Office syndrome infographic, businessman have a headache. Mental health problems concept. Psychologists help a person to solve depression. Flat Art Vector illustration
O Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM), desenvolvido pela Associação Psiquiátrica Americana (APA), é utilizado mundialmente como um sistema de diagnóstico para questões de saúde mental. No entanto, as atitudes dos psicólogos em relação ao DSM não são claras, e a limitada pesquisa disponível sugere uma falta de entusiasmo por essa ferramenta diagnóstica.
Dada a falta de pesquisa nessa área, em um novo estudo, aceito pela Professional Psychology, os pesquisadores se propuseram a avaliar as percepções dos psicólogos sobre o manual. Eles descobriram que embora o DSM tenha sido revisado e atualizado durante as últimas quatro décadas, a maioria dos psicólogos está insatisfeita com o DSM e está interessada em alternativas, embora haja uma falta de familiaridade com as alternativas disponíveis.
Uma revisão das pesquisas existentes e limitadas sobre as atitudes dos psicólogos em relação ao DSM revelou insatisfação e desejo de alternativas. Essa insatisfação tem sido expressa desde as primeiras pesquisas dos anos oitenta. Os autores, liderados pelo psicólogo Jonathan Raskin, escrevem:
“. . . 90,6% dos entrevistados estavam usando o DSM-II, mas mais de 40% se preocupavam com a forma como os médicos percebiam os clientes, medicalizavam problemas psicossociais, tinham problemas de confiabilidade e validade, enfatizavam o diagnóstico às custas do tratamento, obscureciam as diferenças individuais, e tinham pessoas excessivamente patologizadas. . . No entanto, 90,2% dos entrevistados planejavam usar o DSM-III, embora apenas 19,1% pensassem que isso beneficiaria a psicologia”.
A pesquisa subsequente do DSMS nos anos 80 e mais recentemente em 2016 conduzida pelos autores atuais chegou a conclusões semelhantes – psicólogos se sentiram mais negativamente do que neutralmente sobre o DSM, expressaram preocupações sobre sua confiança em entendimentos médicos sobre questões de saúde mental e alternativas desejadas, mas admitiram continuar usando o DSM devido à falta de outras opções.
Embora haja alternativas ao DSM disponíveis, os médicos em grande parte desconhecem-nas, além da Classificação Internacional de Doenças (CID), que é muito semelhante ao DSM em termos de categorização de questões de saúde mental e pode não parecer nada diferente dele para alguns médicos. Também ganhou a atenção da Associação Americana de Psicologia, que publicou materiais para educar psicólogos sobre o assunto. Além disso, os códigos de diagnóstico do CIDI, que são emprestados pelo DSM, são usados para fins de pagamento por parte dos médicos americanos.
No estudo atual, Raskin e seus colegas pesquisaram 703 psicólogos licenciados em todas as disciplinas e formações teóricas sobre suas percepções do DSM.
Os autores escrevem sobre suas descobertas:
“Esse estudo encontrou algo notável – a saber, que as atitudes dos psicólogos em relação ao DSM hoje são em grande parte as mesmas que eram quando o seminal DSM-III estreou no início dos anos 80. O manual passou por cinco revisões para refiná-lo e melhorá-lo. Entretanto, durante esse período, os psicólogos permaneceram em grande parte pouco entusiasmados. Como era verdade há mais de 40 anos, os psicólogos, como grupo, estão mais insatisfeitos do que satisfeitos com o DSM. Além disso, eles não acham que o manual tenha tido muito efeito sobre eles ou sobre o diagnóstico”.
Analisando mais de perto suas descobertas, os pesquisadores encontraram diferenças de opinião sobre o DSM entre psicólogos com diferentes orientações teóricas. Por exemplo, psicólogos com formação em terapia cognitivo-comportamental (TCC) geralmente têm opiniões positivas sobre o DSM, enquanto psicólogos psicodinâmicos e humanistas/construtivistas/sistemas tendem a ver o DSM de maneira negativa. Psicólogos com formação eclética ou integrativa permaneceram neutros em sua percepção do DSM.
Apesar da visão geral negativa do DSM, com preocupações expressas relacionadas com as categorias de diagnóstico incluídas e sua medicalização de questões psicossociais, pelo menos 88% dos psicólogos entrevistados usam o DSM pelo menos uma vez por mês, principalmente por razões práticas, de faturamento.
Psicólogos em todas as orientações teóricas concordaram que pouco esforço foi feito para criar alternativas ao DSM e apoiam o desenvolvimento de alternativas. A maioria se considera familiarizada com o CID (89,74%), e os psicólogos da TCC e de origem integradora/eclética estavam em apoio ao seu uso.
Como um todo, os psicólogos não se consideram familiarizados com outras alternativas, incluindo PDM, HiTOP, e PTMF – além de uma vaga familiaridade com PDM por parte dos psicólogos psicodinâmicos. Os pesquisadores supõem que a falta de familiaridade com as alternativas disponíveis, assim como outros fatores, tais como a falta de códigos e categorias de diagnóstico, podem ter contribuído para a falta de entusiasmo por alternativas que não o CID.
Outra grande crítica ao DSM foi sua dependência do modelo médico de compreensão da doença mental. O único grupo que não endossou as preocupações com o modelo médico foi o dos psicólogos do TCC. Apesar disso, a maioria dos psicólogos entrevistados concordaram que as questões de saúde mental não são um subgrupo de distúrbios médicos. No entanto, a maioria não era a favor da remoção total do modelo médico – o único grupo que o fez foi o humanista/construtivista/psicólogo de sistema.
Dado que a maioria dos psicólogos vê as questões de saúde mental como não médicas, Raskin e colegas sugerem que uma maior familiaridade com alternativas, como PDM e HiTOP, que entendem as questões de saúde mental não como preocupações médicas, mas sim através da lente da avaliação da personalidade e da teoria psicodinâmica, levaria a um maior apoio desses métodos por parte dos psicólogos.
Além disso, eles defendem a mudança de uma abordagem padronizada para o diagnóstico e para uma diversidade de opções de diagnóstico, destacando como diferentes orientações teóricas provavelmente seriam atraídas para diferentes alternativas, tais como os psicólogos psicodinâmicos ao PDM.
Eles se perguntam:
“A diversidade de opções de diagnóstico não é algo a que os psicólogos estão acostumados, dado o longo domínio do DSM, mas poderia ser benéfica tanto para os clientes quanto para os profissionais”. Afinal de contas, se diferentes tipos de psicoterapia são igualmente eficazes, não podem os diferentes sistemas de diagnóstico ser assim também?”
Os pesquisadores sugerem que uma maior familiaridade com as alternativas seja cultivada através de oficinas de educação e treinamento contínuos sobre alternativas, assim como a inclusão de alternativas ao DSM em currículos credenciados pela APA.
Uma limitação desse estudo é a exclusão de dados de participantes que não completaram pelo menos 75% dos itens não demográficos, uso de pesquisas e recrutamento das divisões da APA, em oposição aos membros da APA como um todo. Pesquisas futuras devem também abordar como fatores como anos na prática, ou psicólogos que trabalham principalmente com adultos versus crianças, podem ter afetado suas percepções sobre o DSM.
Raskin e colegas concluem destacando os desafios que as alternativas enfrentam ao serem adotadas em um nível mais amplo:
“As alternativas bem sucedidas não só devem ganhar familiaridade e teoricamente apelar para um ou mais grupos de nicho de psicólogos, mas também devem proporcionar os mesmos benefícios práticos que o DSM – ou encontrar uma maneira prática de coexistir com o DSM na frente do reembolso enquanto oferecem algo que os médicos consideram útil”. Até que alternativas superem esses obstáculos, é duvidoso que os psicólogos os abracem independentemente de sua boa-fé científica. Mesmo que os ultrapassem, será necessário complementar a pesquisa e o desenvolvimento com iniciativas de educação e treinamento. Enquanto isso, esperamos que os psicólogos continuem usando o DSM, apesar da falta de um forte entusiasmo por ele”.
****
Raskin, J. D., Maynard, D., and Gayle, M. C. (2022). Psychologist attitudes toward DSM-5 and its alternatives. Professional Psychology: Research and Practice. (Link)
the psychologist is recording data obtained from patient interviews and prepare medical steps.
Um novo estudo realizado na Finlândia e publicado na revista Health examina em profundidade as entrevistas de médicos e pacientes diagnosticados com transtornos de personalidade, prestando particular atenção às discrepâncias entre clínico e paciente quanto à generalização de seu comportamento.
Por meio de pesquisa interativa e análise de conversas, os resultados revelaram que pacientes freqüentemente contextualizavam o seu comportamento como resultado de uma série de fatores situacionais que os clínicos então traduziam para a linguagem psiquiátrica de traços de personalidade. Os resultados sugerem a importância de tornar visíveis as práticas subjetivas que moldam o processo de diagnóstico na psiquiatria.
Além disso, os autores problematizam a tradução dos relatos dos pacientes para a linguagem psiquiátrica a fim de adequá-los aos critérios diagnósticos.
“Mostramos alguns padrões problemáticos nos quais a suposição de sintomas descontextualizados se torna desafiada. Nossas observações mostram que os pacientes frequentemente enfatizam fatores contextuais excessivamente generalizantes. Esse modelo explicativo às vezes está em conflito com o SCID-II que procura traços inerentes e duradouros que causam certo comportamento”.
the psychologist is recording data obtained from patient interviews and prepare medical steps.
Em geral, uma entrevista psiquiátrica não tem definição formal, mas é uma variante de uma entrevista médica na qual os participantes criam significados para eventos em suas vidas e assim constroem a realidade. Normalmente, o entrevistador controla o assunto dirigindo a discussão com base em perguntas, silêncios e redirecionamento.
Um tipo mais formal de entrevista psiquiátrica é a Entrevista Clínica Estruturada para Transtornos de Personalidade do Eixo II do DSM-IV, SCID-II, desenvolvida em 1997 para determinar se um indivíduo atende aos critérios para um transtorno de personalidade diagnosticável. Isso segue um conjunto de perguntas pré-determinadas, mas ainda tem uma variabilidade baseada no estilo do entrevistador e destina-se a ser usado em conjunto com o “julgamento clínico”.
Os autores, liderados por Maarit Lehtinen da Universidade de Helsinki, destacam as dificuldades de aderir à estrutura médica na qual o objetivo da entrevista é obter informações “factuais” para o diagnóstico, muitas vezes forçando os psiquiatras a transformar o comportamento contextual em um traço intrínseco e estável.
Dentro da psiquiatria, há dois manuais primários para diagnósticos psiquiátricos nos países ocidentais: o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) e a International Statistical Classification of Disease Related to Health Problems (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS). Embora esses manuais tenham recebido muitas críticas, eles continuam sendo o principal uso para o diagnóstico psiquiátrico ocidental.
A ideia de uma personalidade desordenada tem sido altamente contestada. Pesquisas têm apontado que entre os diagnósticos psiquiátricos, que geralmente são construções contestadas, os transtornos de personalidade são especialmente difíceis de serem categorizados. Há questões conhecidas com são a validade de construção, comorbidade e a etiologia. Com relação ao transtorno de personalidade limítrofe, não há um acordo claro sobre se ele deve ser tratado como um transtorno de personalidade ou uma condição de resposta a trauma. Além disso, uma análise da história do transtorno de personalidade anti-social mostrou que os termos e definições mudaram dependendo da influência pessoal do membro do comitê do grupo DSM no processo de decisão.
O estudo atual analisou dez pacientes adultos, gravados em vídeo, durante uma entrevista do SCID-II conduzida por uma enfermeira psiquiátrica em uma clínica ambulatorial na Finlândia. O método focalizou o uso da psicologia discursiva, que é o estudo de questões psicológicas conforme a perspectiva de um participante, assim como a análise de conversas, que é uma abordagem ao estudo da interação social e da linguagem. Os autores argumentam que a aplicação da análise de conversas no campo psiquiátrico permite a investigação de práticas psiquiátricas a partir de uma visão sociológica.
Os resultados revelaram seis tomadas de posição primárias.
Primeiro, os pacientes freqüentemente faziam sentido do seu próprio comportamento de maneira diferente do que o SCID-II prevê; e principalmente consideravam seus comportamentos como um resultado de muitos fatores situacionais.
Em segundo lugar, os pacientes raramente se opunham diretamente ao formato das perguntas da entrevista, mas suas respostas às vezes contrariavam as suposições subjacentes das perguntas.
Terceiro, quando os pacientes excluíam informações sobre a personalidade ao explicar seu comportamento eles estavam se referindo ao contexto social.
Quarto, os pacientes às vezes se referiam a estados internos agudos como fatores importantes que afetavam seu comportamento num contexto específico e, portanto, não o viam como generalizável a outras situações.
Da mesma forma, os pacientes tinham a tendência a pensar que o comportamento toca apenas uma pequena área da vida e não pode ser generalizado com base nisso. Assim, por exemplo, em muitos casos, eles foram capazes de criar um contexto no qual eles se comportavam como se lhes pedia, mas eles não viam isso como uma descrição de sua personalidade geral.
Finalmente, os pacientes não pensavam necessariamente que sua personalidade permanecesse estável durante a vida adulta; pelo contrário, eles poderiam notar mudanças com o passar do tempo devido a experiências de vida. Os autores escrevem”.
“Observamos como os médicos operam dentro da psiquiatria orientada medicamente e, portanto, precisamos isolar a conduta do paciente das variáveis contextuais antes de fazer suas avaliações”.
Embora a pesquisa apresentada não tenha dados causais, ela fornece uma visão observável de como a formulação de um paciente se torna problemática na estrutura de entrevistas do SCID-II. Para caber dentro dos limites da entrevista SCID-II, parte das respostas dos pacientes deve ser reformulada ou ignorada, o que manipula a resposta em linguagem psiquiátrica.
Os autores destacam dois níveis de incerteza em relação aos transtornos de personalidade. Primeiro, a própria construção permanece em questão, incluindo a sobreposição entre transtornos de personalidade e outros sintomas psiquiátricos. Isso leva à questão fundamental de por que certos traços de personalidade estão sendo mantidos como desordens em nossa sociedade e questionando onde se traça a linha entre personalidade “normal” e personalidade “patológica”.
Em segundo lugar, há um problema com o processo diagnóstico, sua objetividade e os fundamentos institucionais das entrevistas SCID-II. Estudiosos têm enfatizado a importância de uma compreensão crítica do diagnóstico psiquiátrico entre profissionais de saúde mental, incluindo a consciência crítica de como diferentes instituições moldam as construções de desordens e manuais, como o do SCID-II, e, portanto, as possíveis conseqüências do diagnóstico de transtorno de personalidade para um paciente.
Para concluir, os autores esperam que a pesquisa aqui apresentada aumente a probabilidade de se desenvolver tal consciência.
****
Lehtinen, M., Voutilainen, L., & Peräkylä, A. (2022). ‘Is it in your basic personality?’ negotiations about traits and context in diagnostic interviews for personality disorders. Health: An Interdisciplinary Journal for the Social Study of Health, Illness, and Medicine, 136345932210947. https://doi.org/10.1177/13634593221094701 (Link)
Quando Mad in America (MIA) recebeu, em junho passado, uma notícia de que Joanna Moncrieff, Mark Horowitz e colegas iriam em breve publicar um artigo concluindo não haver resultados de pesquisa que apoiem a hipótese de depressão causada por baixo teor de serotonina, inicialmente me perguntei se deveríamos nos preocupar em informar sobre isso. Os leitores do Mad sabem bem que a teoria da serotonina baixa já vem sido discutida há muito tempo, com numerosos artigos em nosso site contando esse fato, e por isso respondi ao pessoal do MIA que rever o artigo seria como que “bater em cachorro morto”.
Mas isso é verdadeiro apenas para a bolha da nossa comunidade do Mad. Para grande parte dos principais meios de comunicação, o artigo deles estava sendo considerado uma descoberta impressionante. Na imprensa, rádio e televisão, o artigo foi descrito como uma “descoberta marcante”, como um ” divisor de águas”, e assim por diante, a mídia contando como isso abalava o conhecimento aceito sobre os antidepressivos e “como eles funcionam”.
Isso me pareceu bastante divertido, pois as exclamações de surpresa revelavam o fracasso total da mídia no que se refere às suas reportagens sobre a psiquiatria durante as últimas décadas. A surpresa deles estava servindo como uma confissão tácita de que já vinham há um bom tempo publicando propaganda.
Então, como os psiquiatras estavam publicamente comentando sobre o artigo, apareceu como sendo uma segunda confissão, esta, de fato, de importância “marcante”. Seus comentários estavam servindo como uma admissão de que, nas últimas décadas, a sua profissão havia cometido fraude médica. E estou usando esse termo em seu sentido jurídico.
Como Moncrieff e colegas observaram, há uma extensa linha de pesquisa que não conseguiu encontrar provas que apoiem a teoria da depressão causada pela baixa serotonina. O que há de novo no trabalho deles é que eles fizeram uma revisão abrangente dessa pesquisa, analisando os diferentes “tipos” de estudos que já haviam sido feitos, e descobrindo que todos haviam falhado em produzir provas que apoiassem a teoria. Em resposta, vários psiquiatras proeminentes no Reino Unido e nos Estados Unidos descartaram o artigo como sendo notícia antiga. Aqui está uma amostra:
“As conclusões dessa revisão são realmente sem surpresas. A depressão tem muitos sintomas diferentes e não creio haver encontrado nenhum cientista ou psiquiatra sério que pense que todas as causas da depressão são causadas por um simples desequilíbrio químico na serotonina”. -Michael Bloomfield, University College London (UCL)
“Este documento não apresenta nenhuma descoberta nova, mas apenas relata resultados que foram publicados em outros lugares e certamente não é novidade que a depressão não é causada por ‘baixos níveis de serotonina’ “. -David Curtis, UCL Genetics Institute
De psiquiatras americanos:
“Nada é novo aqui. E o alvoroço em torno do artigo revela muita ignorância sobre a psiquiatria. A hipótese da serotonina para a depressão, que se tornou popular desde os anos 90 até agora, é falsa, e já se sabe que é falsa há muito tempo, e que nunca foi comprovada”. –Nassir Ghaemi, , Faculdade de Medicina da Universidade de Tufts
“Quando eu estava fazendo pesquisa para [meu] livro, eu estava lendo os mesmos estudos que estou certo de que a Dra. Moncrieff e colegas leram, que basicamente diziam que não há evidência direta de uma deficiência de serotonina. Portanto, não é realmente uma novidade”. –Daniel Carlat, editor do relatório da psiquiatria Carlat
Os psiquiatras que fazem esses comentários estão corretos. A comunidade de pesquisa psiquiátrica sabe há muito tempo que a teoria da serotonina baixa não se desenvolveu e que, de fato, o campo há muito tempo passou para novas teorias sobre a possível patologia que dá origem à depressão. No entanto, como é fácil demonstrar, a Associação Psiquiátrica Americana, em concertação com empresas farmacêuticas, promoveu junto ao público a teoria da baixa serotonina, muito depois que a teoria da baixa serotonina havia sido considerada sem mérito. Conselhos consultivos científicos povoados por professores de psiquiatria de prestigiosas escolas médicas também assinaram tais pronunciamentos para associações de defesa dos usários sem fins lucrativos, e dessa maneira, compartilharam a culpabilidade de contar essa “falsidade” ao público.
Essa narrativa fraudulenta funcionou, no sentido de iludir o público. Como Moncrieff e colegas observaram, pesquisas realizadas nos últimos anos constataram que 85% a 90% do público acreditava que a baixa serotonina seria a causa da depressão, e que os antidepressivos ajudariam a corrigir esse desequilíbrio.
Aí se tem a base para uma ação judicial coletiva: a comunidade psiquiátrica há muito tempo sabia que a história da depressão devido à baixa serotonina ainda não tinha sido revelada, mas a Associação Psiquiátrica Americana, as empresas farmacêuticas e os conselhos consultivos científicos informavam ao público o contrário, e isso criou uma crença social nessa falsa história. As pesquisas provam que muitos milhões de pacientes agiram baseados nessa falsidade e a incorporaram ao seu senso de identidade.
O padrão legal para fraudes médicas
Após a Segunda Guerra Mundial, a descoberta de experiências médicas nazistas sobre prisioneiros judeus e doentes mentais levou ao princípio, codificado por lei nos Estados Unidos, do dever de prover voluntários em estudos de pesquisa com o seu consentimento informado. Antes de poderem dar o consentimento, os sujeitos potenciais de estudo precisam ser informados sobre os riscos de uma pesquisa.
Nos anos 50 e 60, esse princípio do consentimento livre e esclarecido foi estendido aos cuidados médicos comuns. O princípio é fundamentado no conceito de autonomia pessoal: o indivíduo tem o direito à autodeterminação. Um caso histórico de 1972 no tribunal federal, Canterbury v. Spence, decidiu que dar consentimento livre e esclarecido aos pacientes não era apenas uma obrigação ética, mas uma obrigação legal. O tribunal escreveu:
“O direito de autodeterminação do paciente molda os limites do dever de revelar. Esse direito só pode ser exercido se o paciente possuir informações suficientes para permitir uma escolha inteligente”.
O tribunal também estabeleceu um padrão para se avaliar se essa obrigação legal havia sido cumprida: “O que um paciente razoável gostaria de saber a respeito da terapia proposta e dos perigos que podem estar inerentes ou potencialmente envolvidos”?
Embora seja o médico ou o profissional de saúde quem é obrigado a obter o consentimento informado do paciente, esse padrão legal impõe claramente um dever ético, por consequêncoa, sobre a especialidade médica que fornece aos médicos individuais as informações que devem ser divulgadas. A especialidade médica deve fornecer aos médicos a melhor contabilidade possível dos riscos e benefícios de qualquer terapia proposta, e em suas comunicações ao público fazer o mesmo.
O diagnóstico de uma doença é obviamente um primeiro passo na obtenção do consentimento livre e esclarecido. Qual é a doença que precisa ser tratada? Se os sintomas que apresentam não levam a um diagnóstico com uma patologia conhecida, ok – a ausência de conhecimento ajuda a informar a tomada de decisão do paciente. Se não se compreende por que um medicamento funciona, ok também. Mais uma vez, a ausência de conhecimento ajuda a informar a tomada de decisão do paciente. Nesse momento, o paciente pode se concentrar nos riscos e benefícios do tratamento proposto: o que os estudos clínicos têm mostrado?
A história do desequilíbrio químico tem violado esses princípios a cada passo. Os pacientes têm sido informados de que têm uma patologia conhecida, e que um antidepressivo reparará essa patologia. Essa é uma história de um antídoto para uma doença, e assim sendo, de um tratamento medicamente necessário. Se um paciente não tomar o antidepressivo, ele ou ela poderá esperar continuar a sofrer de depressão.
Isso não é simplesmente uma falha em dar aos pacientes as informações necessárias para ser feita uma “escolha informada”. Em vez disso, do ponto de vista jurídico, trata-se de um caso em que um paciente é informado por uma mentira.
“Pode-se processar seu médico por mentir, desde que ocorram certas violações do dever de cuidado. O dever de cuidado de um médico é ser verdadeiro sobre o seu diagnóstico, as opções de tratamento e o prognóstico. Se um médico tiver mentido sobre qualquer dessas informações, isso pode ser prova acusatória de uma de má prática médica. A lei considera negligência médica se um médico não fornecer a verdade para o consentimento informado, o que também pode levar a uma ação judicial de violência”.
Negligência médica é a acusação se a ação foi devido à negligência; a violência médica requer que a ação seja intencional. Aqui está como um escritório de advocacia de Washington D.C. descreve a violência médica:
“Quando se visita um médico e ele prescreve um tratamento ou procedimento, um elemento essencial é o seu consentimento. Você tem o direito de saber o que será feito com você, de conhecer o risco ou os efeitos colaterais potenciais de um procedimento, e de ser informado de quaisquer opções alternativas de tratamento disponíveis para você . . . A violência médica ocorre quando o médico ou outro profissional médico viola o seu direito de decidir que tipos de tratamentos médicos você receberá e quais não deseja receber”.
A FDA, evidentemente, aprovou a prescrição de antidepressivos para depressão. E pode ser que muitos prescritores individuais que disseram a seus pacientes que os antidepressivos consertavam um desequilíbrio químico pensassem que isso era verdade. Eles acreditavam estar dando aos pacientes o “consentimento informado”.
Como tal, nesse caso da história do desequilíbrio químico, a má prática médica e a agressão podem ser entendidas como não necessariamente originadas na interação médico-paciente, mas sim na narração de uma história falsa ao público feita pela Associação Psiquiátrica Americana (APA) e empresas farmacêuticas que conscientemente promoveram essa falsidade. Os psiquiatras acadêmicos que serviram nos conselhos consultivos científicos de organizações sem fins lucrativos que venderam essa história compartilham igualmente dessa culpa coletiva.
A Trilha da Fraude
Como é sabido, a teoria da depressão devido à baixa serotonina teve suas raízes em descobertas, datadas dos anos 60, que a primeira geração de antidepressivos, tricíclicos e inibidores da monoamina oxidase, ambos impediriam remoção usual da fenda sináptica entre neurônios de neurotransmissores conhecidos como monoaminas. Isso levou os pesquisadores, em 1965, a supor que um déficit de monoaminas poderia ser uma causa de depressão.
Uma vez que essa hipótese foi formulada, os pesquisadores passaram então a procurar determinar se os pacientes com depressão realmente sofreriam de uma deficiência de monamina. É um histórico de um achado negativo atrás do outro.
Já em 1974, os pesquisadores concluíram que todos esses estudos até aquele momento indicavam que “o esgotamento no cérebro da norepinefrina, dopamina ou serotonina não é em si mesmo suficiente para explicar o desenvolvimento da síndrome clínica da depressão”. Essa foi a primeira rodada de descobertas, e depois disso houve especulação de que um déficit de monoamina poderia estar presente em um subconjunto de pacientes deprimidos (em vez de ser uma patologia comum a todos esses pacientes.) Em 1984, o NIMH realizou um estudo para investigar essa possibilidade. Mais uma vez, os resultados foram negativos, o que levou os pesquisadores da NIMH a concluir que “as elevações ou decréscimos no funcionamento dos sistemas serotonérgicos não são passíveis de serem associados à depressão”.
Naquele momento, a hipótese já existia há quase duas décadas e era considerada insuficiente. Na comunidade de pesquisa, havia a sensação de que a hipótese sempre tinha apresentado um quadro excessivamente redutor de como o cérebro funciona, e assim não foi uma surpresa que a pesquisa não tivesse dado suporte à hipótese. Mesmo assim, depois daquele relatório de 1984, os investigadores continuaram a estudar se os pacientes deprimidos sofriam de baixa serotonina, com essa linha de pesquisa se acelerando depois que Prozac chegou ao mercado em 1988. Muitos métodos diferentes de investigação foram experimentados, porém mais uma vez os resultados sendo negativos. A hipótese foi oficialmente enterrada pela Associação Psiquiátrica Americana em 1999, quando esta publicou a terceira edição de seu Manual de Psiquiatria. Os autores de uma seção sobre os transtornos de humor chegaram até a apontar a lógica errada que tinha levado à teoria do desequilíbrio químico da depressão. Eles escreveram:
“A hipótese da monoamina, que foi proposta pela primeira vez em 1965, sustenta que monoaminas como a norepinefrina e a 5-HT [serotonina] são deficitárias na depressão e que a ação dos antidepressivos depende do aumento da disponibilidade sináptica dessas monoaminas. A hipótese da monoamina foi baseada em observações de que os antidepressivos bloqueiam a inibição da recaptação de norepinefrina, 5-HT, e/ou dopamina. Entretanto, inferir a patofisiologia dos neurotransmissores a partir de uma ação observada de uma classe de medicamentos sobre a disponibilidade de neurotransmissores é semelhante a concluir que porque a aspirina causa sangramento gastrointestinal, as dores de cabeça são causadas por excesso de sangue e a ação terapêutica da aspirina nas dores de cabeça envolve perda de sangue. A experiência adicional não confirmou a hipótese de esgotamento da monoamina ” [1].
Outros especialistas na área fizeram eco a esse fato nos próximos anos. Em seu livro de 2000 Essential Psychopharmacology, o psiquiatra Stephen Stahl escreveu que “não há evidência clara e convincente de que a deficiência de monoamina seja responsável pela depressão; ou seja, não há déficit “real” de monoamina ” [2].
Mais confissões desse tipo apareceram na literatura de pesquisa, e finalmente, em um artigo de 2010, Eric Nestler, famoso por seu trabalho sobre a biologia dos distúrbios mentais, detalhou como os muitos tipos de inquéritos sobre a teoria da serotonina baixa tinham chegado à mesma conclusão:
“Depois de mais de uma década de estudos PET (posicionados adequadamente para medir quantitativamente o número de receptores e transportadores e a ocupação), estudos de esgotamento de monoamina (que transitória e experimentalmente reduzem os níveis de monoamina cerebral), bem como análises de associação genética examinando polimorfismos em genes monoaminérgicos, há poucas evidências para implicar em verdadeiros déficits na neurotransmissão serotonérgica, noradrenérgica ou dopaminérgica na fisiopatologia da depressão. Isso não é surpreendente, pois não há nenhuma razão a priori para que o mecanismo de ação de um tratamento seja o oposto da fisiopatologia da doença”.
Essa é a história da pesquisa que os psiquiatras hoje, quando solicitados a comentar sobre o trabalho de Moncrieff, estão comentando quando afirmam, “não há nada de novo aqui”. Eles estão certos. A teoria foi abandonada há muito tempo. Num blogue de 2011, Ronald Pies, editor do Psychiatric Times, a publicação comercial da Associação Psiquiátrica Americana, colocou assim: “Na verdade, a noção de ‘desequilíbrio químico’ sempre foi uma espécie de lenda urbana – nunca foi uma teoria seriamente defendida por psiquiatras bem informados”.
Do ponto de vista jurídico, a publicação pela APA da terceira edição de seu Manual de Psiquiatria, em 1999, é o momento central dessa história. Até aquele momento, podia-se argumentar que enquanto a biologia da depressão permanecia desconhecida, uma hipótese era que ela se devia à baixa serotonina, e que ainda havia esforços para ver se isso poderia ser verdade. Entretanto, depois daquela data, a APA, as companhias farmacêuticas e os psiquiatras acadêmicos que povoavam os conselhos consultivos científicos tinham a obrigação de informar ao público que a teoria da baixa serotonina não havia sido divulgada. Se ao invés disso esses três grupos informaram ao público que pacientes deprimidos sofriam de um desequilíbrio químico que poderia ser corrigido por um medicamento, eles estiveram deliberadamente dizendo ao público uma mentira, e assim, por padrões de consentimento livre e esclarecido, eles seriam cúmplices de negligência médica e da violência médica aos pacientes.
E é fácil documentar que foi exatamente isso que a APA, as empresas farmacêuticas e os conselhos consultivos científicos fizeram.
A Promoção da História do Desequilíbrio Químico da APA
A promoção da teoria do desequilíbrio químico dos transtornos mentais por parte da APA pode ser traçada desde 1980, quando ela publicou a terceira edição de seu Manual de Diagnóstico e Estatística. Essa publicação é regularmente caracterizada como sendo um momento transformador para a psiquiatria americana, quando a APA passou a adotar um modelo de “doença” para diagnóstico e tratamento de transtornos psiquiátricos.
Não houve nenhuma descoberta científica que tenha estimulado essa transformação. O impulso científico que estava presente surgiu do fracasso do DSM II: os diagnósticos daquela edição eram entendidos como com “falta de confiabilidade e validade”. Isso levou uma equipe de pesquisadores da Universidade de Washington em St. Louis a defender que a psiquiatria deveria começar de novo: ela poderia desenvolver categorias para agrupar pacientes com sintomas semelhantes, com a esperança de que pesquisas subsequentes “validassem” os agrupamentos como doenças reais. O DSM II seria abandonado e novas categorias seriam elaboradas para fins de pesquisa.
No entanto, durante os anos 70, os dirigentes da APA falaram de como, diante de várias críticas, a psiquiatria estava lutando por sua sobrevivência. Seu manual de diagnóstico foi entendido como não tendo validade; psicólogos e conselheiros estavam oferecendo terapias de conversação que pareciam ser tão eficazes quanto a psicanálise; Um Estranho no Ninho descreveu o pessoal dos hospitais psiquiátricos como sendo os verdadeiramente loucos; e um movimento “antipsiquiátrico” caracterizou a psiquiatria como sendo uma agência de controle social.
A crítica que mais causou impacto foi que os psiquiatras não eram “médicos de verdade”. Havia uma solução óbvia sendo acenada: se eles adotassem um modelo de doença, poderiam se apresentar como médicos que tratavam de doenças reais. Isso lhes permitiria vestir o “jaleco branco” – tanto figurativa como literalmente – que a sociedade reconhecia como sendo o traje dos médicos “de verdade”.
O DSM III, disse o presidente da APA, Jack Weinberg, em 1977, “esclareceria a qualquer um que pudesse estar em dúvida que nós consideramos a psiquiatria como uma especialidade da medicina”. [3]
Logo após o DSM III haver sido publicado, a APA se propôs a comercializar o seu novo modelo de doença ao público. Em 1981, ela criou uma “divisão de publicações e marketing” para “aprofundar a identificação médica dos psiquiatras”. Nesse mesmo ano, criou uma editora para levar “os melhores talentos e conhecimentos atuais da psiquiatria ao público leitor”. Desenvolveu uma lista nacional de especialistas para promover esse modelo de doença, e criou um “instituto de assuntos públicos” para dirigir workshops que treinariam os seus membros “em técnicas para lidar com o rádio e a televisão ” [4].
Esse esforço de relações públicas falava de uma revolução na psiquiatria, com a mídia sendo informada de que os pesquisadores estavam descobrindo as próprias “moléculas” que causavam os sintomas psiquiátricos. A APA realizava “dias de mídia” para promover esse entendimento, com prêmios dados à mídia que reportasse sobre essa revolução, e logo jornais e revistas estavam escrevendo histórias sobre os avanços extraordinários que anunciavam um dia em que transtornos mentais poderiam ser “curados”.
O Baltimore Sun, numa série de sete partes intitulada “The Mind-Fixers”, que ganhou um Prêmio Pulitzer de jornalismo expositivo em 1984, descreveu a revolução dessa maneira:
“Durante mais de uma década, psiquiatras pesquisadores trabalharam tranquilamente em laboratórios, dissecando o cérebro de ratos e homens, e tentando descobrir as fórmulas químicas que desvendem os segredos da mente. Agora, nos anos 80, o trabalho deles está dando frutos. Eles estão identificando rapidamente as moléculas interligadas que produzem o pensamento e a emoção humana… Como resultado, a psiquiatria hoje está no limiar de se tornar uma ciência exata, tão precisa e quantificável quanto a genética molecular. À frente está uma era de engenharia psíquica e o desenvolvimento de drogas e terapias especializadas ” [5].
As empresas farmacêuticas, é claro, ficaram entusiasmadas com a adoção pela APA de um modelo de doença, pois entenderam que isso iria expandir muito o mercado para os seus medicamentos, e começaram a canalizar dinheiro para a APA e para psiquiatras em centros médicos acadêmicos para apoiar esse esforço de relações públicas.
A história do desequilíbrio químico serviu, em essência, como a mordida sonora que melhor poderia vender esse modelo de doença para o público. Era uma afirmação que se encaixava numa narrativa mais ampla para a sociedade sobre a evolução da medicina no século XX: insulina como tratamento para diabetes, antibióticos para doenças infecciosas, uma vacina contra a pólio, e assim por diante. Agora seria a vez da psiquiatria tomar o seu lugar à frente desse desfile.
O público começou a ouvir essa notícia logo após a publicação do DSM III. Em 1981, um artigo da Associated Press com uma entrevista com o psiquiatra da Universidade de Chicago, Herbert Meltzer, informou aos leitores que “pesquisadores acreditam que a depressão clínica é causada por um desequilíbrio químico no cérebro”, e que já havia duas drogas em desenvolvimento que “restauravam o desequilíbrio químico” ao normal. [6]
Três anos mais tarde, Nancy Andreasen, que logo se tornaria editora-chefe do American Journal of Psychiatry, publicou um livro best-seller intitulado The Broken Brain: The Biological Revolution“. O novo entendimento na psiquiatria, escreveu ela, era que “as principais doenças psiquiátricas são doenças”, e que cada “doença diferente tem uma causa específica diferente … há muitas pistas de que a doença mental é devida a desequilíbrios químicos em seu cérebro e que o tratamento envolve a correção desses desequilíbrios químicos”. [7]
Em 1988, Eli Lilly trouxe Prozac ao mercado e logo o público estava ouvindo que esse “inibidor seletivo de recaptação de serotonina” restabelecia a serotonina a níveis normais, e assim era como “insulina para diabetes”. A revista New York apresentou a pílula em sua manchete de capa: “Bye, Bye Blues” [8]. A Newsweek também o fez, com essa manchete: “Prozac, uma droga revolucionária para a depressão “[9].
As histórias publicadas em revistas e jornais contavam como os pacientes estavam se sentindo melhor do que nunca. Na primavera de 1990, o New York Times, em um artigo de Natalie Angier, que era sem dúvida a escritora científica mais conhecida da nação, informou aos leitores que “todos os antidepressivos funcionam restaurando o equilíbrio da atividade dos neurotransmissores no cérebro, corrigindo um excesso ou inibição anormal dos sinais eletroquímicos que controlam o humor, pensamentos, apetite, dor e outras sensações”. Essa nova droga, disse o Dr. Francis Mondimore a Angier, “não é como o álcool ou o Valium”. É como os antibióticos”.
Os programas de televisão tiveram o seu peso com uma mensagem semelhante, e no 60 Minutes, Lesley Stahl contou a história inspiradora de uma mulher, Maria Romero, que, depois de uma década de depressão horrível, havia renascido graças ao Prozac. “Alguém, algo deixou meu corpo e outra pessoa entrou”, disse Romero. Stahl explicou a cura biológica que estava em andamento: “A maioria dos médicos acredita que a depressão crônica como a de Romero é causada por um desequilíbrio químico no cérebro. Para corrigi-la, os médicos lhe receitaram Prozac “[10].
As vendas do Prozac aumentaram, como outras companhias farmacêuticas trouxeram novos antidepressivos “ISRS” ao mercado – Zoloft, Paxil, Celexa, Lexapro, e assim por diante – elas se basearam no desequilíbrio químico para comercializar os seus produtos. A National Alliance on Mental Illness (Aliança Nacional contra Doenças Mentais) cresceu em proeminência durante esse período; sua mensagem central era que os transtornos psiquiátricos seriam doenças causadas por desequilíbrios químicos no cérebro, e que os medicamentos psiquiátricos corrigiam esses desequilíbrios.
Source: Lacasse JR, & Leo J. (2005). Serotonin and Depression: A Disconnect between the Advertisements and the Scientific Literature. PLoS Med 2(12): e392. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.0020392
A população americana, e as populações do mundo inteiro, vieram a entender essa história como sendo verdade científica. O novo milênio chegou; embora o próprio livro didático da APA tivesse declarado a teoria da baixa serotonina morta e enterrada, a APA publicamente redobrou a aposta na história do desequilíbrio químico, informando ao público que agora ela estava provada.
“Na última década, a pesquisa neurocientífica e psiquiátrica começou a desvendar os segredos do cérebro”, escreveu o presidente da APA, Richard Harding, em um artigo publicado em 2001 no Family Circle. “Sabemos agora que doenças mentais – como depressão ou esquizofrenia – não são ‘fraquezas morais’ ou ‘imaginárias’, mas doenças reais causadas por anormalidades da estrutura cerebral e desequilíbrios de produtos químicos no cérebro ” [11]
No mesmo número, o futuro presidente da APA, Nada Stotland, informou aos leitores que os antidepressivos “restauram a química cerebral ao normal”.
E o público acreditava. Em 4 de maio de 2005, a APA emitiu um comunicado de imprensa celebrando o fato de que uma pesquisa por ela realizada havia constatado que “75% dos consumidores acreditam que as doenças mentais são geralmente causadas por um desequilíbrio químico no cérebro”. Isso, disse o presidente da APA, Steven Sharfstein, era uma evidência de “boas notícias para a compreensão [pública] da saúde mental”. Um psiquiatra, o comunicado de imprensa observou de maneira útil, era “um especialista especificamente treinado para diagnosticar e tratar desequilíbrios químicos”.
Nesse mesmo ano, a APA publicou a sua brochura “Let’s Talk Facts about Depression” (Falemos de Depressão), que transmitia a mesma mensagem: “Os antidepressivos podem ser prescritos para corrigir os desequilíbrios nos níveis de agentes químicos no cérebro”.
O “website de educação pública” da APA continuou a informar sobre os desequilíbrios químicos durante os próximos 16 anos. Por fim, no início de 2021, Ronald Pies escreveu que finalmente havia conseguido que a APA “apagasse” essa mensagem.
Mesmo assim, o website da APA ainda conta ao público uma versão dessa história. Os visitantes de uma página intitulada “What is Depression” aprendem que “a química cerebral pode contribuir para a depressão de um indivíduo e pode ser um fator para o seu tratamento”. Por essa razão, os antidepressivos podem ser prescritos para modificar a química cerebral de um indivíduo”.
Os Conselhos Consultivos Científicos
Nos anos 80 e 90, as empresas farmacêuticas – e a Associação Psiquiátrica Americana – perceberam que organizações sem fins lucrativos de defesa, como a Aliança Nacional contra Doenças Mentais, poderiam ajudá-las a vender o seu modelo de doença ao público e informar o público sobre a eficácia dos medicamentos psiquiátricos. O dinheiro farmacêutico fluiu para a NAMI e outras organizações de defesa, e logo os psiquiatras acadêmicos que serviam como líderes de pensamento da indústria estavam povoando os conselhos consultivos científicos dos grupos de defesa sem fins lucrativos.
Em um blog de 2014 publicado no Mad in America, Philip Hickey identificou três organizações de consumidores proeminentes que informaram ao público que a depressão era devida a um desequilíbrio químico, e publicou os nomes dos psiquiatras que serviram em seus conselhos consultivos científicos. Aqui está a lista:
Fundação Bipolar da Criança e do Adolescente
Joseph Biederman, MD, Professor de Psiquiatria na Faculdade de Medicina de Harvard
Gabrielle Carlson, MD, Professora de Psiquiatria e Pediatria, Diretora de Psiquiatria da Criança e do Adolescente, Universidade Estadual de Stonybrook
Kiki Chang, MD, Professora Associada e Diretora do Programa de Transtornos Bipolares Pediátricos, Psiquiatria da Criança e do Adolescente, Universidade de Stanford
Melissa DelBello, MD, Professora de Psiquiatria e Pediatria, Universidade de Cincinnati
Robert L. Findling, MD, Professor de Psiquiatria de Crianças e Adolescentes, Case Western Reserve University
Janet Wozniak, MD, Professora Assistente de Psiquiatria, Faculdade de Medicina de Harvard
Aliança da Depressão e Apoio Bipolar
Gregory E. Simon, MD, MPH, Psiquiatra e Investigador Sênior, GroupHealth Research Institute, Seattle
Michael E. Thase, MD, Professor de Psiquiatria. Universidade de Pittsburgh
Mark S. Bauer, MD, Professor Associado de Psiquiatria, Brown University School of Medicine
Joseph R. Calabrese, MD, Professor de Psiquiatria e Diretor do Programa de Distúrbios do Humor, Case Western Reserve University
David J. Kupfer, MD, Professor e Presidente do Departamento de Psiquiatria, Universidade de Pittsburgh
George S. Alexopoulos, MD, Professor de Psiquiatria, Universidade Cornell
Gary Sachs, MD, Diretor, Programa de Pesquisa Bipolar, Universidade de Harvard
Mark A. Frye, MD, Professor de Psiquiatria, Clínica Mayo
J. Raymond DePaulo Jr. MD, Professor de Psiquiatria, Johns Hopkins
William Beardslee, MD, Psychiatrist-in-Chief, Children’s Hospital, Boston.
NAMI
Nancy Andreasen, Doutora, Presidente de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Iowa
Ellen Frank, PhD, professora de Psiquiatria e Psicologia na Faculdade de Medicina da Universidade de Pittsburgh
David Kupfer, Doutor, Professor de Psiquiatria e Professor de Neurociência da Faculdade de Medicina da Universidade de Pittsburgh
Jeffrey Lieberman, MD, Chair of Psychiatry, Columbia University e Diretor do Instituto de Psiquiatria do Estado de Nova York
Henry Nasrallah, MD: Reitor Associado; Professor de Psiquiatria e Neurociência, Universidade de Cincinnati
Charles Nemeroff, MD: Chair of Psychiatry and Behavioral Sciences, University of Miami Health System
S. Charles Schulz, MD: Professor e Presidente, Departamento de Psiquiatria, Faculdade de Medicina da Universidade de Minnesota.
Os nomes na lista constituíam um “quem é quem” de proeminentes psiquiatras acadêmicos daquela época, muitos dos quais eram conhecidos por terem recebido centenas de milhares de dólares por seus serviços de “líder de pensamento” para a indústria. A voz deles era uma voz coletiva informando ao público americano que a depressão era devida a um desequilíbrio químico, que podia ser tratado com sucesso por antidepressivos que ajudavam a corrigir esse desequilíbrio. Quinze anos após a APA ter declarado morta a teoria da serotonina baixa, os antidepressivos – nesses sites – ainda estavam sendo apresentados como antídoto para uma doença.
Embora muitas organizações de consumidores tenham agora eliminado tais alegações de seus sites, elas não desapareceram completamente. Por exemplo, o website do Child Mind Institute, numa página intitulada “Medication for Kids with Depression,” fornece essa descrição de antidepressivos:
O fundador do Child Mind Institute é um dos mais proeminentes psiquiatras infantis dos Estados Unidos, Harold Koplewicz. Ele é presidente do Departamento de Psiquiatria da Criança e do Adolescente da Escola de Medicina da NYU e tem sido editor-chefe do Journal of Child and Adolescent Psychopharmacology desde 1997. Uma missão primária do Instituto Child Mind, em sua página de perfil, diz: “educar e capacitar os pais, fornecendo informações e recursos confiáveis”.
Empresas Farmacêuticas
Como todos aqueles que assistiram à televisão na primeira década do novo milênio sabem, as empresas farmacêuticas usaram a história do desequilíbrio químico para vender seus antidepressivos. A Pfizer, por exemplo, inundou os canais com seu anúncio “Sad Blob” , e se prestarem atenção, verão que a Pfizer sabe que a história do desequilíbrio químico é infundada. No entanto, ela usa a história química para vender a sua droga de qualquer maneira. Ela realizava esse truque verbal em duas breves frases: “Enquanto a causa (da depressão) é desconhecida, a depressão pode estar relacionada a um desequilíbrio de produtos químicos naturais do cérebro entre as células nervosas do cérebro. A prescrição Zoloft trabalha para corrigir esse desequilíbrio”.
O anúncio fecha com esse lembrete: “Quando você souber mais sobre o que está errado, poderá ajudar a corrigi-lo”.
Tal é o rastro de fraude que os advogados poderiam apresentar se montassem um processo de ação coletiva. Eles poderiam detalhar como existe uma longa linha de pesquisa, que remonta aos anos 70, que não conseguiu descobrir que a baixa serotonina seria uma causa da depressão. Eles poderiam mostrar que em 1999 o próprio livro da APA declarou a teoria morta e enterrada. E então eles poderiam detalhar como a APA, os conselhos consultivos científicos de organizações de defesa e empresas farmacêuticas continuaram a promover a teoria do desequilíbrio químico depois disso, com antidepressivos apresentados como medicamentos que fixavam os desequilíbrios químicos. Essa promoção contínua é uma evidência de que a partir de 1999 esses três grupos estavam promovendo conscientemente uma falsidade, sobre a qual se poderia esperar que os pacientes agissem.
Isso é uma evidência de fraude médica – e, pode-se dizer, uma violência médica em grande escala.
A Outra Metade da História do Desequilíbrio Químico
Embora os pesquisadores não tenham descoberto que as pessoas diagnosticadas com depressão tinham sistemas anormais de serotonina antes de tomar um antidepressivo, eles descobriram que os compostos induzem a própria hipótese de anormalidade a causar o transtorno.
O mecanismo básico de um ISRS é bem conhecido. Quando um neurônio pré-sináptico libera serotonina no pequeno espaço entre os neurônios (conhecido como fenda sináptica), as moléculas de serotonina se ligam com receptores no neurônio pós-sináptico, e então, em um flash, a serotonina é removida da sinapse. Uma enzima metaboliza uma pequena quantidade da serotonina; o resto é rapidamente bombeado de volta ao neurônio pré-sináptico, entrando por um canal conhecido como SERT. Em um artigo de 1975, os cientistas da Eli Lilly relataram que a fluoxetina, o composto que seria comercializado como Prozac, bloqueia esse processo de reabsorção, causando uma ” acumulação de serotonina na sinapse”.
No entanto, o neurônio pré-sináptico tem “autorreceptores” em sua membrana terminal que monitoram os níveis de serotonina na sinapse e, com os níveis de serotonina se acumulando, esses autorreceptores começam a gritar, como disse um cientista, “desligue a máquina de serotonina”. Os neurônios pré-sinápticos começam a disparar a uma velocidade menor, enquanto os neurônios pós-sinápticos diminuem a densidade de seus receptores de serotonina.
Em outras palavras, a droga coloca o acelerador na transmissão serotonérgica; e o cérebro responde, colocando o freio.
Com o tempo, outras mudanças podem entrar em ação. Há loops de feedback que conectam diferentes sistemas neurotransmissores uns aos outros, e assim essa resposta inicial à droga é provavelmente um prelúdio para uma série de mudanças posteriores que ainda precisam ser identificadas. No entanto, a resposta inicial à fluoxetina foi dada mais cedo; e ela contou como a fluoxetina, em vez de normalizar as vias serotonérgicas, induz profundas anormalidades nesse sistema.
Em 1996, o diretor da NIMH, Steven Hyman, publicou um artigo intitulado “Iniciação e Adaptação”: Um Paradigma para a Compreensão da Ação Psicotrópica de Drogas” – [“Initiation and Adaptation: A Paradigm for Understanding Psychotropic Drug Action” -,que falava de como todas as drogas psiquiátricas poderiam ser compreendidas como criadoras de anormalidades no funcionamento do cérebro.
As drogas psiquiátricas, escreveu ele, criam “perturbação na função neurotransmissora”. Em resposta a essa perturbação, o cérebro passa por uma série de adaptações compensatórias; e em cada caso, a adaptação imediata é para que o cérebro se oponha aos efeitos da droga. Um antipsicótico bloqueia a transmissão da dopamina e, em resposta, as vias dopaminérgicas do cérebro se transformam, pelo menos por algum tempo. Um antidepressivo aumenta os níveis serotonérgicos na sinapse, e em resposta, o cérebro coloca um freio em suas vias serotonérgicas. Essas adaptações compensatórias, escreveu Hyman, “estão enraizadas em mecanismos homeostáticos que existem, presumivelmente, para permitir que as células mantenham o seu equilíbrio diante de alterações no ambiente ou mudanças no mileu interno”.
Hyman estava descrevendo mudanças adaptativas conhecidas como “tolerância oposta” a uma droga. E ele continuou a explicação: depois de um período de tempo a “administração crônica” da droga causa “alterações substanciais e duradouras na função neural”. Como parte desse processo, há mudanças nas vias de sinalização intracelular e na expressão gênica. Depois de algumas semanas, concluiu ele, o cérebro da pessoa está funcionando de uma maneira “qualitativa e quantitativamente diferente do estado normal”.
“Qualitativa e quantitativamente diferente” do que o normal. De fato, dois cientistas do Eli Lilly, Ray Fuller e David Wong, desde cedo observaram que a fluoxetina, por haver perturbado as vias serotonérgicas, poderia ser usada para estudar “o papel dos neurônios da serotonina em várias funções cerebrais – comportamento, sono, regulação da liberação de hormônios pituitários, resposta à dor e assim por diante”. Para conduzir tais experimentos, os pesquisadores poderiam administrar fluoxetina a animais para observar quais funções ficariam comprometidas. O esperado era que patologias aparecessem.
Tal era o estado do conhecimento científico sobre os antidepressivos enquanto tratamento para a depressão, no final dos anos 90. Não havia evidência de que pacientes deprimidos sofressem de baixa serotonina antes de tomarem um antidepressivo; mas a pesquisa tinha mostrado que uma vez que o fizessem, seu cérebro começaria a funcionar de uma maneira “qualitativa e quantitativamente diferente do estado normal”.
Os antidepressivos foram promovidos ao público como “agentes normalizantes”, quando na verdade os pesquisadores sabiam que eles eram agentes “anormalizantes”.
Danos causados
Em suas respostas ao trabalho de Moncrieff, muitos psiquiatras deram a entender um argumento: é “sem dano, sem falta”. “Os antidepressivos funcionam”, disseram eles; e assim a prescrição de antidepressivos seria uma prática útil, mesmo que houvesse alguma confusão sobre a causa da depressão e sobre o que as drogas faziam.
Eis como o psiquiatra de Massachusetts, Daniel Carlat, o colocou em sua entrevista no programa “On Point” da National Public Radio:
“Os médicos não sabem exatamente como funcionam (os antidepressivos). Os pacientes querem saber se há uma explicação. E há momentos em que temos que dar-lhes uma explicação resumida, mesmo que ela não seja totalmente precisa”.
Em termos de danos causados pelo desequilíbrio químico, que um antidepressivo reduz os sintomas do paciente durante algum período de tempo isso está fora de questão. A história do desequilíbrio químico informa ao paciente que ele ou ela sofre de uma patologia cerebral, que requer tratamento com um medicamento que trata essa patologia. Essa é uma história de diagnóstico que muda o senso de identidade de um paciente e a compreensão de sua própria mente. Além disso, o método de tratamento é concebido para mudar a maneira como o indivíduo responde emocionalmente ao mundo – esta é uma intervenção de um tipo muito profundo.
Na verdade, a decisão de tomar um antidepressivo coloca o paciente em um rumo de vida diferente. A decisão coloca uma pessoa num caminho de um futuro medicado; ao contrário da vida que a pessoa conhecia antes e da vida que a pessoa poderia ter se buscasse alguma outra forma de tratamento não-médico. Nesse sentido, a decisão de tomar ou não um antidepressivo age como o proverbial bifurcamento na estrada – duas vidas diferentes se estendem adiante.
Esse é o mal feito quando a história do desequilíbrio químico é contada aos pacientes que procuram ajuda para a depressão: Eles tomam uma decisão profunda sobre o seu futuro com base em uma mentira.
A história do desequilíbrio químico também tem feito mal ao nível social. Refaz o nosso senso coletivo de nós próprios.
Antes da chegada de Prozac ao mercado, uma pesquisa da NIMH constatou que apenas 12% dos adultos americanos diziam que tomariam um comprimido para tratar a depressão. Foi uma pesquisa que falou de um público que entendia, em algum nível, que experimentar períodos de sofrimento era normal; que a vida tinha seus altos e baixos; que muitas vezes as pessoas podem recorrer a uma resiliência interior – e apoio ambiental – para conduzi-los para fora do túnel de escuridão.
Mas depois veio a venda do modelo da doença psiquiátrica; e em ordem bastante rápida o público veio a ver a natureza humana sob uma nova luz: nosso humor seria dirigido por uma molécula chamada serotonina; e se uma pessoa experimentava depressão, tinha, nas palavras de Nancy Andreasen, um “cérebro partido”.
Essa é uma concepção que também abafa os esforços políticos para se criar uma sociedade que sustente melhor o bem-estar mental e emocional. A história do desequilíbrio químico colocou a causa da depressão dentro do cérebro do indivíduo, que se enquadra numa agenda neoliberal, mas produz uma cegueira nas condições sociais que promovem o sofrimento e a depressão: pobreza, falta de acesso a moradia digna, falta de apoio aos cuidados infantis, e assim por diante.
Como escreveu Moncrieff, as pesquisas constataram que mais de 85% do público chegou a acreditar que a depressão é causada pela baixa serotonina. Esse número fala de uma conspiração – por uma corporação, empresas farmacêuticas e psiquiatras acadêmicos – que traiu profundamente a nossa sociedade. Contaram-nos uma história, ainda que as suas próprias pesquisas tenham se mostrado falsas; e o fizeram porque isso beneficiava os interesses da corporação psiquiátrica e os interesses financeiros das companhias farmacêuticas. Quanto aos membros dos conselhos científicos, eles estiveram assinando uma história que os mantinha em boa posição enquanto “líderes de pensamento” da indústria.
Do ponto de vista jurídico, não importa realmente se “os antidepressivos funcionam”. Mentir para os pacientes e para a sociedade é uma forma de violência médica, e qualquer possível benefício terapêutico não desculpa essa decepção. No entanto, quando se examina essa alegação de que “os antidepressivos funcionam”, pode-se ver que se trata de uma continuação da falsa comercialização desses medicamentos.
Os antidepressivos funcionam?
Quando se diz ao público que um medicamento “funciona”, o público está sendo levado a acreditar que a maioria das pessoas que tomam o medicamento pode esperar receber um benefício. Um antibiótico, por exemplo, é um medicamento que pode ser dito que “funciona”. Quando a penicilina e outros antibióticos foram introduzidos nos anos 40, eles curaram infecções bacterianas e um grande número de doenças bacterianas: pneumonia, escarlatina, difteria e tuberculose, para citar algumas. Mas não se pode dizer que um antidepressivo funcione dessa maneira.
O que se pode dizer é que existem estudos clínicos que fornecem informações sobre os possíveis riscos e benefícios dos antidepressivos; tanto a curto como a longo prazo. As informações relevantes podem ser agrupadas em três tipos.
Ensaios controlados por placebo
Quando os psiquiatras afirmam que os antidepressivos “funcionam”, eles estão citando, em sua maioria, os achados de ensaios financiados pela indústria dos medicamentos. Metanálises desses ensaios de curto prazo descobriram que a diferença na redução dos sintomas entre os grupos tratados e placebo é de cerca de dois pontos na escala de classificação de Depressão Hamilton de 52 pontos. Embora essa diferença possa ser estatisticamente significativa, ela é de significância clínica questionável.
A melhor maneira de se entender essa diferença é olhar para o tamanho de seu efeito. Em nível individual, as respostas caem ao longo de uma curva; uma visualização do tamanho do efeito revela como as curvas para os grupos tratados com placebo e drogas são diferentes. Os pesquisadores concluíram que o “tamanho do efeito” nos testes da indústria é 0,3 (o tamanho do efeito pode variar de 0 a 3,0).
Como o gráfico abaixo revela, quando um tratamento tem um tamanho de efeito de 0,3, há uma sobreposição de 88% nas curvas dos dois grupos. Isso significa que se precisa tratar oito pessoas com um antidepressivo para produzir uma pessoa adicional que se beneficie do tratamento. Sete das oito pessoas tratadas com o medicamento serão expostas aos efeitos adversos do medicamento sem nenhum benefício adicional além do placebo.
Graphic by Kristoffer Magnusson, http://rpsychologist.com/de/cohend/
Estudos no Mundo-Real
Os ensaios financiados pela indústria são tipicamente conduzidos em um subconjunto de pacientes que provavelmente responderiam bem ao medicamento (sem comorbidades e assim por diante), e assim entendidos para não necessariamente refletir os resultados na população em geral. Estudos em pacientes do “mundo real”, que nos Estados Unidos são geralmente financiados pelo Instituto Nacional de Saúde Mental, não são tipicamente controlados por placebo, mas simplesmente procuram avaliar qual a porcentagem de pacientes respondem, de uma maneira significativa, ao tratamento.
Esses estudos têm relatado taxas de “resposta” a antidepressivos mais baixas do que os estudos financiados pela indústria, e particularmente taxas baixas de permanência.
Em um estudo de 2004 com 118 pacientes do mundo real tratados com um antidepressivo, apenas 26% dos pacientes “responderam” ao tratamento (o que significa que os seus sintomas diminuíram pelo menos 50% numa escala de classificação), e menos de 13% estavam em remissão ao final de 12 meses. Essas descobertas, os investigadores concluíram, “revelam taxas de resposta e remissão notavelmente baixas”.
O estudo STAR*D financiado pelo NIMH, que foi anunciado como o maior estudo com antidepressivo já conduzido, produziu resultados igualmente pobres em pacientes do “mundo real”. Os 4.041 pacientes inscritos no estudo foram dispensados até quatro estudos sobre um antidepressivo para encontrar um que levou à remissão (definida como uma pontuação abaixo de 7 na escala de Hamilton), e apenas 38% alcançaram esse nível de melhora.
Aqueles que remeteram, eles foram então levados a um estudo de acompanhamento de longo prazo, onde obteriam os melhores cuidados clínicos possíveis. No entanto, ao final de um ano, apenas 108 dos 4.041 pacientes que entraram no estudo STAR*D tinham sido enviados, e portanto permaneceram bem e no estudo até o fim. Todos os demais ou nunca haviam sido transferidos, recaíram ou desistiram em algum momento. Isso é uma taxa de permanência de um ano – uma taxa de 3%.
Mais recentemente, um grupo internacional de pesquisadores, em um estudo de 1.217 pacientes diagnosticados com grande transtorno depressivo, relatou que apenas 24% responderam ao tratamento com um antidepressivo (seja sozinho ou em combinação com psicoterapia). Trinta e quatro por cento eram “não-respondedores” a antidepressivos, e os 41% restantes se deram tão mal que foram considerados “resistentes ao tratamento”. Quase 60% acabaram tomando múltiplos medicamentos, inclusive antidepressivos múltiplos, antipsicóticos, benzodiazepínicos, e outras combinações de medicamentos.
Esses estudos do mundo real não foram controlados por placebo, e assim não houve comparação com um grupo semelhante de pacientes sem tratamento. Isso levanta a questão óbvia: Qual é o curso natural da depressão?
Antes da época dos antidepressivos, a depressão era entendida como um transtorno episódico, em oposição a uma doença crônica. Dizia-se que as taxas de recuperação espontânea excediam 50% em poucos meses, com essa taxa de recuperação atingindo cerca de 85% até o fim de um ano. Como Dean Schuyler, chefe da seção de depressão do NIMH, explicou em um livro de 1974, a maioria dos episódios depressivos “seguem seu curso e terminam com uma recuperação praticamente completa sem intervenção específica” [12].
Entretanto, após a introdução dos antidepressivos, o transtorno começou a ter um curso muito mais crônico. Nos anos 70, vários clínicos observaram que o medicamento estava causando uma “cronificação” da doença; e estudos epidemiológicos subseqüentes confirmaram que o curso da depressão a longo prazo havia mudado. O livro didático da APA de 1999 resumia as conclusões dos estudos mais recentes: “Apenas 15% das pessoas com depressão unipolar experimentam um único episódio da doença”, e para os 85% restantes, com cada novo episódio, a remissão se torna “menos completa e novas recorrências se desenvolvem com menos provocação ” [13].
Com os resultados para pacientes medicados tão pobres, o NIMH financiou um estudo para avaliar o curso da “depressão sem tratamento” na era moderna. Talvez o curso natural da depressão tivesse mudado? Em 2006, os pesquisadores relataram que 23% dos pacientes não medicados se recuperaram em um mês; 67% em seis meses; e 85% dentro de um ano. Esses foram os resultados, concluíram os pesquisadores, que ecoavam os da era pré-antidepressiva. “Se até 85% dos indivíduos deprimidos que passam sem tratamento somático se recuperam espontaneamente dentro de um ano, seria extremamente difícil para qualquer intervenção demonstrar um resultado superior a isso”, escreveram eles.
Essa é a equação de risco-benefício que emerge dos estudos de pacientes do mundo real. Talvez 25% responderá a um antidepressivo; e talvez cerca de 15% responderá ao tratamento e ficará bem. Há também razões para se acreditar que a taxa de recuperação de um ano para pacientes não tratados seja muito mais alta do que isso.
Resultados a longo prazo
Os ensaios financiados pela indústria fornecem uma equação de risco-benefício ao final de seis semanas sobre o medicamento. Os estudos clínicos em pacientes do mundo real fornecem informações sobre a porcentagem de pessoas diagnosticadas com depressão grave que, em algum momento durante estudos de maior duração (normalmente de seis meses a um ano), responderão a um antidepressivo e ainda estarão bem no final do estudo. A terceira pergunta que precisa ser avaliada é a seguinte: Como os pacientes tratados com antidepressivos se comportam durante períodos de tempo mais longos – dois anos ou mais?
Esta pergunta remete à mesma que surge nos estudos clínicos de um ano de duração: qual é o curso natural da doença a longo prazo? Para que um antidepressivo seja eficaz a longo prazo, ele precisaria melhorar essa taxa natural de recuperação.
Infelizmente, há abundantes evidências de que os antidepressivos, no conjunto, aumentam o risco de uma pessoa ficar cronicamente deprimida e com deficiências funcionais. Eu revi essa coleta de provas em Anatomia de uma Epidemia; um resumo dessa pesquisa pode ser encontrado aqui.
Em meados dos anos 90, o psiquiatra italiano Giovanni Fava levantou essa preocupação em uma série de artigos. Ele escreveu:
“Os medicamentos antidepressivos em depressão podem ser benéficos a curto prazo, mas pioram a progressão da doença a longo prazo, aumentando a vulnerabilidade bioquímica à depressão…”. O uso de drogas antidepressivas pode impulsionar a doença para um curso mais maligno e o tratamento sem resposta”.
Em seus artigos sobre esse assunto, Fava observou que os antidepressivos induzem mudanças no sistema de serotonina, o oposto de seu efeito pretendido; e argumentou que esse poderia ser o mecanismo que “sensibilizou” o cérebro para a depressão.
Em 2012, o psiquiatra americano Rif El-Mallakh, especialista em transtornos do humor, concluiu que os ISRSs poderiam induzir uma “disforia tardia crônica“. Ele observou que até 40% dos pacientes inicialmente tratados com um antidepressivo acabam sendo “resistentes ao tratamento”, e até 80% mantidos com os medicamentos sofrem uma recorrência dos sintomas.
“Um estado depressivo crônico e resistente ao tratamento é proposto para ocorrer em indivíduos que são expostos a antagonistas potentes de bombas de recaptação de serotonina (ISRSs) por períodos prolongados. Devido ao atraso no início desse estado depressivo crônico, ele é rotulado como disforia tardia. A disforia tardia se manifesta como um estado disfórico crônico que é inicialmente aliviado de forma transitória, mas que acaba por se tornar uma medicação antidepressiva que não responde. Os antidepressivos serotonérgicos podem ser de particular importância no desenvolvimento da disforia tardia”.
Essa é a lacuna entre o que pacientes deprimidos – e a sociedade em geral – têm aprendido sobre os antidepressivos nos últimos 30 anos e a história contada na literatura científica. O público foi levado a acreditar que os antidepressivos fixavam um desequilíbrio químico no cérebro e assim poderiam ser considerados um antídoto para a patologia que causava a depressão, e que estudos clínicos mostraram que esses medicamentos “funcionam”. Na verdade, a literatura da pesquisa contou a seguinte história:
A depressão não é causada por um conhecido desequilíbrio químico no cérebro.
Um antidepressivo faz com que o cérebro comece a funcionar de uma maneira “qualitativa e quantitativamente diferente” do normal.
Em estudos financiados pela indústria, apenas um em cada oito pacientes poderia ser beneficiado com o tratamento.
Estudos em pacientes do mundo real constataram que apenas uma minoria de pacientes responde a um antidepressivo e relativamente poucos permanecem bem no final de um ano
Os resultados a longo prazo para pacientes tratados são particularmente pobres, e há evidências de que o seu uso aumenta o risco de que uma pessoa fique cronicamente doente.
Isso, é claro, é uma informação que permitiria aos pacientes fazer uma escolha informada sobre se devem tomar um antidepressivo. No entanto – e este é um exemplo de como a APA continua a desinformar o público – aqui está o que a APAatualmente diz ao público sobre a eficácia dos antidepressivos:
“Entre 80% e 90% das pessoas com depressão acabam respondendo bem ao tratamento. Quase todos os pacientes obtêm algum alívio de seus sintomas”.
Por que é necessário um processo judicial?
Todas as sociedades precisam que as suas comunidades médicas forneção ao público informações honestas sobre o que é conhecido sobre a natureza de uma doença; e os riscos e benefícios de um tratamento para essa doença.
A história do desequilíbrio químico da depressão violou essa obrigação de honestidade, e de forma muito grave. Em lugar das informações necessárias para que um paciente deprimido desse consentimento livre e esclarecido, os pacientes – e o público – foram informados de uma história falsa que beneficiou os interesses da corporação e os interesses financeiros das companhias farmacêuticas. Em essência, uma história de marketing foi substituída por uma história científica.
Mad in America publicou numerosas histórias de pessoas a quem foi dito que sofriam um desequilíbrio químico no cérebro; cuja vida depois de tomar um antidepressivo, com tantos acabando em coquetéis de drogas, caiu e teve a sua vida arruinada. Suas histórias narram os danos extraordinários causados pela fraude do equilíbrio químico.
E no entanto, mesmo quando os psiquiatras dize que não há “nada de novo” com o trabalho de Moncrieff, não houve até agora nenhuma admissão pública dos delitos, ou desculpas, pelo engano dos pacientes e da sociedade, ao longo de décadas. Carlat, em seus comentários em On Point da NPR, até o justificou, pelo menos até certo ponto, colocando-o na categoria de uma pequena mentira leve. Às vezes, disse ele, os pacientes psiquiátricos precisam receber informações sobre medicamentos psiquiátricos que “não são inteiramente exatas”.
Enquanto isso, a APA prossegue com sua propaganda, dizendo ao público que quase todos os pacientes acabam respondendo bem aos antidepressivos. Essa é uma história que supera a história dos antidepressivos, dos fixadores químicos.
É por isso que é necessária uma ação judicial coletiva. Até o momento, aqueles que promovem o desequilíbrio químico sofrido não tem sofrido custo algum para fazê-lo. Pelo contrário, muito dinheiro foi ganho, as carreiras foram alavancadas; e a nossa sociedade tem suportado durante todo esse tempo esse enorme custo.
Um processo de ação coletiva serviria bem à sociedade. Isso colocaria os médicos na obrigação legal de dar “consentimento informado” e de uma disciplina médica para fornecer à sociedade informações que atendessem a esse padrão também.
Um novo estudo descobriu que uma intervenção de saúde mental realizada nas escolas piorou a saúde mental das crianças e não melhorou com relação ao abuso de drogas e com relação à ansiedade ou à depressão. A intervenção, Climate Schools, foi realizada em 18 escolas, enquanto outras 19 escolas serviram como o grupo de “controle” que não recebeu a intervenção. Mais de 3000 alunos australianos das 9ª e 10ª séries foram incluídos no estudo.
O resultado primário medido pelos pesquisadores foi a “internalização dos problemas”. As crianças que receberam a intervenção tiveram uma pontuação pior na média de 6 e 12 meses após a intervenção, do que as crianças que não receberam a intervenção. (Na marca dos 18 meses, não houve diferença entre os grupos).
“Em relação à linha de base, e em comparação com os controles, descobrimos que os alunos das Escolas Climáticas – condição de saúde mental – tiveram notas mais altas de internalização nos 6 e 12 meses pós-intervenção”, escrevem os pesquisadores.
As crianças que receberam a intervenção relataram um maior “conhecimento sobre saúde mental” posteriormente – o que os pesquisadores observam é que o aumento da consciência sobre “saúde mental” na verdade a piora.
Sobre os resultados secundários da depressão e ansiedade, não houve diferença entre os grupos (o que significa que a intervenção não teve efeito). A depressão e a ansiedade aumentaram significativamente ao longo do tempo para ambos os grupos de crianças.
Os pesquisadores também avaliaram a “angústia psicológica” geral e novamente não encontraram diferença entre as crianças que receberam a intervenção e aquelas que não a receberam.
Em resumo, eles escrevem: “Encontramos evidências de que nossa intervenção autônoma de saúde mental melhorou o conhecimento da saúde mental, porém não houve evidência de que a intervenção melhorou outros resultados de saúde mental, em relação a um controle”.
(Os problemas de internalização foram medidos usando-se os problemas emocionais e os problemas de pares subscritos no Questionário de Pontos Fortes e Dificuldades. A depressão e ansiedade foram medidas usando o Questionário de Saúde do Paciente-8 (PHQ-8) e a escala de Transtorno de Ansiedade Generalizada (GAD-7), respectivamente. A angústia psicológica foi medida usando o sexto item K6).
Os pesquisadores também se perguntaram se a conexão social poderia desempenhar um papel – isto é, será que as crianças mais ativas socialmente poderiam ter melhor saúde mental ou possivelmente receber mais benefícios com a intervenção? Mas os pesquisadores não encontraram nenhum efeito da conexão social em nenhuma de suas medidas. (Para medir isso, os pesquisadores pediram às crianças que escrevessem os nomes de três amigos; as crianças que foram listadas com mais freqüência foram consideradas mais ligadas socialmente).
O estudo foi liderado por Jack L. Andrews na Universidade de New South Wales e publicado em Psychological Medicine.
A intervenção de saúde mental das Escolas Climáticas é cobrada como sendo baseada em terapia cognitivo-comportamental e consiste em seis sessões de 40 minutos de aula. Ela se destina especificamente a reduzir a ansiedade e a depressão. Foi ministrada em adição às aulas regulares de saúde das escolas, que já incluem um componente obrigatório de saúde mental.
Os pesquisadores reconhecem que estudos anteriores também descobriram que este tipo de currículo universal de saúde mental para crianças é, na melhor das hipóteses, ineficaz. Eles escrevem,
“Nossos resultados estão dentro de um conjunto crescente de trabalhos que indicam a eficácia limitada das intervenções universais para adolescentes na redução da ansiedade e depressão. Por exemplo, duas revisões sistemáticas enfocando a eficácia da terapia cognitiva comportamental (TCC) – intervenções de resiliência informada para jovens não encontraram benefícios para os sintomas de depressão ou ansiedade pós-intervenção”.
Eles acrescentam que as intervenções de saúde mental que visam especificamente crianças em situação de risco para a má saúde mental possivelmente sejam mais eficazes, mas que há poucas evidências que sustentem essa suposição. De fato, eles citam evidências de que intervenções direcionadas podem realmente aumentar o bullying e o estigma para as crianças em situação de risco incluídas.
Essas intervenções maciças podem ser realizadas com a melhor das intenções, mas isso não significa que elas sejam eficazes. Por exemplo, o programa D.A.R.E., realizado nas escolas dos Estados Unidos durante décadas numa tentativa de reduzir o uso de drogas na juventude, foi reavaliado como um fracasso completo – um desperdício de bilhões de dólares dos contribuintes.
****
Andrews, J. L., Birrell, L., Chapman, C., Teesson, M., Newton, N., Allsop, S., . . . & Slade, T. (2022). Evaluating the effectiveness of a universal eHealth school-based prevention programme for depression and anxiety, and the moderating role of friendship network characteristics. Psychological Medicine. Published online on July 15, 2022. https://doi.org/10.1017/S0033291722002033 (Link)
Segundo matéria publicada no site Brasil de Fato, de 22 de maio de 2022, as Comunidades Terapêuticas receberam o investimento público de R$ 560 milhões do orçamento federal nos últimos quatro anos, em nome da política de guerra às drogas. Enquanto isso, os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), dispositivos fundamentais de assistência e de cuidado em liberdade da Reforma Psiquiátrica, não recebem aumento desde 2011. A ideia central da Reforma é a construção de uma Rede de Atenção Psicossocial, com múltiplos dispositivos, na qual os CAPS exercem um papel fundamental. O programa Fantástico, da Rede Globo, do dia 19 de junho deste ano, apresentou um pouco das comunidades terapêuticas. Mas comunidades religiosas são o mesmo que comunidades terapêuticas? O que são as comunidades terapêuticas?
Para melhor se entender o que são as comunidades terapêuticas, eu tive a honra de entrevistar o Prof. Dr. Manoel Olavo Loureiro Teixeira, psiquiatra, professor e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, militante da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Dr. Manoel Teixeira dedicou parte de seu trabalho à análise do modelo assistencial das Comunidades Terapêuticas, incluindo sua dissertação de mestrado, “O Cristal de Várias Faces: a Psicanálise, o Campo de Saber Psiquiátrico e o Modelo Assistencial das Comunidades Terapêuticas” (IPUB/UFRJ, 1993).
Segundo ele, as Comunidades Terapêuticas surgiram na Inglaterra, após o final da Segunda Guerra Mundial, como uma reação ao modelo tradicional do asilo psiquiátrico. O conceito de comunidade terapêutica apareceu na Inglaterra, entre o final dos anos 1940 e início dos anos 1950, baseado no modelo concebido pelo psiquiatra sul-africano Maxwell Jones (1907-1990). Posteriormente, o movimento das comunidades terapêuticas espalhou-se pelo mundo, chegando à América Latina e ao Brasil, onde teve grande repercussão nas décadas de 1960 e 1970. As comunidades terapêuticas apareceram como um modo de reorganização hospitalar, empregando certa leitura da psicanálise como instrumento de tradução das relações institucionais, que passam a ser entendidas como uma pequena comunidade humana, formada por pacientes e técnicos, no espaço de convivência das enfermarias psiquiátricas.
É esta a realidade das chamadas comunidades terapêuticas hoje no Brasil? Será que as instituições hoje chamadas de comunidades terapêuticas em nosso país, ligadas a Igrejas e movimentos religiosos neopentecostais, e voltadas principalmente para o atendimento de dependentes químicos, tem alguma relação com o ideário que estruturou originalmente o movimento das Comunidades Terapêuticas? O Dr. Manoel nos esclarecerá estas dúvidas.
Luciana: O que são as comunidades terapêuticas? Comunidades religiosas são o mesmo que Comunidades Terapêuticas?
Manoel Teixeira: Absolutamente não. O movimento das comunidades terapêuticas é algo específico, que acontece num dado contexto histórico. Na sua origem, as comunidades terapêuticas nada tem a ver com práticas religiosas, muito menos com o que se faz hoje em dia no Brasil com este nome.
O movimento das comunidades terapêuticas surgiu na Europa, após o fim da II Guerra Mundial, como uma nova proposta de funcionamento do hospital psiquiátrico. Fundamentava-se na ideia de humanização do tratamento dos doentes mentais, na crítica ao isolamento dos hospícios, no desejo de democratização das relações entre técnicos e pacientes. Sua experiência mais significativa iniciou-se em 1947, com a criação do Industrial Neurosis Unit, no Belmont Hospital, coordenado pelo psiquiatra sul-africano Maxwell Jones. A expressão “comunidade terapêutica” aparece pela primeira vez num artigo de Thomas Main, publicado no Bulletin of the Menninger Clinic, em 1946.
Os princípios de funcionamento de uma comunidade terapêutica incluíam práticas grupais, ressocialização, criação de uma atmosfera terapêutica e trabalho ativo sobre as relações entre pacientes e de pacientes com a equipe de atendimento. Para isto, utilizavam-se técnicas de terapia grupal e individual, visando o reforço da autonomia individual e a correção de comportamentos desadaptativos. Isto conduziu à introdução de trabalhos grupais no interior do hospital: grupos operativos, recreativos, artísticos e grupos terapêuticos propriamente ditos. A principal modalidade de tratamento era a aprendizagem social (social learning). Partia-se do princípio de que os pacientes reproduziam aspectos de sua problemática emocional nas relações que estabeleciam com outros pacientes e com membros da equipe técnica. A enfermaria psiquiátrica seria o espaço para a investigação dessas relações, de uma maneira que permitisse seu reconhecimento, sua correção e a incorporação de novas condutas. Algumas regras de funcionamento eram consideradas essenciais:
– O ambiente da enfermaria deveria ser acolhedor, vivo e ativo, permitindo a ambientoterapia.
– Os canais de comunicação deveriam ser abertos.
– A reunião geral de enfermaria seria o espaço principal da comunidade. Estas reuniões seriam abertas, com a participação de todos os pacientes e membros da equipe.
– Haveria reuniões diárias de equipe, visando explorar as comunicações feitas na reunião geral.
– Deveria haver um máximo reduzido de pacientes por enfermaria.
– Haveria um aumento no número de profissionais envolvidos no atendimento. Surge uma equipe multidisciplinar, com psiquiatras, enfermeiros, psicanalistas, psicólogos, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais.
– Haveria um novo papel na estrutura de atendimento: os terapeutas sociais ou auxiliares psiquiátricos. Este papel era exercido, originalmente, por estudantes de ciências sociais. Depois, por estudantes de medicina e psicologia.
– Ocorreria certa difusão de papéis entre os membros da equipe, alterando-se a rigidez do modelo tradicional.
– O papel de coordenação da enfermaria psiquiátrica, antes exercido por psiquiatras de formação biológica, passaria a ser feito por psiquiatras de orientação psicanalítica.
– A terapia ocupacional ganharia destaque entre as atividades da enfermaria, agindo como elemento organizador do cotidiano. Utilizava-se música, pintura, cerâmica, colagens, etc.
– A mudança de personalidade, pela substituição de mecanismos desadaptativos de comportamento, seria o objetivo final do tratamento.
Luciana: Historicamente, como foi constituído o ideário que estruturou a proposta das comunidades terapêuticas?
Manoel Teixeira: As comunidades terapêuticas surgiram como uma reorganização do funcionamento hospitalar com o intuito de aumentar a comunicação entre a equipe de profissionais, permitindo o aumento de informações sobre as interações entre os pacientes e a identificação de conflitos presentes no ambiente. Na experiência pioneira do Hospital Belmont (1947-1952), Maxwell Jones instala um Centro de Reabilitação Social com o intuito de tratar casos de distúrbios de personalidade em adultos e adolescentes. Para Jones, o estabelecimento de decisões democráticas entre equipe e pacientes iria contrapor-se à infantilização causada pela estrutura excessivamente rígida do hospital psiquiátrico convencional. O desenvolvimento do espírito comunitário e da responsabilidade coletiva seria obtido através de reuniões comunitárias – a célula básica da comunidade terapêutica. Mais tarde, o modelo é adaptado para hospitais psiquiátricos, encarregados de tratar casos de psicoses e neuroses graves.
A psicanálise, então a principal fonte de saber disponível sobre a intersubjetividade, ganhou importância decisiva no projeto. Desenvolveu-se o conceito de tratamento psiquiátrico com orientação psicodinâmica, usando contribuições da psicanalista inglesa Melanie Klein sobre modalidades primitivas de funcionamento psíquico; do psiquiatra e psicanalista inglês Wilfred Bion sobre o funcionamento dos grupos humanos e técnicas de terapia grupal, além da experiência de atendimento da Clínica Tavistock, por ele dirigida, em Londres; a experiência de abordagem psicanalítica de pacientes psiquiátricos na Clínica Menninger, em Topeka, Kansas, USA; as técnicas de psicodrama, desenvolvidas por Jacob Levy Moreno; e a redescoberta do trabalho do psiquiatra alemão Hermann Simon, introdutor da ideia de terapia ocupacional no tratamento de pacientes psiquiátricos, no começo do século XX.
O movimento das comunidades terapêuticas foi um dentre vários movimentos institucionais que buscaram questionar e modificar o modelo de assistência do hospital psiquiátrico, como a psicoterapia institucional francesa, a psiquiatria comunitária norte-americana e a psiquiatria democrática italiana, inseridos no contexto de transformação do campo de saúde mental ao longo da segunda metade do século XX. Estes movimentos fundamentavam-se na percepção do manicômio como um lugar de abandono e cronificação. Tais transformações associaram-se ao conjunto de mudanças políticas e sociais ocorridas após a Segunda Guerra Mundial, que consolidaram o Estado do Bem-Estar Social europeu e, na psiquiatria, visaram a humanização e a democratização das relações em suas instituições.
Luciana: Como surgiram as comunidades terapêuticas no Brasil?
Manoel Teixeira: Pode-se dizer que há dois momentos diferentes na história das comunidades terapêuticas no Brasil. No primeiro deles, nas décadas de 1960 e 1970, surgiram diversas experiências de comunidades terapêuticas no Rio Grande do Sul (Clínica Pinel de Porto Alegre), em Pernambuco, em São Paulo, no Rio de Janeiro (Seção Olavo Rocha do Pavilhão Odilon Galotti do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Hospital Pinel), enfim, por todo o país, com a perspectiva de reformular o atendimento hospitalar dos pacientes internados. Este período reuniu trabalhos feitos em clínicas privadas, que buscavam modernizar seus serviços, e projetos de melhoria da atenção em manicômios e hospitais públicos, em geral grandes depósitos onde os pacientes eram relegados ao abandono e maus tratos. Por coincidência, as experiências das comunidades terapêuticas no Brasil neste período ocorreram durante a ditadura militar. Suas características, por promoverem atividades expressivas, oferecerem estágio para estudantes da área de saúde (os acompanhantes terapêuticos) e incentivarem atividades coletivas e democráticas no ambiente hospitalar, acabaram atraindo jovens profissionais psi e estudantes ávidos por experiências de liberdade num período de trevas democráticas. No Brasil, como em outros países da América Latina, as comunidades terapêuticas dos anos 1960 e 1970 tornaram-se veículos de difusão da psicanálise no meio psiquiátrico e espaços de resistência democrática ao autoritarismo político vigente. Entretanto, o modelo das comunidades terapêuticas acabou se banalizando e perdendo força, ao final dos anos 1970. Vários dispositivos de tipo manicomial, públicos e privados, como a Clínica Dr. Eiras de Paracambi, se autoproclamaram comunidades terapêuticas, sem adotar o funcionamento deste modelo assistencial, limitando-se a mudanças cosméticas ou de hotelaria. O movimento das comunidades terapêuticas então se esvazia, e a primeira fase se encerra.
Num segundo momento, a partir dos anos 1990, surgem no Brasil, com o nome de comunidades terapêuticas, instituições religiosas destinadas à internação de dependentes químicos, em sua quase totalidade administrados por grupos católicos ou evangélicos neopentecostais. A abordagem de tipo psiquiátrica ou psicológica é secundária nestes locais. A partir dos anos 2000, junto ao crescimento das Igrejas Evangélicas no Brasil, verificou-se uma grande expansão deste tipo de estabelecimento. Do ponto de vista de sua proposta de atendimento, as comunidades terapêuticas de orientação religiosa nada tem a ver com as comunidades terapêuticas de Maxwell Jones. Na verdade, seu funcionamento sequer pode ser comparado ao modelo clássico do hospital psiquiátrico, estabelecido por Philippe Pinel na virada do século XVIII para o XIX. Pinel introduziu a ideia de um manicômio laico e baseado em referências médicas e científicas de tratamento, quando o alienismo, como então era chamada a psiquiatria, organizou-se como especialidade médica voltada para os problemas mentais. As comunidades terapêuticas existentes atualmente no Brasil funcionam de modo pré-pineliano, por assim dizer. Na prática, lembram os antigos hospitais gerais europeus do século XVII e XVIII, anteriores à criação da psiquiatria. Os hospitais gerais eram grandes depósitos humanos, criados de acordo com o ideário de filantropia católica, nos quais eram recolhidos à força mendigos, alcoólatras, libertinos, loucos, hereges e excluídos sociais das cidades europeias, para serem submetidos a isolamento social, recuperação moral, punição, trabalhos forçados e doutrinação religiosa. É o que ocorre atualmente nas comunidades terapêuticas brasileiras, onde são frequentes denúncias de internações forçadas e prolongadas, isolamento em fazendas distantes da sociedade, privação de liberdade, maus tratos, medidas disciplinares de punição, como reclusão em celas e redução de alimentos, trabalhos forçados e uma abordagem baseada na doutrinação religiosa de tipo cristã neopentecostal. Vale dizer, uma visão exclusivamente moral e punitiva do problema. Isto corresponde a um grave retrocesso na abordagem da complexa e multifatorial questão da dependência química, e um grave retrocesso na política de atenção psicossocial. E está em conflito com os princípios da lei 10216, que regulamenta a assistência em Saúde Mental no Brasil.
Luciana: Qual lugar estes dispositivos ocupam no SUS?
Manoel Teixeira: Até o começo do governo Jair Bolsonaro, a maioria das comunidades terapêuticas para dependentes químicos era mantida por doações de grupos religiosos cristãos, ou funcionava como instituição privada paga. Muitas delas já faziam parte da rede assistencial do SUS, por convênio com o Ministério da Saúde, fornecendo leitos destinados à internação de dependentes químicos, de forma complementar na rede assistencial. O governo Bolsonaro reorientou a política pública de assistência em álcool e outras drogas, e decidiu tornar a internação hospitalar em comunidades terapêuticas o recurso central de atenção para dependentes químicos. Portanto, decidiu destinar a maior parte dos recursos públicos a estas unidades. Para facilitar o credenciamento de instituições de internação para dependentes químicos, foi criado uma forma paralela de credenciamento e financiamento. Em março de 2019, numa ação conjunta da Confederação das Comunidades Terapêuticas e do Ministério da Cidadania (cuja titularidade é exercida por Damares Silva, ligada a grupos evangélicos neopentecostais), foi aprovada uma legislação específica para regulamentação e financiamento público de leitos de internação nas comunidades terapêuticas, de acordo com a política nacional sobre drogas – Pnad. Embora as comunidades terapêuticas pertençam formalmente a rede SUS de atenção psicossocial, passaram a ser credenciadas e financiadas pelo Ministério da Cidadania, como parte da política nacional de combate às drogas. Criou-se um caminho alternativo de financiamento, para priorizar uma política assistencial que está na contramão do modelo de atenção psicossocial vigente no país, por privilegiar a internação hospitalar e a exclusão social. O governo Bolsonaro dobrou a verba destinada às comunidades terapêuticas e sextuplicou o número de vagas custeadas pela União (fonte: Folha de São Paulo, Saúde – in site da ABRASME). Mais de 60 % das comunidades terapêuticas contratadas pelo Ministério da Cidadania em 2019 tem ligações diretas com grupos religiosos cristãos ou são presididas por pastores evangélicos ou sacerdotes. Existem hoje cerca de 3000 comunidades terapêuticas no Brasil. 700 delas já mantém convênio com financiamento público federal, e este número não para de crescer.
Luciana: As comunidades terapêuticas devem continuar a ser parte da Rede de Saúde Mental do SUS?
Manoel Teixeira: A lei 10216, de abril de 2001, dispõe sobre as condições de atendimento na rede pública de saúde mental do SUS. Embora esteja sob ataque desde o começo do governo Bolsonaro, são estes os princípios que regem a assistência em saúde mental no Brasil. São princípios gerais da lei 10216 garantir que o paciente seja tratado com humanidade, de preferência em serviços comunitários de saúde mental. É vedada a internação em instituições com características asilares, ou a hospitalização a longo prazo. A internação involuntária deve ser comunicada, quando efetuada, ao Ministério Público Estadual. Tais internações só devem ocorrer quando os recursos extra-hospitalares estiverem esgotados. Nada disto se observa em muitas comunidades terapêuticas. O tipo de abordagem que ocorre em muitas delas contraria os princípios gerais da legislação em vigor, no que diz respeito aos direitos dos pacientes. Muitas comunidades terapêuticas brasileiras têm inegáveis características manicomiais de funcionamento. Como já dissemos, embora estejam formalmente ligadas ao modelo de atenção psicossocial do SUS, muitas comunidades terapêuticas não se adequam à proposta de construção de uma rede assistencial de dispositivos múltiplos e comunitários previsto em lei, nem à ideia do cuidado em liberdade. Seu próprio financiamento por uma fonte diferente comprova este fato. Nos últimos anos, os CAPS AD e demais dispositivos da rede SUS de atenção em álcool e outras drogas vem sendo negligenciados e subfinanciados. O governo federal, ao priorizar internações nas comunidades terapêuticas, está reforçando um projeto neomanicomial, de tipo religioso, responsável por isolamento social, internações prolongadas, desrespeito aos direitos dos pacientes e práticas terapêuticas no mínimo questionáveis, em termos científicos.
Luciana: Quais as alternativas de cuidado às Comunidades Terapêuticas?
Manoel Teixeira: Na verdade, o Brasil já tem um modelo de atenção psicossocial para usuários de álcool e drogas, e para seus familiares. A portaria 2197 do MS, de 14 de outubro de 2004, definiu a política para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas, priorizando ações de caráter terapêutico, preventivo, educativo e reabilitador. Também estabeleceu um programa que inclui componentes assistenciais da atenção básica, como ações ambulatoriais e da saúde de família, componentes de atenção específica nos CAPS-AD (Centros de Atenção Psicossocial especializados em Álcool e outras Drogas), ambulatórios e outras unidades extra-hospitalares especializadas, um componente de atenção e assistência hospitalar de referência e um componente de rede de suporte social (associações de ajuda mútua e entidades da sociedade civil), complementar à rede de serviços do SUS. Portanto, trata-se de um projeto de rede assistencial com atuação articulada, capilarizada e de base territorial, oferecendo atendimento em todos os níveis de assistência para o dependente químico. Neste modelo, existe lugar para internações, em leitos hospitalares para desintoxicação e repouso, ou internações de curta duração em hospitais para tratamento da dependência química. Mas esta não é a principal, nem a única alternativa disponível.
De fato, são as chamadas comunidades terapêuticas que deveriam se adequar aos princípios básicos da lei 2016 e adotar os parâmetros assistenciais da rede SUS de atenção psicossocial. Entretanto, em flagrante contraposição ao modelo assistencial vigente, o governo federal tem adotado uma política de atendimento de dependentes químicos baseada em internações hospitalares prolongadas nas comunidades terapêuticas, com consequências nefastas. O que causa espécie é o fato evidente de que a promoção deste retrocesso beneficia aliados do governo atual junto às denominações neopentecostais, proprietários da maioria das instituições que vem obtendo financiamento público para leitos de internação de comunidades terapêuticas.
As comunidades terapêuticas já faziam parte da rede de assistência do SUS há algum tempo, inclusive recebendo financiamento por convênio com o Ministério da Saúde. Entretanto, eram apenas um dos recursos existentes na rede assistencial. No governo Bolsonaro, o que se verificou foi a criação de um caminho escuso de credenciamento e financiamento maciço de comunidades terapêuticas, através do Ministério da Cidadania, como modo de agilizar convênios, burlar a fiscalização do Ministério da Saúde quanto à necessária adequação aos requisitos previstos pela lei 2016, e estabelecer um padrão de assistência hospitalocêntrico, baseado em internações hospitalares.
Em síntese, pode-se dizer que o governo Bolsonaro vem retirando verbas da Rede de Atenção Psicossocial, incluindo os CAPS e CAPS-AD, com o objetivo de desmontar a Reforma Psiquiátrica, e destinando estas verbas, via Ministério da Cidadania, para o financiamento de leitos de internação prolongada e com características manicomiais, nas comunidades terapêuticas que pertencem à sua base evangélica de apoio político.
Estudantes de medicina, psicologia e psiquiatria, e profissões de saúde aliadas aprendem sobre psiquiatria através da leitura de livros didáticos psiquiátricos. Eles geralmente acreditam no que lêem e o reproduzem em seus exames. Portanto, os livros didáticos universitários são uma poderosa ferramenta de doutrinação – para se chegar à “opinião certa”, mesmo quando ela está errada.
Ao terem passado nos exames, os estudantes defenderão com unhas e dentes o que aprenderam. É um traço curioso da psicologia humana que uma vez que se tenha tomado uma decisão, mesmo quando estava em sérias dúvidas, se passe a defender vigorosamente a sua posição quando alguém provar que a outra opção era a correta.
É muito importante, portanto, que as informações veiculadas nos livros didáticos psiquiátricos estejam corretas. E esse é o problema. Há uma enorme diferença entre a narrativa psiquiátrica oficial e o que a ciência mostra.
Muito do que os principais psiquiatras dizem e escrevem é incorreto: sobre a confiabilidade dos diagnósticos psiquiátricos; sobre as causas dos transtornos psiquiátricos; se as causas podem ser vistas em um exame cerebral ou química cerebral; e quais são os benefícios e danos das drogas psiquiátricas, eletrochoque e tratamento forçado. Isto tem sido amplamente documentado por psiquiatras críticos e outros.
A discrepância entre opinião e ciência também é predominante nos livros didáticos psiquiátricos. As próximas gerações de profissionais da saúde aprenderão, portanto, sobretudo durante os seus estudos, o que é comprovadamente incorreto em detrimento de seus pacientes.
Tem sido os pacientes e seus parentes quem têm acertado, não os psiquiatras. Uma pesquisa com 2.031 australianos mostrou que as pessoas pensavam que os comprimidos para depressão, as pílulas para psicose, o eletrochoque e a admissão em uma enfermaria psiquiátrica eram mais freqüentemente prejudiciais do que benéficos. Os psiquiatras sociais que haviam feito a pesquisa ficaram insatisfeitos com as respostas e argumentaram que as pessoas deveriam ser treinadas para chegar à “opinião correta”.
Mas o público em geral não tem estado errado. Suas opiniões e experiências estão de acordo com as informações científicas mais confiáveis que hoje temos.
Temos uma situação em que os “clientes”, os pacientes e seus familiares não concordam com os “vendedores”, com os psiquiatras. Quando este é o caso, os vendedores geralmente são rápidos para mudar seus produtos ou serviços, mas isto não acontece na psiquiatria, que tem o monopólio do tratamento de pacientes com problemas de saúde mental, tendo os médicos de família como sendo a sua complacente equipe de vendas de primeira linha e que não fazem perguntas incômodas sobre o que estão vendendo.
Na Suécia, o Conselho Nacional de Saúde recomenda que todos os adultos com depressão leve a moderadamente severa recebam psicoterapia, mas apenas 1% a recebem. Isto ilustra que a psiquiatria é um comércio perverso. Ela não ajuda os pacientes como eles querem ser ajudados, mas ajuda a ela mesma.
Em 2021, tive a idéia de que se eu lesse e avaliasse os livros didáticos mais usados na Dinamarca e escrevesse o meu próprio livro didático explicando o que estava errado com os outros, isto poderia abrir os olhos para os estudantes em todos os lugares.
Escrevi um livro sobre o que encontrei, que todos os usuários do site Mad in Brasil (versão em português) podem obter gratuitamente, bastando enviar um e-mail para pcg AT scientificfreedom.dk. Está em pdf.
Não se espera que os livros didáticos dinamarqueses sejam diferentes dos de outros países, porque a psiquiatria convencional é a mesma em todos os países. Espero que outros pesquisadores analisem os livros didáticos usados em seus países como eu o fiz.
Ao ler livros, pode ser difícil descobrir o que não está lá, mas que deveria ter sido mencionado. Portanto, antes de começar a ler, descrevi em um protocolo o que acredito que deveria ser mencionado nos livros didáticos psiquiátricos.
As questões centrais que escolhi são aquelas de importância óbvia para os pacientes e aquelas consideradas controversas, por exemplo, se os transtornos psiquiátricos podem ser vistos em um exame cerebral. Os subtítulos do meu protocolo foram as causas de transtornos psiquiátricos, diagnósticos, benefícios de drogas, danos das drogas, retirada de drogas psiquiátricas, estigmatização, consentimento informado, psicoterapia e outras intervenções psico-sociais e o eletrochoque. Como existem centenas de diagnósticos psiquiátricos, eu me concentrei em psicose, depressão, bipolar, TDAH, transtornos de ansiedade e demência.
Identifiquei os cinco livros didáticos psiquiátricos na Dinamarca mais usados por estudantes de medicina e psicologia e avaliei se as informações apresentadas sobre as causas, diagnóstico e tratamento eram adequadas, corretas e baseadas em evidências confiáveis. Os livros didáticos estavam em dinamarquês, tinham um total de 2969 páginas e foram publicados entre 2016 e 2021.
Entre os autores estavam incluídos alguns dos mais proeminentes professores dinamarqueses de psiquiatria, porém os livros didáticos estavam longe de ser baseados em evidências. Freqüentemente contradiziam as evidências mais confiáveis; vários grupos de autores às vezes forneciam mensagens contraditórias mesmo dentro do mesmo livro; e a maneira como eles usavam referências era insuficiente. Eu esperava que quanto mais implausíveis fossem as alegações, menos provável seria que elas fossem referenciadas.
Em resumo, descobri uma ladainha de afirmações enganosas e errôneas sobre as causas dos distúrbios de saúde mental, se são genéticas, se podem ser detectadas em um exame cerebral, se são causadas por um desequilíbrio químico, se os diagnósticos psiquiátricos são confiáveis, e quais são os benefícios e danos das drogas psiquiátricas e eletrochoques.
Muito do que é alegado é desonestidade científica. Eu também descrevo fraudes e manipulações sérias com os dados em pesquisas freqüentemente citadas.
O debate sadio e sem preconceitos sobre questões essenciais na psiquiatria é raro. Quando os defensores do status quo não têm contra-argumentos válidos contra as críticas de suas práticas, eles não respondem às críticas, mas atacam a credibilidade de seu oponente.
Se você fizer perguntas a seus professores com base em meu livro, ou em outros livros ou artigos científicos que escrevi, você pode ser enganado com respostas como, “Gøtzsche? Eu nunca ouvi falar dele” (mesmo sabendo quem eu sou), “Não perca seu tempo com ele”, “O professor Gøtzsche é um psiquiatra? Ele já tratou de pacientes psiquiátricos? Como ele pode julgar o que nós fazemos”? Ou dirão que “Gøtzsche é um antipsiquiatra”, que é o derradeiro pseudo-argumento que os psiquiatras usam.
Não se deve aceitar tais respostas, mas sempre se deve pedir as provas.
Os autores dos cinco livros didáticos incluem alguns dos mais proeminentes professores de psiquiatria da Dinamarca. Não há razão para acreditar que a traição sistemática da confiança pública seja diferente em outros países. Em todos os lugares vemos as mesmas mentiras, negação, omissões de pesquisa que são embaraçosas para a auto-imagem da psiquiatria e para a narrativa oficial, e informações enganosas sobre a psiquiatria. Robert Whitaker ilustrou isso de forma convincente em sua revisão do novo livro de Thomas Insel.
Insel, que é chamado “America’s psychiatrist”, foi diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA (NIMH) por 13 anos, até 2015. Em 2022, ele publicou o livro “Healing” (Cura): Nosso caminho da Doença Mental para a Saúde Mental. O livro apresenta uma argumentação não intencional para se abolir a psiquiatria, apesar de Insel tentar apoiá-la.
Sendo um ex-diretor do NIMH, Insel deveria ter contado a seus leitores sobre os maus resultados a longo prazo do tratamento com medicamentos psiquiátricos, como o documentado em pesquisas caras e de prestígio financiadas pelo NIMH.
Ele não o fez. Insel transformou areia em ouro ao fazer um desvio horrível. Ele alegou que os tratamentos atuais são necessários mas não suficientes para curar distúrbios complexos do cérebro. Isto não tem absolutamente nenhuma relação com o caso. Ele citou o seu predecessor Steven Hyman, que disse que precisamos saber muito mais sobre a biologia das doenças mentais antes de “iluminarmos um caminho através de terreno científico muito difícil” e desenvolvermos medicamentos que sejam tão eficazes quanto a insulina ou os antibióticos.
O pomposo palavreado do livro de Insel encobriu o fato de que a psiquiatria biológica é um fracasso total, o que a história tem mostrado tão claramente. Além disso, as fantasias mal fundamentadas de Insel sobre um futuro melhor não eliminam o imenso dano que sua especialidade inflige atualmente a centenas de milhões de pessoas.
Na terra da aventura de Insel, os médicos são mais eficazes hoje do que eram há 25 anos. De fato. Eles estão prejudicando os seus pacientes mais do que nunca, à medida que o uso de drogas psiquiátricas aumenta o tempo todo, enquanto o número de pessoas com pensão por invalidez por causa de problemas de saúde mental também aumenta.
Concluo que a psiquiatria biológica não levou a nada de útil e que a psiquiatria como especialidade médica é tão prejudicial que deveria ser dissolvida. As pessoas não devem receber drogas, exceto em algumas situações agudas, mas sim psicoterapia e outras intervenções psicossociais.
“Primeiro eles te ignoram. Depois, eles te ridicularizam. E então eles te atacam…’*
Respondo a alguns dos pontos do recente artigo da Rolling Stone e corrijo as muitas imprecisões e distorções.
Ignorar não está mais funcionando, portanto os defensores das grandes Farmacêuticas e da psiquiatria convencional entraram em modo de ataque. A estratégia é minar o mensageiro (eu), a fim de neutralizar a mensagem. Neste caso a mensagem é a bomba de que não há evidência de que a depressão seja um desequilíbrio químico cerebral e os antidepressivos não fazem o que as pessoas dizem que fazem. Na verdade, a comunidade científica não sabe o que os antidepressivos fazem, mas, eles tranquilizam as pessoas, eles ainda ” funcionam “, portanto não importa.
Em uma tática honrada pelo tempo, o artigo tenta me desacreditar por associação. Mas agora não são só os cientologistas, embora eles estejam sendo jogados para dentro em boa medida (e para que fique registrado que nunca tive nenhuma associação com os cientologistas), mas a “mídia de direita”. O artigo aponta que comentadores de direita como Tucker Carlson e Matt Walsh cobriram nossa pesquisa. Continua sugerindo que eu “promovi… a crença de que os ISRSs estão ligados ao comportamento agressivo”, o que é descrito como uma “visão marginal” que tem sido usada pela mídia de direita para argumentar contra o controle de armas nos Estados Unidos, na sequência de tiroteios escolares. O que eu realmente fiz foi comentar uma pesquisa publicada no British Medical Journal (BMJ) que encontrou ligações entre os antidepressivos e o comportamento agressivo (assim como o suicídio) nos jovens. Meus comentários foram publicados em um editorial feito a convite no BMJ, e também no meu blog. Acho que isso não é “promoção” de nada, certamente não é uma “visão marginal”.
O jornalista apresenta minha resposta a esses assuntos, mas trazê-los à tona parece sugerir que, por causa disso, nunca deveríamos ter divulgado ou talvez até feito nossa pesquisa. Isso equivale à sugestão de que a milhões de pessoas deveriam ser negadas informações sobre as drogas que colocam em seu corpo todos os dias, porque a mensagem poderia ser retomada pelas pessoas “erradas”.
O artigo me acusa de “promover crenças amplamente contestadas sobre os perigos de várias intervenções de saúde mental, tais como antidepressivos ou formas alternativas de tratamento”. Isso não é exato. A maioria dos efeitos adversos que salientei em minha pesquisa são amplamente reconhecidos, e aqueles que são menos bem reconhecidos (como a disfunção sexual pós SSRI – que agora é reconhecida oficialmente pela Agência Européia de Medicamentos) não foram “amplamente contestados”, ou de fato não foram contestados de forma alguma.
Um exemplo dado é que eu supostamente “liguei imprecisamente” o tratamento de Estimulação Magnética Transcraniana (TMS) a um risco maior de comprometimento cognitivo. Fiquei surpresa com isso, pois nunca escrevi sobre o TMS nem fiz nenhuma pesquisa sobre ele. Então vi que o link no artigo se referia a um tweet que fiz de um blog sobre um grupo do Facebook onde centenas de pacientes relatam efeitos colaterais do TMS, incluindo o comprometimento cognitivo. Embora o dano cognitivo não seja reconhecido atualmente como um efeito colateral do TMS, sabemos que muitos efeitos adversos são relatados pelos pacientes antes de serem detectados ou medidos com precisão em estudos científicos (tais como a retirada de antidepressivos). Em todo caso, não ficou claro que essa acusação foi baseada em um único tweet e não em nenhum dos meus escritos ou pesquisas.
Outro exemplo é que eu tenho aparentemente “defendido agressivamente a idéia de que os ISRSs podem causar danos estruturais duradouros ao cérebro, sendo autora de vários artigos para esse fim”. É altamente enganoso omitir o contexto aqui, e na verdade a maioria dos trabalhos que estão ligados a isso não fazem nenhuma reivindicação sobre danos estruturais. Em um editorial que me foi solicitado, eu fiz a seguinte sugestão: “O cérebro é um órgão delicado; pode não ser preciso muito para redefinir permanentemente sua estrutura ou função”. Meu editorial discutiu dois outros artigos que cobriam a crescente evidência sobre os efeitos de abstinência e disfunção sexual persistente relatados por pessoas que pararam com os antidepressivos, o que pode indicar danos duradouros à estrutura ou função do cérebro. Os leitores certamente merecem ter esse contexto. A existência de abstinência persistente e disfunção sexual persistente tem sido relatada em muitos artigos científicos e não tem sido amplamente contestada.
Outro exemplo fornecido é que em meu blog e em minha pesquisa eu “promovi a idéia de que a retirada dos ISRSs pode causar mania ou sintomas psicóticos a longo prazo”. Isso é completamente incorreto. Eu nunca promovi essa idéia. Cobri a existência de sintomas de abstinência em geral, e discuti como esses sintomas podem ser geralmente graves, mas nunca sugeri que mania ou psicose fossem sintomas comuns de abstinência ou alguma vez ressaltei esses efeitos (o que concordo com outros são muito provavelmente extremamente raros).
O artigo acrescenta que “os efeitos colaterais mais comuns da abstinência, tais como tonturas ou angústia gastrointestinal, são desconfortáveis, mas de curta duração”. Essa idéia de que a abstinência é de curta duração não é mais aceita. O site do Royal College of Psychiatrists cita o National Institute of Health and Social Care Excellence (NICE), dizendo: “para alguns, os sintomas da abstinência podem ser leves e desaparecer relativamente depressa, sem necessidade de qualquer ajuda”. Outras pessoas podem ter sintomas mais graves que duram muito mais (às vezes meses ou mais)”.
Minimizar dessa maneira a retirada dos antidepressivos poderia levar as pessoas a interromper abruptamente seus antidepressivos e a sofrer sintomas graves de retirada.
O artigo apresenta de maneira completamente deturpada minhas opiniões sobre autonomia pessoal e saúde e o ensaio que escrevi sobre o ponto de vista de Szasz a esse respeito em 2014. O ensaio é na verdade uma consideração da necessidade de paternalismo em algumas situações (isto é, a sobreposição da autonomia pessoal). Na verdade, menciono mandatos de vacinas pediátricas como exemplos de casos em que medidas obrigatórias de saúde pública poderiam ser justificadas no interesse da saúde e bem-estar da população, e não o contrário, como implícito.
O artigo da Rolling Stone continua a trazer à tona minha oposição ao mandato de vacina contra a covida do NHS. Ele afirma que eu “relacionei de maneira inexata os sintomas graves da Covid-19 ao uso de antidepressivos ou antipsicóticos (na verdade, dados de um estudo observacional sugerem que tomar ISRSs pode realmente reduzir o risco de uma pessoa morrer de Covid)”. Isso é altamente enganoso. Eu tweetei um link para um estudo científico de autoria do Public Health Scotland COVID-19 Health Protection Study Group que encontrou um aumento do risco de covid grave com antipsicóticos e antidepressivos, juntamente com outros medicamentos não psiquiátricos, tais como opiáceos. É verdade que alguns outros estudos sugeriram uma redução da mortalidade em pessoas que tomam antidepressivos específicos, mas isso não refuta as conclusões do estudo escocês. Os dados são conflitantes, pois muitas vezes estão nos estágios iniciais da pesquisa sobre alguma coisa.
O artigo me acusa de ter “tido um leve pensamento conspiratório” com antidepressivos e com as vacinas, mas se minha sugestão de que motivos financeiros, juntamente com a insegurança profissional dos “psiquiatras” e a percepção da necessidade dos médicos de ter algo a oferecer” influenciaram a pesquisa sobre antidepressivos conta como pensamento conspiratório, então toda a sociologia acadêmica, a política, a história e uma grande quantidade de jornalismo de grande repercussão consiste em pensamento conspiratório.
E para esclarecer uma última questão, o psiquiatra Awais Aftab sugere que eu “desafiei a caracterização da depressão como uma doença mental”. Em artigos filosóficos sérios publicados em revistas acadêmicas, questionei se é justificado, apropriado e útil conceber o sofrimento e as dificuldades que rotulamos como doença mental como doença cerebral. Nunca neguei a realidade do sofrimento ou a necessidade de ajudar as pessoas que o estão experimentando.
Notas:
* Esta afirmação (muitas vezes atribuída erroneamente a Gandhi de uma forma ligeiramente diferente) foi dita por Nicholas Klein, do Amalgamated Clothing Workers of America, em 1918.
O jornalismo científico é uma das principais formas de o público compreender os resultados e os impactos sociais dos estudos científicos. Isto inclui periódicos online como Mad in America ou Mad in Brasil, notícias impressas e de TV, rádio, podcasts e muitas outras formas. Portanto, qualquer preconceito na informação que os jornalistas científicos apresentam ao público tem sérias consequências para o que o público em geral considera ser verdade.
Em um novo estudo, Julia Bottesini, Christie Aschwanden, Mijke Rhemtulla e Simine Vazire exploraram quais características dos estudos quantitativos influenciam a probabilidade dos jornalistas de relatar sobre eles e a crença de que a pesquisa seja digna de confiança. Os autores destacaram a importância de haver “cães de guarda” para a ciência – porteiros entre a informação disponível e a compreensão da verdade por parte do público. Eles sugerem que os “vigilantes internos” são os “vigilantes externos”, enquanto os jornalistas da ciência são igualmente necessários. Eles escrevem:
“Eles são os “vigilantes externos primários” que podem monitorar cientistas e instituições científicas em busca de práticas problemáticas e chamar a atenção para reivindicações duvidosas sem muito medo de prejudicar as suas perspectivas de carreira… Entretanto, para que os jornalistas científicos desempenhem este importante papel, eles precisam ter acesso e saber como utilizar informações relevantes ao decidir se devem confiar em uma descoberta de pesquisa e se e como relatar sobre ela”.
História da Crítica no Jornalismo Científico
Bottesini e colegas escrevem que inicialmente a escrita científica tendia a enquadrar o processo científico, a sua exatidão e os seus impactos com extrema positividade. Entretanto, as décadas de 1960 e 70 viram aumentos graduais em perspectivas mais diversas, críticas e reconhecimento dos danos causados pelo processo científico e pelo “progresso”. Os autores não afirmam explicitamente de quem vieram estas diversas perspectivas, mas os anos 60 e 70 foram quando as mulheres, as pessoas de minorias raciais e os americanos brancos de baixa renda obtiveram acesso ao ensino superior e aos campos científicos.
Apesar das representações dos estudos se tornarem mais equilibradas, jornalistas e cientistas ainda tinham razões para criticar, nos anos 90, que os jornalistas estavam muito ligados aos cientistas que eles apresentavam. Por exemplo, John Crewdson se referiu aos jornalistas como “líderes de torcida animada” para a ciência. Ele afirmou claramente que “ao aceitar relatórios de pesquisa sem verificação adequada, os redatores científicos prestam um mau serviço ao público” em um artigo de 1993. Os autores do presente estudo argumentam:
“Os jornalistas científicos têm agora mais oportunidades de se tornarem bons cães de guarda da ciência que podem ajudar o público a consumir a pesquisa científica através de uma lente crítica e chamar a atenção do público para uma pesquisa mais rigorosa”. Um público mais informado com acesso a informações científicas mais matizadas é um benefício social de se ter jornalistas científicos mais críticos”.
Os seguintes são alguns dos benefícios das críticas que os autores sugerem:
A ciência poderia perder credibilidade sem contexto, advertências e informações sobre suas limitações
Se os jornalistas científicos falsamente implicarem que todas as descobertas são completa e igualmente válidas, as inevitáveis nuances e diferenças nos resultados baseados no contexto corroeriam a confiança do público na ciência.
O jornalismo acurado ajuda a garantir que uma ciência melhor receba mais atenção, levando a mais recompensas sociais e financeiras para os cientistas que realizam um trabalho igualmente rigoroso e ponderado.
Ele ajuda a manter os cientistas honestos. Os cientistas são seres humanos com preconceitos que são incentivados pelo financiamento da pesquisa para exagerar as realizações. O conhecimento do trabalho será analisado à medida que for transmitido ao público incentivando os pesquisadores a serem mais precisos em suas reivindicações.
O Estudo Atual
O estudo de Bottesini, Aschwanden, Rhemtulla e Vazire explorou fatores que influenciam a reportagem e a crítica dos jornalistas científicos aos estudos e como os jornalistas determinam que os estudos sejam confiáveis ou dignos de notícia. Usando descrições de 1 parágrafo de estudos fictícios de psicologia comportamental, eles manipularam quatro variáveis dentro de cada vinheta de estudo pelas razões abaixo (como explicitamente compartilhadas pelos autores):
O tamanho da amostra do estudo: quanto maior o tamanho da amostra, mais precisa é uma estimativa provável.
A representatividade da amostra do estudo impacta a generalização do estudo para outras populações. Se ao estudo faltam populações inteiras que estão mais representadas no mundo real, não há evidência de que os resultados se aplicarão a populações que foram deixadas de fora. Consequentemente, bons jornalistas científicos devem favorecer estudos com amostras mais representativas das populações do mundo real correspondentes.
O valor de p associado à descoberta: valores de p mais próximos de 0 indicam que os resultados de um estudo são mais prováveis de serem descobertas reais de um fenômeno do que ruído nos dados. Isto sugere que bons jornalistas científicos deveriam favorecer estudos com valores de p mais baixos.
O prestígio institucional do pesquisador que conduziu o estudo: baseado na teoria de que os jornalistas podem ter preconceitos e encontrar cientistas desconhecidos com mais probabilidade de serem credíveis quando associados a instituições de elite
Foram apresentadas aos verdadeiros jornalistas oito vinhetas selecionadas aleatoriamente dentre as 16 utilizadas no estudo. Os jornalistas foram então solicitados a avaliar a confiabilidade de cada estudo (4 perguntas) e a novidade (2 perguntas). Isto foi seguido por três perguntas abertas (como eles normalmente avaliam os resultados da pesquisa, como eles avaliaram as informações apresentadas dentro deste estudo, e se eles tinham palpites sobre quais características dos estudos fictícios que os pesquisadores estavam tentando testar). Uma análise de poder mostrou poder suficiente para detectar um efeito real ao apresentar oito vinhetas a 150-200 participantes, e exemplos das vinhetas podem ser encontrados aqui: https://osf.io/xej8k.
Dados os argumentos do autor sobre a importância das amostras dos estudos para sua credibilidade, seus relatórios sobre a sua própria amostra e sua representatividade são surpreendentemente insuficientes. Sua amostra final de 181 jornalistas científicos era predominantemente feminina (76,8%; 19,3% homens, 2,8% não-binários, e 1,1% preferiram não dizer). Embora os autores não tenham relatado isto, as mulheres estavam ligeiramente sobrerepresentadas em comparação com a população geral de jornalistas científicos. Os jornalistas representavam uma variedade de disciplinas (ciências da vida, saúde e medicina, ciências gerais, ciências psíquicas, psicologia, ciências sociais, estilo de vida e bem-estar, e outras) e meios (predominantemente notícias on-line e notícias impressas).
Podemos provavelmente assumir com segurança que os jornalistas eram predominantemente brancos. Ainda assim, os pesquisadores não apresentaram nenhuma informação sobre a raça ou etnia de sua amostra, ao contrário dos padrões básicos estabelecidos pela Associação Americana de Psicologia. Isto é uma omissão tremenda, dada a conspícua sub-representação e a contínua manutenção de pessoas de cor em psicologia e outras ciências sociais.
Os brancos e asiáticos estão super-representados na escrita científica. Em contraste, negros, latinos, sudoeste asiático e norte-africanos (SWANA) estão sub-representados em comparação com o público em geral (com base em uma combinação de estimativas de 2021 e dados da organização de escritores científicos com o censo dos EUA). Saber quais as visões culturais etnorraciais que os jornalistas podem ter representado é essencial para interpretar as seguintes conclusões.
Os Resultados e o Contexto Ausente
O tamanho da amostra foi a única variável que ostensivamente impactou as classificações de confiabilidade e de notícia dos jornalistas. Os pesquisadores descobriram que a representatividade da amostra, o prestígio da universidade e o valor p estatístico da descoberta tiveram pouco impacto na confiança dos jornalistas nos estudos fictícios nem no valor da retransmissão dos mesmos. Todos os estudos fictícios fizeram alegações de que o estudo era aplicável à população em geral, independentemente da representatividade da amostra. Isto significa que os jornalistas deveriam ter encontrado estudos com amostras menos representativas para serem menos confiáveis em suas afirmações.
Esta tabela foi tirada diretamente de seu artigo e mostrou a porcentagem de respostas a cada uma das três perguntas abertas para cada um dos quatro fatores que os pesquisadores testaram:
Tabela 1. Percentual de participantes jornalistas científicos que identificaram cada uma das quatro variáveis manipuladas em suas respostas a cada uma das três perguntas abertas (respondidas depois que os participantes classificaram as oito vinhetas fictícias).
Questão Tamanho da amostra Tipo de amostra Valor-P Prestígio Uni
Question
Tamanho da Amostra
Tipo de Amostra
p-valor
Uni prestígio
Que características você considera quando avalia a confiança de um artigo científico?
66.9%
27.1%
30.9%
16.0%
Que característica você pesou ao julgar a confiança dos resultados apresentados?
79.0%
34.3%
38.1%
9.4%
Antes que nós digamos a você quais (as caracterísiticas nós ressaltamos), você acha que conhece algumas delas?
83.2%
38.7%
64.7%
30.3%
Os sujeitos geralmente concordaram que um melhor tamanho da amostra, representatividade da amostra e valores de p poderiam aumentar a validade e a notoriedade dos estudos, mas não o prestígio universitário. Entretanto, quando perguntados sobre sua familiaridade com cada fator, as pessoas também responderam com menos familiaridade com a afiliação institucional como uma métrica para a confiabilidade ou a notícia.
Os autores também realizaram uma “exploração subjetiva e não sistemática dos tópicos levantados pelos participantes” para cada uma das três perguntas abertas – quando existem múltiplos métodos bem estabelecidos e sistemáticos de análise de dados qualitativos.
As características que os jornalistas normalmente consideram, em geral, incluem o prestígio da revista de publicação e comentários de outros pesquisadores. As características que pesaram sobre as vinhetas incluíam o desenho ou métodos do estudo e a plausibilidade ou relevância das descobertas e reivindicações. Os temas que os jornalistas achavam que os pesquisadores estavam avaliando incluíam o desenho do estudo e a percepção étnica do pesquisador fictício com base no sobrenome.
Bottesini, Aschwanden, Rhemtulla e Vazire afirmam ter analisado se a etnia implícita do pesquisador nas vinhetas desempenhou um papel nas avaliações. Entretanto, todos os sobrenomes atribuídos a pessoas de cor eram de origem asiática, latina e SWANA, com total exclusão dos sobrenomes africanos e afro-americanos.
Além disso, os autores afirmam que sobrenomes como Carter (e, presumivelmente, Davis e Lewis) seriam “improváveis de serem percebidos como não brancos ou como hispânicos”. No entanto, muitos afro-americanos possuem atualmente esses sobrenomes devido às práticas de nomeação de escravos para pessoas que eles sequestraram da África durante os 300 anos de comércio transatlântico de escravos. Consequentemente, jornalistas conscientes disso podem ter percebido esses nomes como pertencentes a pesquisadores negros. Isto destaca outra maneira pela qual as informações demográficas etnorraciais sobre os próprios jornalistas foram cruciais para interpretar estes resultados.
O que não considerar
De modo geral, deve-se manter os resultados deste estudo de forma leve, e mais pesquisas devem ser feitas para verificar o quanto estes resultados se aplicam aos jornalistas científicos em geral. Bottesini e colegas apresentam um excelente caso para a importância dos padrões dos jornalistas científicos para o que o público vê como a “verdade”. Entretanto, há deficiências significativas na falta de reportagens sobre demografia racial, principalmente recrutando jornalistas dentro de uma das redes de autores e não reconhecendo a amplitude de métodos qualitativos rigorosos disponíveis nas ciências sociais. Por exemplo, os autores às vezes dizem que os estudos experimentais foram considerados mais confiáveis do que os estudos “observacionais” ou “correlacionais”. Além disso, vários métodos de observação qualitativa não foram testados nem mencionados pelos jornalistas.
Os autores concluem que os jornalistas preferem estudos com um tamanho de amostra maior que 500, estudos experimentais em vez de estudos correlacionais, revistas de maior prestígio e valores de p que são estatisticamente significativos. Os jornalistas desta amostra priorizam valores de p significativos no nível 0,05 geralmente sem priorizar estudos com valores de p próximos a 0. Isto sugere que muitos jornalistas como os deste estudo podem não ter a perícia estatística ou podem não empregar plenamente seus conhecimentos para avaliar a validade dos estudos.
Entretanto, Bottesini e colegas reconhecem que seus resultados podem refletir parcialmente o que os jornalistas pensam que devem usar para avaliar a pesquisa, ao invés do que eles realmente usam. Portanto, eles sugerem mais estudos qualitativos e observacionais sobre como os jornalistas avaliam a pesquisa para aumentar a relevância dos conceitos estudados para o que os jornalistas tendem a fazer de fato. Isto inclui estudos sobre como os jornalistas são ensinados sobre como avaliar a pesquisa.
Bottesini e colegas lamentam a presença de “muita conversa e pouca ação” sobre como melhorar a representatividade das amostras. Eles sugerem que a falta de ação pode ser parcialmente devido à falta de conseqüências.
“Achados baseados em amostras que não são muito representativos da população que os pesquisadores afirmam estar estudando (por exemplo, “estudantes universitários”) foram classificados como confiáveis e dignos de notícia como achados de estudos onde a amostra e a população são mais parecidas (por exemplo, “pessoas de uma amostra nacional”).
Dado o esforço extra freqüentemente necessário para recrutar amostras mais representativas, se as conseqüências forem triviais, pelo menos até a exposição da mídia e as críticas dos jornalistas, isto poderia ajudar a perpetuar o status quo”.
Estas descobertas destacam a necessidade de pesquisa sobre os padrões dos jornalistas científicos, mas cometem alguns dos mesmos erros que os autores invocam. A ciência rigorosa exige reportagem e compreensão de como nossas amostras se relacionam com a demografia do mundo real e a demografia das populações específicas pesquisadas (neste caso, os jornalistas). Ser um “bom cão de guarda” e entregar a verdade ao público requer não apenas compreensão estatística e interpretações contextualizantes, mas também consciência de como a história afeta as percepções e reportagens de todas as informações demográficas relevantes.
****
Bottesini, J. G., Aschwanden, C., Rhemtulla, M., & Vazire, S. (2022, July 19). How Do Science Journalists Evaluate Psychology Research? https://doi.org/10.31234/osf.io/26kr3 (Link)
Nursing staff at Hadamar Euthanasia Centre, a psychiatric hospital in Germany
O homicídio dos “inaptos” da Alemanha nazista começou com o assassinato sistemático de pacientes psiquiátricos, que foram considerados como portadores de genes defeituosos. Em um exame aprofundado desta história publicada na Ethical Human Psychology and Psychiatry, John Read e Jeffrey Masson apresentam uma argumentação que, reconhecendo este passado – e vendo uma conexão com elementos da psiquiatria biológica hoje – se deveria apressar uma mudança em direção a um paradigma de cuidado humano, informado pelo trauma.
Eles escrevem:
“O campo da saúde mental parece haver estado, durante décadas, cada vez mais próximo de uma mudança de paradigma, de um ‘modelo médico’ simplista, pessimista e biogenético do sofrimento humano para uma abordagem mais matizada e baseada em evidências, psicossociais e trauma-informado. Mas para os autores deste artigo, que, assim como milhares de outras pessoas têm defendido por muitos anos um maior foco no abuso, adversidade e trauma, parece que o progresso em direção a essa mudança de paradigma tem sido excruciantemente lento . . . . Alguns podem argumentar que o que aconteceu na Alemanha há 80 anos tem pouco a ver com a forma como a psiquiatria funciona, internacionalmente, hoje. No entanto, documentamos e discutimos estes trágicos e terríveis acontecimentos, mais uma vez, precisamente porque eles ilustram tão claramente temas presentes ao longo da história do tratamento de pessoas consideradas loucas e que permanecem operantes hoje: controle social em prol do interesse dos que detém poder; ‘tratamentos’ prejudiciais e às vezes até violentos; e a capacidade dos especialistas de camuflar o que realmente está acontecendo como sendo do melhor interesse dos destinatários dos tratamentos”.
Nursing staff at Hadamar Euthanasia Centre, a psychiatric hospital in Germany
As afirmações de que a esquizofrenia e outros grandes transtornos mentais eram devidos a maus genes levaram primeiro a programas de esterilização nos Estados Unidos, países escandinavos e Alemanha, e depois a que os “doentes mentais” fossem o primeiro grupo alvo da extinção no Holocausto.
Os psiquiatras lembrados hoje como fundadores da psiquiatria biológica, incluindo Emil Kraepelin e Eugen Bleuler, ajudaram a promover ideias eugenistas. As afirmações de que a esquizofrenia e outros grandes distúrbios mentais eram devidos a maus genes levaram primeiro a programas de esterilização nos Estados Unidos, países escandinavos e Alemanha, e depois a que os “doentes mentais” fossem o primeiro grupo alvo da extinção no Holocausto.
Os Estados Unidos foram os primeiros a transformar ideias eugênicas em política social. Em 1907, Indiana se tornou o primeiro estado a autorizar a esterilização compulsória dos doentes mentais, e em 1927 a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que tais leis estaduais eram constitucionais.
Um dos principais autores de tal legislação na Alemanha foi Ernst Rudin, professor de psiquiatria na Universidade de Munique e Basiléia. A Alemanha promulgou a sua lei de esterilização em 1933; seis anos depois, 350.000 alemães haviam sido esterilizados, sendo que cerca de um terço deste grupo foi diagnosticado com esquizofrenia.
Pelo menos alguns psiquiatras falavam em matar os doentes mentais antes da ascensão de Adolph Hitler ao poder. Em 1920, o psiquiatra alemão Alfred Hoche escreveu que as instituições psiquiátricas estavam cheias de “cascas humanas vazias … Sua vida não vale a pena; portanto, sua destruição não só é tolerável, mas humana”.
Em 1939, um grupo de importantes psiquiatras das escolas médicas mais prestigiadas da Alemanha ajudou a desenvolver um plano para matar os doentes mentais. Seis hospitais psiquiátricos foram equipados com câmaras de morte, com monóxido de carbono sendo o gás de escolha. No final da guerra, cerca de 250.000 pacientes mentais na Alemanha haviam sido assassinados, e um número desconhecido de pacientes em hospitais psiquiátricos franceses, poloneses e austríacos também morreram de fome durante este período.
Depois de rever esta história, Read e Masson concluem: “Assim, o assassinato em massa de pacientes mentais por psiquiatras forneceu a fundamentação ‘científica’, os profissionais e o equipamento, para o Holocausto”.
Enquanto os oficiais do Terceiro Reich enfrentavam processo criminal nos julgamentos de Nuremberg, a maioria dos psiquiatras que promoveram o assassinato de pacientes de asilo “escaparam da censura ou punição”. De fato, muitos voltaram à prática e adquiriram à proeminência no campo, observam os autores. Três dos primeiros 12 presidentes da Sociedade Alemã de Psiquiatria e Neurologia haviam sido os organizadores do programa de “eutanásia”. Um professor alemão de psiquiatria envolvido na matança de crianças, Werner Villinger, foi convidado para uma conferência na Casa Branca sobre crianças.
Durante décadas, esta história não foi encontrada em nenhum lugar nos livros ou histórias de psiquiatria e, em sua maioria, tais textos continuam a evitá-la hoje em dia. Algumas vezes, os textos até citam Rudin e outros psiquiatras alemães desta época por seu “trabalho pioneiro” na “genética dos distúrbios psiquiátricos”. Estudos sobre gêmeos que remontam à era nazista ainda são citados por fornecerem evidências de que existe um forte componente genético para a “esquizofrenia”.
Teorias genéticas sobre esquizofrenia e outros transtornos mentais, Read e Masson escrevem, permanecem ainda hoje “uma pedra angular da psiquiatria biológica”. Após a guerra, tais noções foram promovidas na psiquiatria americana e no exterior. De 1947 a 1956, o American Journal of Psychiatry publicou atualizações anuais de “progresso psiquiátrico” sobre o tema “Hereditariedade e Eugenia”, que foram escritas por Franz Kallmann, que tinha argumentado nos anos 30, enquanto vivia na Alemanha, que não só os “esquizofrênicos”, mas também seus parentes deveriam ser esterilizados.
Nos anos 50, Kallmann começou a defender o “aconselhamento genético” como um método para remover genes defeituosos da esquizofrenia do pool genético. Essa prática permanece viva e bem viva. A esquizofrenia é ainda hoje considerada como tendo uma forte base genética, apesar da falta de identificação de genes específicos para o distúrbio e da descoberta de que a genética, de fato, é responsável por apenas uma porcentagem muito pequena dos fatores de risco. No entanto, uma pesquisa de 2008 informou que os psiquiatras americanos “expressavam uma visão fortemente positiva dos testes genéticos”, com um site líder nos EUA, schizophrenia.com, afirmando que “o aconselhamento genético para doenças psiquiátricas como a esquizofrenia está se tornando mais difundido e o seu uso está sendo demonstrado com sucesso”.
Read e Masson escrevem: “Esta prática, de informar as pessoas diagnosticadas com ‘esquizofrenia’ e seus parentes que seus descendentes podem herdar a suposta doença, desencorajando assim a reprodução, ainda está conosco”.
Além disso, eles observam que hoje em dia há o tratamento forçado de pacientes mentais com “drogas que encurtam a vida e causam estupor e disfunção sexual” e a promoção de “choques elétricos que muitas vezes causam perda de memória e danos cerebrais”. Estas são práticas que, pelo menos para alguns, ecoam os abusos da era eugênista.
Esta é uma conexão do passado com o presente que não é bem-vinda na psiquiatria de hoje. Read e Masson submeteram primeiro o seu artigo à revista History of Psychiatry, que o rejeitou porque “não era adequado aos objetivos atuais e ao equilíbrio temático da Revista”.
Read e Masson exploraram este capítulo sombrio com a esperança de se reformar os cuidados hoje em dia. Conhecendo este passado, eles escrevem, podem ajudar-nos a produzir uma mudança de paradigma em direção a um modelo de cuidado mais humano e informado sobre o trauma.
“Cabe a todos os trabalhadores da saúde mental, a todos nós, de fato, estar constantemente atentos às nossas próprias falhas em perceber as inúmeras maneiras pelas quais os humanos são prejudicados por outros humanos, incluindo – talvez o mais difícil de reconhecer pelo próprio pessoal da saúde mental”.
****
Read, J., Masson J. (2022). Biological psychiatry and the mass murder of “schizophrenics”: From denial to inspirational alternative. Ethical Human Psychology and Psychiatry24(2). https://doi.org/10.1891/EHPP-2021-0006. Link
Publicamos recentemente um artigo onde concluímos que a hipótese de depressão por serotonina (a idéia de que a depressão é causada por baixa atividade de serotonina ou serotonina reduzida) não é apoiada por estudos científicos que têm sido conduzidos nas últimas décadas. A hipótese da serotonina foi comunicada ao público como a teoria do “desequilíbrio químico” da depressão. Em pesquisas, 85 a 90% das pessoas nos países ocidentais relatam acreditar que a depressão é causada por um desequilíbrio químico.
Sugerimos que a ideia de que a depressão é causada por baixa serotonina ou por um desequilíbrio químico não deve mais ser comunicada aos pacientes, pois não é apoiada por pesquisas.
Isto também coloca em questão o que os antidepressivos estão fazendo: se eles não estão corrigindo um problema químico subjacente, como é dito muitas vezes às pessoas (“como insulina para diabetes”), então outras formas de entender o que essas drogas estão fazendo, como fornecer esperança (o efeito placebo) ou entorpecer as emoções (um relato comum dos pacientes) podem ser descrições mais precisas.
Os psiquiatras na Grã-Bretanha, alguns deles com relações de carreira com a indústria farmacêutica, responderam às descobertas de nosso trabalho e suas implicações aqui, que foram então relatadas em vários artigos da mídia cobrindo o nosso trabalho. Gostaríamos de responder a essas críticas.
Gostaríamos de dizer primeiro que ninguém deve parar abruptamente a medicação antidepressiva – isto pode ser perigoso e é conhecido por causar efeitos de abstinência, que podem ser severos e duradouros em algumas pessoas, especialmente naquelas que usam a medicação a longo prazo. Se alguém estiver considerando esta escolha, aconselhamos que a discuta com seu médico e, se for adiante, empreenda uma redução gradual e apoiada, conforme aconselhado pela recente orientação do Royal College of Psychiatry.
Respostas contraditórias – a teoria do desequilíbrio da serotonina nunca foi apoiada e também continua a ser apoiada
Há alguns aspectos notáveis das críticas a serem observados antes de abordarmos críticas específicas. O primeiro é que as críticas ao nosso trabalho têm sido contraditórias, com alguns psiquiatras proeminentes dizendo não haver nada de novo em nossa revisão (“realmente sem surpresas”, “não é notícia”), pois já se entendia que a depressão não era causada por baixa serotonina. No entanto, outros psiquiatras disseram que seria “prematuro” descartar a hipótese da serotonina e que são necessários mais estudos (apesar desta hipótese ter sido estudada há mais de 50 anos). A existência de pontos de vista contraditórios revela a dissonância cognitiva no campo.
Desconexão entre o público e os psiquiatras
O segundo fato notável é quão díspar foi a resposta dos psiquiatras e do público, com a maioria dos psiquiatras se esquivando da descoberta como a um espantalho de palha dizendo “Acho que nunca conheci nenhum cientista ou psiquiatra sério que pense que todos os casos de depressão são causados por um simples desequilíbrio químico de serotonina” e que eles estão “amplamente de acordo com a conclusão dos autores sobre os nossos esforços atuais”.
Em contraste, houve uma avalanche de interesse do público – com mais de um milhão de leituras no The Conversation, e uma ampla cobertura da mídia, de modo que nosso trabalho está agora entre os 600 melhores trabalhos já compartilhados (de 21 milhões de trabalhos que foram rastreados). Este interesse provavelmente deriva de quão difundida é a mensagem de que a depressão é causada por um desequilíbrio químico e que os antidepressivos funcionam ao corrigir este desequilíbrio. Muitas pessoas, incluindo jornalistas, ficaram chocadas ao descobrir que isso não é verdade, com um apresentador comentando “isso explode a nossa cabeça”.
Pode ser que os psiquiatras tenham uma compreensão mais “sofisticada” do papel da serotonina do que o público leigo, mas os psiquiatras não conseguiram corrigir este mal-entendido. Vários acadêmicos têm dito que “nunca dissemos esta explicação a ninguém”. No entanto, o público está recebendo claramente esta explicação: na semana passada, na Inglaterra, um médico da rádio BBC disse ao público que na depressão “há um desequilíbrio químico e um antidepressivo dado na hora certa ajudará com esse desequilíbrio químico”. A mesma mensagem foi dada ao público em um importante programa de televisão britânico de manhã, no início do ano, por outro médico. Não é surpreendente que a grande maioria do público em geral (como mostrado em pesquisas) acredite que esta mensagem seja um fato científico estabelecido.
Sabemos, a partir de nossa análise de livros didáticos e artigos de periódicos, que a ideia de baixa serotonina (o “desequilíbrio químico”) foi difundida na literatura médica e continua sendo assim em muitos livros didáticos atuais. Só recentemente o Royal College of Psychiatrists na Grã-Bretanha removeu a sua referência aos desequilíbrios químicos, descrevendo a teoria como uma “simplificação excessiva“, mas sem explicar que não há provas de baixos níveis de serotonina, ou mesmo de qualquer outra teoria neuroquímica sobre as causas da depressão. A Associação Psiquiátrica Americana continua a dizer ao público que “diferenças em certos produtos químicos no cérebro podem contribuir para os sintomas da depressão”.
Os psiquiatras não conseguem apreciar o enorme impacto para os pacientes de serem informados de que a depressão é causada por um problema químico no cérebro e que os antidepressivos podem corrigir este problema. Patinar sobre esta questão para se voltar para hipóteses alternativas sobre a causa da depressão ou o mecanismo de ação dos antidepressivos negligencia a abordagem do fato de que os pacientes foram enganados. É alarmante ouvir que existe um problema no cérebro e é enganoso sugerir que sabemos que existem medicamentos que podem consertá-lo.
Esta narrativa encoraja fortemente as pessoas a tomarem antidepressivos porque parece totalmente racional tomar uma droga que reverte um problema químico subjacente; de fato, parece irresponsável não fazer isso. O que está sendo descartado como semântica trivial pelos especialistas tem tido consequências para as escolhas de vida e para a autopercepção de centenas de milhões de pacientes em todo o mundo. Imagine ser informado de que você tinha um grande problema no coração que exigia medicação para consertar – e vem a descobrir que esse problema não estava realmente presente.
Para o público, o desequilíbrio químico não tem sido um espantalho de palha ou uma aproximação semântica, mas algo que tem guiado a direção de suas vidas, escolhas e saúde. Sabemos que acreditar que sua depressão é causada por um desequilíbrio químico tende a tornar as pessoas mais pessimistas sobre a recuperação (vendo seus sintomas como crônicos e intratáveis), leva-as a acreditar que têm menos capacidade de regular seu humor, e também as leva a acreditar que a medicação é uma solução mais credível do que a terapia. Devemos contrariar ativamente este mito e removê-lo das informações médicas transmitidas aos pacientes porque não é apoiado por evidências.
O mecanismo de ação dos antidepressivos não importa, pois sabemos que eles funcionam
O outro argumento levantado pelos críticos foi que mesmo que os antidepressivos não estejam retificando um problema químico subjacente, eles ainda podem ser eficazes modificando os neurotransmissores – e nós usamos muitos medicamentos cujo mecanismo não entendemos. Alguns críticos disseram: “Muitos de nós sabemos que tomar paracetamol pode ser útil para dores de cabeça e acho que ninguém acredita que as dores de cabeça são causadas pela falta de paracetamol no cérebro. A mesma lógica se aplica à depressão e aos remédios usados para tratar a depressão”.
Antes de tudo, a analogia é enganosa porque sabemos que o paracetamol funciona ao visar os mecanismos que produzem dor, e não produz uma alteração nas emoções normais e na experiência mental. Com os antidepressivos, não temos evidências de que eles visam a base biológica subjacente dos sintomas depressivos, e eles produzem mudanças mentais e emocionais que podem explicar seus efeitos.
Em segundo lugar, sugerimos que saber como um medicamento funciona, ou o que exatamente ele faz, é de importância crucial para avaliar se é útil ou não. Com uma droga que modifica a química cerebral de maneiras que não entendemos completamente, seria sábio adotar uma abordagem cautelosa e desconfiar de usá-la por longos períodos de tempo em uma base diária contínua. Esta é uma proposta muito diferente de tomar uma droga que reverte uma deficiência subjacente.
Com os antidepressivos, estamos procurando a heurística, ou regras de conduta, para dar sentido ao que esses medicamentos estão fazendo no contexto de ensaios aleatórios de curto prazo que mostram diferenças marginais em relação ao placebo (com a grande maioria dos estudos durando menos de 12 semanas). A idéia de que os medicamentos funcionam retificando um desequilíbrio subjacente é muito tranquilizadora. De fato, quem recusaria um tratamento tão “chave e fechadura”? E esta parece ter sido a estratégia de marketing das empresas farmacêuticas para propagar esta linha. Por exemplo, não estamos excessivamente preocupados com o uso de insulina em diabetes a longo prazo porque a complementação de um produto químico natural de volta aos níveis normais parece improvável que seja uma abordagem prejudicial.
No entanto, se a abordagem do tratamento for agora rebatizada como alterando a química cerebral em um sistema que não tem nenhum problema detectável subjacente (ou envolve uma alteração complexa e matizada da serotonina ainda mal compreendida), então estamos diante de uma proposta muito diferente. O cérebro humano evoluiu ao longo de milhões de anos e envolve milhares de sistemas químicos interdependentes para regular processos no corpo e no cérebro. É uma pergunta válida a ser feita: qual é o efeito no cérebro de modificar a ação de um neurotransmissor neste sistema complexo e interdependente, especialmente a longo prazo?
Podemos ser guiados na resposta a esta pergunta pelos efeitos de outras substâncias que afetam os processos mentais, como pensamentos e sentimentos, incluindo drogas recreativas como o álcool. Estas tendem a causar tolerância ao uso repetido e efeitos de abstinência quando são interrompidas; esta combinação é normalmente chamada de dependência física (um estado distinto do vício). A maioria dessas drogas também tem efeitos prejudiciais em coisas como concentração e memória quando são usadas com freqüência ou continuamente. Sabemos que estas preocupações teóricas se confirmam na prática com o uso de antidepressivos: existem efeitos de abstinência – que podem ser graves e duradouros em algumas pessoas – e impactos negativos na memória, concentração e sono, sem mencionar os efeitos sexuais e outros efeitos adversos físicos.
Devemos usar antidepressivos porque sabemos que eles funcionam, mesmo que não compreendamos o seu mecanismo de ação
Muitos críticos têm apresentado o argumento de que não importa que os antidepressivos não estejam retificando um desequilíbrio químico porque sabemos que eles são eficazes a partir de ensaios clínicos (e o mecanismo de ação é uma preocupação secundária).
Primeiro, é importante lembrar que a maioria dos efeitos de um antidepressivo se deve a uma combinação do curso natural de nossos estados de ânimo e efeitos placebo. Quando você observa todos os ensaios controlados aleatórios que foram realizados juntos (como neste trabalho de meta-análise) eles mostram que os antidepressivos são um pouco melhores que um placebo (um comprimido de açúcar inativo), mas não muito. As metanálises rotineiramente descobrem que placebos produzem uma melhora de 10 pontos, enquanto os antidepressivos produzem uma melhora de 12 pontos, em uma escala de depressão de 52 pontos, após 6 semanas de tratamento. Muitos têm argumentado que esta diferença de 2 pontos entre antidepressivos e placebo não representa uma diferença que valha a pena.
Na verdade, não é certo que haja tanta diferença como esta, pois existem problemas metodológicos com estes estudos que podem explicar esta pequena diferença entre medicamentos e placebo. Estes incluem a possibilidade de que as pessoas que tomam antidepressivos tenham um efeito placebo real, porque alguns poderão adivinhar que eles adquiriram a droga real devido a efeitos colaterais e outras sugestões sutis. De fato, em um estudo, no qual todos os pacientes receberam um antidepressivo, mas metade disse que era um placebo e a outra metade disse a verdade, aqueles que foram informados que tinham recebido um antidepressivo mostraram duas vezes a mudança nos escores de ansiedade e depressão em comparação àqueles que acreditavam ter recebido o placebo. As expectativas podem ter um efeito poderoso no resultado.
Críticas recentes aos testes de antidepressivos são detalhadas neste artigo e neste artigo aqui. Outros pontos importantes são que estes ensaios são quase todos conduzidos por empresas farmacêuticas, e a grande maioria deles duram apenas algumas semanas, enquanto, é claro, muitas pessoas acabam tomando antidepressivos durante meses e freqüentemente anos. Em geral, os efeitos dos medicamentos tendem a diminuir com o tempo, especialmente para medicamentos associados a efeitos de abstinência, tais como antidepressivos.
Mesmo que existam pequenas diferenças entre antidepressivos e placebo que não são explicadas por artefatos dos métodos de ensaio, existem outros mecanismos que podem explicar seus efeitos e, portanto, não podemos supor que eles funcionem corrigindo um problema químico subjacente (como descrito mais adiante).
Os antidepressivos podem funcionar através de um mecanismo diferente da serotonina
Vários críticos disseram que embora os antidepressivos não funcionem corrigindo uma deficiência de serotonina, existem muitos outros possíveis mecanismos biológicos de depressão que eles podem estar alvejando. Os possíveis mecanismos incluem: agir por neurogênese, “devido a mudanças complexas no funcionamento neuronal”, aumentar os níveis de neurotransmissores, ou mudar os vieses cognitivos agindo sobre o cérebro. Um psiquiatra apontou que existem 59 hipóteses biológicas para o porquê de a depressão poder ocorrer e os antidepressivos podem estar trabalhando em qualquer uma destas anormalidades propostas. Uma ou mais dessas hipóteses podem surgir, mas no momento elas permanecem como hipóteses – isto é, são ideias especulativas, não comprovadas sobre coisas que podem ser relevantes, e a maioria delas vem do trabalho em animais ou células em um prato.
Esta linha de argumentação ilustra como a maioria dos críticos simplesmente assume que deve haver algo errado com o cérebro: “é muito claro que as pessoas que sofrem de doenças depressivas têm alguma anormalidade no funcionamento do cérebro, mesmo que não saibamos o que é”. Eles também assumem que os antidepressivos devem estar agindo sobre os processos biológicos que sustentam a depressão e isto revela como eles estão ligados ao que tem sido chamado de modelo de ação medicamentosa “centrado na doença”. Esta é a idéia de que as drogas para problemas de saúde mental só podem funcionar revertendo as anormalidades cerebrais subjacentes que são responsáveis pela produção dos sintomas dos problemas de saúde mental.
Entretanto, um de nós vem argumentando há muitos anos que existe uma explicação alternativa para como as drogas psiquiátricas funcionam – o modelo “centrado nas drogas”. Isto sugere que as drogas psiquiátricas afetam os sintomas e o comportamento mental através da alteração do funcionamento normal do cérebro e, através disto, alterando as experiências e atividades mentais normais. Quando o álcool, por exemplo, reduz a ansiedade social devido às típicas mudanças mentais e comportamentais que produz, reconhecemos que estes efeitos ocorrem em qualquer pessoa, independentemente de sofrer ou não de um transtorno de ansiedade social diagnosticado.
Qualquer droga que altera a atividade cerebral normal provavelmente terá algum impacto no humor e, de fato, drogas com muitos tipos diferentes de ações químicas demonstraram ter efeitos comparáveis a drogas que são classificadas como antidepressivos, incluindo opiáceos, benzodiazepinas, estimulantes e antipsicóticos.
Em virtude da mudança da química cerebral, os antidepressivos também produzem mudanças na atividade mental normal e nas experiências. A natureza dessas mudanças depende do tipo de antidepressivo – alguns antidepressivos são fortemente sedativos, por exemplo, mas outros são menos sedativos. Os medicamentos sedativos podem melhorar o sono e reduzir a ansiedade, o que pode se refletir em uma diminuição da pontuação de sintomas de depressão (porque as escalas de depressão incluem vários itens sobre sono e ansiedade), mas também podem fazer as pessoas se sentirem grogues durante o dia.
Os antidepressivos são amplamente reconhecidos por entorpecerem as emoções (de maneira dosada), incluindo não apenas tristeza e ansiedade, mas também emoções bem-vindas como felicidade e alegria. É provável que as emoções entorpecidas também reduzam os índices de depressão, e pode ser experimentado como útil por alguém com um problema de saúde mental, mas pode não ser.
Todos estes efeitos podem ser responsáveis pela pequena diferença encontrada entre antidepressivos e placebos em testes aleatórios (se estes não forem devidos a artefatos metodológicos). Portanto, a diferença entre placebo e antidepressivos não demonstra nada sobre a base da depressão, a menos que você faça a suposição certamente indefensável de que todos os efeitos descritos acima não são relevantes.
Tomar uma droga que entorpece as emoções pode parecer um alívio para alguém que está profundamente infeliz, temeroso ou confuso. Mas, a longo prazo, tomar uma droga que altera a química cerebral normal pode ter efeitos nocivos. Na verdade, sabemos que os antidepressivos causam dependência física. O cérebro se altera para tentar neutralizar os efeitos da droga, e então quando as pessoas perdem uma dose ou param de tomar a droga, experimentam efeitos de abstinência, que são uma consequência de que as mudanças no cérebro não são mais opostas pela droga. Estes podem ser severos e prolongados, especialmente se as pessoas tiverem usado a droga por um longo tempo.
O uso a longo prazo de drogas que entorpecem as emoções também pode ter consequências psicológicas prejudiciais porque pode impedir as pessoas de encontrar outras formas, potencialmente mais duradouras, de administrar suas emoções. Também pode impedir que as pessoas identifiquem e enfrentem os problemas que as deixaram deprimidas em primeiro lugar.
Mas os ISRSIs funcionam, portanto deve haver um problema de serotonina de algum tipo
Só porque os antidepressivos ISRS mostram benefícios marginais sobre o placebo em ensaios aleatórios (como acima), não significa logicamente que a depressão esteja relacionada à serotonina. Por exemplo, o fato de que o álcool melhora a ansiedade social não significa que a ansiedade social seja causada por uma deficiência de álcool. E não pensamos que as dores de cabeça sejam causadas por uma deficiência de paracetamol, como até mesmo muitos dos críticos apontaram. Esta linha de raciocínio é tão comum que existe até mesmo um termo para esta falácia – a falácia ex juvantibus (fazer inferências sobre as causas de uma doença a partir da resposta a um tratamento).
A relação da serotonina com a depressão é mais matizada
Muitos dos críticos especialistas sugeriram que, embora reconheçam que uma simples deficiência de serotonina não explica a depressão das pessoas, “mudanças no sistema de serotonina podem estar contribuindo para seus sintomas”, de uma forma mais matizada, complicada e ainda mal compreendida. Em certo sentido isto é provavelmente verdade – que a serotonina de alguma forma complexa está envolvida na depressão – e concordamos com um crítico que disse: “seria surpreendente se um sistema neuromodulatório cerebral tão amplamente distribuído estivesse completamente desvinculado das experiências complexas que compõem a depressão clínica”.
De fato, também é provavelmente verdade que noradrenalina, dopamina, inflamação, cortisol, glutamato e substância P em várias redes neuromodulatórias interligadas estão todos envolvidos em alguma forma matizada, complicada e mal compreendida na depressão – porque é claro que o cérebro trabalha com eletricidade e química e, portanto, estes estarão envolvidos em diferentes estados de humor. Seria igualmente verdadeiro dizer que a serotonina (e todas essas outras substâncias) está envolvida de alguma forma complexa e matizada em fome, medo, alegria, pensar, andar, falar e dormir. É essencialmente uma afirmação não testada e não falsificável dizer que uma determinada substância química está envolvida de forma complexa e matizada na depressão.
Entretanto, é um tipo muito diferente de afirmação dizer que um neurotransmissor específico é alterado na depressão e fornece um alvo para tratamento. O argumento não específico de que a serotonina está envolvida de alguma forma complexa e matizada não é uma base sólida para manipular a serotonina como tratamento para a depressão. Isto é semelhante a fazer uma afirmação geral de que a biologia está envolvida na depressão (como certamente está) para justificar o uso de qualquer tratamento biológico. A biologia está envolvida no diabetes, mas isto não justifica qualquer tratamento biológico (por exemplo, medicação para a pressão arterial). Ao invés disso, um problema biológico específico (produção insuficiente de insulina) é usado para justificar um remédio específico (insulina exógena).
Entendimentos alternativos da depressão
Nenhum dos especialistas que criticaram nossa pesquisa ou se apressaram em defender o uso de antidepressivos reconheceu que existem outras formas de entender a depressão, e outras abordagens para ajudar as pessoas que sofrem com ela.
Há inúmeras pesquisas que mostram que os eventos estressantes da vida predizem fortemente a depressão. Um estudo descobriu que combinando isto com a estrutura da personalidade (“neurotismo”, que poderia ser entendido como essencialmente sensibilidade ao estresse) mostra uma relação incrivelmente forte com o risco de depressão – uma força de relacionamento totalmente ausente das pesquisas sobre mudanças no cérebro.
Isto não é para descartar a idéia de que a biologia está envolvida em nossos estados de ânimo de alguma forma – a genética tem um papel significativo na formação de nossa personalidade, por exemplo, juntamente com a educação e talvez particularmente as experiências de infância. No entanto, o papel da biologia de alguma forma geral não é o mesmo que propor um problema biológico específico que pode ser revertido com um tratamento biológico supostamente direcionado.
Algumas pessoas sugerem que mesmo se fatores ambientais precipitam a depressão, sentimentos depressivos ainda são produzidos por produtos químicos cerebrais e, portanto, modificar esses produtos químicos pode ajudar a aliviar esses sentimentos. Uma analogia pode demonstrar a limitação desta abordagem. Sabemos que o aprendizado do japonês produzirá mudanças nos sinais elétricos e na química do cérebro. Entretanto, acharíamos estranho se um estudante de japonês decidisse que gostaria de descobrir quais eram essas mudanças químicas e elétricas em vez de assistir a mais aulas de japonês. Da mesma forma, se soubermos que situações que produzem insegurança e estresse levam à depressão, tentar delinear os correlatos químicos específicos da depressão pode ser menos produtivo do que lidar com as situações desafiadoras que são a causa raiz da mesma.
Em geral, a busca da base cerebral da depressão na química pode estar cometendo um erro de categoria, confundindo problemas na mente com problemas no cérebro, como abrir o capô de um computador quando um pedaço de software trava.
Resumo
Em geral, embora os psiquiatras acadêmicos possam ter uma visão mais sofisticada do papel da serotonina na depressão do que a simples diminuição (embora alguns continuem a defender esta explicação), esta explicação para a depressão tem sido amplamente comunicada ao público como a teoria do “desequilíbrio químico” da depressão e isto tem afetado suas escolhas de tratamento e como eles se vêem. Isto provavelmente explica o considerável interesse gerado por nosso trabalho.
Apesar das opiniões em contrário, ser informado que uma droga age sobre a causa química subjacente da depressão é bem diferente de ser informado que ela muda o cérebro de maneiras que não entendemos, e pode agir através de efeitos placebo ou entorpecimento. Esta informação provavelmente terá um efeito profundo sobre como as pessoas avaliam os antidepressivos e as decisões que tomam sobre eles. A eficácia dos antidepressivos em ensaios clínicos ainda é altamente contestada, e outras teorias propostas sobre como os antidepressivos poderiam visar processos biológicos hipotéticos subjacentes à depressão não foram provadas ou demonstradas em humanos.
Nossa abordagem geral para buscar a equação química da depressão pode não ser a maneira mais frutífera de entender a depressão, dado que há evidências tão fortes que os eventos estressantes da vida estão intimamente ligados ao início da depressão.
***
Mad in America recebe blogs de um grupo diversificado de escritores. Estes posts são projetados para servir como um fórum público para uma discussão- a psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são as próprias dos escritores.
Dr Mark Horowitz, PhD, é Pesquisador Clínico em Psiquiatria no North East London NHS Foundation Trust e Pesquisador Clínico Honorário no University College London. Sua pesquisa e seu trabalho clínico concentram-se na psicofarmacologia racional e na desmedicação segura, um interesse primeiramente despertado pelos graves efeitos de abstinência que ele teve consigo próprio ao sair dos antidepressivos. Twitter: @markhoro.