Manual de psiquiatria crítica, capítulo 1: Por que um manual crítico de psiquiatria?

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Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, o autor apresentará o livro. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui. 

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Estudantes de medicina, psicologia, psiquiatria e profissionais de saúde de uma forma geral aprendem sobre psiquiatria lendo manuais psiquiátricos. Eles geralmente acreditam no que leem e o reproduzem em suas provas. Portanto, é muito importante que as informações transmitidas nesses livros de psiquiatria estejam corretas.

E esse é o problema. Há uma enorme divisão entre a narrativa psiquiátrica oficial e o que a ciência mostra. Muito do que os principais psiquiatras dizem e escrevem sobre a confiabilidade dos diagnósticos psiquiátricos; as causas dos transtornos psiquiátricos; se eles podem ser vistos em uma varredura do cérebro ou na química do cérebro; e quais são os benefícios e malefícios das drogas psiquiátricas, eletrochoque e tratamento forçado está incorreto. Isso foi amplamente documentado por psiquiatras críticos e outros.1-11

A discrepância entre opinião e ciência também é prevalente em livros de psiquiatria. As próximas gerações de profissionais de saúde irão, em detrimento de seus pacientes, aprender ao longo dos seus estudos o que é comprovadamente incorreto. É por isso que um manual crítico de psiquiatria é necessário.

Mais do que em qualquer outra especialidade, a psiquiatria é uma disciplina onde é de extrema importância ouvir os pacientes, que é a base do sistema diagnóstico. Mas quando a questão é sua própria prática, os psiquiatras raramente estão dispostos a ouvir, embora o público em geral tenha experimentado que a psiquiatria, como é praticada atualmente, faz mais mal do que bem.

Uma pesquisa com 2.031 australianos mostrou que as pessoas pensavam que antidepressivos, antipsicóticos, eletrochoque e internação em uma ala psiquiátrica eram mais prejudiciais do que benéficos.12 Os psiquiatras sociais que fizeram a pesquisa ficaram insatisfeitos com as respostas e argumentaram que as pessoas deveriam ser treinadas para chegar à “opinião certa”. 

Mas eles estavam errados? Acho que não. Como mostrarei neste livro, suas opiniões estão de acordo com as informações científicas mais confiáveis que temos.

Temos uma situação em que os “clientes”, os pacientes e seus familiares, não concordam com os “vendedores”, os psiquiatras. Quando este é o caso, os provedores geralmente são rápidos em mudar seus produtos ou serviços, mas isso não acontece na psiquiatria, que tem o monopólio do tratamento de pacientes com problemas de saúde mental e tem os médicos de família como sua complacente equipe de vendas na linha de frente, que não fazem perguntas desconfortáveis sobre o que estão vendendo.

Você pode se perguntar quem eu sou e por que deveria confiar em mim e não nos psiquiatras que escrevem livros didáticos. Bem, não é uma questão de confiança, mas de quem tem os argumentos mais válidos. E isso cabe a você decidir. Tentei ajudá-lo documentando cuidadosamente porque concluo que algumas afirmações nos livros didáticos estão erradas e dissecando pesquisas para explicar o motivo de alguns trabalhos serem mais confiáveis do que outros.

O debate sadio e sem preconceitos sobre questões essenciais na psiquiatria é raro. Quando os defensores do status quo não têm contra-argumentos válidos contra as críticas de suas práticas, eles não respondem às críticas, mas atacam a credibilidade de seu oponente.7 Se você fizer perguntas a seus professores com base neste livro ou em outros livros6-8 ou artigos científicos que escrevi, você pode encontrar respostas como, “Gøtzsche? Nunca ouvi falar dele” (mesmo sabendo quem eu sou), “Não perca seu tempo com ele”, “O professor Gøtzsche é psiquiatra? Ele já tratou de pacientes psiquiátricos? Como ele pode julgar o que nós fazemos”? Ou dirão que “Gøtzsche é um antipsiquiatra”, que é o derradeiro pseudo-argumento que os psiquiatras usam.7 (página 16)

Você não deve aceitar tais respostas, mas sempre pedir as evidências.

Além disso, acho que tenho as credenciais necessárias para criticar a psiquiatria. Provavelmente sou o único dinamarquês que publicou mais de 75 artigos nos “cinco grandes” periódicos (BMJ, Lanceta, JAMA, Anais de Medicina Interna e New England Journal of Medicine) e meus trabalhos científicos foram citados mais de 150.000 vezes. Sou especialista em clínica médica e já trabalhei em várias especialidades, incluindo cardiologia, endocrinologia, hematologia, hepatologia, gastroenterologia, doenças infecciosas e reumatologia.

Eu faço pesquisas em psiquiatria desde 2007 e postei minhas credenciais em relação a esta especialidade em meu site, scientificfreedom.dk (veja em About, Staff). Resumindo, tive cinco alunos de doutorado em psiquiatria; fui testemunha especialista em sete processos judiciais psiquiátricos em sete países diferentes; recebi 12 prêmios ou outras honrarias acadêmicas; publiquei nove livros ou capítulos de livros; publiquei 30 artigos em revistas médicas com revisão por pares e 128 outros artigos; e já ministrei mais de 200 palestras em encontros e cursos.

Levei anos de estudo minucioso para descobrir que o ponto principal da psiquiatria é que ela faz mais mal do que bem,1,5-8 que também é o que o público em geral nos diz.12 Isso torna a especialidade única e o termo “sobrevivente da psiquiatria” diz tudo.8 Em nenhuma outra especialidade médica alguns pacientes se autodenominam sobreviventes no sentido de que sobreviveram apesar de serem expostos a essa especialidade. Eles lutaram muito para encontrar uma saída de um sistema que raramente é útil e que muitos sobreviventes descrevem como aprisionamento psiquiátrico ou como sendo uma instituição onde há uma porta de entrada, mas não uma porta de saída.

Em outras especialidades médicas, os pacientes agradecem por terem sobrevivido devido aos tratamentos que seus médicos aplicaram a eles. Nunca ouvimos falar de um sobrevivente de cardiologia ou de um sobrevivente de doença infecciosa. Se você sobreviver a um ataque cardíaco, não ficará tentado a fazer o contrário do que seu médico recomenda, mas em psiquiatria, como você verá neste livro, você pode morrer ou ficar permanentemente incapacitado se fizer o que seu médico lhe disser para fazer. 

Muitos sobreviventes psiquiátricos descreveram como a psiquiatria, com seu uso excessivo de drogas nocivas e ineficazes, roubou 10 ou 15 anos de suas vidas até que um dia eles decidiram tomar de volta da psiquiatria a responsabilidade por suas vidas e descobriram que a vida é muito melhor sem drogas. Eles costumam dizer que o que os acordou foi que leram alguns dos livros sobre psiquiatria dos psiquiatras David Healy,2 Joanna Moncrieff, 3,4 Peter Breggin,11  do jornalista científico Robert Whitaker 1,5, ou os meus. 6-8

Em 2014, psiquiatras noruegueses escreveram sobre o que chamaram de taxa “alarmantemente alta de descontinuação” de pílulas para psicose em pacientes com esquizofrenia, 74% em 18 meses.13 Os psiquiatras argumentaram que “os médicos precisam estar equipados com estratégias de tratamento que otimizem o tratamento contínuo com medicamentos antipsicóticos”. Se os psiquiatras tivessem escutado seus pacientes, eles teriam percebido que essas drogas deveriam ser evitadas como terapia de longo prazo.

Quando os alunos forem aprovados nos exames, defenderão com unhas e dentes o que aprenderam. É um traço curioso da psicologia humana que, uma vez que você tenha se decidido, mesmo quando estiver em sérias dúvidas, defenderá vigorosamente sua posição quando alguém provar que a outra opção era a correta.14

Os livros didáticos universitários são, portanto, uma ferramenta poderosa para a doutrinação – para chegar à “opinião certa” mesmo quando ela está errada. Por exemplo, 21 dos 36 manuais (58%) usados por estudantes na Holanda que discutem a anatomia do cérebro têm seções sobre TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) com generalizações inadequadas ou afirmações ambíguas.15

Os principais psiquiatras e suas organizações propagam consistentemente a desinformação em palestras, na mídia, em sites e em artigos científicos.1-8 Você pode se perguntar se isso é realmente verdade. Infelizmente, é, mas cada vez mais psiquiatras críticos perceberam isso e trabalham para mudar as práticas psiquiátricas. Sou membro do grupo mais importante, Critical Psychiatry Network, fundado por Joanna Moncrieff com base no Reino Unido. Trocamos ideias diariamente em uma lista de e-mail e discutimos como podemos contribuir para reformar a psiquiatria.

Em 2021, tive a ideia de que se eu lesse e avaliasse os manuais mais usados na Dinamarca e escrevesse meu próprio manual explicando o que havia de errado com os outros, isso poderia abrir os olhos dos alunos em todos os lugares. Não se espera que os livros didáticos dinamarqueses sejam diferentes daqueles de outros países porque a psiquiatria convencional é a mesma em todos eles. Espero que outros pesquisadores analisem os livros didáticos usados em seus países como eu fiz.

Ao ler esses livros, pode ser difícil perceber o que não está lá, mas que deveria ter sido mencionado. Antes de iniciar a leitura, portanto, descrevi em um protocolo o que acredito que deveria ser mencionado nos livros de psiquiatria.

As questões centrais que escolhi são aquelas de importância óbvia para os pacientes e aquelas consideradas controversas, por exemplo, se os distúrbios psiquiátricos podem ser vistos em uma varredura cerebral. As questões secundárias em meu protocolo eram causas de transtornos psiquiátricos, diagnósticos, benefícios de drogas, danos causados por drogas, retirada de drogas psiquiátricas, estigmatização, consentimento informado, psicoterapia e outras intervenções psicossociais e eletrochoque. Como existem centenas de diagnósticos psiquiátricos, concentrei-me em psicose, depressão, transtorno bipolar, TDAH, transtornos de ansiedade e demência.

Identifiquei os cinco livros de psiquiatria na Dinamarca mais usados por estudantes de medicina e psicologia e avaliei se as informações apresentadas sobre causas, diagnóstico e tratamento eram adequadas, corretas e baseadas em evidências confiáveis. Os livros didáticos eram em dinamarquês, tinham um total de 2.969 páginas e foram publicados entre 2016 e 2021.16-20

Os autores incluíam alguns dos mais proeminentes professores dinamarqueses de psiquiatria, mas os livros estavam longe de serem baseados em evidências. Freqüentemente, eles contradiziam as evidências mais confiáveis; vários grupos de autores às vezes forneciam mensagens contraditórias até mesmo dentro do mesmo livro; e a forma como usavam as referências era insuficiente. Tive a clara impressão de que quanto mais implausíveis as alegações, menor a probabilidade de serem referenciadas.

O pior livro em termos de prevalência de declarações seriamente enganosas ou errôneas não tinha uma única referência de literatura e todos os editores e autores eram psiquiatras.18 Os outros quatro livros tinham uma bibliografia ao final de cada capítulo, mas muitas vezes sem ligação com o texto. Portanto, eu precisava adivinhar quais das referências eram relevantes para as declarações feitas, quando havia. Às vezes, havia apenas o nome de uma pessoa e um ano no texto, sem artigo ou livro correspondente na bibliografia. Nesses casos, tentei encontrar a referência relevante em uma pesquisa bibliográfica no PubMed.

Dois livros didáticos eram mais confiáveis do que os outros três. Em um deles, um psicólogo era um dos dois editores,17 e o outro livro tinha, principalmente, psicólogos como autores.20

Acrescentei um número de página às referências dos livros didáticos e, muitas vezes, também às referências de outros livros para mostrar onde as informações podem ser encontradas. Assim, 17:919 significa a página 919 daquele manual (ou, em alguns casos, 1-2 páginas adiante, quando a informação aparecia em várias páginas).

As drogas psicotrópicas foram desenvolvidas com base em experimentos com ratos e selecionadas caso perturbassem o cérebro normalmente funcional do rato.7:229,21 Os comprimidos não nos curam, eles simplesmente nos mudam causando uma ampla gama de efeitos nas pessoas, como todas as substâncias neuroativas, incluindo drogas de rua. E eles não são de forma alguma visados. Não há nada particularmente seletivo sobre os inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRSs). Este termo foi inventado pela SmithKline Beecham para dar à paroxetina uma vantagem sobre outras drogas, mas foi adotado por todas as empresas.2 Existem receptores de serotonina em todo o corpo e as drogas têm muitos outros efeitos além do aumento da serotonina, como por exemplo, podem afetar a transmissão de dopamina e noradrenalina e podem ter efeitos anticolinérgicos.22 As drogas nem sequer visam a depressão. Portanto, não é surpreendente que uma revisão da Cochrane tenha descoberto que o alprazolam, uma antiga benzodiazepina, teve melhor desempenho do que o placebo e um desempenho semelhante aos comprimidos tricíclicos para depressão.23

As drogas psiquiátricas funcionam mais ou menos da mesma maneira, seja suprimindo reações emocionais para que as pessoas fiquem entorpecidas e prestem menos atenção a perturbações significativas em suas vidas, seja estimulando-as. 2,5,21

Portanto, evitarei a nomenclatura convencional para drogas. É enganoso chamar as pílulas usadas para depressão de “antidepressivos” e as pílulas usadas para psicose de “antipsicóticos”. Essas drogas não são “anti-” alguma doença.7:227 O “anti-” também confere uma associação aos antibióticos, que salvam vidas, mas os medicamentos psiquiátricos não salvam vidas; eles tiram muitas vidas.7:307 Além disso, ao contrário dos antibióticos, eles não têm propriedades específicas para doenças.3,4,7,24

Portanto, falo sobre pílulas para depressão e pílulas para psicose, que não dão falsas promessas. Se quisermos reformar a psiquiatria, primeiro precisaremos mudar a narrativa psiquiátrica e parte dessa narrativa é a semântica. Pela mesma razão, falarei sobre os malefícios das drogas e não sobre os efeitos colaterais das drogas, o que é um eufemismo, pois os efeitos colaterais às vezes são agradáveis.

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Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui .

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Mad in America hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.

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Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).

Manual de Psiquiatria Crítica

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Mad In Brasil está publicando uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. A cada quinze dias, uma nova seção será publicada nesta página. Instruções sobre como adquirir o livro completo e em inglês podem ser encontradas aqui. Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

Meu livro descreve o que há de errado com os livros de psiquiatria usados por estudantes de medicina e psicologia. Li os cinco manuais mais usados na Dinamarca e descobri uma ladainha de declarações enganosas e errôneas sobre as causas dos distúrbios de saúde mental: que são genéticos, que podem ser detectados em uma varredura cerebral, que são causados por um desequilíbrio químico, que os diagnósticos psiquiátricos são confiáveis e quais os benefícios e malefícios das drogas psiquiátricas e dos eletrochoques. Muito do que é alegado é desonestidade científica. Também descrevo fraudes e manipulações sérias com os dados em pesquisas frequentemente citadas. Concluo que a psiquiatria biológica não levou a nada de útil e que a psiquiatria como especialidade médica é tão prejudicial que deveria ser desmantelada.

 

CAPÍTULOS


Capítulo 1: Por que um manual crítico de psiquiatria?

Capítulo 2: Os Distúrbios Psiquiátricos são Essencialmente Genéticos ou Ambientais? (Parte Um)

Capítulo 2: Os Distúrbios Psiquiátricos são Essencialmente Genéticos ou Ambientais? (Parte dois)

Capítulo 3: Os Distúrbios Psiquiátricos são detectáveis em uma Varredura Cerebral?

Capítulo 4: Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 4: Os distúrbios psiquiátricos são causados por um desequilíbrio químico?

Capítulo 5: Diagnósticos Psiquiátricos Não São Confiáveis ​​(Parte Um)

Capítulo 5: Diagnósticos Psiquiátricos Não São Confiáveis ​​(Parte Dois)

Capítulo 6: Os Ensaios Clínicos de Drogas Psiquiátricas não são Confiáveis

Capítulo 7: Psicose (Parte um)

Capítulo 7: Psicose (Parte dois)

Capítulo 7: Psicose (Parte três)

Capítulo 7: Psicose (Parte quatro)

Capítulo 7: Psicose (Parte cinco)

Capítulo 7: Psicose (Parte seis)

Capítulo 8:Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Um)

Capítulo 8:Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Dois)

Capítulo 8:Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Três)

Capítulo 8:Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Quatro)

Capítulo 8:Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Cinco)

Capítulo 8:Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Seis)

Capítulo 8:Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Sete)

Capítulo 8:Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Oito)

Capítulo 8:Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Nove)

Capítulo 8:Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Dez)

Capítulo 8:Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Onze)

Capítulo 8:Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Doze)

Capítulo 8:Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Treze)

Capítulo 8:Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Quatorze)

 

 

Circuito Manicomial: A Presença do Manicômio Extramuros

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No artigo: O Circuito Manicomial de Atenção: Patologização, Psicofarmaceuticalização e Estigma em Retroalimentação, é abordada a lógica manicomial ainda presente nas instituições e na cultura. Nos manicômios havia uma prática mais ou menos hegemônica e explícita das práticas manicomiais. No entanto, com  o fechamento dessas instituições, essas práticas não deixaram de existir, mas exigem maior atenção da nossa parte, pois se manifestam de maneira mais sutil e traiçoeira, se utilizando de novos atores sociais e novas tecnologias de controle. Essa lógica manicomial é denominada de circuito manicomial de atenção, conceito que se aproxima daquilo que Basaglia denominava circuito de controle.

O estudo analisou as trajetórias de pessoas com experiência de sofrimento psíquico grave e uso abusivo de álcool e outras drogas. Foram utilizados os seguintes operadores de desinstitucionalização: autonomia, integralidade e equidade social. Os operadores de desinstitucionalização se definem como processos, ações ou dinâmicas que produzem pontos de virada na vida e nas experiências de sujeitos com histórico de institucionalização, favorecendo situações de reinserção ou recuperação ou gerando condições para elas. 

Os critérios de escolha dos casos foram: 

  1. Terem mais de 18 anos de idade;
  2.  Já terem vivido, ao menos, uma hospitalização psiquiátrica, em hospital de custódia e/ou internação em comunidade terapêutica, com um mínimo de seis meses seguidos de duração, ou um conjunto de reinternações sucessivas caracterizadas como porta-giratória;  e/ou
  3. relatarem o que chamamos de vivências institucionalizadoras extra-asilares.

As categorias de análise identificadas a partir da literatura e do trabalho de campo foram: estigma, medicalização/patologização, psicofarmaceuticalização, práticas de manicomialização e elementos do circuito manicomial de atenção.

Os autores identificam o paradigma farmacológico complementar à lógica asilar, como uma forma de dar continuidade entre o “dentro” e “fora” da instituição total. Juntamente com a medicalização/patologização e a estigmatização das pessoas. 

“Os modos de produção de identidades e subjetividades estigmatizadas, a partir da medicalização e patologização de comportamentos das pessoas, e seus múltiplos efeitos em termos de violência interpessoal, institucional, simbólica e estrutural (Nunes &Torrenté, 2009), que incluem o controle pelos psicofármacos e a retirada da autonomia e liberdade das pessoas, caracterizam práticas manicomiais que se exercem fora dos muros, com a participação de outras instituições.”

Para descrever a produção do circuito manicomial de atenção sob a perspectiva de retroalimentação entre o manicômio intra e extramuros, foram elaborados os seguintes aspectos: a) o processo de alimentação da identidade patológica; b) a espiral do controle: psicofármacos reforçando o estigma patologizante; e  c) os horrores da internação e a domesticação extramuros da solução-manicômio.

A medicalização da vida é o fenômeno de transformar problemas não médicos em problemas médicos, manifestando uma intolerância à diversidade, daquilo que sai do considerado “normal”. A epistemologia do patológico é exportada do norte global e invade o cotidiano através da atuação profissional pseudocientífica e pela incorporação na sociedade como um todo, gerando assim, um produto cultural. O impacto social é bem negativo, já que anula ou regula o sofrimento psíquico e impede a produção de soluções emancipatórias. 

“Luciane, no momento da pesquisa com 42 anos, afirma ter sido internada mais de 10 vezes na sua vida, a primeira aos 14 anos, com atual diagnóstico de transtorno bipolar. Permaneceu uma média de três meses na maioria desses internamentos. Hoje vive com sua mãe, um filho e um irmão. Gostava de escrever poesias e de se vestir de forma “romântica”, com muitos tons de rosa. Gilmar tinha 32 anos à época da pesquisa e adoeceu com 19 anos. Morava com sua mãe nessa mesma cidade e diz já ter sido internado em torno de oito vezes, tendo recebido diagnóstico de esquizofrenia. Afirma-se como homossexual e também como drag queen, identidade de que gosta muito (apesar do trabalho que dá “se montar”), pela vocação que tem para cantor e imitador.”

Nas falas dos participantes é possível perceber uma necessidade de afirmar a normalização operada pelo psicofármaco ao mesmo tempo em que se reivindica o direito em ser diferente. A patologia também parece se sobrepor a identidade de gênero, no caso de Gilmar, como se sua sexualidade fosse um sintoma da esquizofrenia. 

“Doutor Luís (pseudônimo), Mainha falava que foi meu pai, meu tio, meu avô, meu tudo. Mainha disse que ele praticamente me criou… “ (Luciene)

A fala de Luciene representa a presença e poder que o psiquiatra tinha na sua vida. No entanto, Luciene não concordava com a mãe e decidiu mudar de médico. Pela primeira vez sentiu que o médico interagiu com ela de maneira comunicativa e resolutiva. 

“O médico, que era Doutor Luís na época, até hoje nunca me explicou nada; o único médico que veio me explicar alguma coisa foi Doutor João (pseudônimo), que, quando eu conheci ele, eu fui logo falando: oh, Doutor, eu quero saber tudo, não me esconda nada, eu quero saber o que eu tenho de verdade, e ele foi me explicando.” (Luciene)

Em ambos os casos, Luciene e Gilmar, a questão do controle farmacológico aparece bastante. Existe um controle, organizando a rotina ao redor do remédio, a partir de uma visão de que a possuem uma doença crônica sem cura e que apenas a estabilização é possível. Reduzindo o sofrimento a dimensão bioquímica e o cuidado à psicofarmaceuticalização do sujeito. 

“A psiquiatria foi boa, porque (durante as internações) me ensinou a tomar os remédios – porque às vezes não queria comer o que não gosto, tomar um cafezinho frio… Daqui para o final do ano, eu vou em Doutor João, mesmo que não tenha nada, só para ver a medicação.” (Gilmar)

O artigo aponta para o conceito de psicofarmaceuticalização da subjetividade. O trabalho colaborativo entre psiquiatra, família e o psicofármaco terminam por desempenhar uma função macrobiopolítica, estendendo a psiquiatria para além do consultório e fazendo com que as famílias atuem como proxi-psiquiatras. A esse arranjo de retroalimentação, se soma a estigmatização desses sujeitos, utilizado para que a sociedade e os próprios sujeitos em sofrimento perpetuem práticas opressivas favorecendo o controle extramuros. 

A partir do estigma, características pessoais são lidas como parte de uma “doença”, e julgamentos morais são aguçados, exigindo comportamentos estritos para a pessoa ser aceita e reconhecida. 

“Eu achei muito difícil a convivência (com as pessoas da comunidade), porque ninguém me entendia, uns achavam que era mania, outros achavam que era surto mesmo, devido à maneira como eu ficava. Eu não lembro como eu ficava, já fui até amarrada de corda, fui até agredida por várias pessoas. Muitas pessoas já chamaram até a polícia, os vizinhos, eu não entendia, achava que estava fazendo algo muito errado. Na época, vinha bombeiro e a polícia me levava toda machucada pra lá (hospital), internava lá na psiquiátrica, aí, quando eu saía de lá, as pessoas ficavam me olhando. Até hoje, quando eu me visto diferente, de um modo, por exemplo, se eu tiver uma roupa que eu mesma faça meu look, umas cores… aí fala: tá ó (gesto de doida), já olham com um olhar diferente. Eu sinto isso, que chega.” (Luciene)

Também é evidenciado pelo artigo como a internação, a segregação ainda é um recurso muito utilizado. Há um processo de subalternização da pessoa em sofrimento em que ela acaba vendo a internação como um cuidado necessário. Os motivos pelos quais os participantes foram internados se devem mais a questões sociais (moradia temporária, acesso a alimentação…) e pelo desamparo diante de situações de violência intrafamiliar, redes sociais fragilizadas, do que como uma opção terapêutica de fato. 

“Aí acordei, e têm uns que maltratam, têm enfermeiras que não querem nem saber. Eu forrava minha cama, eu estava em um quarto assim… e parecia um filme de terror. Tinha um cara lá,amarrado, um cara negro, quando eu acordei, parecia que eu estava num filme de terror. Deus é mais! Aí vem outro, vem outro aí arrancou minhas pulseiras tudo do hospital, uma mulher, foi a primeira crise, né?” (Gilmar)

Como conclusão, os pesquisadores apontam para o risco de usar a instituição asilar como muleta. Uma crítica feita ao processo da reforma psiquiátrica foi a autonomia na ação direta com os usuários, se afastando de suas redes sociais e a atuação insuficiente no território. O processo de medicalização da vida que se manifesta na patologização do sofrimento, no paradigma farmacológico, na estigmatização e moralismo do cuidado, também são apontados como dificuldades atuais no campo da saúde mental. Há, pois, uma continuidade extramuros da lógica manicomial, já que a negação ao manicômio não foi feita. 

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NUNES M. DE O.; TORRENTÉ, M. DE.;CARVALO, P.A.L. DE.. O Circuito Manicomial de Atenção: Patologização, Psicofarmaceuticalização e Estigma em Retroalimentação. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 42, 2022. (Link)

Resolução Institui Política Antimanicomial do Judiciário

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Através da publicação feita no dia 27 de fevereiro de 2023, o site Consultor Jurídico postou a reportagem: CNJ publica resolução que institui política antimanicomial do Judiciário. A reportagem relata a resolução que institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário, que foi aprovada no mês de fevereiro, o documento visa adequar a atuação da Justiça às normas nacionais e internacionais sobre os direitos das pessoas em sofrimento mental ou com deficiência psicossocial em conflito com a lei.

A matéria mostra também que o objetivo da normativa é oferecer subsídios aos juízes, a fim de que, a atividade judicial leve em consideração que as pessoas com transtorno mental têm o direito ao tratamento de sua condição de saúde ao longo de todo o processo penal, desde a audiência de custódia até o eventual cumprimento de medida de segurança. Outra finalidade é ampliar a desinstitucionalização (medidas de prevenção de internações em hospitais psiquiátricos) nas diferentes fases do ciclo penal.

A resolução estabelece, por exemplo, que a política antimanicomial deve ser aplicada a qualquer portador de deficiência mental ou psicossocial que esteja sob investigação ou em cumprimento de pena ou de medida de segurança, com monitoração eletrônica ou outras medidas em meio aberto.

Define, ainda, que a política é voltada à pessoa com “dificuldade psíquica, intelectual ou mental que, confrontada por barreiras atitudinais ou institucionais, tenha inviabilizada a plena manutenção da organização da vida”, necessitando de cuidado em qualquer fase do ciclo penal.

O CNJ estabelece ainda que, nas audiências de custódia, caberá à autoridade judicial, após ouvir o Ministério Público e a defesa, o encaminhamento das pessoas com indícios de transtorno mental para atendimento voluntário na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). 

A postagem conta também com o link que possibilita ler a Resolução CNJ 487

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Leia a matéria completa aqui → (Link)

O Aprendizado de Máquina não consegue identificar a depressão com base na neurobiologia

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“O fato de não podermos encontrar diferenças neurobiológicas significativas (univariadas ou multivariadas) a nível do indivíduo para um dos transtornos mentais mais prevalentes deveria nos fazer pensar”. – Pesquisador principal Nils R. Winter

 

Os pesquisadores sugeriram que o Aprendizado de Máquina – uso de inteligência artificial para investigar um fenômeno complexo – pode ser melhor para identificar quais medidas neurobiológicas são importantes e como usá-las para prever diagnósticos psiquiátricos. Infelizmente, até agora, essas tentativas atingiram uma precisão pouco melhor do que o puro acaso.

No entanto, muitas pesquisas anteriores usaram um único tipo de medida neurobiológica (como um tipo de varredura cerebral) para tentar prever diagnósticos psiquiátricos.

Em um novo estudo, os pesquisadores tentaram algo diferente. Eles criaram um algoritmo de Aprendizado de Máquina para combinar todas as medidas neurobiológicas concebíveis para prever a depressão.

Mas seus resultados foram igualmente abaixo do esperado:

“Treinando e testando um total de 2,4 milhões de modelos de AM, encontramos precisões para classificação de diagnóstico entre 48,1% e 62,0%”, escrevem eles.

 

Para comparação, eles observam que as variáveis ​​sociais/ambientais de apoio social e maus-tratos na infância predizem a depressão com mais de 70% de precisão. Combinar variáveis ​​socioambientais e incluir mais do que apenas essas duas pode trazer uma precisão ainda maior.

Legenda: Este gráfico do artigo demonstra que a precisão até mesmo dos mais robustos algoritmos de Aprendizado de Máquina e com base em todas as informações neurobiológicas possíveis chega a 62%, enquanto as variáveis ​​ambientais atingem mais de 70% de precisão cada.

Em suma, eles escrevem:

 

“Embora os marcadores multivariados de neuroimagem aumentem o poder preditivo em comparação com análises univariadas, a classificação de um único sujeito – mesmo sob condições de otimização extensa e de melhor prática de Aprendizado de Máquina em uma amostra grande e harmonizada de pacientes diagnosticados usando avaliações clínicas de última geração – não atinge desempenho clinicamente relevante.”

 

A pesquisa foi conduzida por Nils R. Winter na Universidade de Münster, Alemanha. O artigo foi publicado antes da revisão por pares no servidor de pré-impressão medRxiv.org. No Twitter, Winter escreveu sobre o estudo:

 

“O fato de não podermos encontrar diferenças neurobiológicas significativas (univariadas ou multivariadas) a nível do indivíduo para um dos transtornos mentais mais prevalentes deveria nos fazer pensar”.

 

O estudo anterior deste grupo chegou a um resultado semelhante. Os pesquisadores descobriram que não havia diferenças individuais na neurobiologia entre pessoas com diagnóstico de depressão e as do grupo controle saudável.

Nesse estudo, os pesquisadores escreveram que:

 

“participantes saudáveis ​​e depressivos são notavelmente semelhantes no nível do grupo e virtualmente indistinguíveis no nível individual em um conjunto abrangente de modalidades de neuroimagem”.

 

Um olhar mais profundo sobre o estudo atual

O estudo atual do grupo de Winter incluiu 1.801 pessoas de três grupos: aqueles que atualmente atendiam aos critérios para o diagnóstico de depressão, aqueles com histórico de depressão e o grupo controle saudável. Eles foram recrutados por meio do Marburg-Münster Affective Disorders Cohort Study (MACS) na Alemanha.

Estudos anteriores levantaram preocupações sobre a confiabilidade do diagnóstico de depressão, uma vez que os pacientes listados como “deprimidos” são frequentemente definidos com base em questionários de triagem ou outras medidas menos confiáveis. O estudo atual usou o padrão clínico de uma Entrevista Clínica Estruturada do DSM-IV para diagnosticar a depressão, garantindo que o diagnóstico fosse o mais confiável possível.

As medidas neurobiológicas incluíram várias formas de ressonância magnética estrutural, funcional e baseada em tarefas, bem como a pontuação de risco poligênico (uma medida teórica do risco genético para depressão).

Os pesquisadores observam que não há nenhuma teoria aceita ligando a depressão à neurobiologia:

“Como não existe uma teoria formal estabelecida da neurobiologia da depressão, é incerto quais métodos de neuroimagem serão mais adequados para capturar informações clinicamente relevantes”.

 

Seu estudo confirmou essa falta de conexão entre o diagnóstico de depressão e a neurobiologia, uma vez que nenhuma das medidas neurobiológicas testadas – mesmo quando combinadas – conseguiram atingir um valor preditivo clinicamente relevante.

Assim, eles escrevem:

“Como a Psiquiatria de Precisão biológica poderia fornecer previsões individualizadas mais precisas para melhorar o tratamento e o atendimento ao paciente permanece uma questão central em aberto neste momento.”

 

No entanto, as variáveis ​​sociais/ambientais de apoio social e maus-tratos na infância foram individualmente capazes de prever a depressão com mais de 70% de precisão.

Os pesquisadores escrevem que os algoritmos foram um pouco melhores na classificação de pessoas com depressão crônica grave que foram hospitalizadas e tomavam vários medicamentos. Ou seja, os algoritmos não eram muito bons em identificar pessoas que poderiam passar despercebidas por um clínico humano, mas eram um pouco melhores em identificar o grupo que também é mais fácil para os humanos diagnosticarem.

Mas o pior é que quando os pesquisadores restringiram a análise apenas a este grupo – supostamente o mais fácil para o algoritmo diagnosticar – isso não aumentou substancialmente a precisão:

“Nossas análises complementares de subgrupo com foco em pacientes com depressão aguda e recorrente, respectivamente, não aumentaram o desempenho preditivo”, escrevem eles.

 

Uma explicação que eles propõem é que o diagnóstico de “depressão” é tão amplo que não faz um bom trabalho de capturar experiências individuais. Assim, eles sugerem que o diagnóstico de depressão em si não representa uma única “doença mental” ligada à neurobiologia, mas sim uma categoria ampla que contempla uma variedade de experiências, estados mentais e níveis de funcionamento que variam amplamente entre os indivíduos.

Eles sugerem que pode haver uma maneira melhor de categorizar as pessoas com base em seus “sintomas” específicos e níveis de funcionamento. No entanto, como eles não conseguiram encontrar tais subcategorias teóricas, isso permanece sem comprovação.

Em última análise, eles escrevem,

“A complexidade do fenótipo da depressão grave pode exigir uma abordagem mais abrangente que incorpore interações entre a neurobiologia, o corpo inteiro e o ambiente”.

 

Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).

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Winter, N. R., Blanke, J., Leenings, R., Ernsting, J., Fisch, L., Sarink, K., . . . & Hahn, T. (2023). A Systematic Evaluation of Machine Learning-based Biomarkers for Major Depressive Disorder across Modalities. medRxiv.org. doi: https://doi.org/10.1101/2023.02.27.23286311 (Link)

Corrida-terapia para depressão é tão eficaz quanto antidepressivos e sem os riscos à saúde

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People exercising at fitness gym

Um artigo a ser publicado em breve no Journal of Affective Disorders (Revista dos transtornos afetivos em tradução livre) descobriu que, enquanto a corrida-terapia e os antidepressivos têm efeitos semelhantes nos sintomas depressivos, a primeira é muito melhor para a saúde física dos participantes.

O estudo dividiu os participantes em dois grupos, um que recebeu antidepressivos e outro que participou de sessões supervisionadas de corrida de 45 minutos. Enquanto os participantes que receberam tratamento com antidepressivo experimentaram deterioração da saúde física, aqueles que receberam a terapia de exercícios como tratamento, viram melhorias. Os autores escrevem:

“Embora as intervenções tenham efeitos comparáveis ​​na saúde mental, a
corrida-terapia superou os antidepressivos no quesito saúde física devido a
maiores melhorias desse grupo, bem como à maior deterioração no grupo de
antidepressivos”.

Pessoas se exercitando numa academia

A pesquisa se propôs a comparar os efeitos de antidepressivos e exercícios como tratamentos para participantes com depressão e transtornos de ansiedade. Para atingir esse objetivo, os autores dividiram 141 participantes entre 18 e 70 anos em dois grupos, um que recebeu o antidepressivo Escitalopram e outro que recebeu a corrida-terapia. Alguns participantes do grupo antidepressivo receberam a prescrição de um segundo antidepressivo (Sertralina), caso o primeiro fosse ineficaz. Os participantes do grupo de
corrida foram encorajados a correr por 45 minutos 2 ou 3 dias por semana.

Os participantes podiam escolher a qual grupo seriam designados ou optar por serem alocados aleatoriamente a um dos grupos. Como resultado da preferência dos participantes, 45 se juntaram ao grupo de antidepressivos e 96 ao grupo de corrida-terapia. Os participantes receberam avaliações básicas antes das intervenções e após 16 semanas do início do uso de antidepressivos ou da prática de exercícios. As avaliações incluíram fatores de saúde mental (diagnóstico e gravidade dos sintomas) e saúde física
(frequência cardíaca, variabilidade da frequência cardíaca, peso, função pulmonar, circunferência da cintura, pressão arterial, etc.). Os participantes foram excluídos da pesquisa com base em sete critérios de exclusão:

1. Uso de antidepressivos nas últimas duas semanas
2. Uso de outros psicotrópicos (excluindo benzodiazepínicos)
3. Exercício regular
4. Diagnósticos de saúde mental que não sejam depressão ou
transtornos de ansiedade
5. Risco de suicídio
6. Médicos que desaconselham qualquer uma das intervenções (por
exemplo, pessoas com problemas cardíacos graves)
7. Gravidez

82,2% dos participantes do grupo de antidepressivo e 52,1% do grupo de corrida aderiram ao protocolo de tratamento. No grupo de corrida-terapia, 14 participantes (15%) nunca iniciaram o tratamento e 16 (17%) participaram de 9 sessões ou menos.

Enquanto o grupo de antidepressivo observou uma melhora ligeiramente mais rápida nos sintomas de saúde mental, as taxas de remissão não foram significativamente diferentes na marca de 16 semanas. 43,3% do grupo de corrida-terapia e 44,8% do grupo de antidepressivos tiveram remissão de seus sintomas na conclusão do estudo. Os autores observam que a remissão não significou ausência de sintomas e que mesmo esses participantes “ainda apresentavam considerável sintomatologia depressiva e de ansiedade”.

Em relação à saúde física, o grupo de corrida apresentou melhorias significativas, com diminuição da frequência cardíaca, pressão arterial e circunferência da cintura e aumento da função pulmonar. Por outro lado, o grupo de antidepressivo viu uma deterioração de sua saúde física com aumento de peso (3kg em média), pressão arterial, triglicerídeos e diminuição da variabilidade da frequência cardíaca.

Os autores mencionam duas limitações da pesquisa. Primeiro, relativamente poucos participantes estavam dispostos a serem aleatoriamente designados a um grupo de tratamento (15%), o que tornou esse grupo muito pequeno para a realização de análises separadas. Em segundo lugar, os participantes preferiram, em sua maioria, participar do grupo de corrida-terapia, tornando o grupo de antidepressivos muito menor. Os autores concluem:

“Mostramos que, embora a medicação antidepressiva e a corrida-terapia não diferissem significativamente em quesitos estatísticos nos resultados de saúde mental… usuários de antidepressivos mostraram uma diminuição na variabilidade da frequência cardíaca e aumentos na circunferência da cintura, pressão arterial e níveis de triglicerídeos, sugerindo um aumento da incidência de síndrome metabólica e maior risco cardiovascular. O grupo de corrida apresentou diminuição tanto dos componentes da síndrome metabólica quanto da frequência cardíaca, o que indicou, por sua vez, efeitos protetores sobre os incidentes cardiovasculares. No geral, este estudo mostrou a importância do exercício na população deprimida e ansiosa e adverte contra o uso de antidepressivos em pacientes fisicamente pouco saudáveis”.

Uma pesquisa recente mostrou que o exercício trata a depressão leve a moderada, assim como os antidepressivos. Uma revisão descobriu que os efeitos do exercício na depressão provavelmente são subestimados devido ao viés de publicação. A prática de exercício também parece proteger contra a depressão, apenas 15 minutos de exercício 3 vezes por semana pode ser associado a menos sintomas depressivos em adultos mais velhos. Outra
pesquisa também descobriu que pessoas que fizeram o equivalente a 2,5 horas de caminhada rápida por semana tiveram um risco 25% menor de depressão.

Pesquisas mostraram que os antidepressivos não são melhores do que um placebo para 85% das pessoas. Uma outra pesquisa descobriu que os antidepressivos são “amplamente ineficazes e potencialmente prejudiciais”. Pesquisa semelhante mostrou que os antidepressivos são ineficazes para crianças e adolescentes.

 

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Verhoeven, J. E., Han, L. K. M., Lever-van Milligen, B. A., Hu, M. X., Révész, D., Hoogendoorn, A. W., Batelaan, N. M., van Schaik, D. J. F., van Balkom, A. J. L. M., van Oppen, P., & Penninx, B. W. J. H. (2023). Antidepressants or running therapy: Comparing effects on mental and physical health in patients with depression and anxiety disorders. Journal of Affective Disorders. https://doi.org/10.1016/j.jad.2023.02.064 (Link)

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Tradução:

Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).

 

Relacionamentos e vínculos familiares em deterioração impulsionam crise da saúde mental dos jovens

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Teenager problems. Sad teenage daughter sitting separately on sofa ignoring mother, depressed teen girl hiding feelings emotions from parent, worried single mother Family conflict. Depression in teens

Jovens adultos em todo o mundo estão sofrendo de uma deterioração geracional nas conexões sociais com a família e amigos e um declínio significativo relacionado à saúde mental dos jovens, de acordo com o mais recente  Mental State of the World Report (Relatório do Estado Mental do Mundo em tradução livre) da Sapien Labs.

Em comparação com a geração de seus pais, os jovens são três vezes mais propensos a relatar relacionamentos ruins com sua família adulta e duas vezes mais propensos a não ter amigos com quem possam contar em momentos de necessidade – formas de privação social que, por sua vez, afetam o bem-estar. Como resultado, afirma o relatório:

“O risco de problemas de saúde mental é dez vezes maior entre aqueles que não têm relações familiares e amizades próximas em comparação com aqueles com muitos familiares e amigos próximos.”

O relatório recém-divulgado, citando resultados de pesquisas online internacionais de 2022, observa uma desintegração substancial e crescente dos laços familiares em todo o mundo e descreve uma população “ainda com cicatrizes mentais” pela pandemia do COVID-19, com dados mostrando recuperação mínima ou inexistente do bem-estar mental. Além disso:

“Embora muitos fatores como a Internet provavelmente contribuam para a diminuição do Eu Social e dos laços de família e amizade, um fator significativo também pode ser as tendências culturais na criação dos filhos, que tem trocado aconchego, amor e estabilidade por um maior foco no conforto material e conquistas.”

 

Problemas na adolescência. Filha adolescente triste sentada separadamente no sofá ignorando a mãe, garota adolescente depressiva escondendo seus sentimentos dos pais, mãe solo, conflito familiar. Depressão na adolescência. 

 

Uma organização sem fins lucrativos que administra o  Mental Health Million Project , a Sapien usa o  Mental Health Quotient  (MHQ) (Quociente de Saúde Mental em tradução livre), disponível em 9 idiomas e que pode ser respondido em 15 minutos, para agregar dados sobre bem-estar mental de quase meio milhão de usuários da Internet em 64 países. Esses números refletem um aumento considerável desde o relatório de 2021, tornando-o o maior banco de dados desse tipo no mundo. Os dados da pesquisa também foram utilizados em um artigo recente da Sapien sobre o declínio da saúde mental dos jovens e o aumento de denúncias de bullying e abuso em relação às gerações anteriores.

O MHQ avalia 47 elementos da função mental e os vincula aos critérios diagnósticos do DSM-5, classificando os resultados de “em sofrimento” a “prosperando”. Também gera subpontuações em cinco categorias: cognição, conexão mente-corpo, ímpeto e motivação, humor e perspectiva e Eu Social.

Segundo o Mental State of the World Report de 2022, a média global do MHQ para 2022 foi de 64, ou “administrando”. De todos os entrevistados, 27% pontuaram “em sofrimento” ou “lutando”, enquanto 38% estavam “tendo sucesso” ou “prosperando”. Os países com a pontuação mais baixa foram Reino Unido, África do Sul e Brasil, com pontuações MHQ de 46 a 53. Quanto ao mais alto, “Tanzânia liderou a lista com 94”, embora as pessoas com a pontuação mais alta geralmente fossem falantes de espanhol da América Latina.

E, no entanto, como os resultados mostram, “o sul e o sudeste da Ásia de língua inglesa, bem como a América Latina, têm a maior queda nas pontuações do Eu Social ao longo das gerações, apesar das altas pontuações em geral, enquanto os países da África Subsaariana encontram-se relativamente mais estáveis ao longo das gerações”.

Definido como “uma métrica da maneira como vemos a nós mesmos e nossa capacidade de formar e manter relacionamentos com os outros”, o Eu Social representa a área de declínio mais drástico. Depois de avaliar o estado das amizades e relações familiares, “uma degradação progressiva ao longo das gerações” tornou-se aparente como um fator significativo, afirma o relatório. Essas quedas nas conexões sociais e no bem-estar mental foram significativas em vários países e idiomas.

Tudo isso “representa uma reversão acentuada dos padrões documentados antes de 2010, indicando um declínio drástico no bem- estar mental com cada geração mais jovem, em vez de um aumento no bem-estar à medida que envelhecemos”, escreve Tara Thiagarajan,
fundadora e cientista-chefe da Sapien Labs e cientista principal Jennifer Newson em sua introdução ao relatório de 2022.

Na entrevista do Mad in America do ano passado, Thiagarajan discutiu a pesquisa de 2021 e os resultados indicando que os números do Eu Social e da saúde mental dos jovens diminuíram de geração em geração.

“É realmente a dimensão que parece ter diminuído mais substancialmente em relação a todas as outras, embora seguida de perto pelo humor e perspectiva”, disse ela. “Se pensarmos sobre isso da perspectiva de diferentes desafios para nosso comportamento social e capacidade de integração ao tecido social, isso também nos dá uma maneira diferente de pensar sobre soluções.”

Em sua introdução ao novo relatório, Thiagarajan e Newson encerram com uma reflexão sobre a “natureza profundamente relacional da psique humana” e o que significa viver e se sentir sem conexões autênticas com os outros. Em relação aos dados, eles escrevem:

“Eles convidam cada um de nós a refletir sobre nosso papel na crescente desintegração social. O que valorizamos e por quê? Onde focamos nossa atenção? E com tempo finito, quantas vezes deixamos de lado um compromisso afetuoso ou de fortalecimento social para obter sucesso material ou mesmo apenas para navegar sem pensar na Internet? Não podemos mudar o passado, mas com alguma reflexão coletiva talvez possamos mudar como será o desenrolar para as gerações futuras.”

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Tradução:

Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).

A Socialização dos Fármacos

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O artigo faz uma revisão de trabalhos que examinam como as drogas são tornadas eficazes nos laboratórios, em contextos terapêuticos e na vida cotidiana, focando na vida social dos fármacos. Como resultado, identificou-se que não há um objeto (farmacêutico) puro, eles não são “descobertos”, na verdade, eles são constituídos e reproduzidos em relação a contextos passíveis de mudanças. Portanto, o objeto é influenciado pela sua socialização. 

A discussão foi dividida entre cinco áreas-chaves: a primeira trata das práticas e técnicas utilizadas para medir a ação farmacêutica. A segunda desvenda as relações entre Estado, mercado e regulamentação modelam a ação farmacêutica. A terceira área investiga os materiais farmacêuticos de informação por meio do marketing. O quarto examina as ações de cuidado. E, por fim, a última área dilui a fronteira entre fármacos, corpos e seus ambientes. 

A análise realizada no artigo dialoga com a abordagem crítica de Tim Ingold, sendo assim:

 “Ingold (2012, p. 433) propõe um deslocamento do estudo dos objetos para o enfoque nos materiais, o que requer que nós sigamos o “fluxo da matéria”. A matéria está sempre em movimento, sendo moldada e transformada por processos e práticas humanas e não humanas. Nós adotamos esta abordagem para passarmos de um enfoque centrado nos objetos, que dominou a antropologia das drogas nos anos 1990 e 2000, para uma abordagem centrada nos processos que examina as articulações, desarticulações e rearticulações da matéria-pharma.”

1º área-chave: Fazendo os fármacos funcionar nos experimentos químicos

Desde a tragédia da inserção no mercado consumidor do fármaco talidomida (um hipnótico), nos anos 60, que causou malformações em diversos bebês, as agências reguladoras passaram a exigir testes que aprovassem a segurança e eficácia dos medicamentos, para só então, entrarem no mercado. Até então, era comum os experimentos serem realizados por médicos e químicos em seus próprios corpos. Visando superar as limitações dos relatos de caso e dos experimentos isolados, os clínicos passaram a utilizar os ensaios controlados randomizados (RCTs), como modelo padrão para demonstrar segurança e eficácia. 

As agências reguladoras presumiram que ao analisar uma população grande, gerando estatísticas e comparando um grupo placebo e um grupo ativo, poderia garantir a segurança. Porém, os antropólogos vêm chamando a atenção para o fato desses estudos tomarem como ponto de partida um corpo biológico universal, sem levar em consideração as condições sociais e as infraestruturas que influenciam a forma como as tecnologias atuam, e por desconsiderarem os benefícios do efeito placebo.

Os estudos de RCTs, no campo da psiquiatria “psicodélica” e com placebos apontam na mesma direção, para a importância da relação terapêutica para como um mecanismo chave para intensificar a resposta dos pacientes ao tratamento psicofarmacológico e otimizar a resposta dos pacientes ao tratamento.

“Esses estudos mostram que a eficácia farmacêutica não está apenas nas drogas, mas também é potencializada sinergicamente por meio dos espaços, relações, expectativas e práticas rituais. Esses insights, junto com os novos designs experimentais que estão emergindo para explicar esses efeitos sinergéticos, desafiam abordagens materialistas e reducionistas que pressupõem que os significados simbólicos ou as dinâmicas emocionais e interpessoais não afetam as respostas farmacológicas”

2º área-chave: Os nexos entre Estado e Mercado

Uma parcela significativa da literatura na Antropologia vêm apontando para a influência dos objetivos comerciais e de mercado que estão entremeados com as pesquisas de drogas farmacêuticas. Como consequência, há uma ênfase nos efeitos farmacêuticos desejáveis e uma minimização dos riscos. A saúde vem sendo cada vez mais conhecida pelo capital, sendo crescentemente farmaceuticalizada.

 

“Impelidas pela lógica capitalista, as companhias priorizam o desenvolvimento de medicamentos voltados para grandes mercados para e doenças crônicas, como a hipertensão. Os pacientes que têm esse tipo de doença não são curados e nem morrem; eles tomam medicamentos durante toda a vida.”

Através da implantação dos remédios genéricos, percebeu-se que elementos como o metabolismo individual, a fidelidade às marcas e os componentes químicos inativos usados no transporte dos compostos farmacêuticos afetam a ação dos fármacos. 

3º área-chave: Informando Posteriormente os Fármacos

Os remédios são, geralmente, reinscritos com novas informações sobre sua eficácia. Isso muitas vezes acontece por causa da competição com os genéricos. As indústrias farmacêuticas tentam desqualificar os genéricos e dar sobrevida aos seus produtos associando -os a novas indicações. 

“Um exemplo elucidativo deste processo está no trabalho de Greenslit (2005), que descreve como a Pfizer reelaborou o marketing da fluoxetina (o princípio ativo do Prozac) como um tratamento para o distúrbio disfórico pré-menstrual. A companhia deu um novo nome a droga (Sarafem), uma nova cor (rosa), e uma outra indicação (o distúrbio disfórico pré- menstrual). Desse modo, a Pfizer encorajou as mulheres a experimentarem os sintomas do seu ciclo menstrual como algo que pode ser tratado com medicamentos, ao mesmo tempo evitando uma associação negativa com a depressão.”

As companhias farmacêuticas promovem certa eficácia médica, mas também associam sua marca a estilos de vida, prometendo a felicidade, saúde, menstruação sem oscilações de humor, e assim por diante. O marketing dos fármacos é voltado, justamente, para capturar desejos e esperanças. Enquanto os efeitos colaterais são colocados em letras minúsculas e difíceis de ler. Essa forma de propaganda modela a forma como os fármacos são experienciados e atuam.

4º área-chave: Tornando os Fármacos Eficazes em Contexto de Cuidado

Uma série de estudos etnográficos demonstram as dimensões micropolíticas no cotidiano de cuidado, no qual os médicos disciplinam os pacientes a aderir aos regimes biomédicos. A indústria farmacêutica também traça um perfil dos seus consumidores através dos prescritores, tornando as farmácias lugares chave no processo de negociação e re-atualização da ação farmacêutica. 

 

6º área-chave: Vazamentos: pulmões, intestinos e metabolismo

Os artigos analisados vão apenas até quando os fármacos são consumidos, ou seja, ingeridos, digeridos e absorvidos. Abordam pouco a dissolução dos fármacos. Um campo novo de análise, tem sido a percepção ecológica sobre o fluxo farmacêutico, dentro e fora dos nossos corpos. 

“Landecker (2015) fornece um exemplo de como podemos seguir os fármacos através das fronteiras corporais. Ela descreve como os antibióticos, embora tenham como alvo os corpos individuais, produzem eventos evolutivos e ecológicos de larga escala que vão muito além desses corpos. Eles sedimentam uma história de gerenciamento de riscos na política corporal das bactérias, que são geneticamente, fisiologicamente e ecologicamente modificadas neste meio ambiente poroso e distribuído de uso disseminado de antibióticos.”

O artigo termina concluindo que a ação farmacêutica não se resume às propriedades químicas dos fármacos, pelo contrário, ela se acha dentro de uma malha de contextos, de práticas e dinâmicas sociais. 

 

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Anita Hardon, Emilia Sanabria e Isabel Santana de Rose. Ilha, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 263-285, janeiro de 2023 (link)

Entrevista com Nilson Lopes, Ex Usuário de Drogas Psiquiátricas

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HOMENAGEM A FERNANDO FREITAS

Hoje apresento aqui no Mad a história de vida de Nilson Lopes. Nilson concedeu uma entrevista a mim em setembro de 2022, como parte de minha pesquisa de doutorado[1]. Nessa entrevista descobri que estivemos, nós dois, sentados num mesmo auditório, sem que nos conhecêssemos, escutando uma palestra de Fernando Freitas na ABRASME em 2018[2]. Nilson me contou que a fala de Fernando foi decisiva e direcionou sua vida para sempre, pois foi naquele momento que Nilson decidiu parar de tomar drogas psiquiátricas.

Divulgar a experiência de Nilson no Mad in Brasil era um plano meu compartilhado com Fernando desde outubro 2022. Hoje a apresento aqui enlaçada com o desejo de homenagear Fernando – em memória dele e ao legado que ele deixou. Assim que soube que Fernando tinha falecido comuniquei ao Nilson, que disse: “pessoas assim não morrem porque permanecem vivas em nós”.

Nilson tem 61 anos e se apresenta como “Nilson Lopes, dependente químico em recuperação, há 10 anos sem uso de nenhuma substância”. Quando o entrevistei questionei como gostaria de ser chamado na tese – se gostaria de um nome fictício para preservar sua identidade, já que havia me contado coisas muito pessoais – e ele disse: “faço questão de ser identificado, para provar ao sistema que é possível superar as drogas com políticas públicas adequadas”.

Nilson tem uma história de vida muito difícil.  Cresceu em uma família muito pobre, com 9 filhos. Nilson é negro e foi criado numa colônia alemã, num país onde o racismo estrutural opera ações de exclusão importantes cotidianamente. Ele referiu que culturalmente só começou a se identificar, conhecer as suas raízes e se sentir parte do povo negro muitos anos depois, frequentando grupos afro em Porto Alegre. “eu comecei a me identificar e era convidado a participar desses grupos para aprender, porque a minha cultura foi abafada, foi apagada a história dos meus ancestrais. E a gente está resgatando isso também”.

Nilson esteve durante cerca de 30 anos em situação de rua. Foi internado muitas vezes em hospitais psiquiátricos no RJ, em SP e no RS. Esteve 9 meses internado numa comunidade terapêutica. Foram anos usando álcool e posteriormente crack (durante 8 anos) de forma muito abusiva, naqueles ciclos de viver para usar a substância e usar para poder viver. Viveu na Cracolândia (SP) alguns anos. Voltou para o RS e começou acompanhamento em um CAPS álcool e outras drogas (CAPSad) em São Leopoldo (RS). No CAPSad Nilson passou a frequentar grupos e a ter acompanhamento de uma equipe multiprofissional. Lá se envolveu com associações de usuários e foi na condição de, na época, presidente dessa associação que esteve em Brasília, na ABRASME, em 2018.

Parou de usar drogas ilícitas há 10 anos. A partir de oportunidades de discussão em Grupos da Gestão Autônoma da Medicação (GAM) e participação em eventos da luta antimanicomial,  foi entrando em contato com reflexões críticas também sobre o uso de medicamentos psiquiátricos, gestando a ideia de parar de usar. Em 2018 decidiu parar definitivamente de usar drogas psiquiátricas, impactado com os dados apresentados por Fernando Freitas em sua palestra.

Hoje Nilson trabalha como oficineiro de horta num projeto social em uma escola na cidade de São Leopoldo (RS). É atualmente vice presidente do conselho municipal de segurança alimentar do município de São Leopoldo (RS), membro do conselho estadual de segurança alimentar do Rio Grande do Sul (RS) e do fórum estadual de usuários do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) do RS, além de muito atuante junto ao POP Rua, participando ativamente dos debates sobre acesso e condições de vida das pessoas vivendo em situação de rua.

A entrevista com Nilson Lopes durou duas horas, por isso apresentaremos aqui fragmentos da entrevista. Confira:  

Lígia: Nilson, tu faz tratamento em saúde mental?

Nilson: Eu fiz durante… hoje faz 3 anos que estou afastado e que eu não tomo mais medicação né…. tomei durante 7 anos.

Lígia: Sete?

Nilson: Sete, primeiro eu tomei durante 2 anos quando me tratei do alcoolismo, depois eu tomei mais 7 anos.

Lígia: Aham.

Nilson: E hoje é… a partir das orientações do grupo GAM e também das palestras que eu ouvi com especialistas em São Paulo e em Brasília sobre a medicalização da vida né… e foi um palestrante que esclareceu uma porção de coisas lá que me fez refletir bastante e ver outras formas né…. que ele falou do quanto que era prejudicial a medicação e que a partir da patologização da vida… Ele iniciou falando das crianças –  que se uma criança sobe no sofá, fica quebrando coisas e derrubando, fazendo muita pergunta, a sociedade entende que essa criança tem algum problema mental, que é  uma criança hiperativa, que ela precisa de uma patologia e tomar uma medicação para que fique calminha. (….) A gente estava no evento enquanto movimento nacional da luta antimanicomial. Que é o contraponto da questão da internação, da medicalização além do necessário. Então, dentro disso e da questão da redução de danos e do próprio autoconhecimento. Então, a partir de uma ideia de que o paulistano que falou da medicação anti depressivo, estabilizador de humor, assim, a rodo… E sem uma avaliação mais precisa da situação. A enfermeira troca aceita, passa… Agora na pandemia, no pós pandemia, atende no plantão para dar receita e enfim. E é isso aí… esse cuidado, né? O próprio psiquiatra mesmo, com uma demanda grande para atender, não atentava para individualidade. E se tinha que aumentar, assim: “ah, tá surtando? então aumenta a medicação”.  (…) E foi assim comigo.

Lígia: Como é que foi contigo?

Nilson: Chegou um momento… eu tomava… No início, eu tomava imipramina, lá em 1998 quando eu me tratei pela primeira vez de alcoolismo. Eu tomei durante 2 anos. Mas essa medicação deixava o meu pensamento e a minha visão turva. Meu pensamento lento, raciocínio lento, a cabeça pesada e uma visão embaçada… das coisas e da vida. Me mantinha calmo. Me mantinha dopado, eu diria… e até que eu falei: mas é…? Eu precisava trabalhar, eu precisava viver. Eu estava sempre indisposto. Acordava tarde e com sono, com a cabeça pesada. Eu falei: “não é isso que eu quero para mim, né?” E eu me libertei do alcoolismo, de mais de 20 anos. E fiquei 2 anos tomando a medicação. Até que eu falei: “Não, eu não vou tomar mais e eu vou ver o que vai acontecer”. Mas eu conheci a maconha, eu conheci a cocaína, enfim… Daí eu fui para a maconha. Me acalmava e me deixava tranquilo. Enfim… Depois ela já não mais era suficiente para mim. Aí eu conheci a cocaína. Aí fui para cocaína… E depois eu fiquei 8 anos usando crack.

Lígia: Uhum

Nilson: E aí, foi a degradação humana total. E aí, sem medicação, sem nada…. E eu.. Nem documento eu tinha. Que eu fui para a rua.  E eu perdi o meu vínculo familiar, as pessoas não queriam mais eu por perto… Aí eu ficava nos albergues e viajava muito…fiquei… fui para São Paulo, fui para o Rio de Janeiro, Curitiba várias vezes, Porto Alegre, então… eu ficava por aí.. andando. (…) Andarilho. Às vezes de carona, às vezes eu ia de uma cidade para outra a pé. Ficava num albergue, arrumava algum trabalho (…) daí eu recebia, pegava o meu dinheiro e viajava. (…)  Mas eu não conseguia ficar muito tempo no emprego por conta do meu vício. Que eu faltava serviço. Dava problema com os encarregados ali, enfim, com os coordenadores, e eu não ficava muito tempo. Ficava para a rua, ia pro albergue, trocava de cidade… e… eu estava à procura do meu eu, acredito, né… Que eu não me encontrava e nem eu sabia o que eu estava procurando. Mas naquele município não era mais.

(…)

Nilson: Então foram dois espaços – um da saúde mental e o da assistência social – que me projetaram para outros espaços:  conselho de saúde, conselho comunitário (…)  e eu me identifiquei muito com isso para conhecer os meus direitos, para cobrar… Eu acho que foi isso que me que… ãahhhm… Como é que eu vou dizer? É o combustível que me move, né? E de estar com os meus iguais também, representando nesses espaços. Que eu sei da dificuldade que é de quem está com fome e de quem tem um vício, ou que usa uma droga de sua preferência ou álcool, de estar nesses espaços para cobrar dos seus direitos. Quem está com fome a prioridade dele é comer. Quem usa droga está obcecado por usar. O alcoolismo é a mesma coisa. Então a gente tem que tá… E isso também me fortalece enquanto pessoa em superação dessa situação. E quando eu falo disso, reforça. Eu falo para mim mesmo primeiro, né? E isso… Eu me convenci de estar forte e de tentar fazer mais.

(…)

Nilson: Eu vim de uma família de 9 irmãos negros, de pai analfabeto e de mãe também analfabeta. Convivia com uma porção de coisas dentro de casa, com briga, miséria, fome. Então todo um contexto que me fez, acredito eu, tomar esse rumo e de não conseguir estudar como uma criança normal, por conta de desnutrição e de não ter vestes nem material o suficiente para me sentir bem, né? E conseguir acompanhar os colegas… Aí, então… foi toda uma problemática que me fez ir para esse rumo. A falta de perspectiva… de olhar para o meu futuro e ver que não tinha muita coisa né? Que…é como a minha escolaridade… Tanto é que eu concluí o ensino fundamental agora em 2020 e o ensino médio em 2021 pela EJA. Mas por conta de toda uma combinação de fatores, do CAPSAD, da participação dos grupos, das políticas públicas, de pessoas, de trabalhadores comprometidos que me cobravam e me acompanhavam… E que parte dessas pessoas que era estagiário no início lá, quando a gente se conheceu, e hoje tem o seu consultório e a gente é amigo, toma café juntos, enfim… Então várias coisas assim, que… coisas pequenas, mas que somadas a outras e outras e outras formaram um… essa coisa mais gigante que me manteve. É difícil…mas que é o que me faz hoje estar onde eu estou, falando contigo, porque eu já me senti morto na minha vida… Para tudo… Só o corpo estava vivo. E obcecado por comida, mas principalmente por droga, por cachaça.

(…)

Quando eu estava  em situação de rua eu diria, né… Que eu estava sozinho no mundo, eu não tinha… eu rompi os vínculos familiares e eu não tinha amigos e eu não queria ficar no mesmo.. na mesma cidade, enfim, para não envergonhar eles e porque eu me conhecia… Eu sabia que às vezes eu exagerava, eu fazia confusão no boteco, enfim. Então eles não me queriam por perto… Por conta de que… briga dentro de casa com o meu pai, com os irmãos, enfim. Então, um jeito assim que eu tinha de… muita revolta. Muita mágoa, muita tristeza, muita angústia e que me sufocava…. e daí eu descarregava no que estava na minha frente.

Lígia: Sim.

Nilson: Né? E depois vou dizer que meu pai, meus irmãos, todos eram vítimas também, né? É que é…. Era todo um contexto social que, por conta da cor da pele, por conta de da história do Brasil, né? De tudo como se deu… Que a própria libertação dos escravos não foi na verdade libertação… Foi o início da favela, o início da população em situação de rua… Por conta do fato de que não foi oferecida nenhuma oportunidade de aquisição de terra e nem de sobrevivência com dignidade. Enquanto que… Para os imigrantes europeus teve acesso à terra, linhas de crédito e todo uma estrutura para que as pessoas pudessem progredir e de lutarem, poder ter seus filhos, de poder ter acesso à escola, enfim…

Lígia: Exatamente

Nilson: tem todo um histórico… No livro[3] eu falo que se olho para um ser humano e não vejo um ser humano, é porque antes disso ele já foi violentado.

Lígia: Olha…(pausa)

Nilson: E que para…

Lígia: “Se olho para um ser humano e não vejo um ser humano, é porque antes disso ele foi violentado”.

Nilson: É porque já foi violentado. E o que vejo é o que sobrou de um ser humano… um corpo… um zumbi.  É por que… para compreender o momento de hoje de alguém, ou do mundo, ou do Brasil é preciso compreender o processo histórico. Porque ele terminou por… para que hoje seja dessa forma.

Lígia: Aham

Nilson: Então não é por acaso que tem moradores de rua. “É vagabundo, não quer trabalhar”, né, eu quantas vezes queria trabalhar? Queria que… Se fosse me dado a oportunidade lá no início, desde criança…talvez seria diferente hoje. Não me arrependo do que eu sou hoje, né, que eu me considero a cada dia como… estar no ponto mais alto do pódio da minha vida, né? (ri emocionado) Que o meu ponto de partida é a sarjeta, é uma coisa ruim. Mas voltando à medicação… Quando… no CAPSAD eu tomei… várias vezes eu conversava com a psiquiatra e eu dizia: “Ah, tá sendo fraco, eu acho… Porque eu continuo com ansiedade… às vezes eu tenho depressão… e eu tenho umas crises repentina”. E aí ela mudava a medicação. E ela depois me perguntava como que estava, se foi bom. Aí eu tinha um sono muito pesado e não conseguia acordar.  E ela modificava e aí me perguntava… E assim foi indo né… isso durante 7 anos.  No ínicio eu tomava 5, 6, 8 de manhã, meio dia, de noite. (…) Mas aí eu tomei… Eu diria que todos, né, Imipramina lá. Mas aí principalmente Haldol, Amplictil… para não ter convulsão, para a pressão arterial eu tinha que tomar também… e complexo B  para a questão da alimentação e até para a ansiedade, enfim. (…) tomei carbamazepina, tomei Diazepam por um tempo… depois o médico cortou. Ele disse: “é, tu tá viciado nesse Diazepam. Esse tu não vai tomar mais”. Carbonato de lítio foi o que mais tempo eu usei. (…) Mas também… todos me deixavam nessa coisa de… flutuando, cabeça pesada, não podia ter uma vida normal. Até que chegou no final, é… aí eu conversei com a doutora. Eu falei: “doutora, às vezes eu tenho ansiedade e… eu não sei se isso pode ser o meu normal, né… que… que seja isso”, isso depois de ter participado dessas palestras, né?

Lígia: Essas de Brasília e de São Paulo?

Nilson: De Brasília e de São Paulo. E aí eu falei.. Aí, eu não sei… De repente…(pausa) como que a gente vai lidar com isso, se isso é normal e eu tenho que desenvolver alguma maneira de…. de suportar isso.

Lígia: Aham

Nilson: ou…Porque eu não posso ficar a base de medicação para… se ela me deixa num estado que… anormal para mim. Eu estou com o freio de mão puxado. E eu preciso viver, eu preciso trabalhar, eu preciso estar nos espaços… e para poder assimilar as coisas, aprender né… e não ser tão esquecido. (…)  Daí a gente combinou de fazer uma experiência de diminuir a dose até zerar. Eu falei: “tá, vamos fazer então” E aí a conclusão que a gente chegou… é que eu continuava tendo as mesmas… ãhmmm… aquelas… Não crises né… mas assim, repentinamente eu ficava com ansiedade.

Lígia: Aham

Nilson: E.. alterava o humor. Eu vivia com a minha mãe e às vezes eu via que eu tinha respondido de uma forma que não era adequada e que não era daquele jeito que tinha que ser e nem que eu queria ser. E… daí? A ideia era então que… que eu aprendesse a lidar com isso, né. Sem a medicação. Por que a conclusão é de que é… eu tinha, mas era na mesma, no mesmo nível. Tomando medicação, eu tinha. E não tomando, eu tinha. E…. não morria por conta disso, né? Mas que, claro, eu precisava desenvolver. Aí a gente começou a… me dediquei bastante tempo a hortas, a jardim – que é uma coisa que eu gosto de fazer – e estar nos espaços falando. Seja para estudantes, seja para outras pessoas… No CENTRO POP, nos albergues, onde tem gente da rua ou tem pessoas que também tem um vício… de… Para que as pessoas possam ver que é possível e que, tendo força de vontade e claro que todas essas combinações que eu falei, é possível que a pessoa se liberte da medicação e que ela pode ter uma vida normal.  Para mim, no caso, né? É… como é que eu vou dizer… (pausa) A partir da escuta, de você valorizar o potencial que já existe. Todo mundo sabe fazer alguma coisa que só ela daquele jeito. E eu, por conta da curiosidade, de querer aprender, de querer saber mais e até de me conhecer melhor…

(…)

Lígia: Ô Nilson, só para eu entender, então, quando tu se afastou (do CAPSad), na verdade, tu já não usava mais medicação, já tinha parado de usar medicação.

Nilson: Sim, tinha. Eu parei de usar em 2018. Aí eu pedi para fazer essa avaliação e eu falei que eu estava ainda…. que eu tinha ansiedade. Que eu tinha dificuldade de dormir. Só que eu tomava e dormia de mais. O sono ficava muito pesado e durante o dia eu tinha ansiedade e ficava meio nublado e as perna pesada e a cabeça. E daí ela falou, mas é o lítio, o lítio é o mais recomendado, com menos efeito colateral.

L: Nessa época, depois de todos os medicamentos, tu só tomava o lítio e mesmo assim, continuava sentindo esses efeitos colaterais

N: Exato

L: E aí, tu aí que tudo começou esse processo de redução gradual do lítio é isso?

N: Lítio, que era a última medicação que faltava. Que era a última que faltava eu me libertar dela.

(…)

Nilson: eles (os psiquiatras do CAPSad) falavam, “não, tu não precisa, tu está bem. Tu não precisa tomar medicação, tu precisa se conhecer”. E controlar a ansiedade de outras formas. Por que existem outras formas.

Nessa época, Nilson ouviu a palestra de Fernando na ABRASME:

N: Sim, eu vi e daí eu conversei com a minha psiquiatra. Ela foi uma das pessoas que me atendeu mais tempo, ficou 4 anos. E então ela conseguiu no fim da história… Ela sempre dizia “tu está bem Nilson, já pode dar alta”. Mas eu não estava seguro

L: Que tu já estava há muito tempo sem usar nenhuma substância e continuava frequentando o CAPSAD porque tu se sentia seguro.

N: Exato e até porque o meu público estava lá, enquanto associação de usuários, a gente não tinha sede a gente se… A gente nasceu dos espaços de convivência. Então, era uma referência. Para encontrar esse público lá. E a gente tinha uma relação de afeto. De vínculo, de companheirismo, de ajuda, de emprestar dinheiro, de sair junto… E isso me fortalecia. Mas quando eu ouvi essa palestra e… eu já tinha, eu já vinha num processo de diminuição. E digo “nossa, então, se… As pessoas precisam ser elas mesmas, não é?” porque o hipocondríaco ele tem todas as doenças e ele precisa tomar medicação e o analgésico também, uma das coisas mais consumida que existe. Então, tudo está a na farmácia. E, se eu não consigo, se eu não estou dentro de um procedimento artificial social, então eu sou um doente. Então, eu tenho que tomar uma medicação e sem essa coisa de… Claro e eu tomei.. e acredito que naquele momento fez a diferença. Mas assim como eu sabia que tinha me tratado de alcoolismo, tinha saído e nunca mais me fez falta e que eu passei pela drogadição das 3 e do crack, que foi um dos mais fortes e que não morri por isso. E que, então,  também a medicação eu poderia  abolir e tratar de outras formas. Com chás. Vendo filme… ver as coisas que eu gosto para poder fazer e não…. não é isso…. ficar dependendo de medicação.

 

(….)

N: E a gente conseguiu… De uma história que eu sempre digo que tem como ponto de partida a sarjeta e o farrapo humano em todos os sentidos… Por que quando uma pessoa está deitado na rua. É muito mais do que um corpo que está ali no chão. É a alma, é o espírito, é a dignidade. É a cidadania, autoestima, os sonhos né?… tudo o que de bom havia naquele corpo que está deitado ali… É só um corpo que está ali, morto. Um morto vivo, um zumbi, como diz o cartaz né? Que a gente foi chamado de zumbi aqui em Porto Alegre. O pessoal da rua… “esses zumbis que ficam circulando de noite”, né?. Por isso que diz “Zumbi, só se for dos Palmares”. Que esse fez a diferença na vida dos negros

(…)

Lígia: como é que tu avalia o papel da medicação assim, na tua vida assim?

N: Eu acho que assim (…) ela foi importante nos momentos, naqueles estágios em que eu me encontrava, ela foi importante sim. Ela me confortou e ela fez a diferença, assim, me fez melhor, né? Eu acho que eu teria surtado, enlouquecido em alguns momentos e eu não dou… não teria dormido à noite se eu não tomasse a medicação. Mesmo que ficasse com sono de dia, mas que naqueles momentos, que naqueles estágios em que eu me encontrava eram necessários. Mas que… não para tomar a vida toda. Não para continuar nessa dependência. E de também me deu a oportunidade de me conhecer de cara, poder ficar de cara limpa. De como que é… e de que o bicho não é tão feio quanto eu imaginava. Eu tinha medo, né de ficar assim, mas aí.. diante de de… de tanta informação que eu sempre tive curiosidade de saber mais no do que eu estou inserido… do medicamento, de saber mais é… da psicologia, ler livros, de que… o que que, de fato, é a psicologia, o que que é da área social… qual é que são os meus direitos, o que que é um caps, né? quais os princípios do SUS e do SUAS, qual o papel? E então… é, e de ver que tinha um monte de coisa, quanto mais eu aprendia, eu via que eu sabia menos. Mais coisa eu tinha para aprender, como ainda hoje, né?

(…)

Por isso que eu digo: quanto mais eu estudo e aprendo, menos eu sei.[risos] Mais coisa eu fiquei… mais coisas eu tenho para aprender.

L: [Risos] Mais coisa tu descobre que ainda tem para aprender, né?

N: E até o próprio autoconhecimento. Sempre se descobrindo… descobrindo coisas que a gente gosta, o que não gosta. Mas é muito importante para mim poder falar da causa que eu defendo e de poder mostrar para as pessoas que é possível sim, um zumbi… morto vivo se transformar numa pessoa produtiva. E a rua produz conhecimento também. Produz! A rualogia! Eu quero fazer quando eu tiver oportunidade pedagogia para eu organizar da fala para ser um palestrante e para qualificar isso.

***

Autora: Lígia Castegnaro Trevisan

Psicóloga clínica, Especialista em Saúde da Família e em Psicologia Social e Institucional. Mestre em Saúde Coletiva. Atualmente doutoranda em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio                                      Grande do Sul (UFRGS). Possui experiência em gestão do Sistema                                    Único de Saúde (SUS), apoio institucional, Atenção Primária em                                        Saúde (APS),saúde mental, clínica e docência (cursos de psicologia                                    e medicina).

 

[1] Doutorado em Psicologia Social e Institucional, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com orientação de Analice Palombini, com término previsto para 2023. A tese investiga a relação estabelecida com as drogas psiquiátricas, analisando experiências de uso prolongado de psicofármacos e de redução/interrupção, imergindo nos campos de disputa que se instauram na problematização do uso de drogas psiquiátricas.

[2] A fala de Fernando ocorreu na ABRASME, em Brasília, no dia 04/09/2018, intitulada “Medicalização: Patologização da Sociedade”.

[3] Nilson se refere a um livro lançado por Ana Carolina Mattos no qual teve participação: MATTOS, Ana Carolina Einsfeld. “Mas, se a gente é o que come, quem não come nada some!”. APPRIS, 2021. Para saber mais, acesse https://sul21.com.br/opiniao/2021/07/um-livro-que-une-a-academia-e-as-realidades-da-populacao-de-rua-por-ana-carolina-mattos/

 

Um psicólogo incomum e a luta contra a medicalização

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Memorial para Fernando Freitas, que contribuiu com o debate sobre a patologização da saúde mental. Chamado “guerreiro da mudança radical”, era importante voz contra tornar doença o que é da ordem das experiências múltiplas da vida

 

À memória de Fernando Freitas

Na semana passada perdemos um grande ativista da luta contra a patologização e a medicalização da vida! Fernando Freitas era psicólogo, Doutor em Psicologia Social, ex-professor da UERJ e, ao final de sua carreira profissional, Pesquisador da Fiocruz. Ele não resistiu ao câncer que o fazia sofrer há cinco meses.

Embora tenha partido, Fernando deixou um trabalho que terá não apenas continuidade, mas que crescerá muito mais, seja pela relevância da questão à qual ele dedicou os últimos anos de sua vida, seja em consequência de sua fundamental e decisiva atuação.

Tradicionalmente debruçado no estudo das ciências sociais e humanas no campo da psicologia e da saúde mental, em especial em sua relação com as artes e a cultura, Fernando foi marcadamente instigado pelo livro de Marcia Angell (A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos, como somos enganados e o que podemos fazer a respeito). Se trata de uma obra consistente, muito bem fundamentada documentalmente, sobre as mentiras, artimanhas, falsidades, atitudes antiéticas, etc, protagonizadas pela Big Pharma; a indústria farmacêutica! Angell, ex-professora de Harvard e editora de um dos mais influentes periódicos científicos na medicina e saúde em todo o mundo, revelava como nunca antes havia ocorrido, os bastidores da indústria farmacêutica e, mais que isso, os bastidores da fraude e manipulação na produção e divulgação científicas.

E a partir de Marcia Angell, muito particularmente a partir de um artigo publicado também no Brasil na Revista Piauí sobre a depressão e os antidepressivos, Fernando Freitas descobriu o trabalho de Robert Whitaker, premiado jornalista científico, autor de “Loucura na América”, “Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental” e, mais recentemente, “Psiquiatria sob influência: corrupção institucional, danos sociais e prescrições para a reforma”.

A impressão é a de que nada mais seria tão importante para Fernando. O tema da medicalização se tornou nuclear em sua atividade acadêmica. Neste sentido, é preciso ressaltar que o termo medicalização não deve ser reduzido à utilização irracional ou abusiva de medicamentos. Utiliza-se medicalização para se referir ao processo de captura das dimensões da vida pela racionalidade médica, isto é, à transformação da natureza das coisas, que são reduzidas, exclusiva ou predominantemente, a fenômenos médicos. Mais recentemente, para evitar este reducionismo, passou-se a utilizar a expressão patologização, com o propósito de tornar mais claro o significado deste processo que, grosso modo, significa tornar doença, sintoma ou anormalidade, o que é da ordem das experiências diversas e múltiplas da vida! Um exemplo emblemático pode ser encontrado na transformação do significado da experiência da tristeza em depressão, expressão que passa a conter um sentido de doença! Não se fala mais em depressão sem associá-la a doença, transtorno, distúrbio, etc. Como se não fosse mais possível viver sem sofrer, ficar deprimido.

Especialmente após o DSM5, o manual dos distúrbios mentais (termo utilizado na língua inglesa) da associação estadunidense de psiquiatria, bíblia da colonização científica neste campo, tudo na vida virou doença. São 500 diagnósticos diferentes. Praticamente todas as formas de expressão da vida podem ser incorporadas como diagnósticos, em que pese a falta absoluta de fundamentação científica. Nenhuma comprovação genética, anatômica, nenhum marcador (como os marcadores tumorais), nenhuma alteração bioquímica (como a glicemia, provas de função hepática…). A hipótese largamente utilizada de uma alteração bioquímica nos mecanismos de recaptação da serotonina, a menina dos olhos dos defensores da medicalização, foi totalmente enterrada no final do ano passado a partir de uma robusta pesquisa de uma equipe coordenada pela professora inglesa Joanna Moncrieff.

Um dos mitos criados pela psiquiatria financiada pela indústria farmacêutica é o de que o aumento do rol de diagnósticos se deveria ao aperfeiçoamento científico do saber psiquiátrico, que passaria a poder identificar mais e mais doenças à psiquiatria. Ao contrário, e este é um dos mitos demolidos por Whitaker, é que é exatamente ao contrário: quanto menos saber científico, quanto menos objetividade, mais a possibilidade de ampliar e medicalizar, de absorver a diversidade humana em diagnósticos meramente subjetivos. Já o personagem de O Alienista, de Machado de Assis, Simão Bacamarte, dirigindo-se ao Sr. Soares observava que “supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia!”

Foi a partir destas questões que, com Fernando Freitas, a Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), pautou o tema como prioritário e incluiu-o em suas teses para as políticas públicas de saúde mental. Foi criada a condição de contar com a presença, pela primeira vez no Brasil, em 2014, do jornalista Robert Whitaker e, partir de então, Whitaker passaria a fazer parte, regularmente, dos eventos promovidos pela associação.

Em 2017 decidimos traduzir e publicar o “Anatomia de uma Epidemia”, do qual assinamos e coautoria e o prefácio. Mas, dado a um maior aprofundamento no trabalho de Whitaker, especialmente do site “Mad in America” por ele criado, Fernando decidiu, e nos convenceu, de que seria o caso de criarmos o “Mad in Brasil”, para participar da “comunidade Mad”, que dava seus primeiros passos. Passavam a surgir parceiros na França, Itália, Espanha, México, Canadá, Suécia, Finlândia, Holanda, Inglaterra e Ásia. No momento está se criando o “Mad in Portugal”, numa cooperação entre pesquisadores do LAPS (Ensp/Fiocruz) e do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, na qual Fernando consta como um dos fundadores. Nos honra informar que o “Mad in Brasil” é o segundo mais acessado de toda a comunidade, só estando atrás do norte-americano. E, certamente, isso se deve à dedicação permanente, quase obstinada, do Fernando em mantê-lo vivo e atualizado.

O título do livro de Whitaker serviria também de inspiração para a organização dos Seminários Internacionais “A Epidemia das Drogas Psiquiátricas” que, no ano passado, realizou sua sexta edição. Além do próprio Whitaker, este evento foi responsável pela divulgação, ao público brasileiro, de autores/atores como Jaakko Seikkula, da originalíssima e revolucionária experiência finlandesa do “Diálogo Aberto”, na qual se atende às crises ditas psicóticas sem o concurso (ou com muito tímida utilização) de medicamentos antipsicóticos; de Irving Kirsch, um dos maiores especialistas em pesquisas sobre depressão; de Daniel Puras, responsável na época pela área de direitos humanos e saúde da ONU, de Joanna Moncrieff, que fiz referência anteriormente, de Laura Delano e de Peter Lehmann, autodenominados de  “sobreviventes” da psiquiatria,  que deram  origem a trabalhos preciosos para auxiliar usuários de drogas a suspenderem as substâncias; e, inclusive,  de Allen Frances, líder do grupo-tarefa que elaborou o DSM IV, e que se tornou um dos mais eloquentes críticos do próprio sistema DSM! Enfim, os seminários trouxeram alguns dos mais importantes nomes da pesquisa crítica sobre a psiquiatria e suas estratégias de patologização da vida.

Por fim, por uma dedicação muito especial de Fernando Freitas, passamos a compor, junto com alguns dos mais importantes pesquisadores e pesquisadoras de todo o mundo, o Instituto Internacional para a Retirada das Drogas Psiquiátricas (International Institute For Psychiatric Drugs Withdrawal), a partir da constatação, existente em pesquisas em vários centros acadêmicos, da grave dependência química produzida pelas drogas psiquiátricas, assim como da dificuldade que as pessoas têm para livrar-se delas. Até então, a psiquiatria oficial não admitia que as drogas psiquiátricas causassem dependências e muito menos síndromes de abstinência.

Fernando partiu! Mas nos deixou algumas tarefas: a de não abandonar a luta contra a patologização e a medicalização da vida, a de continuar realizando os seminários internacionais e mantendo vivo e influente o “Mad in Brasil”! Em um belíssimo e tocante texto sobre Fernando, Robert Whitaker destacou uma quantidade enorme de manifestações de pesar recebidas da comunidade internacional da psiquiatria crítica, e o denomina de “guerreiro da mudança radical”.

E a luta aponta, por um lado, para a denúncia e a resistência necessária contra o aumento abusivo de diagnósticos psiquiátricos: é importante ressaltar que o que aumentam são os diagnósticos. A patologização. Isso não significa que aumentem as doenças ou transtornos, já que não há nenhum critério objetivo que fundamente cientificamente este fenômeno. Por outro lado, a luta para barrar este processo absurdo de prescrição de medicamentos psiquiátricos, grande objetivo da indústria farmacêutica, que financia este processo mercadológico da patologização!

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Texto originalmente publicado pelo site www.outraspalavras.net

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