaram que vários chefes de departamento e professores haviam expressado publicamente o seu desacordo comigo e as minhas atividades, por exemplo, no evento “A arte de descontinuar uma droga” organizado pela Região da Capital e em um debate público sobre drogas psiquiátricas organizado pela Psiquiatria na Região da Capital. “Em ambos os eventos, o próprio Peter Gøtzsche participou”.

Oh querido, oh querida, o homem “ele mesmo” apareceu em nossos preciosos eventos e até se atreveu a fazer perguntas! Então, é errado quando alguém faz isso e quando algumas eminências – que eu chamo de gorilas machos, pois é assim que eles se comportam [6] – discordam dele? Estas são perspectivas sombrias. Obviamente, é inaceitável para a instituição que eu tente atender às necessidades dos pacientes quando os psiquiatras não querem, mesmo que a instituição fale constantemente em colocar o paciente no centro das suas atividades.

Anunciei os simpósios no Journal of the Danish Medical Association e o meu aluno de doutorado Anders Sørensen também lecionou. Mais tarde, quando passeamos pelos corredores, soubemos que os jovens psiquiatras tinham ficado assustados em assistir porque seus chefes os veriam como hereges e poderiam retaliar. Este comportamento de intimidação também é visto como um orgulho de leões – se um leão deixa a alcateia e volta mais tarde, o leão é punido. Isso explica porque a maioria dos 60 participantes eram enfermeiras, assistentes sociais, pacientes e parentes. Apenas sete se identificaram como psiquiatras, mas provavelmente havia mais oito, pois estes omitiram seus antecedentes, apesar de terem sido solicitados a fazê- lo quando entraram na sala.

Em outras ocasiões, psicólogos, assistentes sociais e enfermeiras que desejavam participar de minhas palestras ou cursos me contaram histórias semelhantes sobre receber avisos ameaçadores de seus superiores que, se eles aparecessem, não seriam bem recebidos em sua unidade. Isto é assustador e também um diagnóstico para uma especialidade doente. Conta a história de uma corporação que se comporta mais como uma seita religiosa do que como uma disciplina científica porque, na ciência, estamos sempre interessados em ouvir novos resultados de pesquisas e outros pontos de vista, o que nos torna a todos mais sábios.

Tivemos duas palestras em nosso programa: “Por que a maioria das pessoas que recebem medicamentos psiquiátricos deve ser retirada” e “Como isso deve ser feito na prática?”. Mencionamos no anúncio que vários psiquiatras haviam nos incitado a realizar um curso sobre a retirada de medicamentos psiquiátricos ao mesmo tempo que a sua reunião anual.

Os simpósios foram um sucesso. O psiquiatra mais experiente da sala disse mais tarde a um de seus colegas juniores que eu era ofuscado entre as lideranças psiquiatras. É por isso que eles não queriam que os seus médicos juniores me ouvissem. Pode tornar-se muito difícil para eles quando voltam e fazem perguntas. Eles também gostaram da palestra de Anders.

Em junho de 2018, realizamos um seminário de pesquisa à tarde em Copenhague. Como palestrantes convidados tivemos Laura Delano, uma sobrevivente psiquiátrica dos EUA, que apresentou protocolos de redução de risco com base em uma visão geral dos métodos que haviam produzido os melhores resultados na comunidade de leigos que se retiraram, e o farmacêutico Bertel Rüdinger, de Copenhague, também sobrevivente psiquiátrico.6 A psiquiatria roubou 14 e 10 anos, respectivamente, de suas vidas e fez com que ambas estivessem muito próximos do suicídio.

A Colaboração Cochrane não quer ajudar os pacientes a se retirarem

O maior bloqueio de estrada foi fornecido pela Colaboração Cochrane. Como observado, minhas críticas às drogas psiquiátricas foram a razão direta pela qual fui considerado pelo CEO da Cochrane, Mark Wilson, como em má situação, como dizem nos círculos de gangsters, na organização que cofundei em 1993. Escrevi o livro “A morte de um denunciante e o colapso moral da Cochrane” [7] sobre a história recente da Cochrane e a minha expulsão do seu Conselho de Administração, para o qual fui eleito com o maior número de votos de todos os 11 candidatos, e da Colaboração Cochrane. Wilson até me demitiu em outubro de 2018 do meu trabalho em Copenhague, que eu vinha realizando desde que criei o Centro Nórdico Cochrane em 1993. [7]

As ações da Cochrane contra mim foram amplamente condenadas e houve artigos em Science, Nature, Lancet e BMJ. [7] O psiquiatra infantil e adolescente Sami Timimi reviu o meu livro, [12] e aqui está um trecho:

Este livro narra como um mundo de cabeça para baixo é criado quando o marketing triunfa sobre a ciência; onde o verdadeiro alvo de uma campanha de anos de assédio é rotulado como o culpado … O relato convincente de Gøtzsche inclui citações e documentação de fontes escritas e orais, incluindo transcrições do que foi realmente dito em várias reuniões. O livro é um estudo detalhado de como as organizações se corrompem, a menos que elas tenham formulado cuidadosamente processos que a protejam contra a tomada de controle por forças antidemocráticas, uma vez que essa organização tenha sido bem sucedida e atingido um certo tamanho. Este é um livro que expõe como a Cochrane caiu nas garras de uma hierarquia mais preocupada com as finanças e o marketing do que com as razões pelas quais foi criada. A morte de sua integridade, significa que a instituição mais importante que restou na qual se podia confiar quando se tratava de ciência médica, desapareceu no mesmo buraco do coelho da comercialização que captura tanto a (chamada) ciência médica moderna. De fato, foi porque o professor Gøtzsche estava preparado para chamar a atenção para a diminuição dos padrões científicos na Cochrane que a hierarquia se sentiu compelida a planejar a sua morte.

Gøtzsche … criou muitas das ferramentas metodológicas utilizadas pela Cochrane e nunca se esquivou de deixar os dados falarem por si mesmos, por mais impopulares que sejam as descobertas com alguns médicos, pesquisadores e, em particular, com fabricantes de produtos farma- cêuticos e outros fabricantes de dispositivos médicos. Cochrane sob a influência de Gøtzsche, e outros como ele, ficou conhecida como uma fonte de revisões credíveis, confiáveis e independentes … ajudando os médicos a entender o que funcionava e até que ponto, mas igualmente importante o que não funcionava e que danos os tratamentos podem causar. São estas últimas questões que significam que Gøtzsche foi, e é, uma inspiração para aqueles entre nós que querem que a prática médica seja tão objetiva, livre de preconceitos e segura quanto o possível; mais uma ameaça para aqueles que colocam assuntos comerciais, mercan- tilização e imagem entre as suas principais preocupações.

O brilhantismo de Gøtzsche e a sua abordagem destemida lhe valeram muitos inimigos. Ele é um dos pesquisadores mais conhecidos da Dinamarca e é respeitado nos círculos de pesquisa em todo o mundo. Mas, durante anos ele documentou quantos produtos promovidos pela indústria farmacêutica e fabricantes de dispositivos médicos, podem causar mais danos do que benefícios; com uma análise detalhada de como a pesquisa dessas empresas engana, ofusca ou, às vezes, mente diretamente a fim de proteger e promover os seus produtos … Seu trabalho sobre medicamentos psiquiátricos mostrando como todos eles são pobres em proporcionar uma vida melhor para aqueles que os tomam, ao mesmo tempo em que causam enormes danos a milhões, lhe rendeu a ira da instituição psiquiátrica em geral, incluindo alguns grupos Cochrane … Em vez de felicitarem Gøtzsche por garantir a integridade da ciência produzida pela Cochrane, eles começaram um desafio a este buscador da verdade por estar “fora da mensagem”. ”

Este livro reconta cuidadosamente este período sombrio da ciência médica onde uma instituição outrora confiável realizou um dos julgamentos mais arbitrários já realizados no meio acadêmico. O CEO e seus colaboradores realizaram a sua tarefa de uma maneira que espelha como a indústria farmacêutica funciona. Seus funcionários são obrigados a proteger as vendas de drogas e, portanto, não podem criticar publica- mente a pesquisa da empresa. Há muitos exemplos no livro de como, uma vez alguém ter sido rotulado, as suas ações podem ser interpretadas como cumprimento desse rótulo. Por exemplo, após ser mantido à espera por horas fora de uma sala onde se discute uma reunião sobre a sua possível expulsão, o Professor Gøtzsche, compreensivelmente frustrado, decide bater à porta e entrar para perguntar se está tudo bem se ele voltar para o hotel em vez de continuar esperando. Ele é repreendido por entrar na reunião e segue-se uma breve altercação, antes que o professor Gøtzsche saia. Isso então se torna o único exemplo real de seu alegado “mau comportamento” e parte da “evidência” de por que ele deveria ser demitido.

Após a sua expulsão da Cochrane, através de uma maioria de votos de apenas 6 contra 5, com uma abstenção, outros 4 membros da diretoria saíram em protesto. Cientistas médicos líderes de todo o mundo expressaram a sua solidariedade com Gøtzsche e indignação com o que a Cochrane havia feito. Eles elogiaram universalmente Gøtzsche como um incansável advogado da excelência da pesquisa, um crítico destemido da má conduta científica, e um poderoso oponente da corrupção da pesquisa pelos interesses da indústria, e crítico das ações insuportáveis da Cochrane. A história contará isto como a morte da Cochrane e não a do denunciante.

Foi uma consequência direta do colapso moral da Cochrane que Anders e eu fracassamos quando tentamos obter a aprovação de um protocolo para uma revisão da Cochrane sobre a retirada da pílula da depressão.[13] O grupo de depressão Cochrane nos enviou em uma missão de dois anos que era impossível de cumprir, elevando as suas exigências ao longo do caminho a níveis absurdos com muitas exigências irrelevantes, incluindo exigências de inserção de mensagens de marketing sobre as maravilhas que as pílulas da depressão podem realizar, de acordo com o dogma da Cochrane. A Cochrane não tem interesse em uma revisão sobre a retirada segura das pílulas da depressão, mas fez o máximo para defender a guilda psiquiátrica, as suas muitas crenças falsas, e a indústria farmacêutica, esquecendo que a missão da Cochrane é ajudar os pacientes, e sendo por isso que a fundamos em 1993, e a razão pela qual a chamamos de uma colaboração.

Em 2016, entrei em contato com a psiquiatra Rachel Churchill, a editora coordenadora do grupo de depressão Cochrane, que demonstrou grande interesse em meu propósito para fazer uma revisão. Contratei Anders, um psicólogo recém formado, mas quando submetemos um protocolo para a revisão, este não foi bem-vindo. Levou nove meses até que obtivéssemos qualquer feedback. Respondemos aos comentários e enviamos duas versões revisadas, mas as exigências sobre o nosso protocolo apenas aumentaram e os atrasos editoriais foram tão pronunciados que concluímos que os editores deliberadamente obstruíam o processo para nos desgastar esperando que fosse nós mesmos a retirar a revisão, enquanto o grupo não seria visto como sendo inútil.

Em um determinado momento, Churchill anexou um documento de 30 páginas com 86 pontos de itens para os quais nada menos do que quatro editores e três revisores de pares haviam contribuído, com comentários individuais, nomeados. O documento continha 12.044 palavras, incluindo as nossas respostas a comentários anteriores, o que foi sete vezes maior do que o nosso protocolo original de 2017. Anders me escreveu que a nossa revisão era bastante simples, pois queríamos apenas ajudar as pessoas que desejavam sair de suas drogas, mas não tínhamos permissão para fazê-lo: “Que tipo de mundo é este?”.

Quando Churchill nos enviou a oitava e última revisão feita pelos pares, o convite dela para abordar o feedback tinha subitamente sido metamorfo- seado em uma rejeição total. As revisões da Cochrane sobre drogas são sobre como colocar as pessoas nas drogas, não sobre sair delas, e a 8ª revisão pelos pares é uma das piores que eu já vi. É tão longa quanto um artigo de pesquisa, 1830 palavras, e forneceu as Roupas Novas do Imperador que o grupo precisava para se livrar de nós. Em contraste com as outras sete revisões, o carrasco era anônimo. Nós pedimos a identidade do revisor, mas isto não foi concedido.

Apelamos da rejeição de Churchill, respondemos aos comentários e submetemos a versão final do nosso protocolo. Todas as 8 revisões, os nossos comentários e o nosso protocolo final nós os baixamos, como parte do artigo que publicamos sobre o caso. [13] Isto permite aos observadores independentes concluir por eles mesmos se é a Cochrane ou nós os culpados pelo fato de que os pacientes não receberem a revisão da Cochrane no momento da retirada merecida por eles.

Foram necessárias muito poucas mudanças no protocolo. O 8º revisor havia negado uma longa série de fatos científicos e havia usado várias falácias do espantalho acusando-nos de coisas que nunca havíamos reivindicado.

Fomos acusados de “pintar um quadro” sobre como evitar o uso das pílulas da depressão, o que não representava o consenso científico, uma observação totalmente irrelevante e enganosa para uma revisão sobre a retirada desses medicamentos. O revisor queria que “começássemos com uma declaração sobre por que os antidepressivos são considerados pela comunidade científica como benéficos … no tratamento de uma ampla gama de problemas de saúde mental altamente incapacitantes e debilitantes” e nos acusou de não sermos científicos porque não havíamos mencionado os efeitos benéficos. Respondemos que a nossa revisão não era um anúncio para os medicamentos e que não era relevante discutir os seus efeitos em uma revisão sobre como parar de usá-los. Além disso, uma revisão da Cochrane não deveria ser um relatório de consenso.

Também os editores da Cochrane nos pediram para escrever sobre os benefícios e mencionar que “alguns antidepressivos podem ser mais eficazes que outros”, com referência a uma meta-análise da rede de 2018 em Lancet por Andrea Cipriani e colegas.14 Entretanto, embora haja um estatístico da Cochrane entre os seus autores, Julian Higgins, editor do Cochrane Handbook of Systematic Reviews of Interventions que descreve mais de 636 páginas como fazer com as revisões da Cochrane, [15] a revisão tem sérios erros. Demonstrei isto no artigo, “Recompensando as empresas que mais enganaram nos ensaios antidepressivos”,16 e uma reanálise feita por meus colegas do Centro Nórdico Cochrane mostrou que os dados dos resultados relatados em Lancet diferiram dos relatórios de estudos clínicos em 12 dos 19 ensaios que eles examinaram. [17]

Um editor da Cochrane nos pediu para descrever como as pílulas da depressão funcionam e quais são as diferenças entre elas, e um revisor queria que explicássemos quando era apropriado e inadequado usar as pílulas da depressão. Entretanto, não estávamos escrevendo um livro didático em farmacologia clínica, estávamos apenas tentando ajudar os pacientes a se livrarem de seus medicamentos.

Escrevemos em nosso protocolo que, “Alguns pacientes se referem à hipótese desacreditada de que um desequilíbrio químico em seu cérebro é a causa de seu transtorno psíquico e, portanto, também a razão para não se atreverem a parar”. O 8º revisor, que acreditava claramente no absurdo do desequilíbrio químico, opinou que descartamos muitas décadas de evidências de mudanças neuroquímicas observadas na depressão e nos acusou de termos sugerido, sem nenhuma evidência, que os prescritores perpetuam inverdades para justificar a prescrição de medicamentos.

Eles certamente o fazem, mas Cochrane usou a tática familiar de culpar os pacientes pelos erros e mentiras dos psiquiatras. Respondendo à mesma frase, a editora coordenadora Sarah Hetrick nos pediu para escrever: “As pessoas que tomam antidepressivos podem acreditar que isto é necessário porque acreditam que as dificuldades, que estão passando são devidas a um desequilíbrio químico no cérebro”. Os pacientes não inventaram esta mentira; os psiquiatras sim! [6]

O 8º revisor nos pediu para explicar o conceito de tratamento contínuo da pílula profilática para depressão, “uma estratégia clínica bem aceita”, mas isto estava fora do escopo de nossa revisão. Além disso, como observado no Capítulo 2, todos os ensaios realizados comparando a terapia de manutenção com a retirada do medicamento são defeituosos devido aos efeitos da interrupção abrupta no último grupo.

Fomos erroneamente acusados de ter confundido o reaparecimento da doença com os sintomas de abstinência, e o revisor até mesmo argumentou que a maioria das pessoas que havia tomado comprimidos da depressão por períodos prolongados poderia parar em segurança sem problemas, o que é flagrantemente falso.

O revisor queria que removêssemos esta frase: “a condição dos pacientes é melhor descrita como dependência às drogas” referindo-se aos critérios de dependência às drogas do DSM-IV. Respondemos que, de acordo com esses critérios, ninguém que fuma 20 cigarros todos os dias é dependente de fumar cigarros.

O nível de negação, ofuscação e confusão foi realmente alto no processo de dois anos. Fomos solicitados por um revisor a dar referências sobre as taxas de dependência, mas já o tínhamos feito de tal forma que um editor nos pediu que encurtássemos o texto.

Nossa antiga suspeita de que a Cochrane não estava interessada em ajudar os pacientes a saírem de suas drogas psiquiátricas tinha se tornado agora uma certeza. Mas não desistimos e apresentamos três recursos, um para Churchill, outro para Chris Eccleston, editor sênior da Rede Cochrane de Saúde Mental e Neurociência e professor de psicologia médica, e finalmente, para a editora chefe da Cochrane, Karla Soares-Weiser, que é psiquiatra.

Enfatizamos que a Colaboração Cochrane não deve criar obstáculos cada vez maiores ao longo do caminho daqueles que se voluntariam a fazer o trabalho de ajudar os pacientes que sofrem, mas sim que deve estar disponível e ajudar. Anteriormente, tínhamos escrito aos editores que eles “estão transformando algo, que é muito simples, em algo muito complicado. A nossa revisão tem um objetivo muito simples: ajudar os pacientes a saírem das drogas que eles querem”. Um editor nos escreveu que o nosso principal resultado da “cessação completa do uso de drogas antidepressivas” deveria ser mais claramente definido, pois pode não ser uma cessação para toda a vida. Talvez não, mas nenhum estudo em psiquiatria jamais acompanhou todos os pacientes até que todos eles estejam mortos.

O nosso primeiro recurso não foi tratado por Churchill, mas pela editora coordenadora do grupo Cochrane Airways, Rebecca Fortescue. Segundo ela, “um leitor pode ficar com algumas dúvidas sobre a posição dos autores da revisão a respeito dos danos e benefícios relativos das drogas psiquiátricas, o que não reflete totalmente o consenso internacional atual e que poderia causar alarme entre os usuários da revisão que confiam na imparcialidade da Cochrane”. Respondemos com um eufemismo britânico: “Estamos um pouco surpresos com este comentário”. A Cochrane não trata de consenso, mas de como obter a ciência correta, e está muito longe de ser imparcial.[6,7] Além disso, avaliar os danos e os benefícios das drogas psiquiátricas estava fora do escopo da nossa revisão. Não tínhamos escrito sobre esta questão em nosso protocolo ou oferecido qualquer “postura”.

Apesar de termos apontado isso repetidamente, Fortescue, os outros editores da Cochrane e os revisores não entenderam que “Tipos de participantes” eram pessoas que tomavam pílulas e que queriam sair delas. Como os sintomas de abstinência são semelhantes para qualquer tipo de paciente, doença ou medicamento, esta abordagem ampla é a correta, o que já expliquei em 2000 no BMJ no artigo: “Por que precisamos de uma perspectiva ampla sobre a meta-análise: ela pode ser de importância crucial para os pacientes”. [18] Fortescue pediu uma descrição mais clara da população, da intervenção e dos comparadores; por exemplo, se incluiríamos ensaios em profilaxia da enxaqueca, dor crônica ou incontinência urinária, e outro editor pediu detalhes sobre quais idades, sexos, ambientes, diagnósticos de depressão e tipos de pílulas da depressão incluiríamos, como se estivéssemos planejando fazer um ensaio aleatório. Socorro! Estas exigências eram totalmente absurdas e amadoras. Incluímos tudo!

Embora tenhamos explicado ao Eccleston que havia muito pouco o que nos separasse do grupo de Distúrbios Mentais Comuns Cochrane após a nossa última revisão, que Fortescue não tinha visto; ele – embora sendo psicólogo – juntou-se às fileiras da Cochrane e rejeitou sumariamente o nosso recurso com apenas 56 palavras: “Lamento muito que este artigo não tenha sido bem sucedido porque concordo com a importância da pergunta. Espero sinceramente que ambos retomem o que está feito e o completem em um outro envio. Precisamos estimular uma discussão sobre este importante tópico e ele se tornou mais importante com o tempo e cada vez mais”.

A editora chefe da Cochrane, Karla Soares-Weiser, rejeitou o nosso apelo em 72 palavras: “Tive a oportunidade de analisar cuidadosamente o protocolo, os comentários editoriais e de revisão feita pelos pares, juntamente com as suas respostas e as trocas de e-mails entre a sua equipe e os editores do Grupo de Revisão. Os comentários obtidos do processo aberto da revisão pelos pares indicaram consistentemente haver uma falta de clareza em relação aos métodos de revisão propostos e, apesar de mais de uma oportunidade para abordar este assunto, o protocolo não mostrou evidências suficientes de que isto tenha progredido”.

Nós nos perguntamos como pode ser um “processo aberto de revisão por pares” quando o carrasco foi deliberadamente disfarçado. Não podemos nem mesmo verificar se essa pessoa tinha conflitos de interesse inaceitáveis. Também não estava correto que houvesse uma falta de clareza sobre os nossos métodos. Mesmo tendo achado muitas das exigências pouco razoáveis, fizemos o nosso melhor para estar à altura delas e, sendo um autor de cerca de 20 revisões Cochrane e inúmeras outras revisões sistemáticas, tendo defendido o que poderia ser a primeira tese de doutorado sobre meta-análises no mundo da saúde, e tendo desenvolvido vários dos métodos que a Cochrane utiliza, acho que sei o que estou fazendo, em contraste com os editores da Cochrane.

O fato de que os pacientes estão se organizando em grupos de sobreviventes e em várias iniciativas relacionadas à retirada em todo o mundo é um sinal claro de que a guilda psiquiátrica os ignora, o que a Cochrane também o faz. Embora seja verdade que “algumas pessoas têm sintomas terríveis de abstinência”, um revisor queria que banalizássemos totalmente este mal escrevendo que “algumas pessoas têm sintomas de abstinência que podem afetar negativamente a qualidade de vida do paciente”. Isto deve estar no topo dos eufemismos britânicos. Nós muda- mos “terrível” para “grave”, o que foi documentado usando exatamente esta palavra.[8]

Também em 2015, a Cochrane protegeu os interesses da guilda psiquiátrica, os interesses comerciais da indústria de drogas e as falsas crenças da especialidade, quando expliquei em um artigo do BMJ por que o uso de drogas psiquiátricas a longo prazo causa mais danos do que benefícios e que, portanto, nós devemos usar essas drogas com muita parcimônia. [19] No mesmo dia, o então editor-chefe da Cochrane, David Tovey, que não é psiquiatra, mas tem formação como médico de família, e os três editores responsáveis pelos três grupos de saúde mental da Cochrane, incluindo Rachel Churchill, atacaram a minha credibilidade científica em uma resposta rápida ao meu artigo. [7] Vários editores de outros grupos da Cochrane me disseram que estavam consternados por esses editores terem tentado denegrir a minha pesquisa apelando à autoridade e não à razão, o que eles achavam que não deveria acontecer na Cochrane.

Publicaremos nossa revisão de retirada das drogas em um periódico cujos editores não sejam moralmente corruptos e que têm como principal prioridade os interesses dos pacientes.

Guia para a retirada de drogas

Os médicos de família são os maiores prescritores de medicamentos psiquiátricos, mas os psiquiatras devem ser supostamente os especialistas em como e quando usá-los, e como sair deles. Eles são, portanto, os responsáveis pelo desastre das drogas que temos.

Os psiquiatras tornaram centenas de milhões de pessoas dependentes de medicamentos psiquiátricos e ainda não fizeram praticamente nada para descobrir como ajudar os pacientes a viver sem eles novamente. Eles realizaram dezenas de milhares de testes de drogas, mas sobre a retira segura apenas alguns poucos estudos. Temos, portanto, muito pouco conhecimento baseado em pesquisas sobre como retirar as pessoas.

Há mais de 150 anos, não só não existe uma base de evidências sobre como se pode eliminar os medicamentos psiquiátricos viciantes – incluindo brometos, ópio e barbitúricos – mas as diretrizes oficiais em todo o mundo têm sido insuficientes, enganosas e perigosas.[3,9,20,21] Em todos esses anos, os médicos ignoraram quando os seus pacientes reclamaram das dificuldades para sair de suas drogas e foram incapazes de ajudá-los.

Como resultado, os pacientes começaram a encontrar soluções por conta própria e a aconselhar outros pacientes em como parar com segurança.[21-27] Este extenso corpo de conhecimento dos usuários, baseado no trabalho daqueles que experimentaram a própria retirada, é muito mais confiável, relevante e útil do que o pouco que existe em termos dos chamados conhecimentos profissionais. Portanto, irei me concentrar nas experiências dos usuários e nos conselhos dos colegas que já fizeram a retirada de muitos pacientes. Vou alternar entre descrever a retirada do ponto de vista do paciente e do ponto de vista do terapeuta.

Muitos psiquiatras continuam a fechar os olhos para o desastre e argumentam que precisamos de mais provas de ensaios clínicos randomizados, mas é pouco provável que tais provas sejam úteis, pois a retirada é um processo altamente individual e variável. Além disso, mais de 150 anos de espera não é suficiente?

Há muitas coisas que você precisa considerar cuidadosamente antes de iniciar um processo de retirada. Se possível, você deve encontrar um profissional que o ajude a passar por isso. Este pode ser o seu médico, mas muitas vezes não pode. É pouco provável que o seu médico saiba como isso deve ser feito. Ainda hoje, muitos médicos aconselham aos seus pacientes a tomar os medicamentos dia sim, dia não,[2] o que causará sintomas horríveis e perigosos de abstinência em muitos pacientes e levará a fracassos completos. A maioria dos médicos, e os psiquiatras não são exceção, expõem os seus pacientes aos sintomas da retira abrupta porque retiram a droga muito rapidamente, e os insucessos que causam fazem com que muitos deles decidam não tentar ajudar os pacientes novamente, enquanto se convencem de que seus pacientes ainda estão doentes e que precisam da droga.

É assustador o que acontece na “vida real”, sobre a qual os psiquiatras adoram falar quando tentam se distanciar de pessoas como eu, que obtêm os seus conhecimentos principalmente da leitura e de suas próprias pesquisas. A realidade é muito diferente do mundo da fantasia que os psiquiatras retratam em seus artigos, livros didáticos e manifestos com o objetivo de influenciar os políticos e preservar o status quo. Aqui está uma história típica que um paciente me enviou: [1]

Após um evento traumático (surpresa, crise e depressão), receitaram-me pílulas da felicidade sem informação adequada sobre possíveis efeitos colaterais. Um ano depois, pedi à psiquiatra que me ajudasse a parar a droga, pois não achei que fosse útil… Quando deixei a psiquiatra, ela me convenceu… que eu estava sendo maltratado e que deveria ter uma dose maior… Ela me advertiu contra interromper a droga, pois isso poderia levar à depressão crônica. Durante o período em que a psiquiatra esteve de licença médica prolongada, eu tive a coragem, apoiada por uma psicóloga, para afilar a droga. Eu vinha tomando a droga por 3,5 anos e havia ficado cada vez mais letárgica e indiferente a tudo. Era como escapar de uma redoma. A afilação não é sem problemas, dá muitos sintomas de abstinência … Quando a psiquiatra voltou após a sua doença, ela sentiu-se “insultada” com a minha decisão de parar a droga. Entretanto, eu estava muito melhor, e em resposta à minha pergunta de que eu não estava mais deprimida, ela disse: “Eu não sei”. Mas se eu não quiser pílulas da felicidade?, perguntei. “Bem, então eu não posso ajudá- la!” foi a resposta … esta psiquiatra tinha uma relação próxima com um fabricante de pílulas da felicidade.

É errado quando a autoestima dos psiquiatras está relacionada a se os seus pacientes gostam das drogas que eles prescrevem, e quando eles não veem alternativas às drogas, mas é comum eles dispensarem os pacientes que não querem drogas. Embora os psiquiatras queiram tanto ser vistos como verdadeiros médicos, eles esqueceram o que isso significa: em primeiro lugar, é não fazer mal. Com as suas drogas, eles viraram tudo de cabeça para baixo: primeiro, fazer mal. E dizer aos pacientes que eles se acostumarão a isso.

É uma batalha difícil, mas se você tiver sorte e tiver um bom médico que esteja disposto a ouvir e a admitir a própria incerteza dele, talvez você queira tentar educá-lo como parte do seu processo de retirada, o que beneficiaria a outros pacientes.

Anos atrás, uma de minhas colegas, a farmacêutica Birgit Toft, decidiu fazer exatamente isso: educar os médicos de família. Ela se concentrou nos benzodiazepínicos e na retirada deles, e os seus resultados foram notáveis. [28] A partir de 2005, Birgit fez um grande esforço junto aos médicos de família de uma região dinamarquesa para reduzir o uso excessivo das pílulas do “sono nervoso”. Como as recomendações e diretrizes não haviam funcionado, os seus esforços foram direcionados à atitude dos médicos e à renovação das prescrições médicas.

De 2004 a 2008, o consumo caiu 27%. O modelo foi adotado em todo o país em 2008, e após alguns anos, o consumo em todo o país havia caído significativamente.

O que funcionou foi o compromisso e a mudança de atitude dos médicos; eles e suas secretárias adquiriram novos conhecimentos; bem como a colaboração entre os profissionais. Além disso, era essencial que os pacientes se reunissem pessoalmente na clínica se as prescrições fossem renovadas e que os pés dos médicos fossem mantidos ao fogo por consul- tores de qualidade na região.

A maioria das prescrições são renovadas por telefone pela secretária ou pela Internet. A secretária prepara uma renovação da receita, que o médico aprova apertando um botão no computador. Essa fácil renovação das prescrições é uma das razões pelas quais os tratamentos continuam por muito tempo. A atenção do médico não é grande o suficiente quando o paciente não aparece na clínica. Portanto, devemos exigir atendimento pessoal para todos os medicamentos psiquiátricos, e mudanças de atitude devem ser feitas, de modo que a retirada se torne pelo menos tão importante quanto iniciar o tratamento.

Foram realizadas palestras para médicos e secretários, foram escritos panfletos para médicos, secretários e pacientes, e a imprensa semanal local informou aos cidadãos que eles poderiam esperar ver o seu médico na próxima vez que chamassem a clínica para uma prescrição médica.

O ensino concentrou-se nos danos do medicamento, especialmente nos sintomas de abstinência. Os médicos foram instados a começar com os pacientes mais fáceis, experimentando assim que era possível afilar o medicamento.

Muitos médicos estavam céticos. No entanto, eles não haviam tentado a afilação lenta introduzida por Birgit, faziam a redução durante apenas alguns dias ou submetiam os pacientes a uma interrupção abrupta. Apesar da relutância deles, muitos médicos acabaram pedindo desculpas a seus pacientes por tê-los enganchado com a droga. O uso de estatísticas foi inicialmente percebido como uma ameaça, mas quando os médicos revisaram as prescrições de seus pacientes, foi como um abrir de olhos e, por fim, passaram a solicitar as estatísticas de uso para ver se os seus esforços haviam funcionado.

Infelizmente, o sucesso foi de curta duração, pois os médicos passaram a usar as novas pílulas da depressão. O trabalho de Birgit nos diz que é útil envolver-se no trabalho dos profissionais, mas também que o efeito desaparece rapidamente se o processo não for permanente.

Pessoas de apoio

Alguns médicos não vão querer que você se retire das drogas. Ou não querem investir o tempo que será necessário, uma vez que a renda proveniente da receita médica após alguns minutos de consulta é muito maior do que se eles se envolverem em problemas das pessoas com a retirada e fornecerem apoio psicológico enquanto as pessoas estão em processo de retirada. Há tantos obstáculos no sistema, o qual não está orientado de forma alguma para ajudar as pessoas a se retirarem, que parece como se a medicação para toda a vida fosse tacitamente assumida como uma coisa boa.

Se não for um médico, quem pode ser seu ajudante? Tente encontrar uma pessoa que tenha tido sucesso com a retirada, um chamado mentor de recuperação, e envolva essa pessoa em sua retirada, se você puder. Na maioria dos países há organizações de sobreviventes psiquiátricos que estão preparados para ajudar. [22-26] Vá à Internet e encontre-os.

Além dos mentores de recuperação, os melhores ajudantes são pessoas treinadas em psicoterapia, por exemplo, psicólogos. Pode ser uma experiência esmagadora quando as suas emoções, que foram suprimidas por tanto tempo, retornam, e nesta fase pode ser crucial que você obtenha apoio psicológico de alguém que possa lhe ensinar a como lidar com a transição de viver em uma redoma para viver uma vida plena, para que você não desista e se esconda novamente sob uma nuvem de drogas, esquecendo que o sol está esperando por você do outro lado.

Alguns psicólogos se recusam a ajudar os pacientes no processo de retirada, porque foram doutrinados durante os seus estudos universitários por professores que são psiquiatras biológicos incondicionais propagando as muitas mentiras da especialidade. Eles podem, portanto, acreditar que os medicamentos psiquiátricos são a tal ponto bons e necessários que não é necessária a retirada. A maioria dos psicólogos acredita que os psiquiatras sabem o que estão fazendo. Em outros casos, eles pensam que não estão autorizados a interferir com as prescrições e as ordens dos médicos.

Isto não é correto. Os psicólogos podem ajudar os pacientes com os seus problemas e dar os conselhos que se sentem confortáveis em dar, apoiando-os o máximo possível, não importa qual seja a questão, e, portanto, também quando os pacientes decidem que querem sair de suas drogas. Um guia abrangente para psicólogos foi publicado em dezembro de 2019 que pode ajudar àqueles que estão em dúvida sobre o que eles podem fazer e como fazê-lo. [9]

Conheço vários psicólogos que ajudam os pacientes a se retirarem de todos os tipos de drogas, também neurolépticos. Os psiquiatras podem tentar impedir que outros médicos façam isso (acima ver a queixa de Videbech sobre mim), dizendo-lhes que, de acordo com a lei, somente os psiquiatras podem determinar se um paciente deve continuar com um neuroléptico. O que esta lei significa pode ser discutido e interpretado, mas como só se aplica a médicos, os psicólogos e os outros terapeutas são livres para fazer o que acharem apropriado.

Um profissional de saúde ou mentor de recuperação raramente será capaz de apoiá-lo diariamente. Portanto, você precisa de uma ou duas pessoas que estejam dispostas a fazer isso, pois você pode não ser capaz de se avaliar durante a retirada. Você também precisa decidir se aqueles que se preocupam com você e tentam ajudá-lo podem entrar em contato com o seu médico e outros, se eles observarem problemas ou reações sérias que você não possa ver em si mesmo ou que nega a existência. Diga-lhes o que você decidiu.

A pessoa de apoio diário poderá ser um membro da sua família ou um bom amigo, desde que essa pessoa compartilhe a sua opinião de que uma vida sem drogas é melhor do que uma vida com drogas, a qual você deu o controle a psiquiatras ou outros médicos.

A sua pessoa de apoio não deve ser uma pessoa com ideias fofas, pois isso pode distraí-lo em vez de ajudá-lo. Muitas pessoas bem-intencionadas têm publicado recomendações estranhas na Internet e em folhetos sobre a retirada que você deve ignorar, por exemplo, beber muita água, homeopatia, acupuntura, vitaminas, outros tipos de medicina alternativa e várias dietas não o ajudarão.29 O que pode ser útil é concentrar-se em algo positivo, algo que você gosta, por exemplo, tocar piano, fazer esporte ou caminhar na floresta. Evite o máximo possível os pensamentos negativos. Eles tendem a prendê-lo em uma espiral descendente.

Para o terapeuta, uma abordagem estruturada é muito útil. Deve haver tempo suficiente na primeira reunião, e você deve fazer um histórico completo para entender como pode ajudar melhor. Quando é que a questão da saúde mental começou e o que foi? O primeiro sintoma é muitas vezes a ansiedade,30 mas isto tende a ser esquecido, pois a condição se deteriora e outros sintomas aparecem, e especialmente depois de uma longa “carreira” psiquiátrica onde o paciente pode nem se lembrar que houve um tempo em que ele estava bem e como era essa sensação.

Foi dito ao paciente que ele tinha um desequilíbrio químico, que as drogas funcionam como a insulina para o diabetes, que a sua doença está em seus genes e que duraria uma vida inteira, ou que ele poderia ficar demente ou sofrer danos cerebrais de outras formas se ele não tomasse as drogas? Todas estas mentiras são prejudiciais porque convencem os pacientes de que devem tomar drogas que não gostam, porque pensam que a alternativa é pior.

Ele já tentou se retirar antes, teve algum apoio, ou só encontrou resistência? Por que ele falhou?

Um bônus adicional por dedicar tempo suficiente na primeira reunião poderia ser o de reforçar a autoconfiança e a determinação do paciente  para finalmente fazer algo. Pode ser a primeira vez que alguém mostra interesse em levar a sério o histórico completo do paciente, ou em ouvir atentamente o paciente quando ele decide tomar o seu destino em suas próprias mãos. Este é um momento crucial e vulnerável onde você deve dar ao paciente todo o apoio emocional que puder.

Muitas vezes é um trabalho enorme para ajudar um paciente a passar pela retirada, e não termina aí. Junto com o paciente, você deve envolver tudo e resumir o processo de retirada, incluindo os sintomas mais importantes experimentados ao longo do caminho. Você também deve oferecer o seu apoio contínuo.

Como ocorre com a maioria das outras condições, os sintomas de abstinência aumentam e diminuem. Se você ficar estressado, alguns dos sintomas de abstinência podem retornar,21 o que aumenta dramaticamente o risco de você cair novamente na armadilha do medicamento, particularmente porque a maioria dos médicos descartará a possibilidade de que os sintomas de abstinência possam reaparecer muito tempo após uma abstinência bem sucedida e lhe dirá que são sintomas da doença. Os sintomas também podem ressurgir sem razão aparente ou em resposta a outros medicamentos, já que muitos medicamentos não psiquiátricos têm efeitos sobre o cérebro. Lembre-se, pode levar muitos anos até que o seu cérebro tenha se recuperado completamente.

A(o) paciente precisa saber que você estará sempre disponível para ela(ele). Esta sensação de segurança e que alguém se importa pode ter um forte efeito curativo (ver também o Capítulo 3 sobre psicoterapia).

O comitê de ética em pesquisa matou o nosso projeto de retirada

Eu tive sete estudantes de doutorado em psiquiatria que produziram incomparáveis resultados de pesquisa com grande benefício para os pacientes, mas os nossos resultados foram praticamente todos desprezados pelos líderes psiquiátricos e outros médicos igualmente aprisionados na mitologia da psiquiatria.

Houve bloqueios desde o início, quando queríamos percorrer a paisagem psiquiátrica. A minha primeira estudante de doutorado em psiquiatria, Margrethe Nielsen do Conselho Dinamarquês do Consumidor, mostrou em seu doutorado que tínhamos repetido os mesmos erros com as novas pílulas da depressão o que havíamos feito anteriormente com as benzodiazepinas, e antes delas com os barbitúricos. Eu citei os seus estudos em capítulos anteriores. Eles eram sólidos, mas não foram bem aceitos por dois dos seus examinadores, que tinham motivos para se auto-defender. [6] Um, Steffen Thirstrup, trabalhava para a agência dinamarquesa de regulação de medicamentos, o outro, John Sahl Andersen, era clínico geral.

Eles queriam rejeitar a tese dela sem haver uma razão aparente, e o terceiro examinador, o professor psiquiatra David Healy, discordou deles. Esta era uma situação delicada, e um funcionário da universidade chamou-me para discutir o que deveríamos fazer. Concordamos em tratar as rejeições, que foram totalmente pouco convincentes, como se tivessem sido revisões pelos pares. Margrethe respondeu aos comentários e reescreveu um pouco a sua tese, e depois de ter apelado para a Universidade, ela a defendeu com sucesso. Se não houvesse um terceiro examinador, ela poderia não ter obtido o seu doutorado, o que teria sido uma grande injustiça, pois a sua tese é consideravelmente melhor do que muitas que eu vi.

Anders e eu decidimos que ele deveria orientar 30 pacientes consecutivos que se dirigiam a nós para pedir ajuda na retirada, não importando quais drogas tomavam, e escrever sobre isso porque não havia um único artigo desse tipo na literatura. Raciocinamos que seria melhor lidar com esta ideia “herege” – à qual a psiquiatria dominante se oporia veementemente – com o máximo de cuidado e, portanto, escrevemos um protocolo de pesquisa que submetemos ao comitê de ética em pesquisa.

Consideramos fazer uma ensaio randomizado porque isto é o que normalmente se necessita para convencer as pessoas de que elas devem seguir os seus conselhos quando fazem a sua retirada. Mas não podíamos ver o que deveríamos fazer aleatoriamente. Intervalos curtos ou longos entre as reduções da dose? Não é relevante, pois é altamente individual o quão rápido se pode afilar. Reduções da dose de 10% ou 20% de cada vez? Poderíamos haver feito isso e talvez isso tivesse dado resultados interessantes. Mas como não achávamos provável, submetemos um protocolo sem randomização que descrevesse o que planejávamos fazer com todos os pacientes.

Muito fácil e direto pensamos, mas nos deparamos com um formidável bloqueio de estrada. O comitê respondeu que, embora dois psiquiatras experientes estivessem envolvidos com o nosso projeto, o principal investigador, Anders, era um psicólogo e não havia uma descrição clara de quem seria o responsável pela retirada de drogas, o que, por razões de segurança do paciente, precisava ser um psiquiatra.

Uma observação interessante é considerar que um membro do comitê era um psiquiatra trabalhando no hospital psiquiátrico de Copenhague aonde, em um curto intervalo de tempo, matou dois pacientes com neurolépticos porque os psiquiatras eram incompetentes. [31] Ambos caíram mortos de repente no chão. O primeiro morreu bem na frente do segundo, Luise, que contou à sua mãe: “Eu serei a próxima”. Luise sabia que os psiquiatras iriam matá-la. Ela sobreviveu por um tempo, porque tolerou a overdose de neurolépticos vomitando a maioria deles. Finalmente, eles quebraram o seu mecanismo de defesa com uma injeção letal de uma droga de depósito. Isto foi chamado de “morte natural”. Tanto ela quanto a sua mãe haviam avisado à unidade assistencial sobre a dose muito alta, mas os psiquiatras as ignoraram.

No dia em que mataram a sua filha, todos os anos há uma manifestação em frente ao hospital, com faixas organizadas pela organização “Morta pela Psiquiatria”, que a sua mãe Dorrit Cato Christensen iniciou. Às vezes, há cerca de 20 parentes de pacientes psiquiátricos que morreram da mesma maneira.

O livro de Dorrit sobre a sua filha é uma longa história de horror com as malfeitorias feitas pela psiquiatria. Nem mesmo após a morte houve justiça. Dorrit reclamou, mas a arrogância do sistema foi inacreditável, tanto antes quanto depois da sua morte. Foi-lhe dito que o tratamento tinha correspondido ao padrão profissional em psiquiatria, o que infelizmente não está muito longe da verdade, pois o padrão é horrível em todos os lugares. O prefácio, escrito pelo anterior Primeiro Ministro Poul Nyrup Rasmussen, começa com: “Mãe, você não vai dizer ao mundo como somos tratados?”. [31] Este foi o último pedido da filha feito à sua mãe antes de ser morta.

Assim, não podíamos de forma alguma ver porque, por razões de segurança do paciente, um psiquiatra precisava ser responsável pela retirada de drogas em nosso projeto. Além disso, não se trata de uma exigência legal.

A fim de avaliar se a pesquisa era segura para os pacientes, o comitê solicitou que realizássemos uma revisão bibliográfica sobre o risco de tentativas e suicídio entre esses pacientes. Esta foi também uma observação interessante, pois as drogas aumentam o risco de suicídio e que não existem drogas que reduzam o risco.

Foi-nos pedido que explicássemos em detalhes como garantiríamos que somente os sujeitos que tolerassem a retirada de drogas seriam retirados das drogas na pesquisa. Este foi um ardil-22 que matou o nosso projeto, pois ninguém – inclusive psiquiatras – seria capaz de garantir isto. Haveria que usar ensaio e erro.

As outras exigências eram igualmente irracionais. O comitê queria que os critérios de inclusão e exclusão fossem mais específicos e solicitou uma explicação de quais parâmetros usaríamos e se nossos questionários foram validados e possibilitariam tirar conclusões confiáveis. O estágio final da pesquisa era se o paciente havia ficado livre de medicamentos, o que não exige que os questionários validados sejam confiáveis.

Também nos foi solicitado que fizéssemos muitos acréscimos às informações do paciente. Pense sobre isso. Quando um comitê de ética em pesquisa acredita que é tão perigoso ajudar pacientes que querem sair de suas drogas, então por que diabos as drogas foram aprovadas em primeiro linha? Elas não são perigosas demais para serem usadas? Creio que esta deve ser a conclusão lógica, mas com a assistência em saúde não se trata de lógica; trata-se de poder.

Depois que o comitê matou o nosso projeto, chamei uma advogada que trabalhava para o comitê e lhe disse que poderíamos simplesmente retirar os pacientes como o planejado, sem chamar a isso de pesquisa. Ela não teve bons argumentos contra isso, então foi isso o que fizemos.

Estão sendo realizados ensaios clínicos que randomizam os pacientes para a retirada abrupta e para a que é feita gradualmente. Esses estudos são altamente antiéticos, pois metade dos pacientes é prejudicada desnecessariamente. Por diversão acessei clinicaltrials.gov e procurei por depressão [depression] e afilamento [taper]. A primeira experiência que encontrei foi totalmente antiética, para todos os pacientes. A pesquisa compara um afilamento de duas semanas com um afilamento de uma semana (ClinicalTrials.gov Identifier: NCT02661828): “Como a cessação abrupta de medicamentos antidepressivos pode causar sintomas angustiantes (incluindo e não se limitando à piora do humor, irritabilidade/agitação, ansiedade, tonturas, confusão e dor de cabeça), o objetivo deste estudo é comparar a tolerância de dois regimes de afilamento com a hipótese de que a afilação da dose de antidepressivo durante duas semanas produzirá menos sintomas de descontinuação do que um regime de afilação de uma semana”. Esta pesquisa foi patrocinada pela Emory University, famosa por um enorme escândalo de corrupção (ver Capítulo 2). [6] Não preciso dizer mais nada. A psiquiatria é uma loucura, mas não tanto por causa dos pacientes.

Dicas sobre a retirada

Anders reuniu uma coorte consecutiva de 30 pacientes que nos contataram para obter ajuda. Não estabelecemos limitações quanto ao tipo de droga, diagnóstico, duração da ingestão de drogas, gravidade dos sintomas atuais, tentativas anteriores de retirada, ou a avaliação do psiquiatra clínico sobre se a descontinuação poderia ser recomendada.

Cerca da metade dos 30 pacientes tinha tomado drogas por 15 anos ou mais; a maioria deles tinha tentado se retirar várias vezes sem sucesso; e todos os tipos de drogas psiquiátricas estavam envolvidas. Apesar das altas probabilidades, Anders percorreu um longo caminho e retirou a maioria dos pacientes, em seu tempo livre e sem pagamento.

O trabalho de Anders é impressionante, e seus pacientes são imensamente gratos pela sua ajuda altruísta. Eles fazem consultas ad hoc com ele de acordo com as suas necessidades e ele organiza reuniões de grupo quatro vezes por ano, onde compartilham as suas experiências. Eles têm o seu número de celular e podem ligar para ele a qualquer momento. Isto é importante do ponto de vista psicológico e tem colocado um fardo extra sobre ele. Muitos têm usado esta possibilidade, o que ilustra que é muito exigente ajudar as pessoas a se retirarem.

Os pacientes preenchem três questionários:

  1. Uma entrevista qualitativa estruturada antes da primeira redução da dose, o que inclui a sua história e a experiência com a psiquiatria, detalhes sobre as tentativas anteriores de abstinência, as suas próprias opiniões sobre os seus sintomas e a condição, detalhes sobre o que lhes foi dito pelos seus psiquiatras, e medos e esperanças para a tentativa de uma abstinência
  2. Depois de haver se tornado livre das drogas, uma entrevista qualitativa sobre as experiências deles de passar pela retirada e a recuperação da psicopatologia, as orientações sugeridas para outros pacientes, quais foram as barreiras e o que os ajudou
  3. Um questionário sobre qualidade de vida (Q-les-Q) antes da primeira redução da dose e seis meses depois de ter se tornado livre delas.

Uma vez por ano, todos os pacientes e os seus parentes mais próximos são convidados para uma noite de informação onde os princípios básicos da retirada das drogas e da recuperação da psicopatologia são explicados em detalhes e perguntas podem ser feitas. O objetivo é fortalecer a função de apoio dos parentes e evitar ter parentes que se oponham à escolha dos pacientes pela retirada, o que muitas vezes é um problema.

Foi criada uma rede de apoio entre pares aonde os pacientes podem compartilhar informações e apoiar uns aos outros fora das reuniões oficiais.

A terapia envolve ajudar os pacientes a superar as dificuldades que eles experimentam. Isto inclui o tratamento dos sintomas de abstinência – como eles são, como minimizá-los, como lidar com eles psicologicamente e como evitar que se desenvolvam em uma ansiedade destrutiva e em desistência da retirada. Também envolve lidar com a ansiedade e com as emoções na medida em que as pessoas voltam à vida (cessou o embotamento emocional), o retorno à sociedade e às relações sociais, a crise de perceber o quanto a psiquiatria biológica roubou a sua vida e como fazer uso de um tratamento genuíno e não medicamentoso da doença, se ela ainda estiver presente após a retirada bem-sucedida.

Sem uma abordagem sistemática e apoio durante a retirada, é provável que o resultado seja muito menos positivo do que o que Anders obteve.

Dos 250 adultos com doenças mentais graves que queriam parar os medicamentos psiquiátricos, os quais 71% deles haviam tomado por mais de nove anos, apenas 54% atingiram o seu objetivo de descontinuar completamente um ou mais medicamentos. [32,33] Eles usaram várias estratégias para lidar com os sintomas de abstinência, que 54% classificaram como graves. A autoeducação e o contato com amigos e com outras pessoas que haviam parado ou reduzido os medicamentos foram citados com mais frequência como sendo úteis. Apenas 45% classificaram os médicos como úteis durante a retirada; 16% começaram o processo contra o conselho do seu médico, e 27% não disseram ao médico, pararam de consultar o médico ou procuraram um novo médico. Dos entrevistados que tiveram sucesso, 82% estavam satisfeitos com a sua decisão.

Na Holanda, o ex-paciente Peter Groot e o professor psiquiatra Jim van Os tiveram uma iniciativa notável. Uma farmácia holandesa produz tiras afiladas, com doses cada vez menores do medicamento, facilitando a retirada do mesmo. Seus resultados também são notáveis: em um grupo de 895 pacientes em pílulas da depressão, 62% haviam tentado se retirar sem sucesso, e 49% destes haviam experimentado sintomas graves de retirada (7 em uma escala de 1 a 7). [33] Após uma mediana de apenas 56 dias, 71% dos 895 pacientes haviam retirado o seu medicamento. Cada tira cobre 28 dias e os pacientes podem usar uma ou mais tiras para regular a taxa de redução da dose. Há um site dedicado a isto onde informações atualizadas podem ser encontradas: taperingstrip.org.

Venlafaxine pode ser uma droga particularmente difícil, mas Groot e van Os mostraram que 90% dos 810 pacientes que começaram com a dose mais baixa disponível, 37,5 mg, fizeram a afilação em três meses ou menos. [21] Alguns precisaram de mais de meio ano, pois sofriam de sintomas graves de abstinência, e muitos dos que tiveram sucesso em apenas três meses teriam se beneficiado de um período mais longo de retirada, pois os sintomas de abstinência podem ser acentuadamente reduzidos se a afilação levar mais de seis meses. [34]

No entanto, existe um problema de seguro. As seguradoras de saúde holandesas se recusam a reembolsar os medicamentos afilados pelo tempo necessário, porque “não há provas na literatura” de que a retirada tão lenta seja necessária. O Instituto Nacional de Saúde Holandês tem estado do lado das seguradoras de saúde em todos os casos em que os pacientes emitiram uma reclamação oficial, mesmo quando os seus médicos tinham atestado a gravidade dos sintomas da retirada. [21]

  • ADVERTÊNCIA! As drogas psiquiátricas são viciantes. Nunca as interrompa abruptamente, porque as reações de abstinência podem consistir em sintomas emocionais e físicos graves que podem ser perigosos e levar ao suicídio, violência e homicídio. [6]
  • Nunca tente proceder o afilamento da medicação em um paciente que não tem um desejo genuíno de estar livre de drogas. Isso não vai funcionar.
  • É da maior importância que VOCÊ seja o responsável pela retirada. Não vá mais rápido do que você pode.
  • Encontre alguém que possa acompanhá-lo de perto durante a retirada, pois você mesmo pode não notar se você ficar irritável ou inquieto, que são alguns dos sinais de
  • A retirada pode ser a pior experiência de sua vida. Portanto, você precisa estar preparado para isso. Você não deve começar se estiver trabalhando demais ou estressado, o que poderia piorar os sintomas da retirada.
  • Lembre-se sempre, especialmente se for difícil, que do outro lado existe uma vida sem drogas que é melhor e que você a
  • Não é culpa sua se você se sente miserável. A culpa é do seu médico que lhe prescreveu os medicamentos. Não perca a esperança ou a sua autoconfiança.
  • Não acredite nos médicos que lhe dizem que você se sente miserável porque a sua doença retornou. Este é muito raramente o caso. Se os sintomas vêm rapidamente e você se sente melhor em poucas horas após aumentar novamente a dose, é porque você tem sintomas de abstinência, não porque a sua doença cause isso.

Em 2017, Sørensen, Rüdinger, Toft e eu escrevemos um pequeno guia para a retirada de medicamentos psiquiátricos, com dicas sobre como dividir comprimidos e cápsulas, e fizemos uma tabela de abstinência. Atualizamos as informações em 2020 em meu site, deadlymedicines.dk, onde há também uma lista de pessoas de vários países que estão dispostas a ajudar as pessoas a se retirarem, e links para vídeos de nossas palestras sobre a retirada em 2017. [35]

Vou ampliar essas informações abaixo. Fui inspirado por muitas pessoas, além de numerosos pacientes e dos profissionais já mencionados, particularmente pelos psiquiatras Jens Frydenlund e Peter Breggin cujo livro sobre a retirada de medicamentos psiquiátricos é muito útil. [36]

Há uma enorme sobreposição de sintomas de abstinência entre as diferentes classes de drogas e, embora existam diferenças importantes, é mais fácil seguir a orientação se ela for a mesma para todas as drogas. Como é altamente variável a experiência de pessoas diferentes, mesmo quando elas se retiram da mesma droga, isto também fala para manter os conselhos gerais. Portanto, você pode usar os meus conselhos se estiver tomando neurolépticos, lítio, sedativos, pílulas para dormir, pílulas da depressão, drogas parecidas com a velocidade ou antiepilépticos.

Antes de iniciar um processo de retirada, você deve se preparar com muito cuidado. Familiarize-se com o tipo de sintomas de abstinência, na forma de sintomas físicos e sentimentos e pensamentos inesperados, que você possa experimentar. Leia o folheto informativo do seu medicamento e assegure-se de ter um bom apoio de pessoas próximas a você. Você deve estar determinado a sair de sua droga, pois isso pode não ser fácil.

Os sintomas de abstinência são positivos, pois significam que o seu corpo está prestes a se tornar normal novamente. Eles não significam “eu sem drogas”, mas “eu na minha saída das drogas”. Durante um afilamento lento, os sintomas de abstinência desaparecerão na maioria das pessoas após alguns dias ou 1-2 semanas.

Como já observado, os sintomas de abstinência podem reaparecer repentinamente após um período sem sintomas, por exemplo, se você ficar estressado. [36] Isto é normal e não significa que a sua doença tenha voltado.

É importante que você tenha um começo com sucesso. Portanto, muitas vezes é melhor começar por remover a droga iniciada mais recentemente, [36] pois a retirada se torna mais difícil quanto mais tempo você estiver consumindo uma droga. [33,36] Também é importante retirar os neurolépticos e o lítio logo no início, pois eles causam muitos danos. [36]  A abstinência pode causar problemas de sono, o que é uma boa razão para que os auxiliares de sono sejam removidos por último.

Não é aconselhável retirar mais de uma droga de cada vez, pois isso torna difícil descobrir qual a droga está causandi os sintomas da abstinência.

Raramente é uma boa ideia substituir um medicamento por outro, mesmo que o novo medicamento tenha uma meia-vida mais longa e, portanto, seria mais fácil trabalhar com ele. Alguns médicos fazem isso, mas uma troca pode levar a problemas de abstinência ou, ao contrário, de sobredosagem, pois é difícil saber quais as doses devem ser usadas para as duas drogas durante a fase de transição. Mas pode ser necessário, por exemplo, se o comprimido ou a cápsula não puder ser dividida (ver abaixo).

Geralmente não é aconselhável introduzir um novo medicamento, por exemplo, um comprimido para dormir, se os sintomas de abstinência dificultarem o sono. Se os problemas se tornarem insuportáveis, é melhor aumentar um pouco a dose antes de tentar reduzir novamente, desta vez por uma quantidade menor ou com intervalos mais longos, ou ambos. Você decide, pois é o responsável pela retirada de seu medicamento; todos os outros são seus ajudantes.

Quão lento você deve ir? Como a maioria dos pacientes está consideravelmente sobredosada, talvez seja tentador dar um grande passo na primeira vez e reduzir a dose em 50%. Mas é melhor ir devagar desde o início, não só porque faz você sentir que pode lidar com a retirada, mas também porque pode dar errado com um grande primeiro passo. Isto pode ser porque todas as drogas não são específicas. Elas têm efeitos sobre muitos receptores, [34] e não conhecemos as curvas de ligação para todos estes receptores. Talvez você já esteja na parte íngreme da curva para um dos receptores quando inicia, ou talvez você esteja em regiões particulares do cérebro.

A retirada NÃO é um exercício acadêmico que pode ser derivado da teoria ou de ensaios randomizados, é um processo de ensaio e erro para cada um dos pacientes. O ritmo depende do medicamento, em particular de sua meia-vida, que é o tempo que leva para que a concentração sérica seja reduzida pela metade. A variação de paciente para paciente é enorme e também varia geneticamente, em termos de quão rapidamente cada um metaboliza um fármaco. Anders encontrou cinco ensaios randomizados, mas todos eles são problemáticos. Mais importante ainda, a afilação foi feita de forma muito rápida no grupo experimental, por exemplo, em apenas duas semanas. Estes ensaios levaram à alegação errônea de que não haveria vantagem significativa de uma afilação lenta em comparação com uma descontinuação abrupta! [21]

A redução da dose deve seguir uma curva hiperbólica (ver abaixo). Isto parece complicado, mas não é. Significa apenas que você reduz a dose  toda vez que você faz a afilação, removendo a mesma porcentagem da dose anterior. Assim, se você reduzir a dose em 20% cada vez, e você tiver reduzido para cerca de 50%, então você deve remover 20% novamente da próxima vez, o que significa que você agora desce para 40% da dose inicial. Você pode precisar de uma lixa de unhas para fazer isto e uma balança para que você possa pesar as quantidades. Consulte a farmácia para dividir comprimidos ou abrir cápsulas; ela vende um divisor de comprimidos.

Curva hiperbólica para reduções de dose quinzenais.

As recomendações oficiais não são assim. Elas podem recomendar que você reduza a dose pela metade toda vez, o que significa que, começando com 100%, que é a sua dose habitual, você desce para 50%, 25% e 12,5% de sua dose habitual em apenas três etapas, o que é muito rápido demais. Utilizando o método percentual, que é 20% de cada vez, será assim após três etapas: 100%, 80%, 64% e 51%.

Você pode tentar um intervalo de duas semanas entre as reduções de dose. Se funcionar bem, você pode diminuir este intervalo, por exemplo para dez dias. Você também pode precisar ir mais devagar do que 20%, pois você pode se sentir melhor reduzindo apenas com 10% de cada vez, ou você pode precisar de um intervalo de quatro semanas. [34]

A comunidade leiga de retirada descobriu que o menos perturbador é quando se reduz a dose em apenas 5-10% por mês. [23] Entretanto, se você reduzir em 10% por mês, levará dois anos até que você desça para 8% da dose inicial, portanto, se você estiver tomando quatro medicamentos, pode levar oito anos para se tornar livre de medicamentos. É preferível ir mais rápido que isso, suportando o que vem, e obter uma nova vida mais rápida, também porque quanto mais tempo você tomar uma droga, maior o risco de dano cerebral permanente, e mais difícil é sair da droga.

Continue na sua própria velocidade – de acordo com o que você sente. Não reduza novamente antes de se sentir estabilizado em relação à dose anterior. Você pode até mesmo querer fazer uma pausa em uma determinada dose se você se sentir estressado. Tente ficar confortável com o que você faz. Se os sintomas de abstinência forem ruins, tente suportá- los um pouco mais, sabendo que eles geralmente se tornarão menos intensivos e mais rápidos. Se você suportar os sintomas, isso pode lhe dar uma força interior e acreditar que você pode fazer isso até o final e não cairá de volta na armadilha da droga. Mas se se tornar muito difícil, volte para a dose anterior e reduza o ritmo de retirada.

Certifique-se sempre de ter um ou dois amigos ou familiares com os quais você possa discutir a sua saída e que possam observá-lo. Você pode não notar se você se tornou irritável ou inquieto, o que pode ser sintomas de perigo.

Não é raro que as pessoas não percebam o progresso que estão fazendo, e podem tender a se concentrar nos desagradáveis sintomas de abstinência. Seja paciente e aguente. Faça algo de bom para si mesmo. Um dia, você pode perceber que as aves estão cantando, pela primeira vez em anos. Então, você sabe que está no caminho certo para a cura.

O último pequeno passo pode ser o pior, não só por questões físicas, mas também por razões psicológicas. Você pode se perguntar: “Eu tomei esta pílula por tanto tempo; atrevo-me a dar o último pequeno passo? Quem sou eu quando não tomo a pílula?” Não ajuda se seu médico rir de você e lhe disser que é impossível que você possa ter quaisquer sintomas de abstinência quando a dose é tão baixa.37 Se seu médico estiver envolvido em sua abstinência e se comportar como um cara “sabichão”, então deixe o seu médico. Tendo chegado tão longe, é provável que você saiba muito mais sobre a abstinência do que o seu médico.

É prudente descer a uma dose muito baixa antes de parar. O Citalopram, por exemplo, é recomendado para ser usado em dosagens de 20 ou 40 mg diariamente, e surpreenderá qualquer médico saber que mesmo em uma dose tão baixa quanto 0,4 mg, 10% dos receptores de serotonina ainda estão sendo ocupados, [34] o que significa que você ainda pode experimentar sintomas de abstinência quando passar daquela pequena dose para nada. O psiquiatra Mark Horowitz admitiu que se os pacientes tivessem vindo até ele antes dele ter experimentado os sintomas de abstinência, ele provavelmente não teria acreditado neles quando disseram que tinham problemas reais ao tomar um comprimido da depressão. [37]

Se falhar não tome isso como uma derrota; apenas tente novamente em outra ocasião. Diga a si mesmo que você merece ter uma boa vida e estar determinado a consegui-la.

Lista de sintomas de abstinência que você pode experimentar

 Esta lista não está completa, e não pode ser completa, pois há tantos sintomas de abstinência diferentes, mas nós reunimos os mais típicos. Algumas pessoas sentem muito claramente os sintomas de abstinência, outras mal os percebem. Eles podem ser piores do que qualquer coisa que você já tenha experimentado antes; podem ser sintomas completamente novos; podem ser semelhantes à condição para a qual você foi tratado, o que fará com que a maioria dos médicos conclua que você ainda está doente e que precisa da droga, mesmo que este seja raramente o caso; podem ser sintomas que farão com que os psiquiatras lhe deem diagnósticos adicionais; e podem ser os mesmos para drogas muito diferentes, por exemplo, mania.

No processo de retirada, você e seus familiares podem ficar surpresos de que os pensamentos, sentimentos e ações possam mudar. Isto é normal, mas pode ser desagradável. Você pode não perceber se você se tornou emocionalmente instável; na verdade, é bastante comum que os pacientes não percebam isso.

Abaixo estão os sintomas mais importantes que você pode experimentar. Alguns deles podem ser perigosos, veja as advertências na bula do medicamento que você está afunilando. Se você não a guardou, você pode encontrá-la na Internet, por exemplo, duloxetina fda ou de duloxetina package insert.

Sintomas semelhantes aos da gripe

Dores nas articulações e músculos, febre, suores frios, nariz escorrendo, olhos doloridos.

Dor de cabeça

Dores de cabeça, enxaquecas, sensações de choque elétrico/zaps de cabeça.

Balanço

Tonturas, desequilíbrio, caminhar instável, “ressaca” ou uma sensação de enjoo de movimento.

Articulações e músculos

Rigidez, entorpecimento ou sensação de ardor, cãibras, espasmos, tremores, movimentos bucais incontroláveis.

Sentidos

Formigamento na pele, dor, baixo limiar de dor, pernas inquietas, dificuldade para se sentar quieto, visão vermelha embaçada, hipersensibilidade à luz e som, tensão ao redor dos olhos, zunido nos ouvidos, zumbido, fala arrastada, mudanças de paladar e cheiro, salivação.

Estômago, estômago e apetite

Náusea, vômitos, diarreia, dor abdominal, inchaço, aumento ou diminuição do apetite.

Humor

Mudanças de humor, depressão, choro, sensação de inadequação, falta de autoconfiança, euforia ou mania.

Ansiedade

Ataques de ansiedade, pânico, agitação, dor no peito, respiração rasa, sudorese, palpitações.

Percepção da realidade

Sentimento de alienação e irrealidade, estar dentro de uma redoma, alucinações visuais e auditivas, delírios, psicose.

Irritabilidade e agressão

Irritabilidade, agressão, explosões de raiva, impulsividade, pensamentos suicidas, automutilação, pensamentos sobre prejudicar os outros.

Memória e confusão

Confusão, má concentração, perda de memória.

Dormir

Dificuldade para adormecer, insônia, acordar cedo, sonhos intensos, pesadelos às vezes violentos.

Energia

Baixa energia, inquietude, hiperatividade.

Na página seguinte, há um gráfico de abstinência onde você pode registrar os sintomas de abstinência que você experimenta e a sua gravidade.

A função principal dele não é tanto rastrear os sintomas diários, mas lembrá-lo de quais são os sintomas de abstinência que provavelmente você terá, dizendo-lhe assim que o que você está experimentando é totalmente normal. Portanto, você não deve se preocupar, ruminar ideias ou entrar em pânico com esses sintomas, mas aceitá-los, a menos que sejam perigosos e aumentem o risco de suicídio e violência, caso em que um aumento temporário da dose pode ser necessário. Não recomendamos que você faça isso todos os dias, pois isso implicaria em um foco interno exagerado e um controle constante de si mesmo. Você deve tentar se concentrar no mundo exterior, dizendo a si mesmo que é aqui que você quer estar, em vez de ser drogado longe dele.

Existem outros problemas com os registros diários. Você não tem nenhum ponto de referência quando inicia o processo. Alguns pacientes classificarão os sintomas de abstinência das primeiras reduções da dose como de máxima gravidade, pois é a primeira vez que experimentam algo tão horrível. Mais tarde, se os sintomas piorarem ainda mais, não há categoria de gravidade para isso.

Ajuda algumas pessoas escrever em um diário sobre os seus pensamentos, considerações e sentimentos. O que importa é que você se sinta seguro com o que faz. Portanto, você deve evitar pessoas e situações que possam lhe estressar e evitar assumir tarefas que não sejam estritamente necessárias.

Após a retirada, pode lhe faltar energia por um tempo e pode não se sentir como você mesmo. Isto é normal. Faça algo que você gosta de fazer, seja bom para si mesmo e tenha orgulho do que você realizou. Você pode precisar de psicoterapia para ajudá-lo a chegar à raiz do que é ou ao que foi que o aprisionou às drogas psiquiátricas.

Fique de olho em seu estado de espírito. Pode levar muito tempo até que você esteja totalmente estabilizado em sua nova vida sem drogas. Se você se sentir tenso, talvez você precise aprender técnicas de relaxamento.

Tabela de abstinência de medicamentos psiquiátricos (Anders Sørensen e Peter C. Gøtzsche, 4 de janeiro de 2019)

Todas as drogas psiquiátricas são viciantes e podem causar sintomas de abstinência quando uma dose habitual é reduzida. Use o quadro todas as noites para lembrar a si mesmo e a seus familiares que o estado de abstinência é temporário; é “eu na saída das drogas”, não é “eu sem as drogas”, que é algo completamente diferente e melhor do que estar na saída das drogas. Você pode escrever a gravidade dos sintomas que você tem a cada dia (1 a 5, onde 5 é o pior), mas não se verifique muito; os sintomas desaparecem mais rapidamente se for permitido a eles “cuidar de si mesmos”. “Observe a nova dose  abaixo do dia em que você a reduz. Você pode acrescentar sintomas adicionais nas linhas em branco.

Alguns dos sintomas podem ser perigosos; veja o folheto informativo.

Mês:                        Ano : _ (Escreva o dia do mês na primeira linha)

Data do mês
Dose
Ansiedade/ pânico
Depressão/ tristeza
Chorando
Mudanças de humor
Sentimento de estar dentro de uma redoma
Irritabilidade/agressão/ explosões de raiva
Sintomas semelhantes aos da gripe

 

Problemas de estômago, náusea, falta de apetite
Falta de energia/ exaustão
Insônia, dificuldade em adormecer
Sonhos vívidos/ pesadelos
Agitação e inquietação/ não poder ficar parado
Tontura
Confusão/ dificuldade de concentração
Eu não sou eu mesmo(a)
Pensamentos suicidas
Sensações de choque elétrico/zaps na cabeça
Dor de cabeça
Zumbidos
Movimentos involuntários/ pernas inquietas
Tremor/ estremecimento
Rigidez muscular ou dores musculares
Problemas de equilíbrio
Suor
Palpitações
Sentimento de picada ou formigamento
Coceira ou ruborização
Sensação de pegajoso/queimadura
O cheiro ou a degustação mudaram
Hipersensibilidade à luz ou ao som
Problemas de memória
Distúrbios sexuais
Visão embaçada
Mania ou hipomania/ euforia
Psicose/ilusões

 

Dividindo comprimidos e cápsulas

Infelizmente, nossos reguladores de medicamentos permitiram que as empresas farmacêuticas colocassem medicamentos no mercado, sem ter que investigar se podem ocorrer problemas quando os pacientes deixam de usá-los e sem desenvolver soluções se esse for o caso.[21] A psiquiatria acadêmica também está em falta. Ela tem dedicado muita atenção à eficácia a curto prazo de novos medicamentos e para iniciar o tratamento, mas praticamente nenhuma para parar o tratamento. Não foi a psiquiatria, mas os pacientes que chamaram a atenção para o número muito limitado das dosagens dos medicamentos. A prática clínica foi adaptada ao que as empresas farmacêuticas vendiam e não ao que os pacientes precisavam.

Os pacientes tinham razão em criticar por que as empresas não forneceram as dosagens de que tanto precisavam e por que as associações médicas e os comitês de orientação não pediram às empresas  farmacêuticas que o fizessem. Nós não usamos todos o mesmo tamanho de sapato ou grau em nossos óculos, e os cães são dosados de acordo com o seu peso, em contraste com os humanos.

Neste vácuo, precisamos ser criativos. Os farmacêuticos Rüdinger e Toft prepararam algumas dicas sobre como tomar menos do que a dosagem mínima fornecida pelos fabricantes. [35]

Advertência: A caixa e a bula sempre descreverão o seu tipo de medicamento. Se forem comprimidos ou cápsulas com revestimento entérico, eles são fabricados de tal forma que a substância ativa não entre em contato com o ácido gástrico. Portanto, eles não devem, em nenhuma circunstância, ser partidos ou divididos porque o ácido gástrico destruirá o princípio ativo.

Você pode sempre consultar a sua farmácia sobre se seu medicamento pode ser dividido em unidades menores. Aqui estão algumas regras principais:

Tabletes

A maioria dos comprimidos são regulares, e o ingrediente ativo é distribuído uniformemente por todo o comprimido. Se uma ranhura passar pela superfície da pastilha, é fácil dividi-la. Isto permitirá que você obtenha metade das pastilhas. Os comprimidos também podem ser divididos em quatro e oito partes, o que muitas vezes é necessário no final do período de retirada.

Os comprimidos podem ser cortados com uma faca afiada, mas você também pode comprar um divisor de comprimidos ou uma guilhotina de comprimidos na farmácia.

Se por acaso você dividir as pastilhas em tamanhos irregulares, você pode ordená-las de acordo com o tamanho, começando com os maiores e terminando com os menores pedaços.

Pastilhas de liberação sustentada

Alguns comprimidos são projetados para permanecer no corpo por um longo tempo, e muitas vezes são fabricados de forma a permitir que o ingrediente ativo seja distribuído gradualmente por todo o corpo. Estes comprimidos têm um acréscimo ao seu nome, por exemplo, depósito, liberação prolongada e retardada. Basicamente, eles não podem ser divididos.

Se a pastilha de liberação prolongada tiver uma ranhura, você pode quebrar a pastilha ao longo dela, mas não a divida mais.

Muitos medicamentos estão disponíveis tanto como comprimidos de liberação prolongada quanto como comprimidos de liberação não-prolon- gada, e se você precisar dividir um comprimido de liberação prolongada, consulte o seu médico para mudar para comprimidos normais.

Cápsulas

As cápsulas são feitas de gelatina com a finalidade de manter o pó reunido. Elas podem ser abertas, e o pó pode ser dissolvido em água. A água não estará clara, no entanto pronta para beber. É possível preparar a solução de água em uma seringa de plástico com divisões de ml, e desta solução pode- se retirar a quantidade correta de acordo com a dose necessária.

Use uma seringa de 10 ml, adicione o pó à seringa e aspire a água até a linha de 10 ml. Vire a seringa de cabeça para baixo ou sacuda-a algumas vezes para dissolver o pó. Um ml corresponde a 10%, dois ml a 20%, etc. Despeje o conteúdo necessário em um copo e beba-o.

Cápsulas de liberação prolongada

As cápsulas de liberação prolongada contêm partículas grandes ou grânulos destinados a serem liberados lentamente no corpo durante um longo período de tempo. Na maioria dos casos, essas cápsulas podem ser quebradas e os grânulos podem ser contados. Parte do conteúdo pode ser polvilhada em iogurte ou dissolvida em água com uma seringa, como mencionado acima.

Substituição do medicamento para permitir a retirada

Em alguns casos, a retirada não é possível com o medicamento prescrito porque o comprimido não pode ser dividido, ou o conteúdo da cápsula não pode ser reduzido. Portanto, você pode precisar substituir o seu medica- mento por um outro com efeito semelhante, disponível em dosagens menores. Você precisará consultar o seu médico.

Alguns medicamentos também vem na forma líquica, o que facilita muito a titulação da dose correta.

Capítulo 4. Retirada de medicamentos psiquiátricos

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Original: Mental Health survival kit and withdrawal from psychiatric drugs (Kindle Edition). Clique aqui →

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[trad. e edição Fernando Freitas]

 

Danos duradouros devidos a medicamentos psiquiátricos prescritos

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O recente furor causado pela publicação de evidências sobre a natureza grave da retirada de antidepressivos fez-me refletir sobre os danos duradouros que podem ser causados por drogas prescritas, e como tem sido frequentemente necessário um esforço concertado dos usuários destas drogas para chamar a atenção do público para estes efeitos.

Historicamente, a comunidade médica tem sido lenta em apreciar até que ponto as drogas podem interferir e alterar as funções normais do cérebro e do corpo, tanto de forma previsível como imprevisível. Os psiquiatras demoraram muito tempo a reconhecer que a discinesia tardia era causada por neurolépticos, e tentaram arduamente atribuir-lhe outra coisa (esquizofrenia).1 Foram necessárias três décadas para que os efeitos de abstinência dos antidepressivos fossem levados a sério. A epidemia de opiáceos com receita médica nos Estados Unidos continua, apesar das crescentes provas de que os medicamentos podem exacerbar a dor crônica em vez de a aliviar.2

Efeitos de abstinência

Os efeitos de abstinência são, em si mesmos, uma indicação de que o corpo foi alterado pela ingestão de um medicamento. Associamos os efeitos de abstinência à utilização a longo prazo, mas na realidade, o corpo pode mudar, temporariamente, mesmo após uma única dose de um fármaco. Estudos com animais mostram que um tratamento agudo com um opiáceo provoca um período de maior sensibilidade à dor (conhecido como hiperalgesia), que se segue ao efeito analgésico direto do fármaco e dura alguns dias.3 Do mesmo modo, tomar comprimidos para dormir durante apenas um ou dois dias melhora o sono inicialmente, pelo menos ligeiramente, mas quando o comprimido é interrompido, as pessoas têm ainda mais dificuldade em dormir do que antes de o tomarem.4 Isto é por vezes referido como insônia de ” ricochete”, e “ricochete” é o termo geral utilizado para descrever estes efeitos do tipo compensatório que ocorrem após os efeitos agudos de um fármaco terem desaparecido.

.Quando os medicamentos são tomados por longos períodos, os sintomas de abstinência podem ser mais graves e mais duradouros. Normalmente duram semanas, mesmo que os fármacos sejam reduzidos gradualmente. Após a descontinuação de alguns medicamentos, contudo, os efeitos podem por vezes prolongar-se por meses e até anos. Nestes casos, o corpo está demorando muito tempo a regressar ao seu estado pré-droga, e parece que em alguns casos nunca o faz, e as alterações induzidas pela droga são permanentes.

Os sintomas de abstinência prolongados após a cessação da benzodiazepina foi reconhecida em 1991 por Heather Ashton.5 Ela documentou sintomas de abstinência tais como ansiedade, zumbido, parestesia (dor ardente, formigueiro e dormência), que duraram muitos meses e por vezes anos. Na maioria dos casos, embora não todos, houve uma melhoria gradual ao longo do tempo. Drogas como o álcool e opiáceos parecem menos susceptíveis de causar uma retirada prolongada, mas a hipersensibilidade à dor, que é uma característica reconhecida da retirada do opiáceo, levou até cinco meses a normalizar numa experiência com dependentes de opiáceos recentemente desintoxicados.6

As evidências sobre a retirada de antidepressivos sugerem um quadro semelhante ao dos benzodiazepínicos. Há uma gama de intensidade e duração da abstinência, com nem todos a experimentar sintomas debilitantes ou mesmo perceptíveis, mas há inúmeros relatos de sintomas de abstinência graves e prolongados. Uma análise dos respondentes num fórum web de retirada de antidepressivos que realizei com alguns colegas revelou que os sintomas de retirada após a redução ou cessação dos Inibidores Seletivos de Reabsorção de Serotonina (ISRS) duraram, em média, quase dois anos (91 semanas), e os associados aos Inibidores de Reabsorção de Serotonina e Noradrenalina (ISRSN) duraram, em média, pouco menos de um ano (51 semanas).7 Embora seja provável que as pessoas que recorrem a um fórum online sejam as que experimentam mais dificuldades com a retirada, isto mostra, no entanto, que os efeitos duradouros são um problema significativo para algumas pessoas. Como Davies & Read concluiu na sua recente revisão, é difícil estimar uma duração média global dos sintomas a partir da investigação atual, especialmente porque a maioria dos estudos não foi criada para avaliar isto diretamente, mas os relatos de sintomas que duram vários meses são comuns em muitos estudos recentes.8

A maioria dos relatos sugere que os sintomas de abstinência de benzodiazepina e antidepressivos melhoram geralmente gradualmente, mesmo anos depois de os medicamentos terem cessado. Preocupantemente, porém, a descrição inicial de Ashton da retirada prolongada dos benzodiazepínicos inclui um ou dois casos em que os sintomas ainda eram problemáticos vários anos após a retirada, nalguns casos mesmo quando as pessoas tinham retomado os benzodiazepínicos. Isto sugere que ocasionalmente as drogas podem induzir alterações permanentes no funcionamento do cérebro.

Alguns relatos indicam que a retirada prolongada se seguiu à interrupção abrupta do medicamento em questão.9 Dentro dos serviços de toxicodependência no Reino Unido parece haver uma apreciação crescente de que a retirada rápida das benzodiazepinas é indesejável, embora não se encontre qualquer discussão sobre uma possível ligação entre a desintoxicação rápida e os efeitos prolongados da retirada em qualquer literatura ou orientação oficial. No entanto, a descrição de Ashton de estados de retirada persistente envolveu sobretudo pessoas que estavam a sofrer, ou tinham completado, uma redução lenta, pelo que pode ser que, embora a interrupção abrupta seja provavelmente mais arriscada, a redução gradual pode nem sempre proteger contra uma retirada complicada e prolongada.

Discinesia Tardia

Há décadas que sabemos que alguns medicamentos psiquiátricos podem produzir alterações permanentes e prejudiciais ao funcionamento do cérebro. A discinesia tardia, a síndrome dos movimentos anormais que está associada a um grau de deficiência cognitiva, foi reconhecida nos anos 60 como sendo uma consequência da administração neuroléptica. Foi notado que ela persistia após a interrupção dos neurolépticos, por vezes durante meses e até anos, dependendo de quanto tempo as pessoas eram seguidas [follow-up].

Foi proposto, embora nunca demonstrado, que a discinesia tardia é causada pela “supersensibilidade” dos receptores dopaminérgicos. Os movimentos anormais são semelhantes aos da doença de Huntington que estão associados à atividade excessiva de dopamina.10 O fato de a discinesia tardia ocorrer frequentemente enquanto as pessoas ainda tomam neurolépticos sugere que o cérebro compensa excessivamente os efeitos das drogas que bloqueiam a dopamina. Ao tentar equilibrar os seus efeitos, o corpo exagera e perturba os mecanismos normais de controle dos movimentos juntamente com funções mais gerais que têm impacto na cognição.

A condição recentemente caracterizada denominada hiperalgesia induzida por opiáceos pode representar uma situação semelhante, com o corpo a ajustar-se ajustando demasiadamente à presença de fármacos para suprimir a dor resultando num aumento dos níveis de dor. Embora a hiperalgesia induzida por opiáceos ocorra tipicamente durante a terapia com opiáceos, há pouca investigação sobre se persiste ou não depois de os medicamentos serem retirados.

Disfunção sexual pós-ISRS

Outras evidências de alterações duradouras associadas aos antidepressivos, no presente, provêm da literatura emergente sobre disfunções sexuais pós-ISRS. Está bem estabelecido que os ISRSs geralmente prejudicam a função sexual durante a sua utilização, mas há relatos crescentes de persistência de algumas dificuldades após a cessação dos medicamentos por meses e, ocasionalmente, anos.11 Também é demonstrada a persistência de deficiências sexuais em ratos masculinos tratados com ISRSs durante a adolescência.12 13 É difícil estimar a prevalência de disfunção sexual persistente, considerando os dados atualmente limitados, mas um levantamento identificou que 34% dos respondentes mostraram evidências de que poderiam estar nessa condição, e 4,3% mostraram uma alta probabilidade de a ter.14 Ouvi alguns psiquiatras protestarem que a disfunção sexual pós-ISRS é ‘psicológica’ e simplesmente um sintoma reemergente de uma depressão subjacente, mas o fato de ser consistente com os efeitos agudos conhecidos dos IRSS e com a investigação em animais sobre os efeitos duradouros torna difícil manter esta posição. Parece mais provável que seja outro exemplo de uma mudança duradoura e possivelmente por vezes de modo permanente nas funções corporais normais induzidas por alguns medicamentos psiquiátricos prescritos.

Aumento do risco de mania e psicose

As investigações que sugerem que a interrupção de alguns medicamentos pode aumentar o risco de ocorrência de um episódio de transtorno psiquiátrico subjacente, tal como mania ou psicose, também indicam como o uso a longo prazo de alguns medicamentos prescritos pode causar alterações significativas nos processos cerebrais. A evidência é mais clara no caso do lítio, onde estudos mostram que em pessoas com um diagnóstico de depressão maníaca (bipolar 1), o risco de ter um episódio, especialmente de mania, é maior depois de parar o lítio do que antes de este ter sido iniciado.15 16 17 Isto é verdade apesar do fato de o lítio não ser comumente reportado como provocando uma reação de abstinência severa e aguda. Apesar disto, parece que a remoção da supressão neurológica produzida pelos efeitos sedantes do lítio pode desencadear o estado de hiperatividade conhecido como mania, possivelmente através de um tipo de efeito de rebote retardado. Algumas investigações sugerem um quadro semelhante em pessoas diagnosticadas com psicose ou esquizofrenia que tenham sido tratadas com antipsicóticos a longo prazo. As evidências mostram que o risco de recaída é aumentado nos primeiros meses após a descontinuação, e diminui depois, sugerindo que a descontinuação não está apenas revelando uma tendência subjacente, mas está provocando um episódio que poderia não ter ocorrido de outra forma, pelo menos nesse ponto.18 Assim, parece que as alterações produzidas pelo tratamento a longo prazo com certos medicamentos sedativos aumentam a vulnerabilidade de uma pessoa a ter um episódio agudo de mania ou psicose. Alguns argumentam que este efeito também ocorre com os antidepressivos,19 embora as provas para tal sejam menos claras.

Falta de investigação

É espantoso que problemas iatrogénicos, tais como doenças persistentes e disfunções induzidas por medicamentos prescritos, tenham recebido tão pouca atenção da comunidade de investigação. Permanecemos incertos quanto à proporção de pessoas que podem esperar sofrer uma reação adversa relacionada com a retirada após diferentes períodos de tratamento com diferentes fármacos. Sabemos muito pouco sobre a duração provável dessas reações de abstinência, e até mesmo se por vezes podem ser permanentes. Não sabemos ao certo se a redução rápida aumenta o risco de uma abstinência prolongada, nem se uma redução muito gradual pode impedir a sua ocorrência. A ocorrência de disfunção sexual pós-ISRS é provavelmente desconhecida pela maioria dos médicos prescritores e há pouca investigação sobre a sua prevalência ou duração.

Os mecanismos destes efeitos também permanecem obscuros. Há investigação sobre os mecanismos de abstinência aguda de opiáceos e benzodiazepinas, há pouca investigação sobre o que produz estados de abstinência prolongada. Não há investigação sobre os mecanismos subjacentes à retirada de antidepressivos ou disfunções sexuais pós-ISRS.

Contudo, estima-se que cerca de 16% da população do Reino Unido está a tomar antidepressivos atualmente 20, e os últimos dados dos Estados Unidos, de 2011 a 2014, colocam o número em 12%. 21 Se mesmo uma pequena proporção destas pessoas sofre de abstinência prolongada ou de disfunção sexual pós-ISRS, é um problema de grande dimensão! Além disso, números recentes da Inglaterra mostram que as receitas médicas duplicaram na última década, atingindo agora 70 milhões para uma população de 56 milhões. É inacreditável que os líderes da profissão médica estejam tão despreocupados com esta situação que o presidente do Royal College of General Practitioners alertou para o perigo de ver o aumento das receitas médicas “como uma coisa má”.22

Implicações

Há uma falha em grande escala na avaliação dos riscos envolvidos no consumo de drogas que alteram a função cerebral a longo prazo. Alguns destes riscos são previsíveis, outros menos. Deveríamos ter sido capazes de antecipar que os ISRSIs e outros novos medicamentos para a depressão e ansiedade produziriam síndromes de abstinência, embora mais uma vez tenhamos sido tomados de surpresa, e parece não ter havido investigação sobre esta possibilidade antes do lançamento dos medicamentos. Uma síndrome como a discinesia tardia ou a hiperalgesia induzida por opiáceos deve lembrar-nos, no entanto, que os efeitos das drogas nem sempre podem ser previstos e que devemos estar sempre atentos a reações complexas e incomuns.

O fato de ter sido necessário que militantes dedicados, muitos deles usuários das drogas em questão, chamassem a atenção da comunidade científica e profissional para estes efeitos é vergonhoso, e realça a ingenuidade da profissão médica.

Para antecipar algumas das críticas que irei receber de pessoas que sentem que a medicação ajudou, não estou dizendo que estes medicamentos nunca devem ser considerados. Tenho certamente visto situações em que alguém conseguiu parar de beber quantidades prejudiciais de álcool através do uso de pequenas doses de uma benzodiazepina, por exemplo, e as benzodiazepinas são definitivamente a opção menos perigosa nesta situação. Também acredito que os neurolépticos, apesar dos seus muitos efeitos nocivos, são por vezes preferíveis a uma psicose grave e intratável. No entanto, as pessoas precisam conhecer todos os fatos. Os médicos devem compreender e explicar que as drogas alteram o cérebro, e outras partes do corpo, de formas que não compreendemos completamente, que são quase sempre prejudiciais em certa medida, e que podem ser irreversíveis.

Referências Bibliográficas:

  1. Moncrieff J. The Bitterest Pills: the troubling story of antipsychotic drugs. London: Palgrave Macmillan; 2013.
  2. Velayudhan AB, G.; Morely-Forster, P. Opioid-induced hyperalgesia. Continuing Education in Anaesthesia, Critical Care and Pain. 2014;14(3):125-9.
  3. Celerier E, Rivat C, Jun Y, Laulin JP, Larcher A, Reynier P, et al. Long-lasting hyperalgesia induced by fentanyl in rats: preventive effect of ketamine. Anesthesiology. 2000;92(2):465-72.
  4. Soldatos CR, Dikeos DG, Whitehead A. Tolerance and rebound insomnia with rapidly eliminated hypnotics: a meta-analysis of sleep laboratory studies. Int Clin Psychopharmacol. 1999;14(5):287-303.
  5. Ashton H. Protracted withdrawal syndromes from benzodiazepines. JSubstAbuse Treat. 1991;8(1-2):19-28.
  6. Treister R, Eisenberg E, Lawental E, Pud D. Is opioid-induced hyperalgesia reversible? A study on active and former opioid addicts and drug naive controls. J Opioid Manag. 2012;8(6):343-9.
  7. Stockmann T, Odegbaro D, Timimi S, Moncrieff J. SSRI and SNRI withdrawal symptoms reported on an internet forum. Int J Risk Saf Med. 2018;29(3-4):175-80.
  8. Davies J, Read J. A systematic review into the incidence, severity and duration of antidepressant withdrawal effects: Are guidelines evidence-based? Addict Behav. 2018.
  9. Anonymous. Rapid withdrawal and misprescribing of a benzodiazepine leads to £1.35m settlement for Luke Montagu, CEP co-founder. 2015 [Available from: http://cepuk.org/2015/07/18/rapid-withdrawal-misprescribing-benzodiazepine-leads-1-35m-settlement-luke-montagu-cep-co-founder/.
  10. Cepeda C, Murphy KP, Parent M, Levine MS. The role of dopamine in Huntington’s disease. Prog Brain Res. 2014;211:235-54.
  11. Bala A, Nguyen HMT, Hellstrom WJG. Post-SSRI Sexual Dysfunction: A Literature Review. Sex Med Rev. 2018;6(1):29-34.
  12. de Jong TR, Snaphaan LJ, Pattij T, Veening JG, Waldinger MD, Cools AR, et al. Effects of chronic treatment with fluvoxamine and paroxetine during adolescence on serotonin-related behavior in adult male rats. Eur Neuropsychopharmacol. 2006;16(1):39-48. 
  13. Simonsen AL, Danborg PB, Gotzsche PC. Persistent sexual dysfunction after early exposure to SSRIs: Systematic review of animal studies. Int J Risk Saf Med. 2016;28(1):1-12.
  14. Ben-Sheetrit J, Aizenberg D, Csoka AB, Weizman A, Hermesh H. Post-SSRI Sexual Dysfunction: Clinical Characterization and Preliminary Assessment of Contributory Factors and Dose-Response Relationship. J Clin Psychopharmacol. 2015;35(3):273-8. 
  15. Cundall RL, Brooks PW, Murray LG. A controlled evaluation of lithium prophylaxis in affective disorders. PsycholMed. 1972;2(3):308-11.
  16. Baldessarini RJ, Tondo L, Viguera AC. Discontinuing lithium maintenance treatment in bipolar disorders: risks and implications. BipolarDisord. 1999;1(1):17-24.
  17. Suppes T, Baldessarini RJ, Faedda GL, Tohen M. Risk of recurrence following discontinuation of lithium treatment in bipolar disorder. ArchGenPsychiatry. 1991;48(12):1082-8.
  18. Viguera AC, Baldessarini RJ, Hegarty JD, van Kammen DP, Tohen M. Clinical risk following abrupt and gradual withdrawal of maintenance neuroleptic treatment. ArchGenPsychiatry. 1997;54(1):49-55.
  19. Fava GA. Can long-term treatment with antidepressant drugs worsen the course of depression? JClinPsychiatry. 2003;64(2):123-33.
  20. (DHSC) DoHaSC. Hansard- prescription drugs: written question 128871 London2018 [Available from: https://www.parliament.uk/business/publications/written-questions-answers-statements/written-question/Commons/2018-02-21/128871/.
  21. Pratt LA, Brody DJ, Gu Q. Antidepressant Use Among Persons Aged 12 and Over:United States,2011-2014. NCHS Data Brief. 2017(283):1-8.
  22. Guardian T. Antidepressant prescriptions in England double in a decade. London: The Guardian; 2019 [updated 29th March 2019. Available from: https://www.theguardian.com/society/2019/mar/29/antidepressant-prescriptions-in-england-double-in-a-decade.

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[trad. e ed. Fernando Freitas]

Apoio às ideias capitalistas neoliberais está relacionado a solidão e a redução do bem-estar

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Novas investigações abordaram a questão de saber se a ideologia neoliberal afeta o bem-estar dos indivíduos. Acrescentando à literatura que tem documentado os efeitos sociais e econômicos negativos da política neoliberal, Julia Becker, Lea Hartwich, e S. Alexander Haslam realizaram uma série de estudos para examinar se a saúde dos indivíduos é afetada de forma semelhante:

” Nós exploramos o argumento de que o neoliberalismo com a sua ênfase na responsabilidade pessoal e a sua desvalorização do apoio social e da solidariedade pode levar a sentimentos de solidão e de estar sozinho num sistema altamente competitivo.”

O seu artigo, publicado no British Journal of Social Psychology, representa a primeira investigação experimental, que examinou como a política neoliberal influencia o sentimento de desconexão social, solidão, competitividade, e bem-estar dos indivíduos. Resumem as suas conclusões:

“Apesar das sugestões de que esta filosofia política pode promover o bem-estar individual porque encoraja as pessoas a lutar pelo crescimento pessoal, descobrimos que, na realidade, parece ser prejudicial para a saúde porque pode criar uma sensação de desconexão dos outros, bem como estar em competição com eles, de forma a alimentar sentimentos de solidão e isolamento social.”

Becker e colegas identificam o neoliberalismo como uma ideologia predominante em numerosas partes do mundo. A característica central da ideologia neoliberal é a ênfase na organização das economias e sociedades em torno dos princípios do mercado livre, restringindo assim uma intervenção governamental e estatal. Estes princípios incluem a liberdade empresarial individual, responsabilidade, propriedade e comércio livre.

A afirmação de que os princípios do mercado livre são propícios ao progresso social e ao bem-estar dos indivíduos, um pressuposto central da ideologia neoliberal, tem sido debatida. Embora alguns estudiosos tenham argumentado que o neoliberalismo encoraja o crescimento e o esforço de autoatualização e felicidade, outros assinalaram que o neoliberalismo mina estes objetivos e corrói o sentido securitário e solidariedade das pessoas ao promover a concorrência.

Os investigadores reviram brevemente as formas como a desigualdade social é exacerbada pela ideologia neoliberal:

“Sob o neoliberalismo, as disparidades econômicas são vistas como reflexos precisos das diferenças no trabalho árduo e na meritocracia, e a era neoliberal tem visto um aumento correspondente da desigualdade.”

Os autores continuam:

De fato, tem sido argumentado que a desigualdade não é um resultado não intencional, mas ela própria uma característica importante da política neoliberal porque é suposto servir como mecanismo para aumentar a concorrência e a produtividade.”

O novo artigo de Becker e colegas complementa as provas existentes de que o neoliberalismo é prejudicial à vida comunitária ao comprometer a confiança e a coesão social, divorciando os indivíduos dos atributos de melhoria da saúde associados. Além disso, a sua investigação associa conclusões que sugerem que a competição interpessoal e a solidão podem aumentar as experiências de insegurança, ansiedade, stress e depressão das pessoas com o neoliberalismo:

“Por exemplo”, escrevem os autores, “a investigação demonstrou que uma concepção neoliberal da dívida pessoal como fracasso está associada ao aumento da ansiedade, depressão e pressão sanguínea.”

Becker e a sua equipe realizaram uma série de quatro estudos abrangentes, utilizando participantes da Alemanha, do Reino Unido e dos EUA, para explorar os efeitos da ideologia neoliberal sobre a saúde:

“…tanto quanto sabemos, os efeitos da ideologia neoliberal sobre variáveis como o isolamento social, a solidão e o bem-estar ainda têm de ser estudados. A presente investigação preenche esta lacuna ao tentar explorar se a ideologia neoliberal pode aumentar a solidão e os problemas de saúde associados.”

Em primeiro lugar, no estudo 1, examinaram dados populacionais num momento específico para explorar uma possível relação entre o neoliberalismo percebido e o bem-estar. Utilizaram várias medidas para avaliar as correlações entre o neoliberalismo percebido e a solidão, bem-estar e orientação política.

Os resultados obtidos permitiram-lhes sustentar a sua hipótese: o neoliberalismo gerou sentimentos de solidão que, por sua vez, afetaram negativamente o bem-estar dos indivíduos. Estes efeitos não foram explicados pela orientação política ou pela classe social dos indivíduos.

Em seguida, foi utilizado o seguinte desenho de investigação nos restantes três estudos que realizaram. Exercícios guiados pela imaginação testaram se uma exposição à ideologia neoliberal poderia causar estes efeitos psicológicos. Pediram aos participantes que visionassem uma sociedade futura com base numa descrição escrita fornecida.

Num grupo de participantes, a descrição articulou uma sociedade futura baseada em princípios neoliberais. No segundo grupo, a sociedade descrita baseou-se nos princípios da igualdade social. No grupo de controle, não foi fornecida qualquer descrição. Em vez disso, os participantes no grupo de controle foram instruídos a imaginar livremente uma sociedade futura.

Os estudos 2 e 3 examinaram o impacto da ideologia neoliberal na solidão e depois no bem-estar, respectivamente. Verificaram que os participantes na condição neoliberal relataram sentir-se mais sós do que os que se encontravam nas condições de igualdade social ou de controle, fornecendo “a primeira prova causal de que a ideologia neoliberal pode engendrar um sentimento de solidão”, afirmam Becker e a equipe. No estudo 3, descobriram que os participantes na condição neoliberal também endossaram um bem-estar inferior.

Além disso, observaram que os participantes que se identificaram como de esquerda tinham mais probabilidades de experimentar uma maior sensação de solidão devido ao neoliberalismo quando comparados com os participantes de direita. Os investigadores explicam por que estavam interessados em examinar a orientação política e a classe social:

“Isto porque é concebível que os efeitos do neoliberalismo são particularmente predominantes para aqueles que são de esquerda (porque rejeitam os sistemas neoliberais) e pessoas de classes sociais mais baixas (porque estão mais expostas ao impacto de uma sociedade de mercado livre em que não existe segurança social)”.

Finalmente, na quarta parte, os investigadores examinaram a concorrência e a desconexão social em relação à exposição à ideologia neoliberal. Verificaram que as pessoas na condição neoliberal relatavam níveis mais elevados de solidão, competição e desconexão social do que as que se encontravam em condições de igualdade social e controle. Estes indivíduos também apresentaram níveis de bem-estar significativamente mais baixos. Em contraste, estes indicadores de saúde não diferiam entre as condições de igualdade social e de controle.

Becker e colegas resumiram que a exposição ao neoliberalismo previa competição e desconexão. Por sua vez, a desconexão gerou a solidão e a solidão prognosticou um bem-estar inferior. Eles escrevem:

“Isto está de acordo com a nossa hipótese de que o neoliberalismo pode aumentar a solidão e os problemas de saúde, colocando os indivíduos uns contra os outros num ambiente competitivo e corroendo os laços sociais entre eles”.

Importante, em relação à orientação política, o neoliberalismo previu uma diminuição do bem-estar dos liberais, mas não dos conservadores. No entanto, os efeitos do neoliberalismo na solidão, explicados pelo aumento da concorrência e da desconexão social, foram endossados por todos.

Becker e colegas identificaram três grandes implicações das suas descobertas. Em primeiro lugar, esta obra acrescenta à literatura sobre determinantes sociais da saúde, demonstrando que a ideologia neoliberal representa um risco para a saúde dos indivíduos. Em segundo lugar, estas descobertas corroboram como o estar socialmente ligado pode ter efeitos curativos e protetores sobre a saúde das pessoas. Em terceiro lugar, estas novas descobertas “juntam estas duas linhas de investigação“, argumentam elas:

“…num mundo em que as pessoas estão cada vez mais conscientes dos custos relacionados com a saúde de uma crescente ‘epidemia de solidão’, pode ser tempo de alargar o nosso olhar crítico e refletir sobre até que ponto isto também é uma consequência do neoliberalismo”.

“No mínimo, ao tentarmos enfrentar esta epidemia, temos de estar atentos ao fato de que as suas causas podem ser tanto políticas como sociais e psicológicas”.

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Becker, J. C., Hartwich, L., & Haslam, S. A. Neoliberalism can reduce well‐being by promoting a sense of social disconnection, competition, and loneliness. British Journal of Social Psychologyhttps://doi.org/10.1111/bjso.12438

Medicina Insana, Capítulo 8: Armadilhas de Tratamento e Como Sair Delas (Parte 1)

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Man hands tied with thread playing cats cradle game with birds standing like on a wire and flying around. Trying to lure birds. Some birds are not meant to be caged

 

CAPÍTULO 8, Parte 1

Nota do editor: Ao longo de vários meses, Mad in Brasil está publicando uma versão seriada do livro de Sami Timimi, Insane Medicine. Neste capítulo, ele discute a desconstrução do diagnóstico, a natureza do dano psicológico, e como a identificação de um problema pode tornar-se uma profecia auto-cumprida. Todas as segundas-feiras, uma nova secção do livro é publicada, e todos os capítulos são enalmente, uma nova parte do livro é publicada, e todos os capítulos são arquivados aqui arquivados.

Este capítulo baseia-se principalmente nas minhas décadas de experiência clínica. Esboço algumas ideias que me ajudaram a desenvolver uma filosofia particular que utilizo para orientar a minha prática. É uma filosofia que se desenvolveu ao longo do tempo e os aspectos técnicos não devem ser vistos como um modelo novo ou alternativo; simplesmente uma mistura de ideias recolhidas, que muitas vezes aproveito no calor e no espaço improvisado que compõem a confusão do encontro clínico.

Afasto-me conscientemente dos paradigmas McDonald (diagnóstico seguido de tratamento específico), pois temo o potencial de aprisionar pacientes e de criar desnecessariamente clientes para o restante de suas vidas.

Os princípios orientadores principais são:

  1. Desconstruindo o diagnóstico: Um assunto relativamente simples, como explicarei mais adiante neste capítulo.
  2. Compreender a relevância do dano psicológico: qualquer pessoa que trabalhe em serviços de saúde mental sabe que a maioria daqueles que utilizam os nossos serviços tiveram mais do que o seu quinhão de eventos difíceis e perturbadores em que experimentaram ter muito pouco poder para influir no que lhes acontecia. Prefiro o termo que o psicólogo Dr. Eric Kuelker usa de “dano psicológico” ao invés de “trauma”, em parte porque estou preocupado com a forma como o trauma se reifica (como é que se transforma uma ideia em um objeto concreto e assim se perde a compreensão de que é uma ideia por oposição a um fato o qual podemos ver, medir e manipular) e em parte porque o dano psicológico mantém aberto a dimensão experiencial onde, por distintas razões, cada um de nós tem coisas distintas que podemos achar perturbadoras ou emocionalmente avassaladoras.
  3. Trabalho sobre a relação terapêutica: O que se relaciona como uma forma de “estar com” uma pessoa ou família não será o mesmo que uma outra. Cada paciente e/ou família que eu vejo irá formar um “encaixe” relacional único comigo (e com quaisquer colegas de trabalho). Obter feedback sobre se o que acontece na sessão corresponde ao que funciona para eles e estar atento a possíveis “rupturas relacionais” são aspectos importantes da construção de alianças. Isto significa que todos os tratamentos são “coconstruído” e exigem que se encontrem formas de os doentes e as famílias se sentirem ouvidos e envolvidos no processo terapêutico. Significa estar preparado para mudar de rumo com base no feedback e, por vezes, significa também dar-lhes a opção de ver outra pessoa se, por qualquer razão, não conseguirmos ter a aptidão relacional para trabalhar.
  4. Uma consciência da cultura e do contexto: Vale sempre a pena lembrar que nós profissionais somos relativamente pouco importantes no grande quadro da vida das pessoas. As suas histórias da vida real, crenças sobre o que pode ser útil, disponibilidade de uma rede social de apoio, valores culturais, etc., são influências muito mais importantes. Além disso, os serviços para os quais trabalhamos e as formações profissionais que recebemos, estão eles próprios embutidos em estruturas institucionais com as suas próprias crenças e práticas culturais peculiares. Não podemos escapar a que a terapia/tratamento existe em contextos específicos, tal do mesmo modo que a vida dos pacientes. Estes contextos têm um papel importante, não só na forma como construímos a narrativa de qual é a natureza do problema, mas também na forma como a mudança acontece ou como as coisas podem ser vistas de forma diferente. Estes contextos de fundo são coisas a ter em mente, ajudando a imaginar o que no contexto dos pacientes pode ajudar ou dificultar e o que no nosso contexto de serviço pode ajudar ou dificultar. Quando os pacientes melhoram, são eles os próprios protagonistas do processo. Também significa que não devemos sobrecarregar os nossos pacientes com a nossa própria necessidade narcisista de que melhorem.
  5. Como um problema, uma vez estabelecido, se perpetua num processo a que eu chamo “o problema torna-se o problema”: Como médico, vejo frequentemente pacientes que têm problemas de longa data. Comecei a tomar consciência de que “o problema que se converte em problema” é a armadilha de tratamento que penso que os serviços de saúde mental são bons em criar. Mais adiante, neste capítulo, irei aprofundar esta questão.

As discussões baseadas em evidências que fiz até agora no livro têm uma influência importante na minha compreensão dos dilemas dos pacientes, bem como na minha compreensão do papel potencial para profissionais como eu. Talvez já tenham percebido que os meus entendimentos conduzem a um grande obstáculo.

Tanto os pacientes como os profissionais esperam que eu e o serviço em que trabalho funcionem no quadro do modelo médico que tem sido vendido ao público. Eles imaginam, compreensivelmente, que as dificuldades dos pacientes podem ser melhor compreendidas e “tratadas” através da obtenção de um diagnóstico correto (que fornecerá a explicação) e, em seguida, de um tratamento específico que aborde o diagnóstico. Hoje em dia, isso inclui muitas vezes a expectativa de que possa haver alguma medicação, dado que os medicamentos psiquiátricos têm sido hoje imbuídos culturalmente de poderes mágicos.

Este dogma popularizado tem tido consequências ainda piores para os jovens, pois individualizar o problema e vê-lo como residindo dentro da criança ou do adolescente separa-os, tanto para a compreensão como para a ajuda, da sua rede social, incluindo a sua família. Os jovens têm, evidentemente, uma autonomia limitada, uma vez que a maioria das decisões importantes nas suas vidas serão tomadas em seu nome por aqueles que cuidam deles.

Assim como eu, suspeito que a maioria dos profissionais de saúde mental se sentem frequentemente como uma fraude. Se não sentem, então deveriam sentir-se. Eles sabem que os nossos tratamentos são, em grande parte, estratégias de gestão superficial do tipo que nos levam à desorientação quando executados sobre nós pelo nosso b*llsh*t [‘m.’] de gestão empresarial. Apesar de todos estes inconvenientes, compromissos e conflitos, acredito que ainda é possível criar um espaço terapêutico onde possam ter lugar conversas não patológicas e potencialmente úteis.

Desconstruindo o diagnóstico

A desconstrução do modelo de diagnóstico em saúde mental é um processo relativamente claro. Vender um modelo de pensamento não-diagnóstico sobre os problemas experimentados é uma coisa mais difícil, particularmente quando se veem pessoas a quem já foi dado um diagnóstico e cultivado pelo sistema em que estiveram envolvidas no pensamento do modelo médico.

A fim de desconstruir o diagnóstico psiquiátrico, basta explicar um “truísmo” e repeti-lo sempre que for necessário, como por exemplo quando as pessoas deslizam de volta ao pensamento diagnóstico causal. Explicar o “truísmo” é algo como isto:

Gostaria apenas de lhe explicar algo para o ajudar a compreender os diagnósticos psiquiátricos. Eles são muito diferentes dos que encontramos no resto da medicina. Como sabe, não tenho nenhum teste de sangue específico, exame do cérebro, ou qualquer outra investigação que possa fazer que me permita compreender se se passa alguma coisa no corpo e cérebro do seu filho que possa ajudar a explicar porque é que por vezes o seu filho tem dificuldade em fazer amigos ou em se concentrar na aula.

Como vê, os diagnósticos psiquiátricos são basicamente descrições breves de quaisquer que sejam os problemas. Esta descrição abreviada descreve apenas certos comportamentos ou experiências que por vezes andam juntos.

O que os diagnósticos psiquiátricos não fornecem é uma explicação da razão pela qual esses comportamentos estão acontecendo. Porque um diagnóstico psiquiátrico não nos pode dizer nada sobre a causa, ele não é, a rigor, um diagnóstico real.

É por isso que é confuso, penso eu, chamar-lhe um diagnóstico, porque no resto da medicina pode-se fazer testes no corpo como testes de sangue ou exames para ajudar a compreender o que está acontecendo para causar sintomas.

Assim, no resto da medicina, o diagnóstico é uma forma de explicar o que é anormal e os tratamentos que se obtêm são geralmente específicos do diagnóstico. Se tiver tensão arterial elevada, recebe um tratamento para reduzir a tensão arterial. Se tiver uma infecção bacteriana do peito, recebe um tratamento que mata as bactérias e assim por diante.

Como não temos realmente diagnóstico em psiquiatria, os nossos chamados diagnósticos não lhe dizem nada sobre o que se passa no seu cérebro ou corpo. Como resultado, a nossa prática baseia-se apenas numa opinião. A opinião é tudo o que temos. Significa também que nenhum dos nossos tratamentos é na realidade específico de diagnóstico. Isto significa que o que pode estar a acontecer e ser útil para uma pessoa com um determinado diagnóstico pode não ser o caso da pessoa seguinte com o mesmo diagnóstico psiquiátrico.

O diagnóstico em psiquiatria ajuda-nos a descrever um problema, na minha opinião mal, uma vez que nunca duas pessoas com o mesmo diagnóstico são iguais, mas não nos ajuda a compreender o problema ou o que poderia ser útil. Isso é uma coisa muito mais individual.

A maioria das pessoas parece compreender e aceitar este tipo de explicação. Por vezes, precisa de ser mais elaborado e outras vezes tem de ser repetido de formas diferentes, particularmente para aqueles que estão habituados a pensar nos problemas de forma diagnóstica. Para aqueles que foram aculturados pelos serviços anteriores – com a ajuda de um diagnóstico de pensamento, é comum que tenham internalizado usando o diagnóstico como explicação – como em, “Ele não pode fazer amigos por causa do seu autismo”, em oposição a usar raciocínios mais comuns, como, “Ele não pode fazer amigos porque é tímido“.

Quando as pessoas se entregam a este tipo de explicações baseadas no diagnóstico, eu frequentemente (mas nem sempre) ofereço um lembrete suave de que o diagnóstico descreve (mal) um problema, mas não fornece uma explicação. Fico regularmente surpreendido e encorajado pela forma como muitas pessoas negociam o que deve ser uma experiência confusa e desorientadora de passar de ver um clínico que trabalha numa estrutura de diagnóstico para ver alguém, como eu, que semeia a ideia de que não têm a explicação que pensavam ter.

Parece funcionar bem com alguns, porque as pessoas frequentemente aceitam a mudança de narrativas clínicas construídas em torno da gestão de certos comportamentos e experiências, para uma narrativa mais centrada na singularidade de cada pessoa e da sua família, e onde se abre a possibilidade de “isto não ter de continuar a ser a longo prazo”..

Desbloquear a armadilha de longo prazo

Como já descrevi, há uma série de construções que influenciaram os quadros teóricos que orientam a minha prática. Vou agora desenvolver dois dos princípios específicos (em oposição aos gerais) que podem ajudar a começar a esboçar um caminho para fora de uma armadilha de tratamento a longo prazo.

Dano psicológico

Esta é a minha principal forma de lidar com a questão do “porquê”. Este é o mais próximo que podemos chegar de um diagnóstico. O que é mais importante do que se é “verdadeiro” (algo que não pode ser estabelecido), é se pode ajudar a construir uma narrativa que seja útil.

As investigações mostram que a associação mais clara entre a probabilidade de problemas psiquiátricos e as causas possíveis são acontecimentos e situações que aumentam a nossa excitação emocional. Diversas experiências de todos os tipos de eventos potencialmente traumáticos, todos os tipos de abuso, discriminação, intimidação, viver em bairros violentos, desemprego etc., estão todas associadas a uma maior probabilidade de experimentar sofrimento mental.

Aqui considero útil o conceito de ” dano psicológico“. Parece que a forma como os seres humanos são construídos segue o simples ditado de que “quando coisas más acontecem, sentimo-nos mal“. As pessoas não fazem necessariamente essas associações. É também frequente que seja depois de as experiências psicologicamente avassaladoras há muito terem passado que a angústia é mais perceptível.

Quando tentamos sobreviver, estamos em modo de sobrevivência, e o nosso estado mental pode não ter o suficiente espaço para pensar e refletir sobre a experiência. Contudo, no rescaldo, o que pode acontecer é que a nossa mente tenta proteger-nos e fá-lo, antecipando a possibilidade de que a dolorosa experiência, o dano psicológico, volte a acontecer e assim toma medidas para tentar evitar isto.

Por exemplo, se foi ferido em uma relação, então você pode querer estar novamente próximo de alguém, mas estar muito preocupado em ser ferido novamente. Assim, a sua mente poderá reagir, assim que começar a sentir-se próximo de alguém, recuando e mantendo uma distância de alguém. O seu instinto pode ir mais longe, talvez mesmo concentrando-se em aspectos daquela pessoa de quem se aproxima que não se gosta, ou mesmo fantasiando que ela tem esses aspectos e traições na sua mente, porque é mais fácil lidar com a separação de uma pessoa de quem não se gosta do que de uma pessoa que se ama.

Para a outra pessoa o seu comportamento pode agora parecer imprevisível, irracional mesmo. Repita isto algumas vezes nas relações e você poderá ter perdido a associação com o dano psicológico original (particularmente se ocorreu na infância) e parece agora confirmar que há algo de “errado” com você.

O dano psicológico tem efeitos mais duradouros quanto mais jovem se for, quando acontece com a pessoa. Há toda uma área de investigação chamada investigação das Experiências Adversas da Infância (EAIs). Verificou-se que estas EAIs estão associadas a um aumento da prevalência de todos os tipos de maus resultados de saúde na futura vida adulta. Além disso, quanto mais EAIs uma pessoa experimentar, maior a probabilidade de ter resultados de saúde adversos como adultos, incluindo a panóplia completa de apresentações psiquiátricas.

Uma das coisas que podem acontecer quando uma criança experimenta um dano psicológico está relacionada com o seu nível de desenvolvimento. As crianças são “egocêntricas” em termos de desenvolvimento, e quanto mais jovem for, mais isso se verifica. As crianças vivem num mundo baseado na ação, em que as coisas que acontecem à sua volta são uma extensão do seu mundo interno. As suas reações emocionais em tempo real aqui e agora têm um efeito mais poderoso do que qualquer capacidade de pensar sobre o seu contexto.

Elas ainda não desenvolveram a capacidade de dar um passo atrás e ver o panorama geral do que está a acontecer, tal como compreender que os problemas dos seus pais não são culpa sua. Isto significa que elas experimentam as coisas más que lhes acontecem e à sua volta como sendo, de alguma forma, causadas por elas. Isto cria então um plano inconsciente, muitas vezes a um nível para além da linguagem, que se manifesta na forma como sentem o mundo, onde experimentam que coisas más acontecem porque há algo de mau em si.

Como adolescente, jovem adulto e mais velho, este sentimento pode ter um ambiente quase supersticioso onde se imagina que se está destinado a atrair coisas más que acontecerão. Este tipo de cenário leva à auto-culpa e à auto-aversão, bem como ao desespero de acreditar que não é verdade que se é a causa, que ricocheteiam uns nos outros e levam a várias estratégias, desde a utilização de substâncias, à automutilação, à fuga, e mesmo à “negação maníaca” (sentimentos grandiosos de super-competência) na tentativa de acalmar estes horríveis sentimentos conflituosos.

Lembre-se que não estou aqui delineando uma verdade essencial, mas sim um quadro que é pelo menos compatível com a evidência e que permite uma posição filosófica que possibilita uma narrativa que pode “soar verdadeira” e fornecer e construir significados e interpretações que podem revelar-se úteis. Tal como com o princípio “o problema torna-se o problema”, o que delineei não é único e tem muito em comum com muitos modelos terapêuticos reais (por exemplo, o Power Threat Meaning Framework).

O problema torna-se o problema

A pergunta “porquê” (tal como “porque me sinto assim” ou “porque é que o meu filho se comporta assim“) é muitas vezes sentida como a pergunta mais importante a que nós profissionais devemos responder para sabermos como melhor ajudar. Fazer parte de um serviço de saúde significa que os nossos clientes e referências assumem frequentemente que é isto que fazemos primeiro.

Mas, num modelo medicalizado e tecnicizado, este é o primeiro passo, se não se tiver cuidado, para uma armadilha insidiosa. Preocupar-se com a questão do “porquê” pode criar o paciente a longo prazo. Um problema inicialmente inócuo pode multiplicar-se, engrossar e cristalizar. A nossa simpatia, empatia e desejo de ajudar pode acidentalmente sobrecarregar o doente com bagagem de que nunca precisou.

Como você ajudar as pessoas a olhar para além da questão do porquê e da procura de um diagnóstico? Além de utilizar a formulação discutida anteriormente para ajudar as pessoas a associar o dano psicológico a alguns aspectos do seu sofrimento; uma simples desconstrução é muitas vezes suficiente. Portanto, você pode explicar que,

Como já discutimos, a forma como somos construídos como seres humanos significa que quando coisas más acontecem e nos encontramos emocionalmente sobrecarregados, sentimo-nos mal. Esse sentimento mau acontece frequentemente após o término das experiências infelizes, à medida que a nossa mente tenta proteger-nos de que estas coisas nos voltem a acontecer.

No entanto, podemos perder muito tempo e energia tentando pôr o dedo no que nos fez sentir exatamente o que sentimos agora. Podemos então acabar por fazer algo que parece como descascar uma cebola sem fim. Cada camada que descascamos, revela outra camada e depois outra e depois outra. As nossas vidas são constituídas por tantas influências interativas desde os genes que herdamos, a gravidez, até à forma como os nossos pais eram na altura em que nascemos, o que mais estava acontecendo na nossa família, vizinhança, depois na escola, e amigos, e assim por diante.

Somos muito mais do que a soma das muitas partes das nossas vidas. Desfazer aquele quebra-cabeças para resolver aquilo para que cada pedaço contribuiu torna-se tão complicado como resolver o sentido último da vida. No entanto, não identificar a causa exata não significa que não haja nada que se possa fazer em relação à sua angústia. Quase sempre não sabemos a causa exata, apenas algumas coisas que podem ter contribuído.

Há uma coisa que lhe posso tranquilizar – não há certamente nada de errado com o seu cérebro.

Cheguei à conclusão de que ficar preocupado com a questão do “porquê” pode levar a uma armadilha que a nossa ideologia existente em matéria de saúde mental pode abrir e que nos engole quando entramos pela sua porta. Pode ajudar a revigorar os ciclos de reforço em que nos deixamos levar pelas nossas reações e tentativas de lidar com a intensidade emocional que nos dizem ser um sinal de que algo está errado. O modelo técnico do sistema de saúde mental tem o efeito de nos desligar dos nossos recursos, de nos afastar de uma apreciação da humanidade das nossas experiências, e de nos aprisionar numa filosofia que nos leva a ser pacientes a longo prazo.

Há uma série de influências que me ajudaram a compreender como este ciclo de reforço se desenvolve e como a prática clínica pode replicar e reforçar acidentalmente este ciclo. Estes conhecimentos também me ajudaram a desenvolver uma abordagem alternativa que pode ajudar algumas pessoas a saírem destes ciclos.

A primeira dessas influências vem dos primeiros pioneiros da terapia familiar. Eles começaram a olhar para padrões nas relações familiares e no sistema mais amplo à sua volta e perguntaram-se se os problemas que as famílias estavam experimentando não vinham de uma causa óbvia, mas de como os membros da família reagiam ao problema que estavam experimentando.

Talvez, pensavam eles, o problema não era o problema, mas sim a forma como a família tentava resolver o problema. Talvez as suas tentativas de solução tenham reforçado acidentalmente o problema. Esta mudança na atenção clínica, longe de se concentrar na questão do porquê ou no problema imediato, e tentar, em vez disso, ajudar uma família a mudar os padrões que desenvolveram em resposta ao problema, representou uma modificação radical nos objetivos terapêuticos.

Outra influência provém de abordagens narrativas da terapia. Modelos narrativos e focados em soluções compreendem que não descobrimos verdades essenciais sobre as nossas experiências, mas em vez disso criamos versões delas através da lente das várias histórias que usamos para dar sentido à nossa situação. Isto significa que “construímos socialmente” aquilo em que acreditamos.

De onde é que obtemos as nossas histórias construídas socialmente? Serão extraídas das múltiplas histórias a que estamos expostos nas nossas vidas. As nossas próprias histórias sobre nós próprios terão sido altamente influenciadas pelo que outros disseram sobre nós (por exemplo, os nossos pais), pelo que continuam a dizer sobre nós, e pela nossa interpretação subjetiva das mesmas. Também será influenciada pelas histórias sociais que ouvimos mais amplamente (por exemplo, dos meios de comunicação social).

Quando sentimos um problema, não é surpreendente que recorramos a estas fontes para tentar dar sentido ao que está a acontecer e para imaginar como poderemos sair desta angústia. Há geralmente múltiplas, mas certamente não infinitas, histórias disponíveis no nosso meio pessoal e cultural. Muitos de nós podem virar-se para um modelo medicalizado e interrogar-se se este é um sinal de que temos este ou aquele transtorno, talvez depois de consultar o Professor Google.

Modelos narrativos e modelos focados em soluções estão cientes de como estas histórias culturais ignoram questões de poder e incorporaram nelas várias construções culturais e suspeitas, reforçando assim estereótipos culturais de, por exemplo, classe, gênero, raça e sexualidade.

Contudo, as abordagens narrativas também estão conscientes de como o espaço clínico é construído culturalmente. Compreende como histórias de modelos médicos encorajam o ” adensamento” de certas versões “saturadas de problemas” da nossa história. É muito fácil para nós, como praticantes, dançar com esta estrutura e acrescentar mais camadas que reforçam a fragilização que a história saturada de problemas encoraja, à medida que incorporamos ainda mais a ideia de que o doente tem uma doença que requer conhecimentos especializados para identificar e tratar.

Há mais do que uma forma de descrever cada situação. A consciência da natureza cultural das histórias e dos espaços clínicos que habitamos permite ao praticante também notar outras versões que não são tão visíveis quando uma história “saturada de problemas” é dominante. Praticar com sensibilidade narrativa permite-me notar os recursos dos pacientes e das suas famílias, os pontos fortes, os conhecimentos únicos, e a resiliência existente. Faz-me lembrar que as histórias de sofrimento são também histórias de sobrevivência. Podemos agir como testemunhas do sofrimento, mas também que documentam as capacidades e habilidades de sobrevivência.

Outra influência veio do movimento “ouvidores de vozes”. Aprendi muito com aqueles que tiveram experiências psicóticas e recuperaram ou mantiveram um funcionamento suficientemente bom para se tornarem formadores e professores. Ajudaram-me a compreender que mesmo os fenômenos que consideramos psicóticos podem ter importantes significados pessoais que podem não ser imediatamente aparentes, mas que podem ser valiosos para uma pessoa, e não apenas um sintoma. O trabalho deles também me ajudou a compreender que o objetivo terapêutico não deve ser o de eliminar as vozes, que os modelos convencionais só veem como sintomas, mas sim o de ajudar a pessoa a compreender e a acomodar-se a eles.

O trabalho antropológico sobre a audição de vozes reforçou esta opinião. Por exemplo, em um artigo interessante, os investigadores descreveram como a audição de vozes é vivida de forma diferente entre pessoas que residem em diferentes partes do mundo. No seu estudo, pessoas nos EUA experimentaram universalmente as suas vozes (ou o que um psiquiatra classificaria como “alucinações auditivas” – uma percepção anormal de vozes que não vêm de nenhuma pessoa real) como perigosas, indesejadas, e algo de que se deveria esforçar por se livrar.

Nos países em desenvolvimento desta amostra, os participantes experimentaram vozes de formas mais variadas. Os participantes nos EUA foram mais propensos a utilizar rótulos de diagnóstico e a relatar comandos violentos do que os da Índia e Gana, que foram mais propensos do que os americanos a relatar relações ricas com as suas vozes e menos propensos a descrever as vozes como o sinal de uma mente violada. As amostras ganesas e indianas também funcionavam muito melhor no seu dia a dia do que a amostra americana.

Ao desenvolver a minha confiança no trabalho com aqueles que experimentam vozes e outros fenômenos considerados psicóticos, comecei a compreender que é possível alcançar melhores resultados ajudando a pessoa a ver as suas vozes no contexto e a mudar a sua relação com as suas vozes (ou outros fenômenos psicóticos). Em vez de as ver antagonistamente como algo que não deveriam ter e de que deveriam ter medo, podiam encontrar formas de se sentirem irritadas em vez de receosas, e até de se envolverem em conversas úteis com elas.

Praticamente todas as pessoas que conheci que viviam fenômenos psicóticos, sejam vozes ou não, tinham experimentado a sua quota-parte dos EAIs que mencionei anteriormente neste capítulo. Aprendi a explicar às pessoas com tais experiências que todos nós temos formas únicas de responder quando nos acontecem coisas emocionalmente avassaladoras. Muitas vezes, quando estamos a vivê-las, estamos em modo de sobrevivência. Depois, a nossa mente usa as suas próprias formas particulares para tentar evitar que sejamos novamente feridos.

Isto pode surgir em todos os tipos de fenômenos que são únicos para cada indivíduo, uma vez que estamos todos “ligados” de forma diferente. Algumas pessoas têm muitas dores de cabeça, outras não conseguem parar de falar, algumas encontram-se evitando as pessoas, algumas começam a usar substâncias para afogar sentimentos, e algumas começam a ouvir vozes que lhes dizem para não confiarem nos outros.

De acordo com a prática dos ouvidores de vozes, tento ajudar a pessoa a “humanizar” cada voz. Pergunto-lhes sobre as características da voz, se são masculinas ou femininas, quantos anos imaginam ter, que tipo de humor têm, que tipo de voz é, se lhes faz lembrar alguém etc. Pergunto-lhes sobre o que a pessoa sente sobre cada voz e o que espera mudar.

Porque estamos numa cultura que teme ouvir voz e vê isto como um sintoma das doenças mentais mais perigosas e graves, não é surpreendente que muitos se tenham assustado com tais experiências, não tenham querido contar a ninguém, e esperassem que algo pudesse ser feito para se livrarem das vozes. Explico como as vozes podem emergir do nosso inconsciente e representar partes de nós próprios, muitas vezes aspectos que tentámos reprimir. Elas são reais e têm significados. Muito do trabalho envolve então ajudá-los a mudar a sua relação com as suas vozes, para que não tenham de se sentir assustados ou controlados por elas.

Como vejo menores de 18 anos, isto é normalmente feito em conjunto com pelo menos um dos seus familiares (a menos, claro, que a pessoa não queira envolver a sua família por muito boas razões), por isso as conversas envolvem uma pessoa que pode contribuir para estabelecer laços, encontrar novos significados, e apoiar a tarefa de ajudar a pessoa a mudar a sua relação e os sentimentos que tem em relação às vozes. Quanto menos controlada e torturada pela voz a pessoa se sente, menos angústia a pessoa experimenta com as vozes, as vozes começam a perder o seu poder quando se tornam mais variadas e menos persecutórias.

Outra influência sobre mim foi crescer no Iraque quando era jovem. Há uma forte crença em muitas culturas de influência islâmica no “destino”. Apesar de não ser religioso, certos valores e práticas com que cresci tiveram influências duradouras sobre mim. Um desses sentimentos que tenho regularmente é que posso não compreender por que é que algo aconteceu como aconteceu, mas existe uma razão/objetivo superior que está para além da minha compreensão.

nos suceda em nossas vidas. Tem significados que não iremos compreender. Ainda tenho esse sentimento em mim, apesar de não partilhar tal crença. Mas esse sentimento ajuda-me a ultrapassar tempos difíceis, porque algures dentro de mim tenho esta convicção de que as coisas estão destinadas a ser e irão decorrer.

Não é a impotência passiva, aprendida de “não posso mudar nada e tenho de aceitar que as coisas serão sempre uma ‘M’ “, mas sim o mais otimista “tenho de confiar que as coisas más também têm significados”. A crença na arquitetura profundamente concebida do destino tem permitido às pessoas nessas culturas uma maior resiliência face à adversidade e ao sofrimento. Permite às pessoas aceitarem a dor, a tragédia e o sofrimento, sem o ampliarem em narrativas de doenças pessoais, disfunções e desespero.

Outra influência que me ajudou ainda mais a compreender como a nossa relação com um problema tem um grande impacto na forma como esse problema se manifesta é a compreensão da insónia. Eu costumava ter insónia com frequência e lutava com ela. Então, um dia, a minha mulher disse: ” você gosta de fazer um alarido sobre o seu sono“.

Foi apenas um comentário descartável. Penso que deve ter tocado na minha mente porque me lembro de alguns dias depois ter tido algo de epifania emocional (não sei de que outra forma o descrever). Compreendi, a um nível para além da linguagem e do intelectual, que a minha luta contra a insônia era porque eu estava lutando contra a insônia. Compreendi como, passado algum tempo, a insônia causa insônia e para interromper esse processo, tive de parar de a levar tão a sério e abster-me de tentar encontrar uma solução para a mesma.

Deixem-me explicar. A insônia aconteceu primeiro porque fiquei estressado e perturbado e tinha coisas na cabeça, de modo que por vezes tinha dificuldade em adormecer ou acordava a meio da noite e a minha mente entrava em ação sobre o que quer que fosse que me preocupava e depois não conseguia voltar a dormir.

Passado algum tempo, foi o fato de eu não conseguir dormir que me mantinha acordada. Preocupava-me se ia ter outra noite sem dormir. Eu poderia observar o relógio, pensando que tinha passado mais uma hora e ainda não tinha conseguido dormir, no entanto, eu teve de me levantar para o trabalho em quatro horas. Se eu acordasse e visse que eram apenas 3 da manhã, perguntava-me se seria só isso durante a noite. Apesar de ser muito cético no que diz respeito aos meios de comunicação social, é claro que agora reparava em relatórios e artigos sobre como todos nós precisamos de dormir e como a falta de sono causa todo o tipo de problemas.

Por isso, passei a procurar formas de resolver isto, porque a insônia estava atingindo o estatuto de um problema que interferia com a minha vida quotidiana. Lia artigos sobre como lidar com a insônia, mudar pedaços do meu estilo de vida, fazer download de aplicativos, mudar a minha rotina de dormir, e assim por diante. Alguns produziam uma melhoria (que pode ser apenas por coincidência), mas após algum tempo a insônia apenas voltava.

A insônia – estava agora a desviar-se para o desespero. Sentia que tinha um problema que não conseguia mudar. Tinha começado a ocupar uma quantidade crescente de espaço mental.

O comentário da minha mulher e a minha epifania emocional subsequente romperam a ligação hipnótica que eu tinha desenvolvido com a insônia. A insônia não merecia o estatuto de um problema que necessitava de uma solução. Somos bastante resilientes como humanos. Pergunte a qualquer pai ou mãe de um bebê ou criança pequena, ainda podemos operar eficazmente com muito pouco sono.

Agora pude ver que a insônia é uma dor nas costas, mas nada mais do que uma experiência comum. Eu tinha colocado a insônia na categoria de “um problema”, depois de “um problema que afeta outros aspectos da minha vida” e depois de “um problema que necessita de uma solução”. Para que a minha vida melhorasse, senti que tinha de eliminar o problema. Tinha de me ver livre dele. Já não era uma experiência vulgar e compreensível – era agora um sintoma a ser tratado.

Para o meu bem-estar melhorar, tive de deixar de ver a insônia como um problema que precisava de ser resolvido. Tive de mudar a minha relação, o meu sentimento, em relação à insônia. A insónia era apenas uma reação compreensível a determinada situação. Estava no reino do normal. Eu não precisava de uma estratégia para isso. Quanto mais procurava uma solução, mais reforçava a crença de que a insônia era um problema. Quanto mais estas soluções não se sustentavam, mais caía no meu transe focado no problema, com a esperança a desvanecer-se sobre a possibilidade de a vida poder alguma vez ser melhor.

E acabou por ser tão simples quanto isso. Uma vez que deixei de ver a insônia como algo diferente do normal e/ou compreensível, como não sendo um problema, como apenas algo que tenho de aceitar que vem e vai, então a insônia deixou de causar insônia. Agora tenho noites em que não durmo bem, por qualquer razão, mas outras noites são boas. Eu já não fico mais a olhar o relógio. Se eu não durmo, não durmo. Não me alegro depois de ter uma boa noite de sono ou fico desanimado depois de uma má noite. A insônia intermitente é apenas uma parte da minha vida, como suspeito que seja para a maioria das pessoas de vez em quando.

Estas várias influências ensinaram-me uma série de coisas. Em primeiro lugar, a maioria dos problemas que se tornam aquilo que consideramos e categorizamos como problemas de saúde mental começam como reações compreensíveis e/ou comuns, frequentemente a danos psicológicos. Em segundo lugar, somos todos altamente influenciados pelas histórias culturais sobre como devemos ser. A propagação da “consciência da saúde mental” sensibilizou a população para suspeitar das nossas reações emocionais comuns e/ou compreensíveis e ver nelas potenciais doenças, transtornos, desregulamentação e disfunções. Agora examinamos os nossos estados emocionais e vemos neles, ou naqueles de que gostamos, um possível transtorno mental.

Em terceiro lugar, quando começamos a trilhar o caminho de “há algo de errado com as minhas emoções e/ou comportamento” arriscamo-nos a entrar na toca do coelho de Alice no País das Maravilhas, onde o problema se torna o problema. Estar ansioso torna-se angustiante, estar deprimido é depressivo. Entramos na sala dos espelhos onde os nossos problemas se desprendem do comum e olham-nos de volta, zombando das nossas tentativas de os ignorar.

Desenvolvemos uma relação antagônica com aspectos da nossa vida, particularmente a nossa vida emocional, vendo-os como possuindo qualidades de doença, acentuando o nosso sofrimento, e sugando significado da experiência para além da de uma potencial “anormalidade” médica ou psicológica que precisa de ser resolvida e/ou removida.

Em quarto lugar, entra-se no mercado da medicalização McDonaldizada, onde a gama de marcas (diagnósticos) e produtos de marca (medicamentos e terapias) é oferecida. Uma vez cooptado para o consumo da marca, a alienação e o antagonismo em relação à sua vida emocional é ainda mais fortalecido. O comum e/ou compreensível torna-se um sintoma ou conjunto de sintomas sem sentido que necessitam de um tratamento para se verem livres deles.

Neste momento entra-se no perigoso território dos alienados. Ele é criado para lutar e tentar controlar, reprimir, eliminar aspectos da sua vida emocional. A sua relação e sentimento em relação ao seu problema ocupa mais espaço mental se as soluções oferecidas não funcionarem ou apenas proporcionarem uma pausa temporária.

Se for esse o caso, você está agora pronto para a quinta etapa: entrada no mundo do doente crônico, à espera do perito certo, marca, medicação ou terapia para combater o transtorno que não para de crescer. As questões originais há muito que desapareceram. O problema tornou-se o problema.

Este entendimento tornou-me muito mais consciente de como os serviços podem acidentalmente tornar a sua saúde mental pior. Comecei a compreender por que é que temos resultados tão fracos e porque é que o volume das pessoas incapacitadas por ” transtornos ” de saúde mental se multiplicou a par com a quantidade e o número de tratamentos que estamos a fornecer. Os serviços de saúde mental, ao que parece, são muitas vezes maus para a sua saúde mental.

Na Parte 2 deste capítulo, exploraremos o trabalho com medicamentos e como se retirar dos medicamentos psiquiátricos.

[Trad. e edição Fernando Freitas]

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