Como a Indústria Farmacêutica empurra medicamentos novos e menos eficazes no mercado

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Em um novo artigo publicado em Social Science & Medicine, Donald Light e Joel Lexchin argumentam que a indústria farmacêutica é um peculiar “mercado para limões” * onde as empresas são encorajadas a produzir continuamente novos medicamentos, tipicamente menos eficazes.

Ao realizar seus próprios testes de drogas, obscurecendo evidências e comercializando furtivamente seus produtos para prescrição fora do mercado, essas empresas contornam e abusam das regulamentações da Food and Drug Administration (FDA). O resultado é uma proliferação de novas drogas frequentemente menos eficazes e mais perigosas, com pouca informação disponível sobre os seus efeitos adversos. Os autores escrevem:

“Muitos pacientes recebem medicamentos desnecessários ou inadequados, o que muitos observadores concluem ser subprodutos de uma forte promoção comercial. As empresas têm desenvolvido elaboradas redes de marketing com os melhores clínicos a fim de promover usos não autorizados ou não rotulados. A maioria dos medicamentos prescritos fora do rótulo não têm nenhuma evidência válida de benefício, mas colocam em risco milhões de outros pacientes. Por estas razões, os riscos ocultos do ‘consumo de limão’ com medicamentos prescritos são provavelmente muito maiores do que comumente se pensa”.

A pesquisa atual indica que a Food and Drug Administration (FDA) recebe 65% de seu orçamento operacional das taxas de uso da indústria, o que significa que a FDA é financeiramente dependente da indústria à qual está incumbida de regulamentar. As preocupações éticas em torno da FDA não se limitam ao seu financiamento. No passado, a agência foi criticada por aprovar medicamentos havendo alternativas mais eficazes já disponíveis.

Mais recentemente, em 2021, a FDA aprovou um medicamento contra Alzheimer que não demonstrou ser eficaz. Um comitê consultivo da FDA diz que a FDA colaborou com o fabricante do medicamento (Biogen) para re-interpretar os dados, fazendo com que o medicamento parecesse mais eficaz do que realmente é. Três membros do painel de especialistas se demitiram posteriormente por causa da aprovação do medicamento. Outras pesquisas também contestaram as diretrizes de aprovação acelerada usadas para levar o medicamento Biogen’s Alzheimer ao mercado. As pesquisas mostram que a FDA está aprovando os medicamentos mais rapidamente e com provas mais fracas do que nunca.

Os autores apontam a corrupção da pesquisa da indústria farmacêutica como chave para inundar o mercado com medicamentos menos eficazes e mais caros. Muitos pesquisadores têm observado práticas similares dentro da indústria em geral.

Outra questão enfrentada pela pesquisa baseada em evidências é a ‘escrita fantasma’ [ghost writing], a prática de um pesquisador ser pago para emprestar o seu nome a pesquisas escritas por fabricantes farmacêuticos. Alguns pesquisadores chegaram ao ponto de dizer que, ao corromper a medicina baseada em evidências, a indústria está claramente “matando para ter lucro“.

A pesquisa em tela começa descrevendo o princípio econômico de um “mercado para limões”. De acordo com este princípio, um mercado para limões existe quando há participantes suficientes em um mercado disposto a fornecer um produto de má qualidade. Eles são capazes, por um curto período de tempo, de alavancar seu maior acesso à informação (que o produto que estão vendendo tem problemas ocultos) a fim de enganar os clientes e obter um lucro.

Estes mercados deveriam ser intrinsecamente insustentáveis, pois os produtos de baixa qualidade tornam os clientes mais desconfiados e menos propensos a pagar um preço justo por produtos de alta qualidade, eventualmente alienando os fornecedores de produtos de qualidade, bem como quaisquer clientes ainda no mercado. Entretanto, os autores alegam que a indústria farmacêutica é um caso especial de “mercado para limões” no qual um órgão regulador falho (ou possivelmente comprado) e algumas práticas enganosas por parte das empresas farmacêuticas mantêm o mercado, apesar da má qualidade e dos altos preços dos produtos oferecidos.

Os autores apontam três técnicas que as empresas farmacêuticas utilizam para obter medicamentos novos, mais caros e menos eficazes, aprovados pela FDA. A primeira é ocultar evidências de danos. Algumas das táticas utilizadas por estas empresas incluem: terminar os ensaios clínicos antes que os efeitos adversos apareçam, usar grandes doses em ensaios clínicos curtos para maximizar os benefícios iniciais enquanto obscurecem os efeitos adversos, projetar pesquisas para limitar a detecção de reações adversas, suprimir a evidência de efeitos adversos, assim como as pessoas que os relatam, etc. Estas empresas também rotineiramente negam e ignoram provas claras de efeitos adversos de seus produtos.

A segunda tática que os autores apontam é a ignorância estratégica em ensaios clínicos. Há vários caminhos intencionais para a ignorância que estas empresas tendem a trilhar. As empresas que produzem os medicamentos são as mesmas que pagam para testar sua eficácia. Isto resulta em ensaios de controle “randomizados”, nos quais os pacientes que podem experimentar efeitos adversos são excluídos da amostra inicial. Por exemplo, uma empresa (Merck) que produz um medicamento conhecido por enfatizar o sistema cardiovascular (Vioxx) exclui da amostra inicial qualquer pessoa com histórico familiar de problemas cardiovasculares, fazendo assim com que o medicamento pareça mais seguro do que realmente é. Quando os sujeitos desistem antes de completar um ensaio devido a efeitos adversos, eles muitas vezes não são incluídos no relatório final porque não estavam presentes para todo o ensaio. As empresas também podem comparar seu medicamento a doses mais altas dos medicamentos mais perigosos disponíveis no mercado, fazendo com que seu medicamento em estudo pareça seguro por comparação.

A última tática que os autores descrevem é a de enviesar a literatura científica. Os ensaios que revelam efeitos adversos (ou pouca ou nenhuma eficácia) com frequência não são publicados, onde a pesquisa que encontra benefícios positivos é quase sempre publicada. Por exemplo, a pesquisa descobriu que 97% dos ensaios considerados positivos pela FDA acabam em publicação. Por outro lado, apenas cerca de 33% dos ensaios com resultados negativos são publicados. Além disso, de acordo com a FDA, 21% dos estudos com resultados negativos foram publicados enganosamente para parecerem positivos.

Os autores também apontam para o papel dos médicos na manutenção deste “mercado para limões”. Os médicos recrutam sujeitos para ensaios tendenciosos, defendem o uso fora da marca com pouca ou nenhuma eficácia (o que é ilegal se feito pelo fabricante do medicamento), e atuam como líderes de opinião para defender o uso de drogas perigosas para seus colegas e pares. Os autores resumem suas pesquisas da seguinte forma:

“Esta análise dos produtos farmacêuticos como um mercado para limões tem formas detalhadas nas quais as empresas minimizam o conhecimento para médicos, reguladores, pacientes e até mesmo para eles mesmos sobre os perigos ocultos em novas drogas. O corpo resultante da ciência médica comercializada é então utilizado para moldar tanto o diagnóstico quanto as decisões de prescrição em um mercado controlado por clínicos que têm o controle monopolista sobre a decisão do que prescrever e o que eles dizem aos pacientes. As diretrizes clínicas são baseadas nelas, desenvolvidas por comitês de especialistas que geralmente têm vários membros em contrato com os fabricantes dos medicamentos relevantes… Os médicos desempenham vários papéis-chave como recrutadores bem remunerados de sujeitos em ensaios, como educadores de colegas, como campeões de prescrição de novos medicamentos, e como veículos para a promoção deles para usos não aprovados, a promoção que seria ilegal se feita diretamente pelas próprias empresas. ”

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Light, D. W., & Lexchin, J. R. (2021). Pharmaceuticals as a market for “lemons”: Theory and practice. Social Science & Medicine268, 113368. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2020.113368 (Link)

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NOTA DO EDITOR:

O Mercado de Limões: Incerteza de Qualidade e o Mecanismo de Mercado . Em um artigo amplamente citado [1] do economista George Akerlof, que examina como a qualidade dos bens comercializados em um mercado pode degradar na presença de assimetria de informação entre compradores e vendedores , deixando apenas “limões” para trás. Na gíria americana, limão é um carro que apresenta defeito depois de ser comprado.(Wikipedia).

 

Abordagens de Diálogo Aberto envolvem as Famílias na Recuperação da Saúde Mental

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Um novo estudo, publicado em Psychiatric Quarterly, examina o uso da Abordagem da Rede Alternativa (Collaborative Network Approach -CNA), também conhecido como Diálogo Aberto (DA), um processo terapêutico onde clientes, membros da família e terapeutas trabalham juntos. Os pesquisadores usaram entrevistas qualitativas para aprender mais sobre a experiência das famílias envolvidas no CNA e descobriram que a abordagem era fortalecedora e apreciada pelas famílias.

Os autores, liderados por Ana Carolina Florence, pós-doutora associada do Programa de Recuperação e Saúde Comunitária de Yale, descrevem a CNA:

“As práticas informadas DA [Diálogo Aberto] em Vermont são chamadas de Abordagem da Rede Colaborativa (CNA), e o treinamento interno é oferecido em todo o estado. Mais bem recebido pelo pessoal, o treinamento CNA permite aos clínicos incorporar uma gama de elementos dialógicos (por exemplo, reflexões ou flexibilidade) em uma variedade de contextos. O CNA é praticado em serviços ambulatoriais, de internação, residenciais e de desenvolvimento em vários níveis de integração e implantação em Vermont. Sua aceitação tem crescido lentamente na última década, e pessoal treinado tem praticado CNA no contexto de gerenciamento de casos, sessões individuais de psicoterapia e reuniões familiares”.

Embora haja variabilidade no que o CNA é na prática, o diálogo é enfatizado em todas as fases do processo. Ainda que pesquisa sobre como as famílias têm experimentado o CNA seja limitada em número, as pesquisas disponíveis sugerem que as famílias são geralmente receptivas ao CNA e à transparência, colaboração e apoio proporcionado. A pesquisa também tem fornecido apoio para o uso de DA em procedimentos de avaliação de trabalho social com crianças e suas famílias, bem como em ambientes hospitalares de internação.

No estudo atual, Florence e colegas investigaram a experiência dos membros da família envolvidos no CNA em Vermont. Conduzido por duas agências em Vermont que oferecem CNA, o estudo envolveu 17 participantes que haviam recebido ou estavam atualmente engajados em serviços de saúde mental, com o tempo de tratamento variando de três meses a seis anos e reuniões de tratamento ocorrendo em qualquer lugar, de três vezes por semana a uma vez a cada seis meses.

O cenário do CNA variava entre clínicas, lares e hospitais. A maioria dos participantes (11) tinha sofrido hospitalizações, sendo que alguns tinham passado por múltiplas hospitalizações, e alguns (3) participantes estavam no sistema de saúde mental há 20 anos ou mais. Em geral, os participantes relataram ter iniciado o tratamento devido a conflitos na família ou episódios de psicose ou outros estados mentais extremos.

Os pesquisadores entrevistaram os participantes sobre as suas experiências no CNA e identificaram 7 temas que surgiram a partir destas entrevistas: foco em rede, tomada de decisões, estrutura de cuidados e reflexões, medicamentos, internações e desafios.

Todas as experiências descritas no tema “foco em rede” destacaram o impacto do envolvimento da família no tratamento. Todos os participantes valorizaram a participação da família no tratamento e a descreveram como ajudando a reduzir o estigma, mudando a dinâmica do poder, permitindo que os participantes se sintam compreendidos por suas famílias, e abrindo espaço para conversas que de outra forma não teriam sido possíveis. Embora quatro participantes expressaram frustração por não poderem ter a pessoa no centro da questão presente nas reuniões, os participantes relataram experiências positivas de ter a família envolvida no tratamento em geral.

Além disso, os participantes discutiram o sentimento de poder graças ao seu envolvimento no CNA, descrevendo como se sentiam responsáveis pelo processo de tratamento e como poderiam atuar enquanto agentes na tomada de decisões.

“Acho que o Diálogo Aberto promove esse tipo de recuperação onde você está liderando; você está no lugar do condutor”.

A estrutura do CNA variou ligeiramente entre as experiências dos participantes, mas pelo menos dois terapeutas estavam presentes em todas as reuniões. Os participantes falaram positivamente de ter múltiplos terapeutas, discutindo como isso permitiu uma maior reflexão, múltiplas perspectivas e apoio adicional no caso de um participante precisar deixar a sala. Além disso, o tratamento foi descrito como sendo de natureza flexível, com o grupo colaborando para decidir com que freqüência e onde eles se encontrariam.

Embora os participantes tenham relatado reações amplamente positivas à estrutura do tratamento, foram levantadas algumas preocupações. Por exemplo, sete participantes expressaram dificuldades no agendamento devido à luta para coordenar todas as disponibilidades de seus apoios, e quatro participantes discutiram como os membros da família se recusaram a se envolver no tratamento.

As reflexões foram descritas como sendo fundamentais para o tratamento pelos participantes de uma das agências, enquanto os participantes da outra agência não discutiram as reflexões. Para os participantes, as reflexões consistiram de terapeutas/profissionais compartilhando pensamentos, idéias, etc., e conferindo com o resto do grupo para assegurar uma compreensão compartilhada do conteúdo do grupo. Enquanto as reflexões inicialmente pareciam “estranhas” para alguns participantes, eles relataram ter ficado mais confortáveis com elas ao longo do tempo e perceberam que elas eram benéficas para o processo terapêutico, pois puderam compartilhar seus pensamentos sobre o que foi dito no grupo, bem como esclarecer quaisquer mal-entendidos.

Um participante descreveu suas experiências:

“Foi muito útil quando eles refletiram, porque pudemos ouvir o que outro estava experimentando sem ter que ouvir diretamente deles. Assim, foi realmente aberta esta nova maneira de ouvir e aceitar haver outra experiência acontecendo”.

CNA também foi notado como benéfico para melhorar as relações paciente-médico, o que, por sua vez, ajudou os participantes a defenderem melhor a si mesmos em relação à sua medicação. Para alguns participantes, isso significou a ausência de medicamentos, enquanto outros optaram por fazer o afilamento dos medicamentos, tudo com o apoio de suas famílias e equipes de tratamento. Este foi um grande contraste, eles observaram, a partir de experiências anteriores com profissionais e medicamentos onde lhes faltava uma palavra a dizer no processo de tomada de decisão.

Um participante relatou as suas experiências de negociação de medicamentos:

“O que vou acrescentar sobre o Diálogo Aberto e o medicamento é que nos permitiu ter uma conversa aberta e honesta sobre como o medicamento o estava impactando e chegar a uma decisão mutuamente acordada sobre como sair do medicamento, ainda que permanecendo em um”.

O CNA demonstrou ser eficaz para participantes com histórico de múltiplas hospitalizações, que relataram ter conseguido ficar fora do hospital desde o início do tratamento. Outro participante viu o CNA como trazendo “o humanismo de volta a uma situação de diagnóstico”, descrevendo sua experiência de ser medicado à força, estigmatizado e tratado com “suspeita” no hospital como sendo “desumanizador”.

Outros descreveram os benefícios de ter sua equipe de apoio disponível enquanto no hospital e discutiram o impacto positivo que o CNA poderia ter tanto no ambiente hospitalar quanto no da justiça criminal.

Por último, os participantes descreveram os desafios relacionados à convivência com alguém que sofre de psicose ou outros estados mentais extremos, os desafios associados às difíceis reuniões de tratamento e os desafios relacionados ao processo de mudança.

Os resultados do estudo são consistentes com outras pesquisas que constataram que clientes e famílias geralmente percebem o CNA como útil e fortalecedor. É também congruente com as pesquisas que demonstraram que o DA ajuda a reduzir a necessidade de envolvimento futuro na saúde mental. A abordagem cuidadosa e colaborativa promovida pelo CNA/DA permite um atendimento orientado à recuperação, centrado na pessoa e enfatiza a importância de ter a família e o apoio envolvidos no tratamento.

É necessário realizar mais pesquisas, particularmente em relação à capacidade de expandir este nível de cuidados em todos os Estados Unidos, onde a saúde é considerada um privilégio e o objetivo da saúde mental é a redução dos sintomas. Uma grande barreira para implementar esta abordagem é sistêmica, mas também é limitada por restrições pessoais, pois um estudo descobriu que psicólogos e psiquiatras expostos ao DA experimentam lutas pela identidade profissional quando tentam conciliar esta abordagem aberta com a abordagem do modelo médico reducionista de doenças mentais.

Uma limitação deste estudo foi que os médicos recrutaram os participantes, o que pode ter resultado em uma amostra de participantes que tiveram experiências largamente positivas com CNA – o que é uma peça importante, já que pesquisas em outros lugares indicaram que os usuários de serviços tiveram respostas mistas ao DA.

Apesar das limitações e da necessidade de mais pesquisas, este estudo, assim como outros, apontaram o CNA como sendo uma abordagem que respeita a dignidade, a agência e os direitos humanos do indivíduo e trabalha para levá-los ao empoderamento e à recuperação.

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Florence, A. C., Jordan, G., Yasui, S., Ravelli Cabrini, D., Davidson, L. (2021). “It makes us realize that we have been heard”: Experiences with Open Dialogue in Vermont. Psychiatric Quarterlyhttps://doi.org/10.1007/s11126-021-09948-1

Rumo à Heterotopia? Colaboração dos Usuários de Serviços na Pesquisa em Saúde Mental

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Cada vez mais atenção está sendo dada a estudos de pesquisa e produção de conhecimento nas psy-disciplinas que enfatizam a colaboração entre usuários de serviços, especialistas e pesquisadores.

Um novo estudo conduzido por Timo Beeker na Faculdade de Medicina de Brandenburg Theodor Fontaine traça os desafios e possibilidades da pesquisa colaborativa em psiquiatria, confrontando as fronteiras assumidas entre “especialistas” acadêmicos e consumidores/sobreviventes de serviços psiquiátricos.

Baseando-se no conceito de Foucault de uma heterotopia – ou um “outro espaço” onde os efeitos das hierarquias de poder do mundo real, como aqueles entre psiquiatras e usuários de serviços, são diminuídos – os autores sugerem que através de colaborações intencionais e reflexivas, a pesquisa colaborativa em psiquiatria pode fornecer um veículo para o crescimento e a mudança social transformadora. Eles escrevem:

“A pesquisa colaborativa pode ser um campo no qual muitos dos aspectos muitas vezes subcutâneos do poder na psiquiatria e na sociedade como um todo se cristalizam e assim se tornam visíveis”. Assim, a onipresença do poder na pesquisa colaborativa pode antes constituir uma oportunidade do que um desafio, abrindo um laboratório para a observação do poder social”.

Mesmo quando existem mecanismos para questionar, por exemplo, o tratamento com medicamentos forçados, os desequilíbrios de poder favorecem os profissionais da saúde mental. O modelo médico freqüentemente utilizado na pesquisa psiquiátrica exacerba esses desequilíbrios de poder, obscurecendo os impactos das disparidades sociais sobre a saúde mental. O trabalho em colaboração com usuários de serviços e pessoas com experiência vivida de desafios mentais, entretanto, pode corrigir desequilíbrios de poder através do desenvolvimento de alianças com grupos marginalizados e interesses comunitários.

Como este trabalho confirma, os estudos de pesquisa colaborativa desenvolvem suas próprias dinâmicas para navegar e abordar os desequilíbrios de poder no ambiente de pesquisa. Os pesquisadores foram participantes do programa alemão PsychCare, cujo objetivo geral é a avaliação comparativa da eficácia e eficiência das novas estratégias de “Tratamento Flexível e Integrativo” dos hospitais psiquiátricos. Como os autores observam:

“As questões fundamentais da pesquisa colaborativa estão inextricavelmente entrelaçadas com as personalidades dos pesquisadores e as interações entre eles. … Os projetos colaborativos … são concebidos para colidir, já que tensões e fricções podem aparecer, mas servem como veículos importantes para uma compreensão compartilhada e para o crescimento pessoal”.

Assim, enquanto a navegação por diferentes personalidades e manifestações de poder estrutural e social pode se mostrar difícil e desconfortável, o processamento e discussão em grupo dessas questões dentro da equipe de pesquisa levou a “ganhos epistêmicos substanciais”.

É de notar que os membros da equipe de pesquisa com experiência viva de psiquiatria foram capazes de reconhecer que seu “conhecimento aparentemente ‘privado’ constitui um recurso valioso para a pesquisa e poderia ser útil para muitos outros também”. Tais realizações dentro do contexto colaborativo poderiam fornecer a chave para acessar o que Foucault chamou de “heterotopia”: um lugar onde as manifestações das relações estruturais de poder são primeiro tornadas visíveis e depois diminuídas através da criação pelo grupo de um “outro espaço” sócio-cultural.

Os autores concluem colocando “uma questão fundamental… se (e como?) as experiências quase autópicas feitas neste outro espaço podem ser transferidas para o mundo real e traduzidas em verdadeiro progresso social”.

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Beeker, T., Gluck, R.K., Ziegenhagen, J., Goppert, L., Janchen, P., Krispin, H., Schwarz, J., and von Peter, S. (2021). “Designed to Clash? Reflecting on the Practical, Personal, and Structural Challenges of Collaborative Research in Psychiatry.” Frontiers in Psychiatry. https://doi.org/10.3389/fpsyt.2021.701312 (Link)

Atenção próxima à experiência da Esquizofrenia revela a necessidade dos Tratamentos Psicosociais

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Múltiplos rostos desencarnados pairam no cenário surreal

Um artigo recente publicado na revista Psychopathology argumenta que “experiências esquizofrênicas” são melhor entendidas mais como sendo intersubjetivas e sociais do que exclusivamente individuais.

Os autores alemães Samuel Thoma, Isabelle Schwänzl e Laura Galbusera acreditam que a abertura para o mundo – ou falta dela – é um fator primordial nas “experiências esquizofrênicas”. Eles argumentam que abordagens terapêuticas favoráveis à reabilitação de uma abertura fechada ao mundo, como o Diálogo Aberto, devem ser defendidas na psiquiatria e na psicologia.

“Abordagens fenomenológicas clássicas e contemporâneas na psiquiatria descrevem a esquizofrenia como um transtorno do senso comum e da auto-afeição. Embora levando em conta a intersubjetividade, esta conceituação ainda apresenta uma visão individualista do transtorno, ou seja, o déficit intersubjetivo reside dentro da pessoa”, escreve Thoma, Schwänzl e Galbusera. “Propomos que a experiência esquizofrênica possa ser entendida como decorrente de uma relação dialética entre a perda da abertura do eu para o mundo e a perda da abertura do mundo para o eu”.

Múltiplos rostos desencarnados pairam no cenário surreal

Apesar de uma quantidade significativa de pesquisas sugerindo que o desenvolvimento da “esquizofrenia” está relacionado a vários fatores sociais e fatores interpessoais, e que a recuperação também depende do mundo social, o paradigma biomédico predominante continua a não dar conta de suas origens sociais e tratamentos eficazes.

O atual artigo defende uma conceituação da “experiência esquizofrênica” que se baseia na compreensão de como fatores intersubjetivos e sociais influenciam o que chamamos de “esquizofrenia”. Os autores se opõem a estruturas mais individualistas que colocam a responsabilidade tanto do desenvolvimento quanto da recuperação da pessoa “doente”.

Eles se concentram em um relato fenomenológico de “situações desencadeantes” relacionadas ao início de experiências esquizofrênicas, além de fazer sugestões de modalidades de tratamento que possam abordar melhor as dificuldades subjacentes e inerentemente sociais dessas experiências.

Os autores primeiro argumentam que em “situações de gatilho” – aquelas situações que podem levar ao início de experiências esquizofrênicas – há muitas vezes um “fechamento do mundo” para a pessoa.

Em um exemplo clínico histórico do psiquiatra existencial Ludwig Binswanger:

“Urban descreve um momento crucial que ocorreu no início de seu episódio esquizofrênico: Ela estava sentada no quarto de um médico, testemunhando o exame médico de seu marido, que sofria de câncer. Urban era muito dependente de seu marido.

Naquele momento, o médico lhe deu um olhar de pavor, que expressou o mau resultado do exame e insinuou a possibilidade de que seu marido iria morrer. Este olhar teve um efeito profundo sobre ela, afetando seu eu mais íntimo e sua comunicação fundamental e solidária com o mundo. Toda a cena parece repentinamente cheia de uma atmosfera ameaçadora e assustadora, não deixando espaço para que ela se mova ou escape”.

Descrevendo estes e outros exemplos de casos, os autores observam que eles freqüentemente envolvem uma traumática “impossibilidade de expressão em resposta a uma situação ameaçadora”.

É claro que a “esquizofrenia” está muitas vezes relacionada a uma série de experiências crônicas e não a uma experiência singular.

Os autores descrevem aqui a relação entre o diagnóstico esquizofrênico e ser um refugiado como um exemplo: “pode-se supor que membros de um grupo minoritário não compartilham o senso comum de um grupo majoritário, o que pode resultar em uma crise interativa constante devido à falta de uma ‘evidência natural’ compartilhada”.

O racismo e outras formas de discriminação, conhecidas por aumentar a probabilidade de experiências esquizofrênicas, podem seguir uma lógica semelhante.

Eles observam que o olhar de outra pessoa, ou da sociedade em geral, pode desempenhar um papel aqui. No exemplo fornecido anteriormente, o olhar do médico foi experimentado como opressivamente restritivo. O olhar “tortuoso” pode estar relacionado com:

“No início da psicose, o mundo parece ter perdido sua receptividade e habitabilidade, ou seja, o espaço aberto para um eu se mover ou mesmo ser. Assim, pode-se concluir que, como conseqüência terapêutica, a comunicação e a abertura do mundo, ou seja, seu espaço para se mover e espaço para existir, precisam ser restaurados”.

Voltando à segunda seção, os autores descrevem modalidades de tratamento que tanto “fecham” o mundo das pessoas como também aquelas que podem começar a restaurar esse “espaço para se mover e espaço para existir”.

Entre as modalidades de tratamento que eles consideram reforçar o “fechamento” do mundo da pessoa, que eles novamente acreditam constituir um elemento importante das experiências esquizofrênicas, estão “enfermarias fechadas, rotulagem diagnóstica (com o fenômeno de estigma associado), e tratamento coercitivo”.

Um dos problemas com as enfermarias, por exemplo, é como elas apresentam tanto física quanto experimentalmente um “recinto” no qual os indivíduos devem permanecer. Isto é literal e físico nos casos em que as pessoas não podem sair do ambiente clínico. Entretanto, também é experiencial, no sentido de que os indivíduos são obrigados a obedecer aos procedimentos da instituição, e suas ações e declarações (por exemplo, resistência ao tratamento) são consistentemente interpretadas como mais uma evidência de sua psicopatologia.

Em termos de etiquetagem diagnóstica, os autores retransmitem uma história clínica de sua prática:

“Uma pessoa diagnosticada com esquizofrenia, a quem aqui chamamos O., relatou que certa vez foi informado por um de nossos colegas: “Temo que você não vai conseguir sem medicação para toda a vida”. Apesar de ouvir vozes de vez em quando, O. tem vivido sem medicação nos últimos anos, e nos contou sobre o impacto muito violento que esta avaliação profissional teve sobre ele.

Mesmo se expresso com boas intenções pela nosso colega, esta avaliação lhe pareceu um presságio que o assombrou para o resto de sua vida: Seria correto se, ao não tomar medicamentos, ele de alguma forma acabasse ” fracassando” em sua vida? O que significaria “não conseguir”?”

Em casos como estes e outros em que este é um estigma associado à rotulagem psiquiátrica – mesmo não intencional – pode haver um “enclausuramento” de experiência. Em outras palavras, um “enclausuramento” de experiência:

“Não poderia a diminuição fenomenológica da auto-descrição na esquizofrenia também (ou pelo menos em parte) estar relacionada à experiência diminuída e estigmatizante da auto-descrição por este mesmo diagnóstico?”

No que diz respeito à coerção, os autores afirmam que coisas como o confinamento físico e a restrição médica sob a forma de sedativos podem “substituir” a abertura das relações humanas recíprocas. Estas práticas podem reforçar o “enclausuramento” da experiência psicológica encontrada no núcleo das experiências esquizofrênicas.

Voltando, finalmente, ao que os autores vêem como espaços “abertos” ou “abertos para tratamento”, eles afirmam que “um objetivo terapêutico deve ser apoiar uma reabertura do eu do paciente, proporcionando um espaço terapêutico seguro, compartilhado e aberto”.

Ao lado da defesa de “enfermarias abertas”, opondo-se ao confinamento involuntário, os autores descrevem modalidades específicas como Diálogo Aberto como tendo o potencial de proporcionar aqueles espaços terapêuticos seguros, compartilhados e abertos.

O Diálogo Aberto, por exemplo, concentra-se em “reuniões de rede” flexíveis que podem envolver profissionais psi, usuários de serviços e membros da família ou amigos próximos. Um diálogo é então encorajado entre estas partes sem práticas autoritárias rígidas e de cima para baixo, como pode ser encontrado em alguns ambientes psiquiátricos convencionais. Em vez disso, a ênfase está na “polifonia”, ou na “inclusão e compreensão mútua de diferentes narrativas e vozes”.

Para os autores, esta celebração de aceitação mútua e tolerância da diferença é essencial para a postura de qualquer profissional que tente ajudar em uma “re-atualização de si mesmo”. Esta idéia aqui é que esta postura pode encorajar novas fronteiras de experiência de si mesmo, novas experiências de abertura, contra o fechamento e a desconexão das experiências esquizofrênicas.

Os autores concluem:

“Outro foco promissor e muito necessário de pesquisa é a postura terapêutica dos profissionais nos diferentes espaços e ambientes psiquiátricos, que os autores deste artigo atualmente examinam em um projeto de pesquisa qualitativa em andamento. Os resultados preliminares deste estudo mostram que um motivo recorrente da postura terapêutica dos profissionais em relação às pessoas com psicose pode ser a capacidade de empatizar com as experiências psicóticas ou mesmo de considerá-las como uma possibilidade existencial própria.

Enquanto as qualidades e efeitos de tal postura terapêutica dos profissionais ainda precisam ser investigados com mais detalhes, acreditamos firmemente que a relevância de tal postura não deve se restringir aos ambientes de saúde mental e psicoterapia, mas também é crucial em um nível mais amplo da sociedade. De fato, a perda da conexão dialógica com o mundo social que as pessoas com experiência esquizofrênica ainda têm e com demasiada freqüência se reflete na perda do diálogo da sociedade com elas”.

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Thoma, S., Schwänzl, I., & Galbusera, L. (2021). Reopening selves: Phenomenological considerations on psychiatric spaces and the therapeutic stance. Psychopathology, 1-12. (Link)

Diagnósticos Falsos Ocultam Altas Taxas de Drogadição em Lares de Idosos

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Matéria do The New York Times.  Nos Estados Unidos, de cada 10 idosos vivendo em lares para idosos pelo menos 2 estão tomando antipsicóticos. A pergunta que não pode deixar de ser feita: Como é a situação dos idosos aqui no Brasil?

“Os medicamentos antipsicóticos – que durante décadas enfrentam críticas por serem ‘camisas de força químicas‘ – são perigosos para pessoas idosas com demência, quase dobrando suas chances de morte por problemas cardíacos, infecções, quedas e outras enfermidades. Mas os lares com pouco pessoal têm usado com freqüência os sedativos para que não tenham que contratar mais pessoal para lidar com os residentes.”

Os riscos para os pacientes tratados com antipsicóticos são tão altos que os lares devem informar ao governo quantos de seus residentes estão tomando esses medicamentos potentes. Mas há uma importante ressalva: o governo não divulga publicamente o uso de antipsicóticos dados aos residentes com esquizofrenia ou duas outras condições.”

“(…) “As pessoas não acordam com esquizofrenia apenas quando são idosas”, disse o Dr. Michael Wasserman, um geriatra e um ex-executivo de lares que se tornou crítico da indústria. “É usado para contornar as regras”.

“(…) Para as casas de repouso, o dinheiro está em jogo. Altas taxas de uso de drogas antipsicóticas podem prejudicar a imagem pública de um lar e a classificação de estrelas que ele recebe do governo. A Medicare projetou o sistema de classificação para ajudar os pacientes e suas famílias a avaliar as instalações usando dados objetivos; uma classificação baixa pode ter grandes conseqüências financeiras. Muitas instalações encontraram maneiras de esconder problemas sérios – como pessoal inadequado e cuidados aleatórios – de auditorias e inspetores do governo.”

Leia a matéria na íntegra →

SETEMBRO AMARELO E ALGUNS MITOS DO MODELO BIOMÉDICO DA PSIQUIATRIA

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Desde 2014, a Associação Brasileira de Psiquiatria – a ABP, em parceria com o Conselho Federal de Medicina – CFM, organiza nacionalmente o chamado Setembro Amarelo. O dia 10 deste mês é, oficialmente, o Dia Mundial da Prevenção ao Suicídio. Conforme o que está dito na homepage da campanha, ​“são registrados mais de 13 mil suicídios todos os anos no Brasil e mais de 01 milhão no mundo. Trata-se de uma triste realidade, que registra cada vez mais casos, principalmente entre os jovens. Cerca de 96,8% dos casos de suicídio estavam relacionados a transtornos mentais. Em primeiro lugar está a depressão, seguida do transtorno bipolar e abuso de substâncias”.

Uma campanha da maior importância. Prevenir o suicídio é uma tarefa de cada um de nós, de toda a sociedade. Como bem é dito, “a campanha acontece durante todo o ano”.

Enquanto profissional de saúde mental, e muito particularmente enquanto pesquisador do campo, eu gostaria de usar este espaço para analisar alguns pressupostos que fazem parte do senso-comum e que considero como “mitos”, senão considerações que cientificamente carecem de evidências científicas. Um alerta: em tempos de negacionismo, o meu compromisso aqui é buscar, na medida do possível, orientar as minhas reflexões a partir das evidências científicas disponíveis.

  1. Mito 1: os antidepressivos são mais eficazes do que as psicoterapias

Os médicos em geral, os psiquiatras em particular, são orientados a seguir as diretrizes oficiais, no nosso caso as orientações da ABP. São as mesmas recomendadas pela Associação Psiquiátrica Americana (APA), para dar um exemplo. O que é dito é que enquanto a psicoterapia é suficiente para tratar depressão leve, os medicamentos antidepressivos devem ser usados para tratar depressão grave no contexto de um transtorno depressivo maior. Não obstante, ao contrário das orientações oficiais, há provas significativas da eficácia a longo prazo da psicoterapia, e que a psicoterapia também oferece uma boa relação custo-benefício.  Senão, examinemos evidências científicas encontradas em estudos científicos.

Tomemos como ponto de partida um grande ensaio de controle randomizado publicado em The Lancet em janeiro de 2016.  E o que é o recomendado pelos pesquisadores? É que os clínicos encaminhem todos os pacientes com depressão resistente ao tratamento à psicoterapia.

Nesse estudo foi examinado um modo particular de psicoterapia, a Terapia Cognitiva Comportamental (TCC), que pesquisas anteriores já haviam mostrado ser um tratamento particularmente eficaz para a depressão. Os pesquisadores explicam que a TCC “ensina aos pacientes habilidades para ajudá-los a administrar melhor o seu humor, e por isso tem o potencial de resultar em um benefício que é sustentado além do final da terapia“. Embora a TCC tenha sido testada e considerada eficaz para a depressão, incluindo a depressão resistente ao tratamento, poucos estudos haviam antes rastreado os resultados a longo prazo desta abordagem – como agora foi feito pelo estudo em tela.

Que você leitor observe que o foco deste estudo é a depressão resistente. A depressão resistente ao tratamento, também conhecida como “depressão refratária”, “depressão crônica” e “depressão difícil de tratar”, é comumente definida pela incapacidade de responder a dois antidepressivos diferentes. As pesquisas anteriores já haviam indicado que aproximadamente 60% dos pacientes não respondem aos antidepressivos e que, portanto, a “resistência ao tratamento” pode ser melhor caracterizada como um “fracasso do paradigma” de diagnóstico.

Faço um parênteses para chamar a atenção para um outro estudo, desta vez é uma análise publicada na JAMA, em novembro de 2015, que descobriu que “pacientes com depressão mais grave não eram mais propensos a precisar de medicamentos para melhorar do que pacientes com depressão menos grave“. O mesmo estudo também havia sugerido que a TCC poderia ser usada como tratamento de primeira linha eficaz para pacientes com depressão severa.

Voltemos ao estudo publicado em The Lancet. O estudo tomou como base os dados de um acompanhamento (follow-up) de longo prazo que constam do CoBalT trial – um ensaio de controle aleatório pragmático e multicêntrico entre setenta e três centros de tratamento no Reino Unido. Investigou-se a terapia cognitivo-comportamental como terapia adjunta aos antidepressivos para depressão resistente ao tratamento. Os autores do estudo CoBalT estimaram que “dois terços das pessoas com depressão não respondem totalmente aos antidepressivos, mesmo após uma dose e duração adequadas do tratamento“.

O objetivo dos pesquisadores foi de “examinar se a TCC (além dos cuidados habituais que incluíam farmacoterapia) era eficaz e econômica para reduzir os sintomas depressivos e melhorar a qualidade de vida a longo prazo (3-5 anos), em comparação com os cuidados habituais, apenas em pacientes em cuidados primários“.

Após receber 12-18 sessões de TCC, os pacientes foram solicitados a responder a um questionário pelo correio, avaliando seus sintomas depressivos durante os próximos três a cinco anos. Depois de controlar as diferenças demográficas e outros potenciais elementos intervenientes, os pesquisadores descobriram que os participantes que receberam terapia tiveram significativamente menos sintomas depressivos no acompanhamento.

Aqueles que receberam TCC também estavam mais propensos a experimentar remissão, a relatar redução da ansiedade e a mostrar maior melhora na saúde mental em geral. Além disso, aqueles que receberam terapia estavam menos propensos a tomar antidepressivos nas 46 semanas.

Para avaliar a relação custo-eficácia da TCC, os pesquisadores obtiveram registros de dados sobre os recursos de saúde e estimaram o custo dos serviços de saúde para os participantes durante o período de acompanhamento. Foi estimado que o custo médio por paciente para a intervenção da TCC foi de £343 (trezentos e quarenta e três libras), enquanto os custos dos serviços de saúde e sociais foram mais altos no grupo de atendimento habitual a longo prazo.

Um outro estudo que vale a pena ser aqui destacado foi uma extensa revisão sistemática dos tratamentos para a depressão grave, que fez com que o Colégio Americano de Médicos emitisse uma recomendação aos clínicos sugerindo a terapia cognitiva comportamental (TCC) como um tratamento de primeira linha para transtornos depressivos graves, juntamente com antidepressivos de segunda geração. Os resultados da revisão revelaram que psicoterapia e os antidepressivos têm níveis similares de eficácia.  O Colégio Americano de Médicos analisou ensaios de controle randomizado de 1990 a 2015 para quatro abordagens diferentes para o tratamento dos sintomas relacionados a transtornos depressivos graves. As abordagens incluem psicoterapia (TCC, terapia interpessoal e terapia psicodinâmica), medicina alternativa (erva de São João, yoga, acupuntura, ômega 3s, meditação), exercício e farmacoterapia. Enquanto as evidências disponíveis mostraram que os antidepressivos tinham maior eficácia do que ômega 3s e escitaloprám, não houve diferença na resposta entre antidepressivos e terapia interpessoal, terapia psicodinâmica, acupuntura, erva de São João, yoga, exercício, ou TCC.

Este estudo faz o alerta de que os antidepressivos apresentam graves efeitos colaterais e taxas mais altas de recaídas, o que não ocorre com a TCC e as psicoterapias em geral. “Embora [os antidepressivos de segunda geração] sejam frequentemente prescritos inicialmente para pacientes com depressão, a TCC é uma abordagem razoável para o tratamento inicial e deve ser fortemente considerada como um tratamento alternativo aos antidepressivos, quando aquele tratamento estiver disponível”, concluíram os pesquisadores.

Embora a TCC seja a modalidade de psicoterapia analisada nesses estudos acima mencionados, não se pode dizer que seja a mais eficaz em comparação com as diversas outras psicoterapias.  Não é por acaso que no Reino Unido há o programa do NHS, o chamado Programa para adultos que melhoram o acesso a Psicoterapias (Adult Improving Access to Psychological Therapies Programme) – IAPT. Conforme o que o próprio NHS diz na homepage do Programa, “começou em 2008 e transformou o tratamento de transtornos de ansiedade e depressão em adultos na Inglaterra. O IAPT é amplamente reconhecido como o programa mais ambicioso de psicoterapias do mundo e só no ano passado mais de um milhão de pessoas acessou os serviços do IAPT para ajudar a superar sua depressão e ansiedade, e administrar melhor sua saúde mental.” São diversas as psicoterapias disponiblizadas pelo Programa.

Sabe-se que entre os problemas mais graves com o uso de antidepressivos é que seus usuários, quando em uso em médio e longo prazos, têm muitas dificuldades para viver livres das drogas antidepressivas. Daí que o recomendado seja o uso o mínimo possível do tratamento psicofarmacológico. O que reforça, inequivocamente, o papel essencial das psicoterapias.

Os problemas com a retirada dos antidepressivos, há muito negada e ignorada pela comunidade psiquiátrica, está agora na linha de frente do debate científico. Numerosos entidades médicas oficiais e até mesmo psiquiatras renomados têm apontado para os efeitos adversos e duradouros que podem ocorrer quando se descontinua o uso de antidepressivos. Por exemplo, o Royal College of Psychiatry divulgou recentemente uma declaração sobre a dependência severa e duradoura.

Quando é seguro fazer a descontinuação dos medicamentos antidepressivos? Eis aí um grande desafio. Se os medicamentos evitassem recaídas, então pará-los poderia levar a um retorno das experiências (como no caso a depressão) que fizeram a pessoa procurá-los em primeiro lugar. Mas um novo estudo – publicado na revista de primeira linha JAMA Psychiatry – descobriu que a psicoterapia é tão boa na prevenção de recaídas quanto a continuação dos antidepressivos. “Esta meta-análise dos dados individuais dos participantes sugere que a realização de uma intervenção psicológica enquanto um paciente é submetido a um tratamento com antidepressivos pode ser uma alternativa ao uso de antidepressivos a longo prazo no tratamento da depressão recorrente“, os pesquisadores escrevem.

Concluindo essas reflexões ao que chamei de Mito 1. Se estamos empenhados de fato a uma reforma da Assistência em Saúde Mental, é vital o desenvolvimento e o fortalecimento das psicoterapias e das abordagens psicossociais em geral. O tratamento psicofarmacológico em geral tem a tendência condenar os seus usuários a um menos-ser. O tratamento psicofarmacológico tende a produzir mudanças no cérebro que podem ser irreversíveis.

  1. Mito 2: os antidepressivos previnem o suicídio

O senso-comum é que os antidepressivos ajudam a prevenir o suicídio. Embora as evidências científicas sugiram exatamente o contrário.

De fato, são inúmeros os estudos que mostram que os antidepressivos são um forte contribuinte para o suicídio. A respeito, recomendo fortemente a leitura do estudo produzido pelo jornalista estadunidense Robert Whitaker, com o título sugestivo Suicídio na Era do Prozac. Como o texto do Whitaker é sustentado por inúmeras evidências, considero desnecessário me deter na análise deste tópico. Não deixem de ler cuidadosamente esse artigo do Whitaker, por favor.

O que eu posso acrescentar? A campanha do Setembro Amarelo, nos termos em que a ABP sugere à sociedade, não leva em consideração os riscos do próprio modelo biomédico para a prevenção ao suicídio.  No mundo inteiro, são abundantes as evidências do fracasso desse tipo de abordagem para a prevenção do suicídio.

São inúmeros os testemunhos das experiências de vida daqueles que sobreviveram aos antidepressivos. Como, por exemplo, que a partir do uso de antidepressivos alguém se tornou um suicida. Senão, aqueles que tiveram as suas vidas arruinadas sob diversos aspectos. Ou ainda, as chacinas em massa. 

É chocante como ainda em 2021, em nome da saúde, sejam prescritos antidepressivos como na forma atual. Isso é que é negacionismo!

  1. Mito 3: tratamento eletroconvulsivo é terapêutico

O senso-comum criado pela psiquiatria é que a terapia eletroconvulsiva (ECT) seja um procedimento recomendado a pessoas que são consideradas em risco de suicídio ou que são refratárias a tratamentos contra a depressão. No entanto, não é isso o que as evidências científicas mostram. Eis aí mais uma outra expressão do negacionismo.

Um estudo recentemente publicado no Journal of ECT desmente o pressuposto que legitamaria o uso de ECT. O estudo incluiu 14.810 pessoas que receberam ECT e 58.369 que não a receberam. Os participantes foram todas as pessoas que utilizaram a Administração de Saúde dos Veteranos (Veterans Health Administration) entre 2006 e 2015. Os participantes foram comparados em características demográficas e clínicas, utilizando escores de propensão ao risco, o que permitiu aos investigadores dar conta de diferentes graus de gravidade dos problemas de saúde mental e diagnósticos psiquiátricos e de fatores tais como idade e sexo. O estudo acompanhou os participantes durante um ano para comparar o número de pessoas que morreram por suicídio. Os investigadores concluíram:“Após comparar e controlar as diferenças entre grupos em uma regressão logística ajustada, as probabilidades de suicídio no ano após a realização da ECT não foram estatisticamente diferentes das dos pacientes que não receberam o procedimento.”

Diferentes estudos já mostraram não haver evidências de que a terapia eletroconvulsivo (popularmente conhecida como tratamento por choque-elétrico) funcione; mas sim, o que não faltam são evidências dos danos produzidos, como a perda da memória. Ademais, há um pobre monitoramento e fiscalização dos estabelecimentos autorizados para o emprego deste tipo de tratamento. São frequentes os processos judiciais movidos por pacientes e familiares vítimas desse tratamento psiquiátrico.

Chocante? Talvez nem tanto. Nada nos surpreende, quando vimos a defesa do tratamento precoce para a Covid-19.

Considerações finais

O modelo biomédico da psiquiatria é objeto de críticas, em particular da própria OMS e ONU.

Se colocarmos entre parênteses o modelo biomédico proposto para se abordar a depressão, e muito em particular o suicídio, campanhas como a do Setembro Amarelo são da maior importância para todos nós.

É urgente que a sociedade se dê conta de um conjunto de condições sociais que comprometem as condições de estar-de-bem consigo próprio e com os outros. São condições para o que consideramos ‘saúde mental’. Condições tais como: ter uma atividade laboral que faça sentido, não viver em isolamento, lidar com valores que façam sentido, estar conectado com os traumas na infância, ter status e respeito reconhecidos, estar conectado com a natureza, contar com um futuro de esperança e seguro etc.  A respeito, dito de uma forma bastante inclusiva, quero dizer, a partir da experiência de vida, eu recomendo essa palestra do jornalista Johann Hari, quem compartilha conosco ideias novas sobre as causas da depressão e da ansiedade, colhidas de especialistas do mundo todo – bem como algumas soluções novas e animadoras.

E para finalizar, a última referência bibliográfica que não posso deixar de citar. A reação normal das pessoas, quando se faz críticas como as que eu acabo de apresentar, é se perguntar quais são as alternativas para que nos orientemos frente ao sofrimento psíquico em suas diversas formas de se manifestar, como as que são apresentadas no DSM/CID. Se a depressão não é uma doença, e se não negamos o fenômeno, como então fazer face a ela? Seja com a depressão, a ansiedade, sejam quaisquer que forem os fenômenos que nos chegam enquanto demandas para a assistência em saúde mental. A referência que eu sugiro é o documento da Divisão Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia, chamado de Abordagem Poder, Ameaça e Sentido (Power Threat Meaning Framework). Aqui está o link. Ali se pode encontrar o documento em sua íntegra, bem como experiências com o uso do modelo, artigos científicos, etc.

As conseqüências do racismo histórico em publicações psiquiátricas

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Em um próximo artigo, a ser publicado no The Canadian Journal of Psychiatry, Imen Ben-Cheikh e colegas exploram a história do racismo em publicações de revistas psiquiátricas revisadas por pares.

Ben-Cheikh observa que muitos periódicos ainda incluem descobertas pseudocientíficas de períodos históricos de colonialismo desenfreado, escravidão e nazismo. Pouco tem sido feito para enfrentar este racismo presente nas publicações científicas. Os autores concluem que embora estes artigos devam continuar disponíveis aos pesquisadores como documentos históricos, eles devem incluir uma declaração de isenção de responsabilidade sobre a natureza pseudocientífica do conteúdo. Eles escrevem:

“Recomendamos que todas as revistas científicas identifiquem quaisquer publicações históricas que tenham um conteúdo racista e acrescentem no início dessas publicações uma declaração sobre a divulgação … Embora esta solução em potencial seja simples, representa, no entanto, uma ação sem precedentes em termos de políticas antirracistas no campo da publicação científica”.

Muitas vozes têm apontado para o racismo institucional dentro do campo da saúde mental. Pesquisas têm mostrado o impacto do racismo tanto no desenvolvimento da psicose em comunidades historicamente oprimidas quanto como o tratamento bem sucedido da psicose pode ser complicado por questões culturais e econômicas.

Também temos visto os perigos de conceitos como “daltonismo” que levam os pesquisadores a ignorar as desigualdades estruturais reais. A pesquisa atual acrescenta a estas críticas citando muitos exemplos de racismo histórico presentes em artigos que ainda estão disponíveis como “pesquisa revisada por pares”.

Ben-Cheikh e colegas encontram mais companhia em uma carta de 2020 assinada por 166 membros do Royal College of Psychiatrists no Reino Unido. Esta carta, escrita após o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, insta o Colégio a criar uma comissão independente para identificar e corrigir os problemas de racismo, colonialismo e preconceito na raiz da psiquiatria.

Além do racismo dentro do campo da saúde mental, a psiquiatria também tem muitos problemas com o viés de publicação. As publicações psiquiátricas frequentemente deturpam a eficácia dos tratamentos para esquizofrenia e depressão e os efeitos positivos dos resultados em geral. Alguns autores têm até apontado a questão de muitos poucos pesquisadores estarem cientes do viés esmagador que existe na publicação científica e basearem erroneamente suas pesquisas em descobertas tendenciosas. A pesquisa atual destaca a grande e iminente área do racismo histórico no viés de publicação.

A pesquisa atual explora vários exemplos de racismo e colonialismo em publicações psiquiátricas para destacar como a psiquiatria tem sido usada para minar os direitos humanos fundamentais dos grupos marginalizados. Os autores apontam em primeiro lugar a cumplicidade preocupante de alguns psiquiatras em relação ao tratamento desumano de comunidades marginalizadas.

Um exemplo é o trabalho de Donald Ewen Cameron, um psiquiatra americano que mais tarde se tornou membro honorário da Associação Psiquiátrica Canadense e foi cúmplice no diagnóstico errado de doenças mentais em crianças órfãs canadenses nos anos 50. Os autores também citam Hans Asperger como tendo sido cúmplice da ideologia nazista da purificação racial.

Além da cumplicidade na violação dos direitos humanos, a pesquisa atual também aponta para autores proeminentes que aceitaram as ideologias racistas como fatos e sua influência em suas pesquisas. Por exemplo, Emil Kraepelin defendeu uma hierarquia de desenvolvimento racial e assim ignorou o contexto social de suas observações. Cesare Lombroso foi um defensor da craniologia, insistindo que “os criminosos se parecem com os selvagens e as raças de cor”.

Os autores também apontam para os 100 anos de história da psiquiatria afirmando a inferioridade do povo negro. Apesar das críticas bem fundamentadas e repetidas, vemos o tema da inferioridade do povo negro em termos de tamanho do cérebro, inteligência e moralidade se repetir ao longo da história da publicação psiquiátrica. Já em 2012, a revista American Psychologist publicou um trabalho de John Philippe Rushtel afirmando a inferioridade intelectual do povo negro.

De acordo com Imen Ben-Cheikh, há uma necessidade esmagadora de abordar a questão muitas vezes designada do racismo sistemático nas publicações psiquiátricas. Para os autores, esta necessidade é óbvia devido aos efeitos devastadores que o racismo tem sobre a saúde física e mental de indivíduos e comunidades. Os autores até apontam o diagnóstico de transtorno de estresse pós-traumático resultante de “trauma racial” como potencialmente ofuscando as raízes políticas, raciais e históricas do sofrimento.

Como remédio, os autores sugerem acrescentar um pequeno desmentido ao prefácio da pesquisa historicamente racista que aparece em revistas revisadas por pares. Esta solução permitiria a manutenção destes artigos como documentos históricos sem permitir que eles possam envenenar o corpo contemporâneo do conhecimento psiquiátrico.

Ben-Cheikh e colegas acreditam que explorar o racismo histórico na publicação psiquiátrica pode nos ajudar a entender melhor os efeitos dessas idéias ultrapassadas na sociedade contemporânea. Eles escrevem:

“A psiquiatria tem sido utilizada política e socialmente, de forma maliciosa, em diferentes períodos da história. Como cientistas, médicos, éticos, psiquiatras, psicólogos, devemos olhar de forma crítica para este passado, que não desapareceu tanto quanto gostaríamos, tanto para reconhecer o impacto embutido de nossa história em nossas sociedades contemporâneas quanto para abraçar nossas responsabilidades coletivas frente a estas derivações”.

Os autores reconhecem que enquanto alguns casos de racismo histórico em pesquisas publicadas são óbvios, outros são mais sujeitos a interpretação. Portanto, a pesquisa atual sugere a criação de um corpo de especialistas para fazer a determinação final em tais casos.

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Ben-Cheikh, I., Beneduce, R., Guzder, J., Jadhav, S., Kassam, A., Lashley, M., Mansouri, M., Moro, M. R., & Tran, D. Q. (2021). Historical Scientific Racism and Psychiatric Publications: A Necessary International Anti-racist Code of Ethics. The Canadian Journal of Psychiatry, 1–5. (Link)

Bebês recém-nascidos sofrem com a retirada de antidepressivos

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Uma nova metanálise revelou evidências de que os recém-nascidos sofrem abstinência de antidepressivos se suas mães estavam tomando ISRSs durante a gravidez. Como resultado, os pesquisadores recomendam que as mães interrompam o uso de antidepressivos antes da gravidez, se possível.

“Vale a pena tentar evitar a ocorrência desta síndrome antes e durante a fase inicial da gravidez”, escrevem eles.

A pesquisa foi conduzida por Jianjun Wang, na Universidade de Medicina Chinesa de Guangzhou, China, e Fiammetta Cosci, na Universidade de Florença, Itália. Foi publicada em Psychotherapy and Psychosomatics.

Wang e Cosci buscaram estudos sobre a exposição in utero a medicamentos antidepressivos e seu efeito sobre os recém-nascidos. Suas análises incluíram 13 desses estudos. Eles se concentraram em ISRSs (como sertralina, citalopram e fluoxetina) e na venlafaxina SNRI.

Eles identificaram os seguintes sintomas de abstinência em recém-nascidos: hipoglicemia, tremores, hipotonia, hipertonia, taquicardia, respiração rápida, e problemas respiratórios.

Estudos anteriores descobriram que a exposição in utero a antidepressivos estava associada ao nascimento prematuro, defeitos de nascença, problemas de desenvolvimento, problemas cardiopulmonares e até mesmo a morte.

Quão prevalentes são estes efeitos?

Em um estudo citado por Wang e Cosci, foi encontrada uma “síndrome de abstinência neonatal” em 30% dos bebês expostos a antidepressivos, e em nenhum dos bebês que não o foram.

Em conclusão, Wang e Cosci escrevem que as terapias não-farmacológicas, como a terapia cognitivo-comportamental, devem ser usadas para mulheres com depressão que estão grávidas.

Mesmo para aquelas com histórico de múltiplos episódios depressivos, elas escrevem que “tratamentos não-farmacológicos devem ser a primeira escolha, e somente se não forem eficazes ou desejados, os antidepressivos devem ser considerados”.

 

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Wang, J., & Cosci, F. (2021). Síndrome de abstinência neonatal após exposição tardia no útero a inibidores seletivos de recaptação de serotonina: Uma revisão sistemática e uma meta-análise de estudos observacionais. Psicoterapia e Psicossomática, 90, 299-307. https://doi.org/10.1159/000516031 (Link)

Psicodélicos – A Nova Loucura Psiquiátrica

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Fotografia da face inferior do homem com um comprimido na língua

Os psicodélicos estão cada vez mais na moda, mas será que são algo diferente do que uma poderosa forma de óleo de cobra, ou diferente de uma experiência recreativa? Eles têm algum benefício objetivo para a saúde? Podemos ter certeza de que eles são seguros? Estas perguntas precisam ser respondidas urgentemente, pois o número de pessoas sendo seduzidas ou persuadidas a ter estes medicamentos está aumentando. Aqui eu chamo a atenção para algumas das questões levantadas pela popularidade atual dessas drogas.

Os psicodélicos originais incluem a psilocibina, o princípio ativo dos ‘cogumelos mágicos’ e a dietilamida do ácido lisérgico, popularmente conhecida como LSD. As drogas recreativas MDMA (ecstasy) e cetamina têm alguns efeitos semelhantes aos psicodélicos, na medida em que há uma qualidade do tipo “viagem” para o estado alterado que elas produzem.

Fotografia da face inferior do homem com um comprimido na língua

Os psicodélicos estão agora sendo recomendados para tratar uma lista cada vez maior de problemas, incluindo depressão, ansiedade, dependência, transtorno do estresse pós-traumático, dor crônica e angústia associada a ter uma doença terminal. Livros sobre eles se tornaram best-sellers e várias fundações estão promovendo e financiando pesquisas sobre substâncias psicodélicas, presumivelmente na esperança de que em breve sejam licenciadas para uso médico.

A cetamina, geralmente administrada por via intravenosa, já está em oferta através de numerosas clínicas privadas nos EUA, e várias abriram no Reino Unido, incluindo pelo menos uma fornecida pelo NHS (embora o tratamento tenha que ser pago a título privado). Isto é possível porque a cetamina é licenciada como anestésico e pode, portanto, ser re-propagada como “off-label” para outros usos médicos. A esquetamina, um isômero da cetamina tomado como spray nasal, foi licenciado para o tratamento da depressão resistente ao tratamento nos EUA, Reino Unido e Europa.

A lógica por trás desta tendência é confusa e contraditória. Por um lado, os psicodélicos são promovidos como auxiliares no processo de psicoterapia através de insights que podem ser gerados pela “viagem” ou a experiência induzida por essas drogas – por outro lado, as drogas psicodélicas representariam um tratamento médico direcionado para vários distúrbios, através da correção de deficiências cerebrais subjacentes.

Em uma entrevista publicada na Nature, o psicofarmacologista e pesquisador de psicodélicos, David Nutt, sugere que os psicodélicos “desligam partes do cérebro que se relacionam com a depressão” e “reiniciam os processos de pensamento do cérebro” através de suas ações sobre os receptores corticais 5-HT2A. Outros afirmam que eles aumentam a ‘conectividade’ do cérebro. O website da Universidade John Hopkins alega que eles oferecem a promessa de “tratamentos de medicamentos de precisão feitos sob medida para as necessidades específicas de cada paciente”. Todas essas afirmações são pura especulação.

Alguns promotores se referem aos psicodélicos como “antibióticos da mente”, argumentando que o tratamento psicodélico é “curativo”, exigindo apenas uma ou duas “sessões dosificadas”, em comparação com o tratamento de longo prazo necessário com antidepressivos ou psicoterapia. Este é um importante argumento de vendas para o que é uma terapia cara. Na realidade, os psicodélicos não produzem as curas milagrosas que as pessoas são levadas a esperar, como confirma a experiência com a cetamina. Algumas pessoas podem se sentir um pouco melhor após um tratamento, e então o efeito desaparece e elas vêm para outro e outro, e se estabelecem no tratamento a longo prazo, assim como ocorre com as pessoas em antidepressivos.

A esquetamina, o isômero cetamina fornecido em um spray nasal, foi lançado pela Janssen e é claramente destinado como um tratamento de longo prazo, com testes aleatórios e proclamando seus efeitos de “prevenção de recaída” (para uma crítica a esta e outras pesquisas sobre a esketamina, veja um blog anterior). O conceito de microdosagem com LSD ou outros psicodélicos segue o mesmo princípio, promovendo a idéia de que pequenas doses dos medicamentos, tomadas diariamente, melhoram o humor, a criatividade e a produtividade das pessoas. Esta prática parece ser cada vez mais comum, com uma pesquisa recente constatando que 17% dos entrevistados, com uma média de idade de 33 anos, tinham se engajado nela regularmente em algum momento. Uma vez desencadeada, parece que as drogas tendem a um padrão de uso a longo prazo, com todas as complicações físicas e psicológicas que isso implica.

Então, será que os efeitos dos psicodélicos podem ser benéficos? A experiência ou “viagem” psicodélica tem sido defendida há muito tempo como um meio de expandir a consciência, de ver o mundo de uma maneira diferente que pode levar a novas percepções e inspirações. O MDMA produz sentimentos intensos de calor e conexão e a cetamina leva a um estado de transe. Todas essas drogas podem tornar as pessoas ‘em alto astral’ ou eufóricas, mas, apesar disso, nem todos gostam dos sentimentos que elas induzem, e alguns delas, particularmente aquelas com efeitos psicodélicos mais intensos, podem produzir experiências que são assustadoras e angustiantes – a ‘má viagem’.

Algumas pessoas podem aprender coisas importantes sobre si mesmas através da experiência dos efeitos das drogas psicodélicas. O autor e psicoterapeuta Gary Greenberg descreve o consumo de ecstasy em seu livro, Manufacturing Depression, e como a emoção que ele sentiu sob a influência da droga o fez perceber a profundidade de seus sentimentos por sua namorada, dos quais ele não tinha tido conhecimento antes.

O desenvolvimento pessoal através das drogas não precisa, no entanto, ser limitado aos psicodélicos. Um paciente que eu conheci comentou que os efeitos do álcool haviam lhe mostrado como superar a sua timidez ou ansiedade social, de tal forma que ele aprendeu a socializar sem ele (é claro que, às vezes, o álcool usado desta forma pode se tornar um problema por direito próprio). Outra paciente descreveu como sua experiência de tomar drogas estimulantes para a doença de Parkinson (que ela teve que parar posteriormente) a ensinou a se soltar e fazer coisas por si mesma em vez de se concentrar apenas nas necessidades de sua família.

Mas estes benefícios não são efeitos médicos ou de saúde. Eles são semelhantes ao desenvolvimento pessoal que as pessoas alcançam através de outros tipos de atividades e experiências de vida como cantar, dançar, estar na natureza, esportes e muitas outras coisas. E embora o conceito de psicoterapia assistida por drogas reconheça que é a forma como os efeitos psicoativos das drogas são usados para promover um processo de aprendizagem pessoal que é relevante, por que não empregar outros métodos, mais seguros e baratos? Por que não a psicoterapia assistida pela natureza (uma caminhada no parque), por exemplo?

Além disso, como descrito acima, cada vez mais o uso dessas drogas é retratado de outras formas, como se elas funcionassem visando os processos disfuncionais do cérebro. Quando, e se, os psicodélicos obtiverem uma licença médica, é provável que a psicoterapia seja abandonada ou minimizada. Como no caso da cetamina, a tendência de todo tratamento psicodélico será para o fornecimento da droga da maneira mais barata possível, o que significa o mínimo de supervisão e terapia.

Como de costume, as pesquisas oficiais exageram os efeitos benéficos reais das drogas. Em um pequeno estudo randomizado comparando a psicoterapia assistida por psilocibina com um antidepressivo e psicoterapia regulares, não houve diferença no resultado primário. O ensaio ainda foi publicado no prestigioso New England Journal of Medicine. Os resultados secundários que encontraram pequenas diferenças foram destacados sem considerar os efeitos ‘placebo’ de ter uma experiência reconhecidamente induzida por drogas, e os participantes recrutados não eram típicos daqueles com depressão, consistindo principalmente de homens bem instruídos, quase um terço dos quais tinham experimentado psicodélicos antes (o que significa que eles certamente sabiam se receberam a psilocibina ativa ou o placebo, e provavelmente ficaram desapontados se receberam o placebo).

A maioria das pesquisas psicodélicas não presta atenção à forma como os efeitos psicoativos imediatos das drogas inevitavelmente afetam os sentimentos e o comportamento das pessoas, de uma forma que influenciará a classificação dos sintomas do humor e poderá produzir a impressão de melhora. Em seu relatório sobre o tratamento com cetamina, a Associação Psiquiátrica Americana (APA) afirma que há “provas convincentes” de que “os efeitos antidepressivos da infusão de cetamina são rápidos e robustos”. Apesar de admitir que eles também são “transitórios”, a APA não explica como esses chamados “efeitos antidepressivos” podem ser distinguidos da euforia e outras alterações mentais associadas à intoxicação aguda por cetamina. Se os efeitos da cetamina são ‘antidepressivos’, também o são os efeitos de todas as outras drogas que produzem euforia a curto prazo, incluindo álcool, cocaína, heroína, anfetaminas, etc.

Junto com as alterações induzidas pela farmacologia, qualquer droga poderosa que altera a mente provavelmente terá efeitos ‘placebo’; em outras palavras, a experiência induzida pela droga levará as pessoas a esperar que elas melhorem, e esta expectativa pode, por sua vez, levá-las a melhorar, ou pelo menos a pensar que melhoraram. Para determinar se os efeitos psicodélicos estão especificamente associados a percepções que ajudam as pessoas a se recuperar da depressão ou de outras condições isso requer uma comparação entre os psicodélicos e outras drogas psicoativas como anfetaminas, benzodiazepinas ou opiáceos, por exemplo. Efeitos similares também podem ser obtidos por outros métodos para induzir estados de transe, tais como meditação ou exercícios extenuantes.

A pesquisa sobre substâncias psicodélicas também negligencia o profundo efeito placebo que provavelmente será produzido pelas horas de supervisão médica e atenção profissional associadas ao tratamento psicodélico, quer isto constitua ou não psicoterapia formal. Alguns dos ensaios com esketamina, por exemplo, descobriram que as pessoas que tomaram o spray de placebo tiveram uma enorme redução em sua pontuação na escala de classificação de depressão. Nesses ensaios, os participantes, que tinham “depressão resistente ao tratamento”, tiveram duas vezes por semana a administração do medicamento ou placebo spray seguido de até 4 horas de observação médica em cada ocasião – são 8 horas de atenção profissional a cada semana! Sabemos que o contato clínico melhora os resultados das pessoas em depressão, e parece que este alto nível de contato nos ensaios de esketamina exerceu um efeito poderoso mesmo em pessoas com sintomas graves e persistentes.

A loucura atual por substâncias psicodélicas também significa que os efeitos adversos estão sendo minimizados ou negligenciados. A “má viagem” é um fenômeno bem conhecido, e pode não ser tão incomum assim. O psiquiatra Rick Strassman, autor de DMT: o Spirit Molecule, descreveu como metade dos 60 voluntários que ele injetou com o poderoso alucinógeno, DMT (N,N-dimetil-triptamina), experimentou alucinações e ansiedade aterrorizantes, e ele suspendeu sua pesquisa, em parte por causa destes efeitos. O jornalista científico John Horgan descreve meses de depressão e flashbacks após uma “má viagem”, e também nos lembra que Albert Hofmann, que sintetizou o LSD pela primeira vez, também teve dúvidas a respeito, chamando seu livro de memórias de 1981 de LSD: Meu filho problemático.

Os defensores ressaltam que o contexto ajuda a determinar a natureza da experiência induzida pela droga, portanto, fornecer pessoal para apoiar as pessoas enquanto elas estão sob a influência da droga, e para processar seus pensamentos e sentimentos depois, deve evitar viagens ruins. Por outro lado, uma situação clínica pode ser uma experiência altamente alienante e pode até induzir a uma má viagem para algumas pessoas. Em todo caso, as experiências psicodélicas são, por sua natureza, imprevisíveis.

Há algo fascinante nas drogas psicodélicas – o fato de que certas substâncias químicas podem distorcer a percepção sensorial e produzir alucinações vívidas coloca em questão nossa experiência normal do mundo cotidiano. Algumas pessoas acham seus efeitos esclarecedores, outras não. Isto depende tanto de como a experiência induzida pelas drogas é interpretada. “Como imaginamos estas substâncias como “medicamentos vegetais”, “drogas”, ou como “uma porta para o divino” é tão importante quanto seus efeitos neuroquímicos”, como aponta Shariq Khan.

No entanto, elas podem ser assustadoras ou perturbadoras às vezes, e faltam evidências de que elas produzem benefícios consistentes para o bem-estar ou a saúde mental das pessoas. Embora seja improvável que uma ou duas doses da maioria das drogas causem muitos danos, a tendência é para o uso a longo prazo, e o uso repetido de substâncias psicodélicas como de outras drogas é improvável que seja completamente inofensivo.

Como acontece com tantos outros tratamentos médicos, eles se tornaram populares através da potente mistura de interesses financeiros e desespero. Se o benefício ocasional dos psicadélicos é promover o desenvolvimento pessoal através de uma experiência incomum, então existem muitos caminhos mais seguros para este objetivo.

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Mad in Brasil recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são projetados para servir como um fórum público para uma discussão em termos gerais sobre a psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as próprias dos escritores.

A Linguagem Estigmatizante nos Registros Médicos Impacta o Atendimento ao Paciente

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Um novo estudo publicado na JAMA Network Open explora a linguagem utilizada pelos médicos nos prontuários médicos dos pacientes. Os pesquisadores examinam como a linguagem tanto positiva quanto negativa nos prontuários médicos pode afetar a forma como os pacientes são tratados pelos profissionais médicos.

Eles encorajam uma maior consciência da linguagem estigmatizante nos prontuários médicos para reduzir as atitudes negativas em relação aos pacientes e aumentar os cuidados informativos e competentes. Os autores, liderados por Mary Catherine Breach, MD, MPH, da Universidade Johns Hopkins, escrevem:

“Os pacientes não são tratados igualmente em nosso sistema de saúde: alguns recebem uma qualidade de atendimento inferior a outros com base em sua identidade racial/étnica, independente da classe social. Outros, como adultos idosos e indivíduos com baixa alfabetização em saúde, obesidade e transtornos relacionados ao uso de substâncias, também podem ser vistos negativamente pelos profissionais de saúde de uma forma que impacta negativamente a qualidade de seus cuidados de saúde. O preconceito implícito entre os médicos é um fator que perpetua essas disparidades. O viés implícito é a ativação automática de estereótipos, que pode anular o pensamento deliberado e influenciar o julgamento de uma pessoa de forma não intencional e não reconhecida, e pode afetar as decisões de tratamento”.

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O preconceito implícito pode ser refletido através da linguagem utilizada pelos médicos, o que é preocupante, considerando que a linguagem tendenciosa tem mostrado afetar negativamente a qualidade do atendimento.

Por exemplo, em um estudo que investigou a linguagem estigmatizante versus neutra sobre um paciente hipotético com doença falciforme, os pesquisadores descobriram que a linguagem estigmatizante levou a atitudes negativas em relação ao paciente, o que, por sua vez, resultou no fornecimento de menos analgésicos ao paciente, apesar de suas informações clínicas serem as mesmas que as do paciente que foi introduzido de forma neutra.

Os pesquisadores conduziram uma análise qualitativa de 600 notas de encontro selecionadas aleatoriamente de um ambiente de medicina interna ambulatorial em um centro médico acadêmico urbano no estudo atual. Aproximadamente 507 pacientes foram escritos nas anotações, com os pacientes sendo predominantemente mulheres negras (80%) (69%).

Os pesquisadores examinaram a linguagem utilizada pelos médicos nas anotações, identificando tanto a linguagem positiva quanto a negativa como temas principais.

A linguagem negativa utilizada pelos médicos foi separada em 5 categorias: questionamento da credibilidade do paciente, desaprovação, estereótipo, paciente difícil, e tomada de decisão unilateral.

Os pesquisadores descobriram que os médicos questionavam a credibilidade de seus pacientes, quer implicando que eles sentiam que o paciente não era suficientemente competente para lembrar quer fornecendo informações precisas e duvidando da genuinidade de seus pacientes. Eles descreveram como “marcadores de dúvida”, tais como “supostamente”, ” alegações” ou “insiste”, e citações dos pacientes usadas em citações de medo foram empregadas pelos médicos como uma forma de indicar a incerteza sobre a credibilidade de seus pacientes.

A linguagem que indica desaprovação enfatizava o que os médicos percebiam como “raciocínio, tomada de decisões e comportamentos deficientes dos pacientes”. Os médicos transmitiram a desaprovação através de uma linguagem que utilizava qualificadores negativos como “infelizmente” e uma linguagem que implicava que eles tinham que se repetir repetidamente para o paciente, como, por exemplo, afirmando: “Eu expliquei novamente”. . .”

A linguagem negativa usada pelos médicos foi além do implícito e explícita quando os médicos estereotiparam pacientes com base na identidade racial ou classe social através do uso de citações de gramática incorreta ou do inglês afro-americano vernacular nas anotações dos pacientes. O preconceito racial demonstrou ter grandes implicações para o diagnóstico e tratamento de pessoas de cor.

Os médicos também retrataram seus pacientes como “difíceis”, por exemplo, apresentando-os como temperamentais ou ignorantes e expressando a frustração dos médicos. Além disso, os médicos usaram linguagem condescendente e emocional e citações para retratar seus pacientes de uma forma negativa.

Os pesquisadores forneceram exemplos do tema do “paciente difícil”, como por exemplo: “isto parece pacificá-lo”, e “ela não vai considerar tomá-lo porque ‘meu coração está bem, não quero que todos vocês mexam com meu coração'”.

Em sua discussão da categoria “tomada de decisão unilateral”, os pesquisadores destacam como a dinâmica de poder médico-paciente foi enfatizada neste tipo de linguagem, pois o paciente foi retratado como ignorante e infantil. Em contraste, o médico se retratou de forma paternalista ou com autoridade, usando uma linguagem como: “Eu a instruí…”. .”

Descobriu-se também que os médicos usavam uma linguagem positiva para descrever seus encontros com os pacientes. Os pesquisadores categorizaram a linguagem positiva em 6 grupos: elogios, aprovação, auto-divulgação, minimização de culpas, personalização e tomada de decisão colaborativa.

Os elogios incluíram o uso de adjetivos positivos, como “inspirador” ou “bondoso”, para descrever os pacientes e estavam freqüentemente no início das anotações.

Os médicos normalmente demonstravam aprovação dos pacientes em relação a suas dificuldades de superação ou sua participação ativa em seus cuidados.

Emoções positivas sobre os pacientes eram por vezes reveladas pelos médicos, como por exemplo, através de uma linguagem como “A paciente expressou sua gratidão pelos cuidados prestados nos últimos anos e expressou seus agradecimentos”. Eu… expressei minha gratidão também por ser uma paciente inspiradora”.

Em algumas notas, os médicos tentaram minimizar a crítica contra os pacientes por não seguirem seus planos de tratamento, promovendo a compreensão através da ênfase em desafios particulares ou barreiras que podem estar impedindo o paciente de se envolver plenamente em seus cuidados.

Tentativas de humanizar o paciente fornecendo detalhes pessoais sobre a vida do paciente da perspectiva do paciente, tais como hobbies ou entes queridos importantes, foram incluídas em algumas das notas de encontro.

A categoria final de linguagem positiva foi identificada como “tomada de decisão colaborativa”, o que contrasta com a categoria de tomada de decisão unilateral que se enquadrava no tema da linguagem negativa do médico. Enquanto a categoria de decisão unilateral indicava um médico paternalista tomando decisões de tratamento em nome de seu paciente, a linguagem na categoria de decisão colaborativa indicava que as decisões de tratamento eram tomadas em conjunto pelo médico e pelo paciente.

A psiquiatria demonstrou lutar para implementar decisões compartilhadas alimentada pela crença equivocada de que os pacientes não são suficientemente competentes para participar do processo de tomada de decisão.

A consciência da linguagem utilizada nos prontuários médicos é crítica. Com o surgimento dos prontuários eletrônicos de saúde nos Estados Unidos, que tornam os prontuários médicos disponíveis em todos os ambientes de saúde, a forma como as anotações são redigidas pode influenciar como outros profissionais médicos que lêem as anotações percebem como tratam seus pacientes.

Além de impactar negativamente a forma como os médicos percebem e tratam seus pacientes, a linguagem estigmatizante pode afetar negativamente a disposição dos pacientes para participar do tratamento. Se os pacientes têm interações negativas com os clínicos devido à linguagem estigmatizada utilizada em suas anotações, isso pode resultar em um ciclo de profecia auto-cumprida onde o paciente é percebido como “difícil” ou desengajado e tratado por profissionais médicos como tal, o que aumenta os sentimentos negativos do paciente, que então transfere experiências passadas negativas para outros clínicos.

Além disso, ambulatórios de medicina interna tendem a ser ambientes de alta tensão, o que pode levar a um viés implícito de ativação, frustração e burnout, o que, por sua vez, pode resultar no uso de linguagem negativa nas anotações do paciente como uma forma de os profissionais médicos desabafarem suas frustrações.

Os pesquisadores sugerem que abordar o estresse e a frustração inerentes a tais ambientes é fundamental para melhorar a linguagem usada nos prontuários médicos, além de trabalhar para tornar os médicos mais conscientes da linguagem que estão usando em suas anotações.

Os pesquisadores descreveram ter dificuldade em chegar a um consenso sobre se parte da linguagem usada nas anotações era negativa ou positiva – em parte devido a algumas das declarações serem percebidas como normais para a profissão médica. Eles deram o exemplo de como os médicos são frequentemente ensinados a escrever usando as próprias palavras dos pacientes em suas anotações, mas que na prática, citações de pacientes tendem a ser usadas como citações assustadoras, que são usadas para retratar uma atitude negativa, nos registros.

Elas também destacam as complexidades da linguagem positiva usada pelos médicos, particularmente elogios e louvores, pois o uso de qualquer linguagem emocional poderia levar a maiores disparidades no tratamento de pacientes, o que leva ao argumento de que os prontuários médicos devem usar apenas linguagem neutra. Além disso, elogios usados para grupos marginalizados como pessoas de cor podem refletir atitudes racistas que implicam que não se espera que pessoas de cor exibam traços como serem “agradáveis”.

Apesar das questões associadas ao uso de elogios e louvores nos prontuários dos pacientes, minimizar a culpa, a personalização e a tomada de decisão colaborativa são formas positivas de os profissionais médicos se engajarem em cuidados e atitudes centradas no paciente que promovam a dignidade e o respeito do paciente.

Uma grande limitação deste estudo foi que embora os pacientes pudessem acessar seus prontuários eletrônicos durante o tempo em que as anotações foram escritas, a maioria ainda não tinha se envolvido com o sistema eletrônico, indicando que a maioria dos médicos não tinha escrito as anotações com o entendimento de que os pacientes poderiam lê-las. Outra limitação foi que as anotações foram coletadas de um ambulatório de medicina interna em um centro médico acadêmico urbano, de modo que os resultados podem não ser generalizados para outros ambientes médicos. Além disso, não havia informações sobre a composição demográfica dos médicos, como idade, raça/etnia, etc., o que pode ter influenciado a forma como a linguagem era usada em suas anotações. Finalmente, os pesquisadores apontam para a natureza excepcional de seu trabalho, pois não puderam conhecer as atitudes dos médicos enquanto escreviam as anotações ou como os leitores as interpretavam.

Em sua conclusão, Breach e colegas enfatizam que o aumento da percepção e consciência de como os profissionais escrevem e lêem as anotações médicas é crucial para reduzir as disparidades de tratamento e aumentar o tratamento respeitoso dos pacientes. Eles sugerem que a pesquisa deve ser conduzida para explorar mais profundamente a freqüência com que a linguagem estigmatizante é usada, como ela muda dependendo do paciente e do clínico, ou a relação entre médico e paciente, assim como como a linguagem estigmatizante afeta os resultados gerais do tratamento.

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Park, J., Saha, S., Chee, B., Taylor, J., & Beach, M. C. (2021). Physician use of stigmatizing language in patient medical records. JAMA Network Open, 4(7), 1-11. doi:10.1001/jamanetworkopen.2021.17052 (Link)

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