Nova Revisão da Literatura sobre Efeitos Graves de Abstinência dos Medicamentos Psiquiátricos

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Um novo artigo em Psicoterapia e Psicossomática analisa a literatura atual sobre síndromes de abstinência após a descontinuação ou a diminuição da dose de vários medicamentos psiquiátricos. A revisão incluiu medicamentos antidepressivos, antipsicóticos e anti-ansiedade. Os pesquisadores descobriram que, mesmo com o uso da interrupção gradual, conhecida como redução lenta, os sintomas de abstinência estavam presentes em todas as classes de medicamentos estudadas.

A revisão foi conduzida por Fiammetta Cosci, da Universidade de Florença, e Guy Chouinard, da Universidade de Maastricht. Os autores descobriram que, contrariamente à crença popular, inibidores seletivos da recaptação de serotonina (antidepressivos ISRS), antipsicóticos e inibidores da recaptação de serotonina noradrenalina (antidepressivos ISRN) apresentaram síndromes pós-retirada mais graves e duradouras do que os benzodiazepínicos. Essa evidência desafia as sugestões de médicos e pesquisadores que propõem a substituição do uso de benzodiazepínicos para ansiedade por antidepressivos e antipsicóticos.

A retirada das drogas psiquiátricas continua sendo uma questão relevante, pois pesquisas recentes sugerem que mais da metade das pessoas que tomam antidepressivos experimentam a síndrome de abstinência. Os antidepressivos ISRS e os antidepressivos ISRN foram implicados. Há evidências consideráveis de que a retirada dos antipsicóticos também pode ser duradoura e severa. Os perigos da polifarmácia e o uso inadequado de medicamentos são motivo de grande preocupação em todo o mundo, à medida que os pesquisadores começam a abordar seus perigos.

Para a revisão atual, Cosci e Chouinard analisaram a literatura sobre abstinência causada pela interrupção, troca e diminuição de medicamentos psicotrópicos. Isso incluiu diferentes classes de drogas, como benzodiazepínicos, antipsicóticos, antidepressivos, cetamina, agonistas do receptor de benzodiazepínicos não-benzodiazepínicos (drogas Z), estabilizadores de humor e lítio. As síndromes de abstinência foram categorizadas em três grupos: novos sintomas de abstinência, sintomas de rebote e transtorno pós-abstinência persistente.

Novos sintomas e rebotes de abstinência são de curta duração, temporários e reversíveis. No entanto, novos sintomas de abstinência são novos para o paciente (náuseas, dores de cabeça, etc.), enquanto os sintomas de rebote se referem ao retorno repentino de sintomas primários que geralmente são mais graves que o pré-tratamento. Transtorno persistente pós-abstinência refere-se a “um conjunto de sintomas duradouros, graves e potencialmente irreversíveis, que dão direito a sintomas primários de rebote ou distúrbio primário com maior intensidade e / ou novos sintomas de abstinência e / ou novos sintomas ou distúrbios que não estavam presentes antes tratamento.”

Estudos têm demonstrado que os sintomas de abstinência psicotrópica podem parecer recaídas, criando a ilusão de que a descontinuação de medicamentos causou um retorno dos sintomas de saúde mental. Os autores deste estudo afirmam que a diferença entre a recidiva / recorrência real do ‘distúrbio’ e os sintomas de abstinência é que os últimos são mais rápidos e mais graves.

Cosci e Chouinard revisaram artigos em inglês publicados em revistas especializadas e pesquisaram o banco de dados MEDLINE até janeiro de 2020. Palavras-chave como “descontinuação / retirada”, com várias classes de medicamentos, foram usadas.

Eles descobriram que os benzodiazepínicos e os medicamentos Z causavam novos e leves sintomas de abstinência, variando de sudorese, confusão e taquicardia a convulsões e psicose. A maioria dos novos sintomas de abstinência permanece leve e de curta duração (2-4 semanas). Os sintomas mais comuns de abstinência de rebote incluíam insônia e ansiedade, mesmo após o uso a curto prazo, podendo durar até 3 semanas. A ansiedade de rebote foi encontrada mesmo durante o tratamento medicamentoso quando a dose estava sendo reduzida. Por exemplo, a ansiedade de rebote ocorreu de manhã após a administração da dose noturna.

Embora não haja literatura suficiente sobre os efeitos de abstinência a longo prazo de benzodiazepínicos e medicamentos Z, alguns estudos encontraram efeitos adversos, como comprometimento cognitivo, que duraram muito tempo. Os autores também observam que a redução gradual dos benzodiazepínicos ajuda a gerenciar novos sintomas de abstinência e a administração de psicoterapia pode ajudar nesse processo.

Para os antidepressivos, eles descobriram que os novos sintomas de abstinência incluem dor, fadiga, arritmia, diarreia, visão turva, dormência, zaps cerebrais, amnésia, depressão, alucinações e sintomas semelhantes a derrame, entre outros.

Depressão rebote e até ansiedade foram encontradas após a descontinuação dos ISRS. O uso prolongado de ISRSs foi associado a distúrbios persistentes pós-retirada. Eles descobriram que isso era verdade mesmo que a descontinuação fosse gradual.

Os transtornos pós-abstinência, que às vezes continuavam mesmo após um ano de descontinuação, incluem transtorno do pânico persistente, depressão, memória prejudicada, jogo patológico, transtorno de ansiedade generalizada, várias disfunções sexuais e outros. Os pesquisadores também observaram que as empresas farmacêuticas preferiam usar a frase síndrome de descontinuação de antidepressivos em vez de “abstinência”, pois retira a atenção para os efeitos adversos da droga.

A cetamina e a esketamina, prescritas para ‘depressão resistente ao tratamento‘, são excepcionalmente vulneráveis ao abuso e uso indevido. Novos sintomas de abstinência incluem desejo, tremores, delírios e alucinações, calafrios, paranoia, raiva, tremores, palpitações, etc. Eles geralmente duram 3 dias, mas podem continuar por 2 semanas. Os autores escrevem que, apesar do uso off-label da cetamina como droga de rua (Special K), seu uso contínuo colocou a psiquiatria “em risco de replicar o abuso da epidemia americana de 2016 com o risco de induzir neurotoxicidade”.

A descontinuação, a redução da dose ou a troca de antipsicóticos causou duas síndromes pós-abstinência: discinesia tardia (movimentos incontroláveis de movimentos bruscos) e psicose de supersensibilidade (alucinações, catatonia, ilusões). O primeiro pode acontecer mesmo após o uso a curto prazo.

Novos sintomas da retirada de antipsicóticos incluem calafrios, dor no peito, sensações de choque elétrico, tremor, sensibilidade genital, coma, parkinsonismo, letargia, catatonia, ansiedade, depressão e muito mais. Os sintomas de rebote incluem catatonia e o retorno do estado hipnótico.

Os antipsicóticos de segunda geração, que foram apontados como causadores de menos efeitos colaterais, apresentam tantos sintomas de abstinência novos e rebote quanto os de primeira geração. Mesmo uma diminuição gradual ao longo dos meses foi incapaz de impedir o surgimento desses sintomas de abstinência.

No geral, a revisão constata que os ISRSs, os ISRNs e os antipsicóticos estão repetidamente ligados a distúrbios pós-abstinência a longo prazo e ao aumento da gravidade da doença quando comparados aos benzodiazepínicos e cetamina.

Os autores também observam que esses sintomas de abstinência geralmente influenciam os resultados de ensaios clínicos e que há considerável confusão sobre o que é um sintoma de um distúrbio e o que é causado pelo tratamento. Os pesquisadores alertam para o perigo de psiquiatras negligenciarem os efeitos da abstinência:

“Os pacientes que apresentam sintomas de abstinência correm o risco de serem mal diagnosticados, maltratados e entrarem na iatrogênese em cascata, que é uma porta de entrada para a cronicidade … Os pesquisadores devem aceitar que os sujeitos nos ensaios e na vida real não sejam mais ingênuos ou mesmo livres de drogas, a regra está sob polifarmácia. ”

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Cosci, F. & Chouinard, G. (2020). Acute and Persistent Withdrawal Syndromes Following Discontinuation of Psychotropic Medications. Psychotherapy and Psychosomatics, Published online first: April 7, 2020. DOI:10.1159/000506868. (Link)

População Argentina Relata suas Emoções e Reflexões na Pandemia

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Na Argentina, o primeiro caso confirmado de Coronavírus foi 05 de março de 2020, desde então os números de pessoas contagiadas começaram a subir rapidamente, exigindo a implementação de medidas para evitar novos contágios. O isolamento social obrigatório foi a medida com maior impacto social.

A pesquisa publicada na revista Ciência & Saúde Coletiva, foi realizada através de um estudo transversal implementado na Argentina, seguindo a proposta do estudo “COVID-19 Snapshot MOnitoring (COSMO):Monitoring knowledge, risk perceptions, preventive behaviours, and public trust in the current coronavirus outbreak”, elaborado pela Oficina Regional Europeia da OMS.

Os dados foram recolhidos por um questionário elaborado por tal estudo, e adaptado ao contexto argentino. O questionário ficou disponível na plataforma Google Forms e foi realizada em duas etapas, a primeira etapa alcançou 922 pessoas, enquanto a segunda etapa contou com 418 pessoas.

Em relação aos sentimentos da população diante da pandemia, se destacou a incerteza, o medo e a angustia, sentimentos relatados, principalmente, por mulheres. A incerteza se baseia no contexto incerto no qual estamos vivendo, a qual não permite o planejamento futuro, e levando a outros sentimentos como impotência, resignação, desconcerto e falta de controle da situação. A incerteza também foi vinculada as consequências sociais e econômicas do isolamento, como a queda da economia.

Além disso, os entrevistados foram questionados sobre as possíveis consequências positivas da pandemia para a sociedade. As respostas foram: valorização da interdependência, a oportunidade de reflexão, valorização do meio ambiente, valorização do Estados e das instituições, valorização dos afetos e a revisão do sistema socioeconômico e político.

“Que as pessoas se conscientizem sobre a importância de um Estado presente e a inversão em saúde, ciência e educação.” (mulher, 40 anos)

Como conclusão, o estudo adverte o impacto na saúde mental das pessoas manifestado em sentimentos como medo, incerteza e angustia, próprios de um sentido de ruptura com o cotidiano e perda de previsibilidade, especialmente presente no isolamento social. Mas também, demonstrou  aspectos avaliados como positivos para a sociedade.

O artigo aponta para a necessidade de desenhar estratégias para a diminuição do sentimento de incerteza, considerando as desigualdades sociais e o gênero. Por outro lado, a solidariedade, a consciência social e a empatia geradas a partir da pandemia, podem ser valores que contribuam para a aceitação e o cumprimento das medidas de prevenção, reduzindo o impacto na saúde mental.

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JOHNSON, María Cecilia; SALETTI-CUESTA, Lorena; TUMAS, Natalia. Emociones, preocupaciones y reflexiones frente a la pandemia del COVID-19 en Argentina. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro ,  v. 25, supl. 1, p. 2447-2456,  June  2020 . (Link)

Esketamine para Depressão: “a repetição de erros do passado”

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Em um novo artigo publicado no British Journal of Psychiatry, os pesquisadores Joanna Moncrieff e Mark Horowitz revisaram as evidências para o uso da esketamina na depressão. Eles descobriram uma falta de evidência de eficácia e uma minimização dos danos do medicamento.

“A esketamina foi licenciada para ‘depressão resistente ao tratamento’ nos EUA, Reino Unido e Europa. Os ensaios clínicos para o seu licenciamento não estabeleceram eficácia: dois ensaios foram negativos, um mostrou um efeito estatisticamente significativo, mas clinicamente incerto, e um ensaio de descontinuação defeituosa foi incluído, contra o precedente da Food and Drug Administration. Sinais de segurança – mortes, incluindo suicídios e danos na bexiga – foram minimizados ”, escrevem Moncrieff e Horowitz.

A esketamina – uma versão recentemente licenciada do tranquilizante para animais e da droga recreativa cetamina – foi aprovada para o tratamento da depressão nos EUA, Reino Unido e Europa no ano passado. Segundo os pesquisadores, “a esketamina é duas vezes mais potente que a cetamina”. Ao contrário da cetamina, que é administrada por via intravenosa, a esketamina foi formulada como um spray nasal para facilitar o uso.

A cetamina é conhecida por causar efeitos nocivos, incluindo danos na bexiga, ataques cardíacos e derrames. Quando usada recreativamente, cria um estado dissociativo no usuário, que alguns acham eufórico.

Cinco ensaios foram submetidos à FDA dos EUA para que a empresa farmacêutica Janssen recebesse a aprovação pela agência reguladora. Três desses ensaios foram ensaios clínicos randomizados de curta duração que usaram a esketamina comparando-a a um spray nasal como placebo – e os três duraram apenas quatro semanas, portanto mais curtos que os ensaios de eficácia usuais no desenvolvimento de medicamentos (a FDA geralmente exige ensaios de 6 a 8 semanas).

A FDA exige que pelo menos dois ensaios de eficácia sejam positivos, “cada um por si só tem que ser convincente”, a fim de aprovar um novo medicamento. No entanto, em dois dos três ensaios, a esketamina não foi melhor do que um spray nasal placebo para melhorar os sintomas da depressão. No terceiro estudo, a esketamina foi marginalmente melhor que o placebo – quatro pontos melhor em uma escala que chega a 60 pontos. Os pesquisadores dizem que essa diferença é clinicamente insignificante – imperceptível tanto pelo paciente quanto pelo médico.

Quando a Janssen não conseguiu atender aos requisitos de aprovação do medicamento, a FDA fez uma exceção – permitiu que a empresa submetesse um estudo de “descontinuação” como evidência de eficácia. Esse tipo de ensaio clínico teve participantes que que estavam se saindo bem com o medicamento e que de repente pararam de tomá-lo, o que geralmente induz efeitos de abstinência que podem mimetizar a depressão, entre os outros efeitos nocivos. No entanto, nesse ensaio clínico de “descontinuação”, seus efeitos foram considerados “recaídas” e tomados como evidência, não da abstinência, mas da eficácia do medicamento.

Talvez ainda mais preocupante seja o fato de que, dentro do estudo da descontinuação, um único local na Polônia levou à essa aparente descoberta de eficácia. Os dados deste site sugeriram que 100% do grupo placebo supostamente recaíram (em comparação com cerca de 33% do grupo placebo em todos os outros sites) – um resultado improvável. Quando os dados desse ‘outlier’ suspeito foram removidos, a análise do estudo não mostrou evidências de que a esketamina fosse melhor do que o placebo.

Por fim, Janssen enviou um teste de segurança para demonstrar que tomar esketamina não era perigoso. Em todos os ensaios realizados por Janssen, que incluiu cerca de 1800 pacientes em esketamina, houve seis mortes no grupo da esketamina. Três foram mortes por suicídios, sendo que dois ocorreram em pessoas que não tinham pensamentos suicidas anteriores. Todos os três suicídios ocorreram logo após a interrupção do medicamento, indicando que eles poderiam ter resultado de efeitos de abstinência.

As outras três mortes foram devidas a efeitos comuns da cetamina: uma morte foi um acidente de motocicleta (que pode ocorrer devido à dissociação após o uso de cetamina), uma foi por um infarto do miocárdio e uma foi causada por insuficiência cardíaca e pulmonar aguda. Uma pessoa sofreu uma hemorragia cerebral não fatal, que também é um efeito conhecido da cetamina. Cinco outras pessoas que tomaram esketamina tiveram acidentes de carro não fatais.

Além disso, no grupo da esketamina mais pessoas sofreram piora da depressão e mais pessoas tiveram pensamentos suicidas do que no grupo do placebo. Por esse motivo, a embalagem da esketamina terá que levar o “aviso de tarja preta” de que o medicamento pode aumentar as chances de suicídio.

Cerca de 20% dos participantes tiveram problemas na bexiga após tomar o medicamento. Metade dos participantes experimentou dissociação e cerca de um terço experimentou tontura.

No entanto, a FDA aceitou o argumento da Janssen de que todas essas mortes estavam desconectadas da droga que todos os participantes haviam recebido. A FDA afirmou que não podia concluir que mesmo os efeitos não fatais eram devidos à droga, embora todos esses efeitos sejam comumente observados em usuários da cetamina.

O Instituto Nacional de Excelência em Saúde e Cuidados do Reino Unido (NICE) recomenda contra a esketamina por “depressão resistente ao tratamento” devido à falta de estudos de longo prazo e porque não há evidências de que o medicamento seja melhor do que os tratamentos existentes. No entanto, de acordo com os pesquisadores, o NICE também deve considerar que mesmo as supostas evidências de curto prazo não são convincentes e que os danos à droga foram minimizados.

Horowitz e Moncrieff escrevem:

“Parece que os temas históricos estão se repetindo: uma droga conhecida de mau uso, associada a danos significativos, é cada vez mais promovida, apesar das poucas evidências de eficácia e sem estudos adequados da segurança a longo prazo”.

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Horowitz, M. A., & Moncrieff, J. (2020). Are we repeating mistakes of the past? A review of the evidence for esketamine. The British Journal of Psychiatry. Published online by Cambridge University Press: 27 May 2020. DOI: https://doi.org/10.1192/bjp.2020.89 (Link)

Como as Síndromes de Saúde Mental Surgem das Mudanças Sociais

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Um capítulo recente publicado no livro Perspectivas para uma Nova Teoria Social da Sustentabilidade(Perspectives for a New Social Theory of Sustainability) explora uma perspectiva da “teoria dos sistemas” sobre como as síndromes da saúde mental surgem e evoluem ao longo do tempo. Os autores discutem como o surgimento de síndromes está vinculado às alterações nos padrões de migração, tecnologia, normas sociais, medicina, desigualdade econômica e assim por diante. Essas síndromes variam do “rapidamente mutante” ao “lento mutante mimético”. Eles sugerem que algumas síndromes podem ser vistas como “arautos” para as mudanças sociais no horizonte.

“Nós propomos um modelo para explicar as possíveis cibernéticas das síndromes. Consideramos a tradição cultural e os processos de transformação que vinculam os efeitos da migração ao processo de globalização. Tentamos descobrir como as síndromes psiquiátricas estão ligadas ao contexto social e ao ecossistema em que estão inseridas”, explicam os autores, liderados pelo psiquiatra italiano Paolo Cianconi.

“As síndromes destacam indiretamente as escolhas feitas quando certas condições se espalham no corpo social. É possível ver suas consequências expressadas na psicopatologia da população em geral, especialmente entre os grupos vulneráveis. ”

Dynamic Systems Theory, Flickr

Há um movimento crescente na psiquiatria e nos campos adjacentes em direção a um entendimento ecológico da saúde mental social e economicamente baseado, e não apenas como surgindo nos cérebros individuais, como é no modelo médico.

Especificamente, muitos pesquisadores argumentam que síndromes tão diversas como “esquizofrenia”,ouvir vozes e “luto ecológico” devem ser entendidas em contextos históricos e sociais mais amplos.

Em seu capítulo, os autores fornecem uma ampla visão geral de como sistemas ecológicos e sociais não lineares complexos podem levar a novos desenvolvimentos nas síndromes psicopatológicas, bem como a mudanças nas existentes. Os autores começam falando sobre “síndromes culturais” em relação à migração. Em seguida, discutem como as mudanças nos sistemas sociais e ambientais existentes podem afetar até mesmo aqueles que “permanecem no local”.

Os autores teorizam que a mente humana está sempre buscando estabilidade e coerência, mas as mudanças em nossos ecossistemas podem apresentar desafios à sustentabilidade mental e emocional. Essa sustentabilidade requer nossa capacidade para “evitar ameaças”, assim como as lacunas no poder e a falta de acesso aos recursos.

Discutindo síndromes culturais, eles argumentam que, à medida que os indivíduos migram de uma cultura para outra, mudanças podem ocorrer na natureza das síndromes patológicas. Eles observam que “os novos imigrantes na Europa mostraram uma resposta positiva baixa, mesmo às terapias tradicionais”, de modo que os métodos de cura da cultura original podem não ser capazes de lidar com a síndrome à medida que ela evolui. Pode haver uma “mutação” que ocorre quando as pessoas são expostas a diferentes ambientes. Fatores ambientais específicos que levam a dificuldades enfrentadas pelos migrantes incluem discriminação racial, falta de pertencimento, dificuldades de linguagem, precariedade no emprego e muito mais.

Em termos de mudanças nos contextos existentes, os autores acreditam que as formas tradicionais de entender a psicopatologia podem facilmente se confundir com a complexidade das mudanças sociais. Os processos de industrialização e globalização, levando à nossa atual era tecnológica “pós-moderna”, podem mudar o terreno sob nossos pés:

“Se é o território social que se move sob nossos pés, tal como uma plataforma deslizante, a situação objetiva é a de estar em outro lugar, apesar do fato de não termos nos movido geograficamente”.

Essas mudanças ambientais podem levar a mudanças nas síndromes patológicas, que a disciplina da psiquiatria, assim como os terapeutas individuais, podem ter dificuldade em reconhecer. Os autores listam várias questões como exemplos desse fenômeno, como síndromes de mudança climática, sociedades em colapso devido a desastres naturais e síndromes de paranoia social. Eles observam que as sociedades que enfrentam “crises econômicas rápidas ou declínio” mostram taxas mais altas de angústia, suicídio, abuso de álcool e jogos de azar.

Os autores discutem a Síndrome de Transtorno Pós-Traumático como um exemplo de uma “síndrome rapidamente mutante”. Os veteranos do Vietnã enfrentaram não apenas a violência da guerra, mas também um conflito cultural com o pacifismo emergente ao voltarem para casa.

“Terrorismo por atiradores por vingança” é uma outra síndrome rapidamente mutante que é discutida pelos autores, na qual indivíduos – “jovens adultos, em sua maioria homens, inteligentes, geralmente ricos, com frequência exibindo problemas sociais, isolamento social seletivo, raramente sociáveis e com pouca vida íntima” – tentam “vingar-se” de um mundo em rápida mudança do qual eles se sentem privados de direitos. Os autores argumentam que essa população pode ser uma “contra-insurgência contra a globalização”, pois alguns grupos se sentem alienados e deixados de fora pelas rápidas mudanças sociais pós-modernas.

As síndromes também podem se desenvolver em um ritmo mais lento, devido a fatores como “acesso insuficiente aos recursos”, “racismo e opressão”, “disponibilidade de novas drogas”, “imprevisibilidade ambiental” e muito mais.

Essas “síndromes mutantes miméticas lentas” são frequentemente confundidas por psiquiatras e terapeutas com as síndromes existentes. Os autores listam aqui as epidemias de “histeria” e “controle” no século XIX, bem como a evolução dessas síndromes no “transtorno de personalidade borderline” burguês nos anos 50. Alguns sintomas permaneceram os mesmos, enquanto a síndrome geral mudou significativamente de forma.

Os autores observam que todas as síndromes são dinâmicas e sofrerão “modelagem e facilitação”, de acordo com a forma como a cultura médica e outras forças ambientais interagem com elas.

Finalmente, eles argumentam que as síndromes podem servir como um “arauto” de mudanças sociais imprevistas, como um canário em uma mina de carvão. À medida que nossas mentes e culturas absorvem as mudanças no ambiente, isso leva a mudanças nas síndromes existentes, bem como à violenta erupção de novas síndromes.

Os autores concluem sugerindo a necessidade de entender contextos mundiais mais amplos, se os terapeutas quiserem entender síndromes e sintomas psicológicos:

“Síndromes são funções dinâmicas. Seus sintomas são expressões de um claro mal funcionamento dos sistemas biológico, cognitivo, emocional e social (o núcleo), influenciados por um contexto ou condição cultural. Quando um sistema social (seja globalização, migração ou qualquer outra crise social) muda, o equilíbrio dinâmico necessário para a sobrevivência é comprometido, o que é evidenciado em certa fenomenologia psicopatológica.

Os terapeutas de hoje devem ter uma sólida compreensão da evolução do nosso mundo para estudar as mutações que ocorrem na comunicação. As entidades biológicas geralmente lutam para alcançar a homeostase, mesmo em ambientes desejáveis. ”

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Cianconi P., Tomasi F., Morello M., Janiri L. (2020). Toward an understanding of psychopathological syndromes related to social environments. In Nocenzi M. & Sannella A. (eds), Perspectives for a new social theory of sustainability. Springer: New York. (Link)

Pesquisadores questionam a validade do tratamento da depressão resistente

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Um novo editorial em Psicoterapia e Psicossomática questiona a validade do conceito de depressão resistente ao tratamento. Liderados por Giovanni Fava, da Universidade de Buffalo, os autores traçam a história da resistência ao tratamento na depressão e revelam suas suposições problemáticas. Eles sugerem que um estudo informado sobre transtornos depressivos levaria em conta o julgamento clínico, o comportamento da doença, as condições de comorbidade, as condições de vida e o histórico anterior de tratamento.

Um paciente é chamado de resistente ao tratamento quando não responde bem ao medicamento em estudo. Este artigo afirma que o conceito é enganoso, pois pressupõe erroneamente que o medicamento é eficaz, e que são as características de um paciente que causam esse fracasso.

Pixabay

A resistência ao tratamento implica que as pessoas que não estão respondendo bem a um determinado tratamento o fazem por causa de seus atributos pessoais, e não pela ineficácia do tratamento ou efeitos colaterais. Pesquisas anteriores sobre resistência ao tratamento têm sido controversas, com algumas sugerindo que os antidepressivos podem causar resistência ao tratamento e que o mesmo pode se aplicar aos antipsicóticos.

Os autores deste artigo escrevem que historicamente a definição de resistência ao tratamento tem sido contestada, com alguns sugerindo que ela só deve ser usada quando a melhor intervenção terapêutica for aplicada. Mas a superioridade de uma dada intervenção não é fácil de ser definida.

Um conjunto de pesquisadores insistiu que a resistência ao tratamento só deveria ser usada para falta de sucesso em ensaios com altas doses de antidepressivos tricíclicos, que se supunha serem superiores aos outros. No entanto, uma recente meta-análise não revelou tal superioridade. Outros desafios a esse conceito incluem avaliar o que significa a resposta a um tratamento e como medir sua diferença em relação à não resposta.

Inúmeros fatores são negligenciados nesses ensaios clínicos. Por exemplo, muitas abordagens à resistência ao tratamento concentram-se apenas na ‘resposta’, na ‘resposta parcial’ e em ‘nenhuma resposta’ ao tratamento e desconsideram completamente a deterioração clínica ativa causada pelo referido tratamento. Em outras palavras, enquanto se concentram em se o paciente está ou não melhorando, estão a ignorar aqueles que estão piorando ativamente por causa do tratamento. Os pacientes que pioram são frequentemente incluídos na categoria de ‘resposta insuficiente’ ao tratamento.

Os autores argumentam que, embora qualquer boa avaliação deva considerar os benefícios e malefícios do tratamento, na realidade, danos iatrogênicos como discinesia tardia, resistência à insulina e distúrbios cardíacos / metabólicos são frequentemente ignorados. Eles afirmam que certos resultados do estudo, embora comuns, não recebem a devida atenção. Esses resultados incluem:

  1. A resistência que ocorre depois que um medicamento é descontinuado e depois readministrado.
  2. A perda do efeito clínico – sintomas depressivos voltando mesmo quando os pacientes estão tomando o antidepressivo.
  3. O efeito paradoxal – o aparecimento de novos sintomas e a piora da condição basal quando os pacientes estão a tomar o antidepressivo.
  4. Apenas melhora temporária quando a dose é aumentada.
  5. Melhoria dos sintomas quando o antidepressivo é interrompido.

Mais importante ainda, muitos pacientes que participam dos estudos interromperam o tratamento com um antidepressivo, e os efeitos de abstinência da interrupção podem influenciar negativamente os estudos que estão sendo feitos. A retirada do antidepressivo tem tradicionalmente sido subestimada, mas pesquisas mais recentes revelam que o impacto pode ser grave e duradouro. Consequentemente, as vozes dissidentes na disciplina, especialmente em referência à retirada de antidepressivos, são frequentemente silenciadas ou manipuladas.

Os autores insistem que um dos poucos estudos (estudo ADAPT) que levou em consideração esses fatores não revelou diferença significativa entre o aripiprazol e o placebo na depressão resistente ao tratamento. Novas pesquisas também desafiaram a validade dos testes de prevenção de recaídas tomando antidepressivos, sugerindo que o que parece ser deterioração do paciente quando eles são retirados do antidepressivo experimental é realmente o efeito de abstinência.

Afirmando que subjacentes a esses problemas conceituais são as questões de metodologia defeituosa, Fava e colegas traçam a história de ensaios clínicos randomizados. O estudo duplo-cego controlado por placebo, que tem suas raízes na ciência agrícola e foi de grande utilidade para doenças agudas como a tuberculose, não se aplica a muitas condições atuais. Ao contrário de muitas doenças anteriores, a maioria das queixas clínicas em psiquiatria são atualmente de problemas crônicos e inespecíficos com histórico de tratamento anterior.

Os tratamentos anteriores também foram relacionados à morbidade iatrogênica, que é definida como “modificações desfavoráveis no curso, características e capacidade de resposta do tratamento a uma doença que podem estar relacionadas a terapias administradas previamente”. Assim, a maioria dos ensaios clínicos randomizados em larga escala ignora esses fatores e possui um amplo critério de inclusão que negligencia a história clínica. Os autores sugerem ensaios menores com critérios de inclusão mais específicos que atendam a condições comórbidas e tratamento prévio são o caminho a seguir.

Todas essas questões têm duas implicações clínicas importantes: administração de drogas ineficazes, como a c(k)etamina, para o tratamento da resistência ao tratamento e a crença de que a resistência ao tratamento é uma função das características do paciente e não devido a problemas com a droga (ineficácia, efeitos colaterais, etc.) Muitas vezes, isso resulta em psiquiatras aumentando e trocando o tratamento, mas nunca questionando a eficácia do tratamento que está se adotado.

Os autores sugerem que isso resulta em “iatrogênese em cascata”, onde os pacientes continuam recebendo mais e mais medicamentos que eventualmente têm efeitos adversos graves e contribuem para a cronicidade da doença. Recentemente, tem havido um movimento global para tratar dos problemas com essa polifarmácia e suas consequências perigosas.

Os autores escrevem que existem conceituações mais novas e eficazes do que significa resistência ao tratamento. Uma solução é o modelo sequencial de tratamento que implica que uma:

“A sequência é executada independentemente do resultado do primeiro componente (se houve falha no tratamento ou não) como uma estratégia pré-planejada. Na depressão unipolar, o uso sequencial de farmacoterapia e psicoterapia melhorou os resultados a longo prazo. ”

Assim, eles sugerem que talvez a resistência ao tratamento deva ser reservada para os casos em que o tratamento sequencial (farmacologia e terapia) tenha sido utilizado.

Além disso, a eficácia de um tratamento baseia-se em vários fatores que têm efeitos positivos e negativos (efeitos terapêuticos e contra-terapêuticos): condições de vida, características pessoais, ambiente de tratamento, nível de autogestão da doença, comportamento da doença (percepção, experiência e comportamento do paciente em relação ao plano de tratamento) e experiência anterior com o tratamento. Esses fatores são geralmente ignorados no estudo da depressão resistente ao tratamento.

Eles concluem que a abordagem atual para a resistência ao tratamento é um produto do modelo médico reducionista, que tem sido repetidamente desafiado na disciplina.

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Fava, G. A., Cosci, F., Guidi, J., & Rafanelli, C. (2020). The Deceptive Manifestations of Treatment Resistance in Depression: A New Look at the Problem. Psychotherapy and Psychosomatics, Published online first: April 23, 2020. DOI: 10.1159/000507227 (Link)

Como o Japão passou a acreditar na depressão

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Você pode estar interessado em saber que a “doença mental” que nós chamamos “depressão” não existia no Japão até o final dos anos 1990, quando uma empresa farmacêutica deu a ela o nome “resfriado da alma” (kokoro no kaze) a fim de poder criar mercado para os antidepressivos lá.  Um pouco da história de como foi introduzida essa “doença mental” no Japão você pode conhecer lendo essa matéria recentemente publicada pela BBC News, com o título ‘Como o Japão passou a acreditar na depressão’.

Lendo a matéria fica-se sabendo:

  • Que a depressão não era reconhecida como doença no Japão, até a década de 90.
  • Quando uma campanha publicitária chamou de “resfriado da alma”, as vendas de antidepressivos cresceram.
  • Hoje em dia há uma ‘epidemia’ de antidepressivos no Japão.

O jornalista que escreveu a matéria fala de um personagem de mangá que ilustra bem o processo de como a depressão passou a ser considerada no Japão como sendo ‘doença mental’. A partir dos anos 1990. O personagem Watashi (cujo nome significa ‘Eu’ em japonês) está a trabalhar horas a fio em seu emprego como servidor público, com frequência sem dormir, quem começou de repente a ter uma ideia que insistia em circular em sua mente: “Eu tenho que morrer”.  Na verdade, o que se passava com personagem era o que estava ocorrendo com o próprio autor desse mangá, Torisugari, com a idade de 29 anos.  Sem o reconhecimento do seu sofrimento por parte dos seus pais, ele foi a um médico e ele lhe disse que nada errado estava ocorrendo com ele. Foi a um outro que lhe disse que o que se passava com ele era uma doença chamada “depressão”, um transtorno mental ainda pouco conhecido no Japão.

“Não havia nada incomum nisso. Até o final dos anos 90 no Japão, ‘depressão’ era uma palavra raramente ouvida fora dos círculos psiquiátricos. Alguns alegam que isso acontecia porque as pessoas no Japão simplesmente não sofriam de depressão. As pessoas encontravam maneiras de acomodar esses sentimentos enquanto, de alguma forma, continuavam com a vida. E eles davam uma expressão estética ao baixo humor – na arte, no cinema, no prazer da flor de cerejeira e de sua beleza fugaz.”

Uma razão mais provável é a tradição médica do Japão, na qual a depressão vinha sendo considerada primariamente como física, em vez de uma combinação de física e psicológica, que seria mais comum no Ocidente. Enquanto o diagnóstico em si raramente era usado, era provável que as pessoas que apresentavam sintomas clássicos fossem informadas por seus médicos de que simplesmente precisavam descansar.

Tudo isso fez do Japão uma perspectiva tão ruim para um mercado de antidepressivos que os fabricantes do Prozac já haviam desistido do país. Mas, no final do século 20, uma notável campanha de marketing encomendada por uma empresa japonesa de medicamentos ajudou a mudar as coisas.”

A palavra espalhada sobre a depressão foi kokoro no kaze – um resfriado da alma. Isso poderia acontecer com qualquer pessoa e a medicação poderia tratá-la.

O número de pessoas diagnosticadas com um transtorno de humor no Japão dobrou em apenas quatro anos, à medida que o mercado de antidepressivos crescia – em 2006, vendeu seis vezes o que havia sido apenas oito anos antes.

Em um país tão aberto quanto qualquer outro para a confissão de celebridades, todos, desde atores a leitores de notícias, agora pareciam dispostos a sair e dizer que haviam tido uma experiência de depressão. Esta nova doença não era apenas aceitável – estava até na moda.

Como ocorreu em todo o mundo onde o marketing dos antidepressivos foi agressivo, a exemplo do que ocorre no Brasil, o diagnóstico de depressão passou a ser comum, a depressão passando a fazer parte das doenças com maior incidência, com impactos nos sistemas de saúde, na área escolar, no campo jurídico e no mundo do trabalho.

“As limitações da campanha “resfriado da alma” estão ficando claras. Foi criticado na época por fazer ligações enganosas entre o resfriado comum e a depressão. Mas, além disso, a experiência do Japão com a depressão mostra como algumas formas de doença física e mental estão intimamente ligadas a atitudes culturais mais amplas – sobre o trabalho, por exemplo, e níveis de responsabilidade com relação aos outros. Aumentar a conscientização pública acaba sendo uma tarefa complicada e delicada.”

Leia a matéria da BBC News na íntegra clicando aqui → 

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Há um filme muito interessante mostrando como a depressão enquanto doença mental foi introduzida no Japão: Does Your Soul Have a Cold?  Você encontrará esse filme on line.

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Texto e trad. Fernando Freitas

O uso da terapia eletroconvulsiva (ECT) para tratar a depressão deve ser imediatamente suspenso, diz um estudo.

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A eletroconvulsiva terapia (ECT) é ainda frequentemente usada. Os psiquiatras defendem ECT como sendo um procedimento médico baseado em evidências científicas.

Uma nova revisão, um estudo publicado em Ethical Human Psychology and Psychiatry, avaliou a qualidade dos estudos que comparam ECT para tratamento da depressão com ECT-placebo. A análise também avalia as únicas cinco meta-análises existentes e que afirmam que a ECT é mais eficaz do que a terapia eletroconvulsiva simulada.

A conclusão dos autores é que não há evidência alguma que a ECT é efetiva para os seus principais alvos: as pessoas gravemente deprimidas, as pessoas suicidas e/ou as pessoas que tentaram sem sucesso tratamentos medicamentosos.

John Read, um dos autores e professor de Psicologia Clínica na University of East London, explica:

“Em combinação com o alto risco de danos cerebrais da ECT, essa ausência de evidência de eficácia significa que a relação custo-benefício é tão assustadora que não há lugar para a ECT na medicina baseada em evidências”.

Mesmo sendo uma intervenção clínica tão perigosa para a integridade do cérebro, mesmo não havendo evidências de eficácia, a ECT é ainda usada em aproximadamente um milhão de pessoas anualmente, muito particularmente aqui no Brasil.

Na atual revisão, os autores examinaram a qualidade de 11 estudos, por terem sido os únicos que compararam ECT com tratamento placebo, e cinco meta-análises que examinaram esses estudos. Os autores desenvolveram uma escala de qualidade de 24 pontos, combinando os domínios de “risco de viés” da Cochrane Handbook Risk of Bias Tool (randomização, ocultação, dados de resultados incompletos e relatórios seletivos) com outros critérios relacionados à qualidade do projeto e dos relatórios, e alguns critérios específicos de pesquisa com ECT.

Os resultados dessa atual revisão são impactantes. Primeiramente, ao se verificar que é baixo o escore de qualidade desses 11 estudos: 12.3 de 24 pontos; apenas 3 estudos obtiveram algum escore acima de 13.  Mas também ao se saber que as pesquisas disponíveis são muito antigas, com o estudo mais recente ocorrendo no Reino Unido em 1985. E o estudo mais recente comparando ECT com tratamento com placebo nos Estados Unidos tem 57 anos. Não há outras pesquisas comparáveis realizadas fora do Reino Unido e dos EUA. Em um comunicado de imprensa, J. Read afirma:

Este corpo de pesquisa é da mais baixa qualidade que eu já vi em meus 40 anos de carreira.”

Os autores apontam questões importantes sobre como os estudos revisados foram conduzidos. A primeira é quanto à qualidade da literatura que supostamente dá sustentação científica para tal tipo de terapêutica: a literatura como um todo é inexpressiva e claramente incapaz de determinar se a ECT é mais ou menos eficaz do que a ECT placebo para a redução da depressão. A segunda questão importante é que nenhum dos 11 estudos é duplo-cego – o que significa que nem os participantes nem os pesquisadores sabiam quem estava no grupo de tratamento versus quem estava no grupo placebo. Ora, como os autores chamam a atenção, estudos duplo-cegos são cruciais para evitar mudanças reais equivocadas – nesse caso, sintomas depressivos reduzidos – para o que é, na realidade, efeito placebo. Os participantes dos ensaios clínicos feitos há décadas tinham conhecimento que dores de cabeça e confusão temporária seguem as sessões de ECT; portanto, sabiam se haviam sido colocados na ECT ou no grupo placebo, invalidando o estudo.

O professor Irving Kirsch, diretor associado de estudos sobre placebo na Harvard Medical School, é o segundo autor deste estudo. Kirsch é um renomado pesquisador de placebo, bem conhecido por suas pesquisas que explodiram o mito dos antidepressivos, já havendo apresentado seus estudos aqui entre nós no Brasil.  Recentemente uma equipe de pesquisadores poloneses publicou um estudo sobre a obra de referência de Irving Kirsch de 1998, “Ouvindo Prozac, mas escutando o placebo: uma meta-análise de medicação antidepressiva”. Para se entender o impacto da ECT como oposto ao placebo, a exemplo do que havia sido demonstrado por ele com referência aos antidepressivos, é crucial que os ensaios clínicos sejam feitos de uma maneira rigorosa – o que não é o caso com nenhum dos estudos que são disponíveis a respeito da ECT. Kirsch afirma:

“Eu não acho que muitos defensores da ECT entendam quão fortes são os efeitos do placebo para um procedimento importante como a ECT”.

Portanto, nenhum dos estudo pode ser dito que tenha sido submetido ao “double-bind”. Além disso, embora ECT seja usado principalmente em mulheres e com a média de idade entre 60 e 65 anos, apenas três estudos tiveram amostras que refletiram a demografia dos que são submetidos à ECT.  Em seus achados, nenhum dos estudos examinou o papel da idade ou de gênero, nem tampouco a etnia dos participantes, quando o esperado é que os estudos sejam representativos das variáveis demográficas da população.

Uma outra flagrante falha metodológica é que embora ECT seja uma intervenção recomendada aos indivíduos gravemente deprimidos enquanto um último recurso, a maioria dos estudos não fornece uma clara informação para dar suporte que tenham incluído participantes gravemente deprimidos. Na verdade apenas seis dos estudos mencionam a inclusão de pessoas gravemente deprimidas; dois claramente nada mencionam. Quanto a pacientes suicidas, embora esses pacientes tenham provavelmente sido incluídos por acaso em alguns estudos, apenas dois relataram se pacientes suicidas foram de fato incluídos.  Isso deixa às claras a falta de evidências que dão sustentação ao uso de ECT com indivíduos gravemente deprimidos. Kirsch explica:

“A falha em encontrar benefícios significativos em longo prazo em comparação com os grupos placebo é particularmente angustiante. Com base nos dados dos ensaios clínicos, a ECT não deve ser usada em indivíduos deprimidos. ”

Outras falhas metodológicas incluem os relatos seletivos dos resultados, as amostras com tamanho reduzido, em média apenas 37 pessoas, assim como não examinam os efeitos da ECT na qualidade de vida dos participantes. Menos que a metade (46%) dos participantes haviam tentado antidepressivos antes da ECT – embora ECT seja suposto a ser usado apenas quando outros tratamentos tenham fracassado, conforme as diretrizes vigentes pelo National Institute of Clinical and Health Excellence (NICE).

Os resultados dos estudos são inexpressivos: quatro dos onze encontraram ECT significativamente superior ao ECT placebo no final do tratamento, cinco não encontraram diferença significativa e dois encontraram resultados mistos (incluindo um em que os psiquiatras relataram diferença, mas os pacientes não o fizeram).  Apenas dois estudos relatam dados de acompanhamento (follow-up). Um produziu um tamanho de efeito quase zero a favor da ECT, e o outro um tamanho de efeito pequeno em favor da ECT placebo.

Esses pífios resultados terapêuticos da ECT são preocupantes levando em consideração os graves efeitos colaterais prejudicais. Efeitos colaterais que em muitos casos são irreversíveis, que incluem perda de memória permanente, dano cerebral, trauma cerebral, assim como morte em alguns casos.

Infelizmente, apesar dos riscos da ECT, pesquisas anteriores de John Read apontam práticas preocupantes associadas à administração da ECT na Inglaterra – com destaque para seu uso desproporcional em mulheres mais velhas e para pessoas fora do seu público alvo e fora da base de evidências, como as diagnosticadas com transtornos de personalidade.

As meta-análises que examinam esses estudos ignoram muitas dessas limitações, e a maioria das meta-análises também é datada, com apenas uma realizada nos últimos 15 anos. Os pesquisadores concluem que as falhas nos desenhos do estudo, o número pequeno de estudos e o tamanho pequeno da amostra tornam impossível concluir que a ECT é melhor que o placebo no curto ou no longo prazo, ou com seu público-alvo. Read chegou a conclusões semelhantes, citando pouca ou nenhuma evidência disponível para apoiar o uso da ECT a curto ou longo prazo, ou para tratar a depressão ou prevenir o suicídio. A revisão conclui:

A pretensão das cinco meta-análises existentes de que ECT seja eficaz na depressão está baseada em estudos que como já vimos são de péssima qualidade. Das cinco meta-análises existentes, a única feita nos últimos 15 anos, a que foi conduzida pelo Instituto de Psiquiatria de Londres, em 2019, é bastante problemática. Seus autores reivindicam fortemente a eficácia da ECT tomando como base apenas um estudo comparando ECT propriamente dito com ECT placebo. Os próprios autores desta meta-análise avaliaram que a pesquisa tinha um “alto risco” de viés pelos critérios da Cochrane.

Read e Kirsch concluem que é impossível se dizer que ECT é melhor do que placebo tanto em termos de curto quanto de longo prazo. Read já havia chegado a conclusões similares, citando as escassas evidências existentes para dar sustentação científica para o uso da ECT em curto ou longo prazo, ou para tratar a depressão ou para prevenir o suicídio. A revisão conclui:

“A qualidade da maioria dos estudos  ECT placebo vs. ECT é tão ruim que as metanálises estiveram erradas ao concluir qualquer coisa sobre eficácia, durante ou após o período de tratamento. Não há evidências de que a ECT seja eficaz para o seu alvo demográfico – mulheres mais velhas ou seu grupo-alvo de diagnóstico – pessoas gravemente deprimidas ou suicidas, pessoas que tentaram sem sucesso outros tratamentos primeiro, pacientes hospitalizados ou adolescentes.”

Finalmente, os autores defendem o fim do uso da ECT, argumentando que os custos superam quaisquer benefícios potenciais, considerando que mesmo os chamados benefícios (redução da depressão) da ECT não foram suficientemente validados por evidências:

“Dado o alto risco de perda permanente de memória e o pequeno risco de mortalidade, essa falta de evidências científicas em determinar se a ECT funciona ou não significa que o seu uso deve ser imediatamente suspenso”.

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Read, J., Kirsch, I., & McGrath, L. (2020). Electroconvulsive therapy for depression: A review of the quality of ECT versus sham ECT trials and meta-analyses. Ethical Human Psychology and Psychiatry, 21(2), 1-40. (Link)

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Matéria da BBC NEWS a respeito dos resultados desse artigo de Read e Kirsch: “ECT depression therapy should be suspended, study suggests”.

Matéria publicada no The Telegraph: “ECT therapy for depression should be ‘immediately suspended’, study suggests”.

Publicado em UK News: “No evidence that ECT works for depression – new research“.

Considerações para pesquisa com comunidades marginalizadas durante o COVID-19

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Um novo artigo, publicado na revista AIDS and Behavior, identifica desafios para pesquisas com comunidades marginalizadas durante a pandemia e o bloqueio devido ao COVID-19. Os pesquisadores, liderados por Jae Sevelius, do Centro de Excelência em Saúde Transgênero da Universidade da Califórnia, também propõem estratégias para apoiar pesquisas e participantes marginalizados. O artigo insta as instituições e os financiadores a fornecer um apoio robusto a esses pesquisadores e participantes da pesquisa. Eles escrevem:

“O recente surto de COVID-19 causou muitos problemas na vida das pessoas em todo o mundo e tem levado ao aumento de pesquisas focadas no tratamento das iniquidades em saúde. A pandemia e o fechamento de muitos sistemas, incluindo clínicas comunitárias, estratégias e serviços de de apoio, estão exacerbando ainda mais a experiência de marginalização de muitas comunidades.”

Tem sido negado às comunidades marginalizadas a participação plena nas principais atividades sociais, econômicas e culturais. No momento da pandemia atual, as desigualdades preexistentes são exacerbadas e a pesquisa sobre como lidar com as iniquidades em saúde tem sido igualmente afetada negativamente. Em particular, as pesquisas em comunidades de transgêneros e de diversidade de gêneros, bem como pesquisas sobre o HIV, enfrentam mais desafios do que nunca.

O artigo destaca três desafios centrais para a realização de pesquisas com comunidades marginalizadas durante a pandemia: desafios tecnológicos, desafios econômicos e comprometimento da segurança.

“Estamos vendo isso acontecer em nossa capacidade reduzida de manter conexão com os participantes das pesquisas e manter a continuidade de nossos esforços de pesquisa”, acrescentaram os autores.

Primeiro, muitas pessoas de comunidades marginalizadas não têm acesso a tecnologia ou habilidades tecnológicas para participar de pesquisas sob o bloqueio. Com as atuais políticas de saúde pública e diretrizes de distanciamento social, a maioria das atividades de pesquisa é forçada a ser conduzida on-line. No entanto, a pesquisa sugeriu que a pesquisa on-line e as abordagens de eSaúde são menos acessíveis para populações marginalizadas, como jovens LGBT, pessoas sem-teto e pessoas de cor. Os pesquisadores explicam:

“Eles podem ter o serviço telefônico ou o acesso à Internet interrompidos repetidamente devido à incapacidade de pagar as contas. Mesmo entre aqueles que podem ter acesso à Internet e a um smartphone ou computador, devido à marginalização educacional, muitas em nossas comunidades não possuem as habilidades tecnológicas necessárias para navegar em estudos on-line, assinar documentos eletrônicos ou ler e responder a pesquisas autoadministradas.”

A falta de acesso à pesquisa pode levar a desafios econômicos devido à perda de recursos financeiros. Mesmo que eles possam participar do estudo, o processo de reembolso por meio de sistemas on-line como PayPal tem sérias barreiras institucionais. Além disso, de acordo com o artigo, a maioria das pessoas de comunidades marginalizadas pode não ser elegível para programas como benefícios de desemprego, de modo que a interrupção de seus serviços de apoio habituais também está causando um impacto financeiro substancial.

Por fim, muitas pessoas de comunidades marginalizadas estão vivendo em condições em que não conseguem seguir as diretrizes de saúde e segurança pública do COVID-19. Por exemplo, os membros da comunidade que moram em abrigos ou se envolvem em trabalho sexual de sobrevivência estão expostos a um maior risco para sua saúde física e mental. A saúde física pode ser prejudicada pelo compartilhamento de espaços e, de outra forma, pode haver consequências para a saúde mental devido ao isolamento e à falta de serviços disponíveis durante o bloqueio.

Em resposta a esses desafios, os autores do artigo também propuseram várias maneiras de minimizar o impacto do COVID-19 em pesquisas com comunidades marginalizadas. Por exemplo, eles pediram colaboração com agências comunitárias na prestação de serviços de emergência e na adaptação de intervenções em telessaúde.

Para enfrentar as barreiras ao uso da tecnologia, eles sugerem a realização de intervenções de capacitação e o ajustamento do método para coletar dados de pesquisas on-line feitas por ligações telefônicas, o que provavelmente será mais acessível. Eles também recomendam o uso de mapeamento para identificar comunidades vulneráveis e os recursos disponíveis. As iniciativas de desenvolvimento de instrumentos e de suporte em saúde mental também são essenciais neste momento específico para as comunidades marginalizadas.

No final do artigo, os autores pediram um apoio sólido de suas instituições e seus financiadores para apoiar os participantes e pesquisadores da pesquisa. Eles concluem:

“Existem barreiras novas e intensificadas para a manutenção da continuidade da pesquisa com populações marginalizadas devido à pandemia global do COVID-19. É fundamental que as equipes de pesquisa não apenas sejam criativas sobre maneiras de alcançar, envolver e reembolsar nossos participantes durante esta crise, mas também encontrem maneiras de se reunir com as comunidades para criar, identificar e disseminar recursos para os mais necessitados. ”

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Sevelius, J. M., Gutierrez-Mock, L., Zamudio-Haas, S., McCree, B., Ngo, A., Jackson, A., … & Stein, E. (2020). Research with Marginalized Communities: Challenges to Continuity During the COVID-19 Pandemic. AIDS and Behavior, 1. (Link)

Pesquisa Mapeia como a Pandemia Afetou os Brasileiros

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A Fiocruz mapeou como a pandemia vem afetando a vida dos brasileiros. Considerando estudos realizados em diferentes países atingidos pela pandemia do COVID-19, o atual contexto traz consigo a perda de liberdade, incerteza sobre a doença, mudanças na rotina, perdas financeiras, gerando angústia, estresse e sofrimento às pessoas. Alguns desses estudos já foram mostrados pelo Mad in Brasil.

A pesquisa foi uma parceria entre Fiocruz, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e teve como objetivo verificar como a pandemia afetou ou mudou a vida das pessoas, e assim, poder orientar as ações de saúde, minimizando os efeitos adversos decorrentes das medidas de isolamento social.

Foi utilizado um questionário virtual. Para a sua elaboração foi utilizado o aplicativo RedCap (Research Eletronic Data Capture), uma plataforma para coleta, gerenciamento e disseminação de dados de pesquisas. As informações são coletadas diretamente pela internet e armazenadas no servidor do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (ICICT/FIOCRUZ). A primeira etapa contou com 40.000 pessoas de diferentes lugares do Brasil, obedecendo a estratificação por sexo, faixa etária e nível de escolaridade.

O questionário contém perguntas sobre o isolamento social, infecção pelo novo Coronavírus, impactos socioeconômicos, atividades de rotina e trabalho, cuidados com idosos, efeitos no estado de saúde, acesso aos serviços de saúde, estado de ânimo e comportamentos saudáveis.

Em relação ao estado de ânimo, 40% das pessoas relataram sentir-se tristes ou deprimidas nas primeiras semanas da quarentena. Enquanto 54% relataram se sentirem ansiosas ou nervosas frequentemente. Chama a atenção que na faixa dos 18 aos 29 anos, esses percentuais foram ainda maiores, chegando a 54% de tristes e deprimidos e 70% ansiosos ou nervosos.

Enquanto ao gênero, as mulheres relataram maior mudança no estado de ânimo do que os homens, 50% delas sentiram-se tristes ou deprimidas durante a pandemia, enquanto 30% dos homens relataram o mesmo. Além disso, 60% das mulheres relataram estarem ansiosas/nervosas, contra 43% dos homens.

Também constatou-se que a maior das pessoas tiveram queda na renda familiar, alcançando o índice de 55% das pessoas. Enquanto 7% ficou sem rendimento. Aqueles que ganhavam menos de meio salário mínimo sofreram mais prejuízos, 64% delas perderam a renda e 11% ficaram sem renda alguma. Além disso, 58% dos autônomos disseram ter ficado sem trabalho.

O sedentarismo também aumentou, 46% dos entrevistados relataram que interromperam os exercícios, quando antes da pandemia, realizavam exercícios cerca de cinco dias ou mais por semana. Enquanto isso, o tempo em frente à tv, computador ou tablet aumentou em uma hora e meia. Entre fumantes, 23% relataram o aumento de 10 cigarros por dia e 5% aumentou mais de 20 cigarros ao dia.

A alimentação também sofreu variação durante a pandemia, o consumo de alimentos saudáveis diminuiu e aumentou o consumo de chocolates e doces, principalmente entre adultos jovens. Quanto as bebidas alcoólicas, 18% da população relatou aumento no consumo, sendo maior o índice entre adultos de 30-39 anos. O maior consumo foi associado à frequência em sentir-se triste ou deprimido.

A pesquisa selecionou uma amostra bem ampla e variada da população brasileira e constatou efeitos da pandemia sobre a saúde física e mental das pessoas, que já vinham sendo apontados por outras pesquisas. Com esses resultados, cabe agora pensar em como amenizar os efeitos negativos e projetar possibilidades futuras para o pós-pandemia, já pensando nas possíveis consequências à longo-prazo.

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Para ler a pesquisa completa → (Link)

Associação Metamorfose Ambulante: 13 anos associada com a liberdade

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No dia 17 de maio, data que antecede o dia nacional da Luta Antimanicomial, a Associação Metamorfose Ambulante de Usuários e Familiares do Sistema de Saúde Mental do Estado da Bahia (AMEA), em 2020, comemora 13 anos de luta e resistência. No cenário baiano, a AMEA, ao longo dos anos, vem impulsionando a apropriação dos direitos humanos e o seu potencial político pelos usuários e familiares de saúde mental, exercendo sua função legítima de mobilização e controle social. Sobretudo, se levarmos em consideração o atual cenário de retrocessos vivenciados nos últimos anos, no que tange as politicas públicas voltada para a saúde mental. Entendemos que a participação política de grupos historicamente discriminados é fundamental dentro do processo de construção de uma sociedade mais democrática e mais equânime.

Para festejar essa data tão significativa, foi elaborada uma Cartilha [1] que revisita a trajetória da Associação. Uma das missões da Amea é promover a inclusão social das pessoas em sofrimento mental, através da afirmação dos seus direitos humanos e apoio às suas famílias, reivindicando a efetivação dos seus direitos, a garantia do acesso aos diversos serviços e a melhoria da assistência no Sistema Único de Saúde da Bahia.

Aos longos desses anos não foram raras as vezes que testemunhamos, com alegria, a luta das pessoas em sofrimento mental para a efetivação da Reforma psiquiátrica e para  sua afirmação como sujeitos sociais e como protagonistas das suas histórias e demandas.

Podemos enquadrar os objetivos da Amea em um perfil de associação de “defesa de direitos”, pois tem o compromisso de combater a discriminação, os preconceitos e coibir a violência social e institucional. Além disso, fomenta e participa de diversas iniciativas junto ao poder público, universidades e organizações sociais.

Alguns projetos foram desenvolvidos nesse caminhar antimanicomial, podemos destacar o projeto Loucura Cidadã (2009) que partiu de uma discussão coletiva que envolveu integrantes da AMEA, profissionais de saúde e militantes da Luta Antimanicomial.  Este projeto teve objetivo geral de assegurar que os direitos humanos dos usuários dos serviços de Saúde Mental e os de seus familiares sejam respeitados no mais amplo espaço possível do território baiano, orientando e indicando tal público aos locais e às formas de acesso a tais direitos.

Destaca-se como resultados deste primeiro trabalho coletivo, o curso de capacitação em direitos humanos e a construção do Guia de Direitos Humanos Loucura Cidadã (2011). [2] Para chegar à elaboração deste material, a AMEA realizou uma série de oficinas junto a usuários e familiares dos serviços de saúde mental, levantando as principais dúvidas e desconhecimentos sobre os direitos humanos deste público. As oficinas foram sistematizadas e serviram como subsídio para a elaboração do Guia.

Para fortalecer a dimensão sociocultural da luta antimanicomial, ou seja,  modificar a concepção e o estereótipo que se mantém  acerca do o louco e a loucura, a Amea participa e constrói junto com o Coletivo Baiano da Luta Antimanicomial a Parada do Orgulho Louco, desde 2008 ocupando as ruas da capital baiana com alegria e delicadeza buscando alterar padrões de sociabilidade que por vezes apresentam traços autoritários, discriminatórios e opressivos.

O estatuto social da Associação (2007) preconiza que a Amea é constituída por número ilimitado de associados. A diretoria é composta por um Diretor Geral, um Diretor Financeiro e um Secretário, tendo um mandato de dois anos, com apenas uma reeleição. A AMEA é administrada pelos seguintes órgãos: Assembleia Geral, Diretoria e Conselho Fiscal.  Sua diretoria é eleita ordinariamente em processo eleitoral previsto no estatuto da entidade. O voto é direto, secreto e individual. As reuniões de diretoria são abertas aos associados e ocorrem semanalmente, às quartas-feiras na sede da Casa Gerar de Economia Solidária em Saúde Mental.

A história da Amea é atravessada por muito afeto, apresento alguns depoimentos de atores muito significativos nos caminhos percorrido até então:

“A Amea é agente de transformação. É espaço de tolerância, surge para ofertar outras condições de vida para que cada um possa ter a sua própria luz. Pra mim foi um momento de aceitação da minha loucura, é o que te me dado base para seguir em outros espaços como o Conselho Estadual e Municipal de Saúde.” Eduardo Calliga (atual Diretor Geral da Amea e militante da Luta Antimanicomial).

“DISCURSO AMEA”

Nós somos AMEA – Associação MEtamorfose Ambulante.

Associação porque estamos a nos juntar numa sociedade que nos representa com legitimidade;

porque viemos a nos associar como um grupo que se quer UNIDO pra se fazer mais forte

(ainda que não seja tão fácil nos mantermos juntos).

Metamorfose porque descobrimos que somos sujeitos da nossa transformação e,

como a lagarta tece seu casulo e se faz borboleta – como sai da condição de quem rasteja e alça voo entre as flores –

queremos passar da penumbra da dor da nossa tristeza à claridade da alegria que vivenciamos hoje.

Somos agentes da nossa libertação, quando rompemos os limites de um mundo entre muros

e encontramos a atenção dos cuidados, que possibilitam que exerçamos a cidadania.

Ambulante porque não estamos mais “institucionalizados”, preso a ambientações ou fardamentos;

podemos encontrar um jeito de conviver com as diferenças;

podemos estar em diferentes espaços, e agir do modo mais adequado;

poderemos achar o melhor modo de nos cuidarmos.

Somos AMEA – ASSOCIAÇÃO METAMORFOSE AMBULANTE

         DE USUÁRIOS E FAMILIARES DO SISTEMA DE SAÚDE MENTAL DA BAHIA.

Estamos a nos conscientizar dos nossos direitos, para que possamos agir de modo a efetivá-los em nosso cotidiano.

Queremos ser reconhecidos como cidadãos, ou reconhecidas como cidadãs:

– cumprir nossos deveres – trabalhar com nossas habilidades

– receber os benefícios assistenciais que forem necessários

– tocar a vida como uma pessoa de bem, que pratica o que for possível, contente com aquilo que tem, conquistando tudo que pode.

DE PERTO, NINGUÉM É NORMAL”, a gente sabe disso bem, por experiência própria.

Mas, a gente também sabe que as “normas” regem as relações entre as pessoas e os relacionamentos em todas as instituições.

Portanto, enquanto indivíduos, todos estão sujeitos a conflitos, com a própria identidade, com outras personalidades,

com perdas & ganhos, ou fracassos ou vitórias. Estamos vivendo!

Assim, vez por outra pode ser que nos afastemos da norma.                                                  

E quem foi que disse que somos NORMAIS?

Não assinamos nenhum atestado com o tal de CID? Será que a gente tem que aceitar isso?

Aceitamos a ATENÇÃO aos nossos comportamentos, como se houvesse a prática de um CUIDADO para conosco. 

Até que cheguemos ao lugar do AUTOCUIDADO, onde possamos cuidar de nós mesmos, do nosso bem estar!

NÓS SOMOS AMEA PELO SIMPLES ATO DE AMAR

 – AMAR A NÓS MESMOS – AMAR A VIDA                                                                

– AMAR A SAÚDE – AMAR A BELEZA DE ESTAR BEM.                             

AMAR = AMEA = A AME, AME ELA = AME-A = AMEA.

O EXERCÍCIO DE APRENDER A AMAR

VEM NOS TRAZER A ARTE DO OFÍCIO DE AMAR.

Sérgio Pinho dos Santos (Poeta, Membro Fundador da Amea, Militante da Luta Antimanicomial).

          “Me chamo Silas Lima fui diretor financeiro da Amea numa época onde a efervescência política e cultural do movimento social contava com expressiva adesão de usuários do serviço em substituição aos manicômios. Existia forte ação de empoderamento e, um desejo de ser o ator da própria história. Costumávamos nos reunir no CRP no intuito de estudar a história do SUS, para nos apropriarmos desse vasto conhecimento empírico. Marcus Vinicius era o mentor de um grupo de universitários intitulado coletivo antimanicomial e, esses jovens sempre mediavam nossos encontros trazendo um pouco de organização as reuniões e, instigando o aprendizado através de pautas, mas sem nos tirar a autonomia. Nas ações e demandas diárias aprendíamos a tecer uma rede de saberes e se exercitar o respeito mútuo. Não era fácil acalmar os ânimos então criamos regras de conduta durante as reuniões semanais.  Os verdadeiros militantes do movimento precisam relembrar para construir uma Amea verdadeiramente forte e com autonomia, pois é fruto do sonho de muitos.                                – Silas Lima (ex-Diretor Financeiro da Amea, estudante de psicologia, militante da Luta Antimanicomial)

“Quero contar como cheguei na Amea. Eu estava no Hospital Juliano Moreira, fui transferida pro Hospital Dia de lá. Ia pela manhã, fazia as atividades lá, até que um dia fui levada por Edna Amado e Eliana Brito para uma reunião da Amea. Isso aconteceu uma semana antes da I Marcha de Usuário para Brasília. Fiquei encantada quando cheguei na reunião, vários usuários falando, construindo a militância, e eu nesse momento ainda estava muito medicalizada, sem entender direito. Acabou que eu fui uma das pessoas que foram escolhidas para ir pra Marcha. Depois disso despertei minha militância e virei membro Amea. Entrei em outros movimentos. A Amea é fruto do amor, me revigora. A quarta-feira é um dia de ir pra reunião de elaborar projetos, de articular outras pessoas para estarem lá. Nunca vou deixar de ser Amea, é o meu lugar!                                    –  Helisleide Bomfim (Técnica de enfermagem, atriz, militante da luta antimanicomial e coordenadora do Papo de Mulher).

 “A Amea é o que deu sentido a vida, é um sonho antigo que a gente tinha de ter uma associação desde que nos reuníamos no ISBA. Eu, Vera, Eduardo Araújo, Marcus Vinicius, Edna Amado… Foi aí que percebi que a luta e os direitos seriam iguais. Deixei de ser chamada por um número e virei Girlene de Almeida, militante do movimento da Luta Antimanicomial, fundadora da Amea, depois veio o Papo de Mulher, o teatro dos Isênicos. Ser militante é um sonho realizado. A pandemia está mexendo com a gente, mas vamos seguir fortes e vivos. Hoje eu sou mãe, mulher, avó, não sou mais uma louca jogada no mundo. Não permito que me tratem mal. Eu sou Girlene Almeida, a mulher do movimento antimanicomial, a mulher feminista, sonhadora de um sonho que virou realidade.”  Girlene de Almeida (membro-fundadora Amea, militante da Luta Antimanicomial, feminista)

 “Sou usuária de saúde mental. Minha relação com esse estágio sutil da mente começou muito cedo. Ainda muito nova, por coincidência, eu morei em uma rua que abrigava diversas pessoas com transtornos mentais, mas como sempre fui diferente, as pessoas diziam que eu era maluca, eu tinha esse estigma. Fui crescendo e as pessoas foram achando que eu era uma viagem, uma pessoa maravilhosa, até que chegou um ponto que aconteceu uma situação grave comigo e eu tive que ir para o Caps. Logo depois fui ser a primeira representante mulher desse serviço. Foi aí que me envolvi com a Luta Antimanicomial. Eu achei legal, me apaixonei. Me identifiquei, eu conseguir entender, compreender, me relacionar com diferentes pessoas. Comecei a frequentar a Amea as vezes era como se estivesse vivendo em uma nave espacial sentada naquela mesa de reunião, eram coisas e temas que hoje compreendo, mas que eram estranhas. Eu senti que tinha que lutar, já que muitos não podiam mais, muitos estava sofrendo, não tinha direitos, visibilidade. Hoje a Amea é uma representação forte no Estado da Bahia. A militância mudou a minha vida, eu não tinha perspectiva, depois entendi que a gente pode se aceitar, pode ser como a gente é. Pode lutar pelos outros, se empoderar, ter força, coragem, olhar as pessoas de frente e não abaixar a cabeça pra ninguém. O cuidado que aprendi que aprendi que temos que ter uns com os outros tem me fortalecido. Lutar pelos direitos dos usuários é a minha missão na Amea. Hoje as pessoas me valorizam, sou respeitada na minha família.” Ana Santos (Vice-Diretora Amea, militante da Luta Antimanicomial, membro do Papo de Mulher)  

 A existência da Amea evidencia que novos modos de cuidado e de sociedade são possíveis, que o movimento é potência de vida. Sigamos juntos por uma sociedade sem manicômios.

 

 

 

 

[1] Disponível em https://drive.google.com/file/d/1CmV7fKozdJ-s3RKU-rT0dPVif_vD1Jmm/view

[2] Disponível em http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/saude-mental/guia-de-direitos-humanos-loucura-cidada/view

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