O Aprendizado de Máquina não consegue identificar a depressão com base na neurobiologia

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“O fato de não podermos encontrar diferenças neurobiológicas significativas (univariadas ou multivariadas) a nível do indivíduo para um dos transtornos mentais mais prevalentes deveria nos fazer pensar”. – Pesquisador principal Nils R. Winter

 

Os pesquisadores sugeriram que o Aprendizado de Máquina – uso de inteligência artificial para investigar um fenômeno complexo – pode ser melhor para identificar quais medidas neurobiológicas são importantes e como usá-las para prever diagnósticos psiquiátricos. Infelizmente, até agora, essas tentativas atingiram uma precisão pouco melhor do que o puro acaso.

No entanto, muitas pesquisas anteriores usaram um único tipo de medida neurobiológica (como um tipo de varredura cerebral) para tentar prever diagnósticos psiquiátricos.

Em um novo estudo, os pesquisadores tentaram algo diferente. Eles criaram um algoritmo de Aprendizado de Máquina para combinar todas as medidas neurobiológicas concebíveis para prever a depressão.

Mas seus resultados foram igualmente abaixo do esperado:

“Treinando e testando um total de 2,4 milhões de modelos de AM, encontramos precisões para classificação de diagnóstico entre 48,1% e 62,0%”, escrevem eles.

 

Para comparação, eles observam que as variáveis ​​sociais/ambientais de apoio social e maus-tratos na infância predizem a depressão com mais de 70% de precisão. Combinar variáveis ​​socioambientais e incluir mais do que apenas essas duas pode trazer uma precisão ainda maior.

Legenda: Este gráfico do artigo demonstra que a precisão até mesmo dos mais robustos algoritmos de Aprendizado de Máquina e com base em todas as informações neurobiológicas possíveis chega a 62%, enquanto as variáveis ​​ambientais atingem mais de 70% de precisão cada.

Em suma, eles escrevem:

 

“Embora os marcadores multivariados de neuroimagem aumentem o poder preditivo em comparação com análises univariadas, a classificação de um único sujeito – mesmo sob condições de otimização extensa e de melhor prática de Aprendizado de Máquina em uma amostra grande e harmonizada de pacientes diagnosticados usando avaliações clínicas de última geração – não atinge desempenho clinicamente relevante.”

 

A pesquisa foi conduzida por Nils R. Winter na Universidade de Münster, Alemanha. O artigo foi publicado antes da revisão por pares no servidor de pré-impressão medRxiv.org. No Twitter, Winter escreveu sobre o estudo:

 

“O fato de não podermos encontrar diferenças neurobiológicas significativas (univariadas ou multivariadas) a nível do indivíduo para um dos transtornos mentais mais prevalentes deveria nos fazer pensar”.

 

O estudo anterior deste grupo chegou a um resultado semelhante. Os pesquisadores descobriram que não havia diferenças individuais na neurobiologia entre pessoas com diagnóstico de depressão e as do grupo controle saudável.

Nesse estudo, os pesquisadores escreveram que:

 

“participantes saudáveis ​​e depressivos são notavelmente semelhantes no nível do grupo e virtualmente indistinguíveis no nível individual em um conjunto abrangente de modalidades de neuroimagem”.

 

Um olhar mais profundo sobre o estudo atual

O estudo atual do grupo de Winter incluiu 1.801 pessoas de três grupos: aqueles que atualmente atendiam aos critérios para o diagnóstico de depressão, aqueles com histórico de depressão e o grupo controle saudável. Eles foram recrutados por meio do Marburg-Münster Affective Disorders Cohort Study (MACS) na Alemanha.

Estudos anteriores levantaram preocupações sobre a confiabilidade do diagnóstico de depressão, uma vez que os pacientes listados como “deprimidos” são frequentemente definidos com base em questionários de triagem ou outras medidas menos confiáveis. O estudo atual usou o padrão clínico de uma Entrevista Clínica Estruturada do DSM-IV para diagnosticar a depressão, garantindo que o diagnóstico fosse o mais confiável possível.

As medidas neurobiológicas incluíram várias formas de ressonância magnética estrutural, funcional e baseada em tarefas, bem como a pontuação de risco poligênico (uma medida teórica do risco genético para depressão).

Os pesquisadores observam que não há nenhuma teoria aceita ligando a depressão à neurobiologia:

“Como não existe uma teoria formal estabelecida da neurobiologia da depressão, é incerto quais métodos de neuroimagem serão mais adequados para capturar informações clinicamente relevantes”.

 

Seu estudo confirmou essa falta de conexão entre o diagnóstico de depressão e a neurobiologia, uma vez que nenhuma das medidas neurobiológicas testadas – mesmo quando combinadas – conseguiram atingir um valor preditivo clinicamente relevante.

Assim, eles escrevem:

“Como a Psiquiatria de Precisão biológica poderia fornecer previsões individualizadas mais precisas para melhorar o tratamento e o atendimento ao paciente permanece uma questão central em aberto neste momento.”

 

No entanto, as variáveis ​​sociais/ambientais de apoio social e maus-tratos na infância foram individualmente capazes de prever a depressão com mais de 70% de precisão.

Os pesquisadores escrevem que os algoritmos foram um pouco melhores na classificação de pessoas com depressão crônica grave que foram hospitalizadas e tomavam vários medicamentos. Ou seja, os algoritmos não eram muito bons em identificar pessoas que poderiam passar despercebidas por um clínico humano, mas eram um pouco melhores em identificar o grupo que também é mais fácil para os humanos diagnosticarem.

Mas o pior é que quando os pesquisadores restringiram a análise apenas a este grupo – supostamente o mais fácil para o algoritmo diagnosticar – isso não aumentou substancialmente a precisão:

“Nossas análises complementares de subgrupo com foco em pacientes com depressão aguda e recorrente, respectivamente, não aumentaram o desempenho preditivo”, escrevem eles.

 

Uma explicação que eles propõem é que o diagnóstico de “depressão” é tão amplo que não faz um bom trabalho de capturar experiências individuais. Assim, eles sugerem que o diagnóstico de depressão em si não representa uma única “doença mental” ligada à neurobiologia, mas sim uma categoria ampla que contempla uma variedade de experiências, estados mentais e níveis de funcionamento que variam amplamente entre os indivíduos.

Eles sugerem que pode haver uma maneira melhor de categorizar as pessoas com base em seus “sintomas” específicos e níveis de funcionamento. No entanto, como eles não conseguiram encontrar tais subcategorias teóricas, isso permanece sem comprovação.

Em última análise, eles escrevem,

“A complexidade do fenótipo da depressão grave pode exigir uma abordagem mais abrangente que incorpore interações entre a neurobiologia, o corpo inteiro e o ambiente”.

 

Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).

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Winter, N. R., Blanke, J., Leenings, R., Ernsting, J., Fisch, L., Sarink, K., . . . & Hahn, T. (2023). A Systematic Evaluation of Machine Learning-based Biomarkers for Major Depressive Disorder across Modalities. medRxiv.org. doi: https://doi.org/10.1101/2023.02.27.23286311 (Link)

Corrida-terapia para depressão é tão eficaz quanto antidepressivos e sem os riscos à saúde

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People exercising at fitness gym

Um artigo a ser publicado em breve no Journal of Affective Disorders (Revista dos transtornos afetivos em tradução livre) descobriu que, enquanto a corrida-terapia e os antidepressivos têm efeitos semelhantes nos sintomas depressivos, a primeira é muito melhor para a saúde física dos participantes.

O estudo dividiu os participantes em dois grupos, um que recebeu antidepressivos e outro que participou de sessões supervisionadas de corrida de 45 minutos. Enquanto os participantes que receberam tratamento com antidepressivo experimentaram deterioração da saúde física, aqueles que receberam a terapia de exercícios como tratamento, viram melhorias. Os autores escrevem:

“Embora as intervenções tenham efeitos comparáveis ​​na saúde mental, a
corrida-terapia superou os antidepressivos no quesito saúde física devido a
maiores melhorias desse grupo, bem como à maior deterioração no grupo de
antidepressivos”.

Pessoas se exercitando numa academia

A pesquisa se propôs a comparar os efeitos de antidepressivos e exercícios como tratamentos para participantes com depressão e transtornos de ansiedade. Para atingir esse objetivo, os autores dividiram 141 participantes entre 18 e 70 anos em dois grupos, um que recebeu o antidepressivo Escitalopram e outro que recebeu a corrida-terapia. Alguns participantes do grupo antidepressivo receberam a prescrição de um segundo antidepressivo (Sertralina), caso o primeiro fosse ineficaz. Os participantes do grupo de
corrida foram encorajados a correr por 45 minutos 2 ou 3 dias por semana.

Os participantes podiam escolher a qual grupo seriam designados ou optar por serem alocados aleatoriamente a um dos grupos. Como resultado da preferência dos participantes, 45 se juntaram ao grupo de antidepressivos e 96 ao grupo de corrida-terapia. Os participantes receberam avaliações básicas antes das intervenções e após 16 semanas do início do uso de antidepressivos ou da prática de exercícios. As avaliações incluíram fatores de saúde mental (diagnóstico e gravidade dos sintomas) e saúde física
(frequência cardíaca, variabilidade da frequência cardíaca, peso, função pulmonar, circunferência da cintura, pressão arterial, etc.). Os participantes foram excluídos da pesquisa com base em sete critérios de exclusão:

1. Uso de antidepressivos nas últimas duas semanas
2. Uso de outros psicotrópicos (excluindo benzodiazepínicos)
3. Exercício regular
4. Diagnósticos de saúde mental que não sejam depressão ou
transtornos de ansiedade
5. Risco de suicídio
6. Médicos que desaconselham qualquer uma das intervenções (por
exemplo, pessoas com problemas cardíacos graves)
7. Gravidez

82,2% dos participantes do grupo de antidepressivo e 52,1% do grupo de corrida aderiram ao protocolo de tratamento. No grupo de corrida-terapia, 14 participantes (15%) nunca iniciaram o tratamento e 16 (17%) participaram de 9 sessões ou menos.

Enquanto o grupo de antidepressivo observou uma melhora ligeiramente mais rápida nos sintomas de saúde mental, as taxas de remissão não foram significativamente diferentes na marca de 16 semanas. 43,3% do grupo de corrida-terapia e 44,8% do grupo de antidepressivos tiveram remissão de seus sintomas na conclusão do estudo. Os autores observam que a remissão não significou ausência de sintomas e que mesmo esses participantes “ainda apresentavam considerável sintomatologia depressiva e de ansiedade”.

Em relação à saúde física, o grupo de corrida apresentou melhorias significativas, com diminuição da frequência cardíaca, pressão arterial e circunferência da cintura e aumento da função pulmonar. Por outro lado, o grupo de antidepressivo viu uma deterioração de sua saúde física com aumento de peso (3kg em média), pressão arterial, triglicerídeos e diminuição da variabilidade da frequência cardíaca.

Os autores mencionam duas limitações da pesquisa. Primeiro, relativamente poucos participantes estavam dispostos a serem aleatoriamente designados a um grupo de tratamento (15%), o que tornou esse grupo muito pequeno para a realização de análises separadas. Em segundo lugar, os participantes preferiram, em sua maioria, participar do grupo de corrida-terapia, tornando o grupo de antidepressivos muito menor. Os autores concluem:

“Mostramos que, embora a medicação antidepressiva e a corrida-terapia não diferissem significativamente em quesitos estatísticos nos resultados de saúde mental… usuários de antidepressivos mostraram uma diminuição na variabilidade da frequência cardíaca e aumentos na circunferência da cintura, pressão arterial e níveis de triglicerídeos, sugerindo um aumento da incidência de síndrome metabólica e maior risco cardiovascular. O grupo de corrida apresentou diminuição tanto dos componentes da síndrome metabólica quanto da frequência cardíaca, o que indicou, por sua vez, efeitos protetores sobre os incidentes cardiovasculares. No geral, este estudo mostrou a importância do exercício na população deprimida e ansiosa e adverte contra o uso de antidepressivos em pacientes fisicamente pouco saudáveis”.

Uma pesquisa recente mostrou que o exercício trata a depressão leve a moderada, assim como os antidepressivos. Uma revisão descobriu que os efeitos do exercício na depressão provavelmente são subestimados devido ao viés de publicação. A prática de exercício também parece proteger contra a depressão, apenas 15 minutos de exercício 3 vezes por semana pode ser associado a menos sintomas depressivos em adultos mais velhos. Outra
pesquisa também descobriu que pessoas que fizeram o equivalente a 2,5 horas de caminhada rápida por semana tiveram um risco 25% menor de depressão.

Pesquisas mostraram que os antidepressivos não são melhores do que um placebo para 85% das pessoas. Uma outra pesquisa descobriu que os antidepressivos são “amplamente ineficazes e potencialmente prejudiciais”. Pesquisa semelhante mostrou que os antidepressivos são ineficazes para crianças e adolescentes.

 

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Verhoeven, J. E., Han, L. K. M., Lever-van Milligen, B. A., Hu, M. X., Révész, D., Hoogendoorn, A. W., Batelaan, N. M., van Schaik, D. J. F., van Balkom, A. J. L. M., van Oppen, P., & Penninx, B. W. J. H. (2023). Antidepressants or running therapy: Comparing effects on mental and physical health in patients with depression and anxiety disorders. Journal of Affective Disorders. https://doi.org/10.1016/j.jad.2023.02.064 (Link)

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Tradução:

Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).

 

Relacionamentos e vínculos familiares em deterioração impulsionam crise da saúde mental dos jovens

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Teenager problems. Sad teenage daughter sitting separately on sofa ignoring mother, depressed teen girl hiding feelings emotions from parent, worried single mother Family conflict. Depression in teens

Jovens adultos em todo o mundo estão sofrendo de uma deterioração geracional nas conexões sociais com a família e amigos e um declínio significativo relacionado à saúde mental dos jovens, de acordo com o mais recente  Mental State of the World Report (Relatório do Estado Mental do Mundo em tradução livre) da Sapien Labs.

Em comparação com a geração de seus pais, os jovens são três vezes mais propensos a relatar relacionamentos ruins com sua família adulta e duas vezes mais propensos a não ter amigos com quem possam contar em momentos de necessidade – formas de privação social que, por sua vez, afetam o bem-estar. Como resultado, afirma o relatório:

“O risco de problemas de saúde mental é dez vezes maior entre aqueles que não têm relações familiares e amizades próximas em comparação com aqueles com muitos familiares e amigos próximos.”

O relatório recém-divulgado, citando resultados de pesquisas online internacionais de 2022, observa uma desintegração substancial e crescente dos laços familiares em todo o mundo e descreve uma população “ainda com cicatrizes mentais” pela pandemia do COVID-19, com dados mostrando recuperação mínima ou inexistente do bem-estar mental. Além disso:

“Embora muitos fatores como a Internet provavelmente contribuam para a diminuição do Eu Social e dos laços de família e amizade, um fator significativo também pode ser as tendências culturais na criação dos filhos, que tem trocado aconchego, amor e estabilidade por um maior foco no conforto material e conquistas.”

 

Problemas na adolescência. Filha adolescente triste sentada separadamente no sofá ignorando a mãe, garota adolescente depressiva escondendo seus sentimentos dos pais, mãe solo, conflito familiar. Depressão na adolescência. 

 

Uma organização sem fins lucrativos que administra o  Mental Health Million Project , a Sapien usa o  Mental Health Quotient  (MHQ) (Quociente de Saúde Mental em tradução livre), disponível em 9 idiomas e que pode ser respondido em 15 minutos, para agregar dados sobre bem-estar mental de quase meio milhão de usuários da Internet em 64 países. Esses números refletem um aumento considerável desde o relatório de 2021, tornando-o o maior banco de dados desse tipo no mundo. Os dados da pesquisa também foram utilizados em um artigo recente da Sapien sobre o declínio da saúde mental dos jovens e o aumento de denúncias de bullying e abuso em relação às gerações anteriores.

O MHQ avalia 47 elementos da função mental e os vincula aos critérios diagnósticos do DSM-5, classificando os resultados de “em sofrimento” a “prosperando”. Também gera subpontuações em cinco categorias: cognição, conexão mente-corpo, ímpeto e motivação, humor e perspectiva e Eu Social.

Segundo o Mental State of the World Report de 2022, a média global do MHQ para 2022 foi de 64, ou “administrando”. De todos os entrevistados, 27% pontuaram “em sofrimento” ou “lutando”, enquanto 38% estavam “tendo sucesso” ou “prosperando”. Os países com a pontuação mais baixa foram Reino Unido, África do Sul e Brasil, com pontuações MHQ de 46 a 53. Quanto ao mais alto, “Tanzânia liderou a lista com 94”, embora as pessoas com a pontuação mais alta geralmente fossem falantes de espanhol da América Latina.

E, no entanto, como os resultados mostram, “o sul e o sudeste da Ásia de língua inglesa, bem como a América Latina, têm a maior queda nas pontuações do Eu Social ao longo das gerações, apesar das altas pontuações em geral, enquanto os países da África Subsaariana encontram-se relativamente mais estáveis ao longo das gerações”.

Definido como “uma métrica da maneira como vemos a nós mesmos e nossa capacidade de formar e manter relacionamentos com os outros”, o Eu Social representa a área de declínio mais drástico. Depois de avaliar o estado das amizades e relações familiares, “uma degradação progressiva ao longo das gerações” tornou-se aparente como um fator significativo, afirma o relatório. Essas quedas nas conexões sociais e no bem-estar mental foram significativas em vários países e idiomas.

Tudo isso “representa uma reversão acentuada dos padrões documentados antes de 2010, indicando um declínio drástico no bem- estar mental com cada geração mais jovem, em vez de um aumento no bem-estar à medida que envelhecemos”, escreve Tara Thiagarajan,
fundadora e cientista-chefe da Sapien Labs e cientista principal Jennifer Newson em sua introdução ao relatório de 2022.

Na entrevista do Mad in America do ano passado, Thiagarajan discutiu a pesquisa de 2021 e os resultados indicando que os números do Eu Social e da saúde mental dos jovens diminuíram de geração em geração.

“É realmente a dimensão que parece ter diminuído mais substancialmente em relação a todas as outras, embora seguida de perto pelo humor e perspectiva”, disse ela. “Se pensarmos sobre isso da perspectiva de diferentes desafios para nosso comportamento social e capacidade de integração ao tecido social, isso também nos dá uma maneira diferente de pensar sobre soluções.”

Em sua introdução ao novo relatório, Thiagarajan e Newson encerram com uma reflexão sobre a “natureza profundamente relacional da psique humana” e o que significa viver e se sentir sem conexões autênticas com os outros. Em relação aos dados, eles escrevem:

“Eles convidam cada um de nós a refletir sobre nosso papel na crescente desintegração social. O que valorizamos e por quê? Onde focamos nossa atenção? E com tempo finito, quantas vezes deixamos de lado um compromisso afetuoso ou de fortalecimento social para obter sucesso material ou mesmo apenas para navegar sem pensar na Internet? Não podemos mudar o passado, mas com alguma reflexão coletiva talvez possamos mudar como será o desenrolar para as gerações futuras.”

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Tradução:

Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).

A Socialização dos Fármacos

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O artigo faz uma revisão de trabalhos que examinam como as drogas são tornadas eficazes nos laboratórios, em contextos terapêuticos e na vida cotidiana, focando na vida social dos fármacos. Como resultado, identificou-se que não há um objeto (farmacêutico) puro, eles não são “descobertos”, na verdade, eles são constituídos e reproduzidos em relação a contextos passíveis de mudanças. Portanto, o objeto é influenciado pela sua socialização. 

A discussão foi dividida entre cinco áreas-chaves: a primeira trata das práticas e técnicas utilizadas para medir a ação farmacêutica. A segunda desvenda as relações entre Estado, mercado e regulamentação modelam a ação farmacêutica. A terceira área investiga os materiais farmacêuticos de informação por meio do marketing. O quarto examina as ações de cuidado. E, por fim, a última área dilui a fronteira entre fármacos, corpos e seus ambientes. 

A análise realizada no artigo dialoga com a abordagem crítica de Tim Ingold, sendo assim:

 “Ingold (2012, p. 433) propõe um deslocamento do estudo dos objetos para o enfoque nos materiais, o que requer que nós sigamos o “fluxo da matéria”. A matéria está sempre em movimento, sendo moldada e transformada por processos e práticas humanas e não humanas. Nós adotamos esta abordagem para passarmos de um enfoque centrado nos objetos, que dominou a antropologia das drogas nos anos 1990 e 2000, para uma abordagem centrada nos processos que examina as articulações, desarticulações e rearticulações da matéria-pharma.”

1º área-chave: Fazendo os fármacos funcionar nos experimentos químicos

Desde a tragédia da inserção no mercado consumidor do fármaco talidomida (um hipnótico), nos anos 60, que causou malformações em diversos bebês, as agências reguladoras passaram a exigir testes que aprovassem a segurança e eficácia dos medicamentos, para só então, entrarem no mercado. Até então, era comum os experimentos serem realizados por médicos e químicos em seus próprios corpos. Visando superar as limitações dos relatos de caso e dos experimentos isolados, os clínicos passaram a utilizar os ensaios controlados randomizados (RCTs), como modelo padrão para demonstrar segurança e eficácia. 

As agências reguladoras presumiram que ao analisar uma população grande, gerando estatísticas e comparando um grupo placebo e um grupo ativo, poderia garantir a segurança. Porém, os antropólogos vêm chamando a atenção para o fato desses estudos tomarem como ponto de partida um corpo biológico universal, sem levar em consideração as condições sociais e as infraestruturas que influenciam a forma como as tecnologias atuam, e por desconsiderarem os benefícios do efeito placebo.

Os estudos de RCTs, no campo da psiquiatria “psicodélica” e com placebos apontam na mesma direção, para a importância da relação terapêutica para como um mecanismo chave para intensificar a resposta dos pacientes ao tratamento psicofarmacológico e otimizar a resposta dos pacientes ao tratamento.

“Esses estudos mostram que a eficácia farmacêutica não está apenas nas drogas, mas também é potencializada sinergicamente por meio dos espaços, relações, expectativas e práticas rituais. Esses insights, junto com os novos designs experimentais que estão emergindo para explicar esses efeitos sinergéticos, desafiam abordagens materialistas e reducionistas que pressupõem que os significados simbólicos ou as dinâmicas emocionais e interpessoais não afetam as respostas farmacológicas”

2º área-chave: Os nexos entre Estado e Mercado

Uma parcela significativa da literatura na Antropologia vêm apontando para a influência dos objetivos comerciais e de mercado que estão entremeados com as pesquisas de drogas farmacêuticas. Como consequência, há uma ênfase nos efeitos farmacêuticos desejáveis e uma minimização dos riscos. A saúde vem sendo cada vez mais conhecida pelo capital, sendo crescentemente farmaceuticalizada.

 

“Impelidas pela lógica capitalista, as companhias priorizam o desenvolvimento de medicamentos voltados para grandes mercados para e doenças crônicas, como a hipertensão. Os pacientes que têm esse tipo de doença não são curados e nem morrem; eles tomam medicamentos durante toda a vida.”

Através da implantação dos remédios genéricos, percebeu-se que elementos como o metabolismo individual, a fidelidade às marcas e os componentes químicos inativos usados no transporte dos compostos farmacêuticos afetam a ação dos fármacos. 

3º área-chave: Informando Posteriormente os Fármacos

Os remédios são, geralmente, reinscritos com novas informações sobre sua eficácia. Isso muitas vezes acontece por causa da competição com os genéricos. As indústrias farmacêuticas tentam desqualificar os genéricos e dar sobrevida aos seus produtos associando -os a novas indicações. 

“Um exemplo elucidativo deste processo está no trabalho de Greenslit (2005), que descreve como a Pfizer reelaborou o marketing da fluoxetina (o princípio ativo do Prozac) como um tratamento para o distúrbio disfórico pré-menstrual. A companhia deu um novo nome a droga (Sarafem), uma nova cor (rosa), e uma outra indicação (o distúrbio disfórico pré- menstrual). Desse modo, a Pfizer encorajou as mulheres a experimentarem os sintomas do seu ciclo menstrual como algo que pode ser tratado com medicamentos, ao mesmo tempo evitando uma associação negativa com a depressão.”

As companhias farmacêuticas promovem certa eficácia médica, mas também associam sua marca a estilos de vida, prometendo a felicidade, saúde, menstruação sem oscilações de humor, e assim por diante. O marketing dos fármacos é voltado, justamente, para capturar desejos e esperanças. Enquanto os efeitos colaterais são colocados em letras minúsculas e difíceis de ler. Essa forma de propaganda modela a forma como os fármacos são experienciados e atuam.

4º área-chave: Tornando os Fármacos Eficazes em Contexto de Cuidado

Uma série de estudos etnográficos demonstram as dimensões micropolíticas no cotidiano de cuidado, no qual os médicos disciplinam os pacientes a aderir aos regimes biomédicos. A indústria farmacêutica também traça um perfil dos seus consumidores através dos prescritores, tornando as farmácias lugares chave no processo de negociação e re-atualização da ação farmacêutica. 

 

6º área-chave: Vazamentos: pulmões, intestinos e metabolismo

Os artigos analisados vão apenas até quando os fármacos são consumidos, ou seja, ingeridos, digeridos e absorvidos. Abordam pouco a dissolução dos fármacos. Um campo novo de análise, tem sido a percepção ecológica sobre o fluxo farmacêutico, dentro e fora dos nossos corpos. 

“Landecker (2015) fornece um exemplo de como podemos seguir os fármacos através das fronteiras corporais. Ela descreve como os antibióticos, embora tenham como alvo os corpos individuais, produzem eventos evolutivos e ecológicos de larga escala que vão muito além desses corpos. Eles sedimentam uma história de gerenciamento de riscos na política corporal das bactérias, que são geneticamente, fisiologicamente e ecologicamente modificadas neste meio ambiente poroso e distribuído de uso disseminado de antibióticos.”

O artigo termina concluindo que a ação farmacêutica não se resume às propriedades químicas dos fármacos, pelo contrário, ela se acha dentro de uma malha de contextos, de práticas e dinâmicas sociais. 

 

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Anita Hardon, Emilia Sanabria e Isabel Santana de Rose. Ilha, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 263-285, janeiro de 2023 (link)

Entrevista com Nilson Lopes, Ex Usuário de Drogas Psiquiátricas

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HOMENAGEM A FERNANDO FREITAS

Hoje apresento aqui no Mad a história de vida de Nilson Lopes. Nilson concedeu uma entrevista a mim em setembro de 2022, como parte de minha pesquisa de doutorado[1]. Nessa entrevista descobri que estivemos, nós dois, sentados num mesmo auditório, sem que nos conhecêssemos, escutando uma palestra de Fernando Freitas na ABRASME em 2018[2]. Nilson me contou que a fala de Fernando foi decisiva e direcionou sua vida para sempre, pois foi naquele momento que Nilson decidiu parar de tomar drogas psiquiátricas.

Divulgar a experiência de Nilson no Mad in Brasil era um plano meu compartilhado com Fernando desde outubro 2022. Hoje a apresento aqui enlaçada com o desejo de homenagear Fernando – em memória dele e ao legado que ele deixou. Assim que soube que Fernando tinha falecido comuniquei ao Nilson, que disse: “pessoas assim não morrem porque permanecem vivas em nós”.

Nilson tem 61 anos e se apresenta como “Nilson Lopes, dependente químico em recuperação, há 10 anos sem uso de nenhuma substância”. Quando o entrevistei questionei como gostaria de ser chamado na tese – se gostaria de um nome fictício para preservar sua identidade, já que havia me contado coisas muito pessoais – e ele disse: “faço questão de ser identificado, para provar ao sistema que é possível superar as drogas com políticas públicas adequadas”.

Nilson tem uma história de vida muito difícil.  Cresceu em uma família muito pobre, com 9 filhos. Nilson é negro e foi criado numa colônia alemã, num país onde o racismo estrutural opera ações de exclusão importantes cotidianamente. Ele referiu que culturalmente só começou a se identificar, conhecer as suas raízes e se sentir parte do povo negro muitos anos depois, frequentando grupos afro em Porto Alegre. “eu comecei a me identificar e era convidado a participar desses grupos para aprender, porque a minha cultura foi abafada, foi apagada a história dos meus ancestrais. E a gente está resgatando isso também”.

Nilson esteve durante cerca de 30 anos em situação de rua. Foi internado muitas vezes em hospitais psiquiátricos no RJ, em SP e no RS. Esteve 9 meses internado numa comunidade terapêutica. Foram anos usando álcool e posteriormente crack (durante 8 anos) de forma muito abusiva, naqueles ciclos de viver para usar a substância e usar para poder viver. Viveu na Cracolândia (SP) alguns anos. Voltou para o RS e começou acompanhamento em um CAPS álcool e outras drogas (CAPSad) em São Leopoldo (RS). No CAPSad Nilson passou a frequentar grupos e a ter acompanhamento de uma equipe multiprofissional. Lá se envolveu com associações de usuários e foi na condição de, na época, presidente dessa associação que esteve em Brasília, na ABRASME, em 2018.

Parou de usar drogas ilícitas há 10 anos. A partir de oportunidades de discussão em Grupos da Gestão Autônoma da Medicação (GAM) e participação em eventos da luta antimanicomial,  foi entrando em contato com reflexões críticas também sobre o uso de medicamentos psiquiátricos, gestando a ideia de parar de usar. Em 2018 decidiu parar definitivamente de usar drogas psiquiátricas, impactado com os dados apresentados por Fernando Freitas em sua palestra.

Hoje Nilson trabalha como oficineiro de horta num projeto social em uma escola na cidade de São Leopoldo (RS). É atualmente vice presidente do conselho municipal de segurança alimentar do município de São Leopoldo (RS), membro do conselho estadual de segurança alimentar do Rio Grande do Sul (RS) e do fórum estadual de usuários do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) do RS, além de muito atuante junto ao POP Rua, participando ativamente dos debates sobre acesso e condições de vida das pessoas vivendo em situação de rua.

A entrevista com Nilson Lopes durou duas horas, por isso apresentaremos aqui fragmentos da entrevista. Confira:  

Lígia: Nilson, tu faz tratamento em saúde mental?

Nilson: Eu fiz durante… hoje faz 3 anos que estou afastado e que eu não tomo mais medicação né…. tomei durante 7 anos.

Lígia: Sete?

Nilson: Sete, primeiro eu tomei durante 2 anos quando me tratei do alcoolismo, depois eu tomei mais 7 anos.

Lígia: Aham.

Nilson: E hoje é… a partir das orientações do grupo GAM e também das palestras que eu ouvi com especialistas em São Paulo e em Brasília sobre a medicalização da vida né… e foi um palestrante que esclareceu uma porção de coisas lá que me fez refletir bastante e ver outras formas né…. que ele falou do quanto que era prejudicial a medicação e que a partir da patologização da vida… Ele iniciou falando das crianças –  que se uma criança sobe no sofá, fica quebrando coisas e derrubando, fazendo muita pergunta, a sociedade entende que essa criança tem algum problema mental, que é  uma criança hiperativa, que ela precisa de uma patologia e tomar uma medicação para que fique calminha. (….) A gente estava no evento enquanto movimento nacional da luta antimanicomial. Que é o contraponto da questão da internação, da medicalização além do necessário. Então, dentro disso e da questão da redução de danos e do próprio autoconhecimento. Então, a partir de uma ideia de que o paulistano que falou da medicação anti depressivo, estabilizador de humor, assim, a rodo… E sem uma avaliação mais precisa da situação. A enfermeira troca aceita, passa… Agora na pandemia, no pós pandemia, atende no plantão para dar receita e enfim. E é isso aí… esse cuidado, né? O próprio psiquiatra mesmo, com uma demanda grande para atender, não atentava para individualidade. E se tinha que aumentar, assim: “ah, tá surtando? então aumenta a medicação”.  (…) E foi assim comigo.

Lígia: Como é que foi contigo?

Nilson: Chegou um momento… eu tomava… No início, eu tomava imipramina, lá em 1998 quando eu me tratei pela primeira vez de alcoolismo. Eu tomei durante 2 anos. Mas essa medicação deixava o meu pensamento e a minha visão turva. Meu pensamento lento, raciocínio lento, a cabeça pesada e uma visão embaçada… das coisas e da vida. Me mantinha calmo. Me mantinha dopado, eu diria… e até que eu falei: mas é…? Eu precisava trabalhar, eu precisava viver. Eu estava sempre indisposto. Acordava tarde e com sono, com a cabeça pesada. Eu falei: “não é isso que eu quero para mim, né?” E eu me libertei do alcoolismo, de mais de 20 anos. E fiquei 2 anos tomando a medicação. Até que eu falei: “Não, eu não vou tomar mais e eu vou ver o que vai acontecer”. Mas eu conheci a maconha, eu conheci a cocaína, enfim… Daí eu fui para a maconha. Me acalmava e me deixava tranquilo. Enfim… Depois ela já não mais era suficiente para mim. Aí eu conheci a cocaína. Aí fui para cocaína… E depois eu fiquei 8 anos usando crack.

Lígia: Uhum

Nilson: E aí, foi a degradação humana total. E aí, sem medicação, sem nada…. E eu.. Nem documento eu tinha. Que eu fui para a rua.  E eu perdi o meu vínculo familiar, as pessoas não queriam mais eu por perto… Aí eu ficava nos albergues e viajava muito…fiquei… fui para São Paulo, fui para o Rio de Janeiro, Curitiba várias vezes, Porto Alegre, então… eu ficava por aí.. andando. (…) Andarilho. Às vezes de carona, às vezes eu ia de uma cidade para outra a pé. Ficava num albergue, arrumava algum trabalho (…) daí eu recebia, pegava o meu dinheiro e viajava. (…)  Mas eu não conseguia ficar muito tempo no emprego por conta do meu vício. Que eu faltava serviço. Dava problema com os encarregados ali, enfim, com os coordenadores, e eu não ficava muito tempo. Ficava para a rua, ia pro albergue, trocava de cidade… e… eu estava à procura do meu eu, acredito, né… Que eu não me encontrava e nem eu sabia o que eu estava procurando. Mas naquele município não era mais.

(…)

Nilson: Então foram dois espaços – um da saúde mental e o da assistência social – que me projetaram para outros espaços:  conselho de saúde, conselho comunitário (…)  e eu me identifiquei muito com isso para conhecer os meus direitos, para cobrar… Eu acho que foi isso que me que… ãahhhm… Como é que eu vou dizer? É o combustível que me move, né? E de estar com os meus iguais também, representando nesses espaços. Que eu sei da dificuldade que é de quem está com fome e de quem tem um vício, ou que usa uma droga de sua preferência ou álcool, de estar nesses espaços para cobrar dos seus direitos. Quem está com fome a prioridade dele é comer. Quem usa droga está obcecado por usar. O alcoolismo é a mesma coisa. Então a gente tem que tá… E isso também me fortalece enquanto pessoa em superação dessa situação. E quando eu falo disso, reforça. Eu falo para mim mesmo primeiro, né? E isso… Eu me convenci de estar forte e de tentar fazer mais.

(…)

Nilson: Eu vim de uma família de 9 irmãos negros, de pai analfabeto e de mãe também analfabeta. Convivia com uma porção de coisas dentro de casa, com briga, miséria, fome. Então todo um contexto que me fez, acredito eu, tomar esse rumo e de não conseguir estudar como uma criança normal, por conta de desnutrição e de não ter vestes nem material o suficiente para me sentir bem, né? E conseguir acompanhar os colegas… Aí, então… foi toda uma problemática que me fez ir para esse rumo. A falta de perspectiva… de olhar para o meu futuro e ver que não tinha muita coisa né? Que…é como a minha escolaridade… Tanto é que eu concluí o ensino fundamental agora em 2020 e o ensino médio em 2021 pela EJA. Mas por conta de toda uma combinação de fatores, do CAPSAD, da participação dos grupos, das políticas públicas, de pessoas, de trabalhadores comprometidos que me cobravam e me acompanhavam… E que parte dessas pessoas que era estagiário no início lá, quando a gente se conheceu, e hoje tem o seu consultório e a gente é amigo, toma café juntos, enfim… Então várias coisas assim, que… coisas pequenas, mas que somadas a outras e outras e outras formaram um… essa coisa mais gigante que me manteve. É difícil…mas que é o que me faz hoje estar onde eu estou, falando contigo, porque eu já me senti morto na minha vida… Para tudo… Só o corpo estava vivo. E obcecado por comida, mas principalmente por droga, por cachaça.

(…)

Quando eu estava  em situação de rua eu diria, né… Que eu estava sozinho no mundo, eu não tinha… eu rompi os vínculos familiares e eu não tinha amigos e eu não queria ficar no mesmo.. na mesma cidade, enfim, para não envergonhar eles e porque eu me conhecia… Eu sabia que às vezes eu exagerava, eu fazia confusão no boteco, enfim. Então eles não me queriam por perto… Por conta de que… briga dentro de casa com o meu pai, com os irmãos, enfim. Então, um jeito assim que eu tinha de… muita revolta. Muita mágoa, muita tristeza, muita angústia e que me sufocava…. e daí eu descarregava no que estava na minha frente.

Lígia: Sim.

Nilson: Né? E depois vou dizer que meu pai, meus irmãos, todos eram vítimas também, né? É que é…. Era todo um contexto social que, por conta da cor da pele, por conta de da história do Brasil, né? De tudo como se deu… Que a própria libertação dos escravos não foi na verdade libertação… Foi o início da favela, o início da população em situação de rua… Por conta do fato de que não foi oferecida nenhuma oportunidade de aquisição de terra e nem de sobrevivência com dignidade. Enquanto que… Para os imigrantes europeus teve acesso à terra, linhas de crédito e todo uma estrutura para que as pessoas pudessem progredir e de lutarem, poder ter seus filhos, de poder ter acesso à escola, enfim…

Lígia: Exatamente

Nilson: tem todo um histórico… No livro[3] eu falo que se olho para um ser humano e não vejo um ser humano, é porque antes disso ele já foi violentado.

Lígia: Olha…(pausa)

Nilson: E que para…

Lígia: “Se olho para um ser humano e não vejo um ser humano, é porque antes disso ele foi violentado”.

Nilson: É porque já foi violentado. E o que vejo é o que sobrou de um ser humano… um corpo… um zumbi.  É por que… para compreender o momento de hoje de alguém, ou do mundo, ou do Brasil é preciso compreender o processo histórico. Porque ele terminou por… para que hoje seja dessa forma.

Lígia: Aham

Nilson: Então não é por acaso que tem moradores de rua. “É vagabundo, não quer trabalhar”, né, eu quantas vezes queria trabalhar? Queria que… Se fosse me dado a oportunidade lá no início, desde criança…talvez seria diferente hoje. Não me arrependo do que eu sou hoje, né, que eu me considero a cada dia como… estar no ponto mais alto do pódio da minha vida, né? (ri emocionado) Que o meu ponto de partida é a sarjeta, é uma coisa ruim. Mas voltando à medicação… Quando… no CAPSAD eu tomei… várias vezes eu conversava com a psiquiatra e eu dizia: “Ah, tá sendo fraco, eu acho… Porque eu continuo com ansiedade… às vezes eu tenho depressão… e eu tenho umas crises repentina”. E aí ela mudava a medicação. E ela depois me perguntava como que estava, se foi bom. Aí eu tinha um sono muito pesado e não conseguia acordar.  E ela modificava e aí me perguntava… E assim foi indo né… isso durante 7 anos.  No ínicio eu tomava 5, 6, 8 de manhã, meio dia, de noite. (…) Mas aí eu tomei… Eu diria que todos, né, Imipramina lá. Mas aí principalmente Haldol, Amplictil… para não ter convulsão, para a pressão arterial eu tinha que tomar também… e complexo B  para a questão da alimentação e até para a ansiedade, enfim. (…) tomei carbamazepina, tomei Diazepam por um tempo… depois o médico cortou. Ele disse: “é, tu tá viciado nesse Diazepam. Esse tu não vai tomar mais”. Carbonato de lítio foi o que mais tempo eu usei. (…) Mas também… todos me deixavam nessa coisa de… flutuando, cabeça pesada, não podia ter uma vida normal. Até que chegou no final, é… aí eu conversei com a doutora. Eu falei: “doutora, às vezes eu tenho ansiedade e… eu não sei se isso pode ser o meu normal, né… que… que seja isso”, isso depois de ter participado dessas palestras, né?

Lígia: Essas de Brasília e de São Paulo?

Nilson: De Brasília e de São Paulo. E aí eu falei.. Aí, eu não sei… De repente…(pausa) como que a gente vai lidar com isso, se isso é normal e eu tenho que desenvolver alguma maneira de…. de suportar isso.

Lígia: Aham

Nilson: ou…Porque eu não posso ficar a base de medicação para… se ela me deixa num estado que… anormal para mim. Eu estou com o freio de mão puxado. E eu preciso viver, eu preciso trabalhar, eu preciso estar nos espaços… e para poder assimilar as coisas, aprender né… e não ser tão esquecido. (…)  Daí a gente combinou de fazer uma experiência de diminuir a dose até zerar. Eu falei: “tá, vamos fazer então” E aí a conclusão que a gente chegou… é que eu continuava tendo as mesmas… ãhmmm… aquelas… Não crises né… mas assim, repentinamente eu ficava com ansiedade.

Lígia: Aham

Nilson: E.. alterava o humor. Eu vivia com a minha mãe e às vezes eu via que eu tinha respondido de uma forma que não era adequada e que não era daquele jeito que tinha que ser e nem que eu queria ser. E… daí? A ideia era então que… que eu aprendesse a lidar com isso, né. Sem a medicação. Por que a conclusão é de que é… eu tinha, mas era na mesma, no mesmo nível. Tomando medicação, eu tinha. E não tomando, eu tinha. E…. não morria por conta disso, né? Mas que, claro, eu precisava desenvolver. Aí a gente começou a… me dediquei bastante tempo a hortas, a jardim – que é uma coisa que eu gosto de fazer – e estar nos espaços falando. Seja para estudantes, seja para outras pessoas… No CENTRO POP, nos albergues, onde tem gente da rua ou tem pessoas que também tem um vício… de… Para que as pessoas possam ver que é possível e que, tendo força de vontade e claro que todas essas combinações que eu falei, é possível que a pessoa se liberte da medicação e que ela pode ter uma vida normal.  Para mim, no caso, né? É… como é que eu vou dizer… (pausa) A partir da escuta, de você valorizar o potencial que já existe. Todo mundo sabe fazer alguma coisa que só ela daquele jeito. E eu, por conta da curiosidade, de querer aprender, de querer saber mais e até de me conhecer melhor…

(…)

Lígia: Ô Nilson, só para eu entender, então, quando tu se afastou (do CAPSad), na verdade, tu já não usava mais medicação, já tinha parado de usar medicação.

Nilson: Sim, tinha. Eu parei de usar em 2018. Aí eu pedi para fazer essa avaliação e eu falei que eu estava ainda…. que eu tinha ansiedade. Que eu tinha dificuldade de dormir. Só que eu tomava e dormia de mais. O sono ficava muito pesado e durante o dia eu tinha ansiedade e ficava meio nublado e as perna pesada e a cabeça. E daí ela falou, mas é o lítio, o lítio é o mais recomendado, com menos efeito colateral.

L: Nessa época, depois de todos os medicamentos, tu só tomava o lítio e mesmo assim, continuava sentindo esses efeitos colaterais

N: Exato

L: E aí, tu aí que tudo começou esse processo de redução gradual do lítio é isso?

N: Lítio, que era a última medicação que faltava. Que era a última que faltava eu me libertar dela.

(…)

Nilson: eles (os psiquiatras do CAPSad) falavam, “não, tu não precisa, tu está bem. Tu não precisa tomar medicação, tu precisa se conhecer”. E controlar a ansiedade de outras formas. Por que existem outras formas.

Nessa época, Nilson ouviu a palestra de Fernando na ABRASME:

N: Sim, eu vi e daí eu conversei com a minha psiquiatra. Ela foi uma das pessoas que me atendeu mais tempo, ficou 4 anos. E então ela conseguiu no fim da história… Ela sempre dizia “tu está bem Nilson, já pode dar alta”. Mas eu não estava seguro

L: Que tu já estava há muito tempo sem usar nenhuma substância e continuava frequentando o CAPSAD porque tu se sentia seguro.

N: Exato e até porque o meu público estava lá, enquanto associação de usuários, a gente não tinha sede a gente se… A gente nasceu dos espaços de convivência. Então, era uma referência. Para encontrar esse público lá. E a gente tinha uma relação de afeto. De vínculo, de companheirismo, de ajuda, de emprestar dinheiro, de sair junto… E isso me fortalecia. Mas quando eu ouvi essa palestra e… eu já tinha, eu já vinha num processo de diminuição. E digo “nossa, então, se… As pessoas precisam ser elas mesmas, não é?” porque o hipocondríaco ele tem todas as doenças e ele precisa tomar medicação e o analgésico também, uma das coisas mais consumida que existe. Então, tudo está a na farmácia. E, se eu não consigo, se eu não estou dentro de um procedimento artificial social, então eu sou um doente. Então, eu tenho que tomar uma medicação e sem essa coisa de… Claro e eu tomei.. e acredito que naquele momento fez a diferença. Mas assim como eu sabia que tinha me tratado de alcoolismo, tinha saído e nunca mais me fez falta e que eu passei pela drogadição das 3 e do crack, que foi um dos mais fortes e que não morri por isso. E que, então,  também a medicação eu poderia  abolir e tratar de outras formas. Com chás. Vendo filme… ver as coisas que eu gosto para poder fazer e não…. não é isso…. ficar dependendo de medicação.

 

(….)

N: E a gente conseguiu… De uma história que eu sempre digo que tem como ponto de partida a sarjeta e o farrapo humano em todos os sentidos… Por que quando uma pessoa está deitado na rua. É muito mais do que um corpo que está ali no chão. É a alma, é o espírito, é a dignidade. É a cidadania, autoestima, os sonhos né?… tudo o que de bom havia naquele corpo que está deitado ali… É só um corpo que está ali, morto. Um morto vivo, um zumbi, como diz o cartaz né? Que a gente foi chamado de zumbi aqui em Porto Alegre. O pessoal da rua… “esses zumbis que ficam circulando de noite”, né?. Por isso que diz “Zumbi, só se for dos Palmares”. Que esse fez a diferença na vida dos negros

(…)

Lígia: como é que tu avalia o papel da medicação assim, na tua vida assim?

N: Eu acho que assim (…) ela foi importante nos momentos, naqueles estágios em que eu me encontrava, ela foi importante sim. Ela me confortou e ela fez a diferença, assim, me fez melhor, né? Eu acho que eu teria surtado, enlouquecido em alguns momentos e eu não dou… não teria dormido à noite se eu não tomasse a medicação. Mesmo que ficasse com sono de dia, mas que naqueles momentos, que naqueles estágios em que eu me encontrava eram necessários. Mas que… não para tomar a vida toda. Não para continuar nessa dependência. E de também me deu a oportunidade de me conhecer de cara, poder ficar de cara limpa. De como que é… e de que o bicho não é tão feio quanto eu imaginava. Eu tinha medo, né de ficar assim, mas aí.. diante de de… de tanta informação que eu sempre tive curiosidade de saber mais no do que eu estou inserido… do medicamento, de saber mais é… da psicologia, ler livros, de que… o que que, de fato, é a psicologia, o que que é da área social… qual é que são os meus direitos, o que que é um caps, né? quais os princípios do SUS e do SUAS, qual o papel? E então… é, e de ver que tinha um monte de coisa, quanto mais eu aprendia, eu via que eu sabia menos. Mais coisa eu tinha para aprender, como ainda hoje, né?

(…)

Por isso que eu digo: quanto mais eu estudo e aprendo, menos eu sei.[risos] Mais coisa eu fiquei… mais coisas eu tenho para aprender.

L: [Risos] Mais coisa tu descobre que ainda tem para aprender, né?

N: E até o próprio autoconhecimento. Sempre se descobrindo… descobrindo coisas que a gente gosta, o que não gosta. Mas é muito importante para mim poder falar da causa que eu defendo e de poder mostrar para as pessoas que é possível sim, um zumbi… morto vivo se transformar numa pessoa produtiva. E a rua produz conhecimento também. Produz! A rualogia! Eu quero fazer quando eu tiver oportunidade pedagogia para eu organizar da fala para ser um palestrante e para qualificar isso.

***

Autora: Lígia Castegnaro Trevisan

Psicóloga clínica, Especialista em Saúde da Família e em Psicologia Social e Institucional. Mestre em Saúde Coletiva. Atualmente doutoranda em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio                                      Grande do Sul (UFRGS). Possui experiência em gestão do Sistema                                    Único de Saúde (SUS), apoio institucional, Atenção Primária em                                        Saúde (APS),saúde mental, clínica e docência (cursos de psicologia                                    e medicina).

 

[1] Doutorado em Psicologia Social e Institucional, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com orientação de Analice Palombini, com término previsto para 2023. A tese investiga a relação estabelecida com as drogas psiquiátricas, analisando experiências de uso prolongado de psicofármacos e de redução/interrupção, imergindo nos campos de disputa que se instauram na problematização do uso de drogas psiquiátricas.

[2] A fala de Fernando ocorreu na ABRASME, em Brasília, no dia 04/09/2018, intitulada “Medicalização: Patologização da Sociedade”.

[3] Nilson se refere a um livro lançado por Ana Carolina Mattos no qual teve participação: MATTOS, Ana Carolina Einsfeld. “Mas, se a gente é o que come, quem não come nada some!”. APPRIS, 2021. Para saber mais, acesse https://sul21.com.br/opiniao/2021/07/um-livro-que-une-a-academia-e-as-realidades-da-populacao-de-rua-por-ana-carolina-mattos/

 

Um psicólogo incomum e a luta contra a medicalização

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Memorial para Fernando Freitas, que contribuiu com o debate sobre a patologização da saúde mental. Chamado “guerreiro da mudança radical”, era importante voz contra tornar doença o que é da ordem das experiências múltiplas da vida

 

À memória de Fernando Freitas

Na semana passada perdemos um grande ativista da luta contra a patologização e a medicalização da vida! Fernando Freitas era psicólogo, Doutor em Psicologia Social, ex-professor da UERJ e, ao final de sua carreira profissional, Pesquisador da Fiocruz. Ele não resistiu ao câncer que o fazia sofrer há cinco meses.

Embora tenha partido, Fernando deixou um trabalho que terá não apenas continuidade, mas que crescerá muito mais, seja pela relevância da questão à qual ele dedicou os últimos anos de sua vida, seja em consequência de sua fundamental e decisiva atuação.

Tradicionalmente debruçado no estudo das ciências sociais e humanas no campo da psicologia e da saúde mental, em especial em sua relação com as artes e a cultura, Fernando foi marcadamente instigado pelo livro de Marcia Angell (A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos, como somos enganados e o que podemos fazer a respeito). Se trata de uma obra consistente, muito bem fundamentada documentalmente, sobre as mentiras, artimanhas, falsidades, atitudes antiéticas, etc, protagonizadas pela Big Pharma; a indústria farmacêutica! Angell, ex-professora de Harvard e editora de um dos mais influentes periódicos científicos na medicina e saúde em todo o mundo, revelava como nunca antes havia ocorrido, os bastidores da indústria farmacêutica e, mais que isso, os bastidores da fraude e manipulação na produção e divulgação científicas.

E a partir de Marcia Angell, muito particularmente a partir de um artigo publicado também no Brasil na Revista Piauí sobre a depressão e os antidepressivos, Fernando Freitas descobriu o trabalho de Robert Whitaker, premiado jornalista científico, autor de “Loucura na América”, “Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental” e, mais recentemente, “Psiquiatria sob influência: corrupção institucional, danos sociais e prescrições para a reforma”.

A impressão é a de que nada mais seria tão importante para Fernando. O tema da medicalização se tornou nuclear em sua atividade acadêmica. Neste sentido, é preciso ressaltar que o termo medicalização não deve ser reduzido à utilização irracional ou abusiva de medicamentos. Utiliza-se medicalização para se referir ao processo de captura das dimensões da vida pela racionalidade médica, isto é, à transformação da natureza das coisas, que são reduzidas, exclusiva ou predominantemente, a fenômenos médicos. Mais recentemente, para evitar este reducionismo, passou-se a utilizar a expressão patologização, com o propósito de tornar mais claro o significado deste processo que, grosso modo, significa tornar doença, sintoma ou anormalidade, o que é da ordem das experiências diversas e múltiplas da vida! Um exemplo emblemático pode ser encontrado na transformação do significado da experiência da tristeza em depressão, expressão que passa a conter um sentido de doença! Não se fala mais em depressão sem associá-la a doença, transtorno, distúrbio, etc. Como se não fosse mais possível viver sem sofrer, ficar deprimido.

Especialmente após o DSM5, o manual dos distúrbios mentais (termo utilizado na língua inglesa) da associação estadunidense de psiquiatria, bíblia da colonização científica neste campo, tudo na vida virou doença. São 500 diagnósticos diferentes. Praticamente todas as formas de expressão da vida podem ser incorporadas como diagnósticos, em que pese a falta absoluta de fundamentação científica. Nenhuma comprovação genética, anatômica, nenhum marcador (como os marcadores tumorais), nenhuma alteração bioquímica (como a glicemia, provas de função hepática…). A hipótese largamente utilizada de uma alteração bioquímica nos mecanismos de recaptação da serotonina, a menina dos olhos dos defensores da medicalização, foi totalmente enterrada no final do ano passado a partir de uma robusta pesquisa de uma equipe coordenada pela professora inglesa Joanna Moncrieff.

Um dos mitos criados pela psiquiatria financiada pela indústria farmacêutica é o de que o aumento do rol de diagnósticos se deveria ao aperfeiçoamento científico do saber psiquiátrico, que passaria a poder identificar mais e mais doenças à psiquiatria. Ao contrário, e este é um dos mitos demolidos por Whitaker, é que é exatamente ao contrário: quanto menos saber científico, quanto menos objetividade, mais a possibilidade de ampliar e medicalizar, de absorver a diversidade humana em diagnósticos meramente subjetivos. Já o personagem de O Alienista, de Machado de Assis, Simão Bacamarte, dirigindo-se ao Sr. Soares observava que “supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia!”

Foi a partir destas questões que, com Fernando Freitas, a Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), pautou o tema como prioritário e incluiu-o em suas teses para as políticas públicas de saúde mental. Foi criada a condição de contar com a presença, pela primeira vez no Brasil, em 2014, do jornalista Robert Whitaker e, partir de então, Whitaker passaria a fazer parte, regularmente, dos eventos promovidos pela associação.

Em 2017 decidimos traduzir e publicar o “Anatomia de uma Epidemia”, do qual assinamos e coautoria e o prefácio. Mas, dado a um maior aprofundamento no trabalho de Whitaker, especialmente do site “Mad in America” por ele criado, Fernando decidiu, e nos convenceu, de que seria o caso de criarmos o “Mad in Brasil”, para participar da “comunidade Mad”, que dava seus primeiros passos. Passavam a surgir parceiros na França, Itália, Espanha, México, Canadá, Suécia, Finlândia, Holanda, Inglaterra e Ásia. No momento está se criando o “Mad in Portugal”, numa cooperação entre pesquisadores do LAPS (Ensp/Fiocruz) e do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, na qual Fernando consta como um dos fundadores. Nos honra informar que o “Mad in Brasil” é o segundo mais acessado de toda a comunidade, só estando atrás do norte-americano. E, certamente, isso se deve à dedicação permanente, quase obstinada, do Fernando em mantê-lo vivo e atualizado.

O título do livro de Whitaker serviria também de inspiração para a organização dos Seminários Internacionais “A Epidemia das Drogas Psiquiátricas” que, no ano passado, realizou sua sexta edição. Além do próprio Whitaker, este evento foi responsável pela divulgação, ao público brasileiro, de autores/atores como Jaakko Seikkula, da originalíssima e revolucionária experiência finlandesa do “Diálogo Aberto”, na qual se atende às crises ditas psicóticas sem o concurso (ou com muito tímida utilização) de medicamentos antipsicóticos; de Irving Kirsch, um dos maiores especialistas em pesquisas sobre depressão; de Daniel Puras, responsável na época pela área de direitos humanos e saúde da ONU, de Joanna Moncrieff, que fiz referência anteriormente, de Laura Delano e de Peter Lehmann, autodenominados de  “sobreviventes” da psiquiatria,  que deram  origem a trabalhos preciosos para auxiliar usuários de drogas a suspenderem as substâncias; e, inclusive,  de Allen Frances, líder do grupo-tarefa que elaborou o DSM IV, e que se tornou um dos mais eloquentes críticos do próprio sistema DSM! Enfim, os seminários trouxeram alguns dos mais importantes nomes da pesquisa crítica sobre a psiquiatria e suas estratégias de patologização da vida.

Por fim, por uma dedicação muito especial de Fernando Freitas, passamos a compor, junto com alguns dos mais importantes pesquisadores e pesquisadoras de todo o mundo, o Instituto Internacional para a Retirada das Drogas Psiquiátricas (International Institute For Psychiatric Drugs Withdrawal), a partir da constatação, existente em pesquisas em vários centros acadêmicos, da grave dependência química produzida pelas drogas psiquiátricas, assim como da dificuldade que as pessoas têm para livrar-se delas. Até então, a psiquiatria oficial não admitia que as drogas psiquiátricas causassem dependências e muito menos síndromes de abstinência.

Fernando partiu! Mas nos deixou algumas tarefas: a de não abandonar a luta contra a patologização e a medicalização da vida, a de continuar realizando os seminários internacionais e mantendo vivo e influente o “Mad in Brasil”! Em um belíssimo e tocante texto sobre Fernando, Robert Whitaker destacou uma quantidade enorme de manifestações de pesar recebidas da comunidade internacional da psiquiatria crítica, e o denomina de “guerreiro da mudança radical”.

E a luta aponta, por um lado, para a denúncia e a resistência necessária contra o aumento abusivo de diagnósticos psiquiátricos: é importante ressaltar que o que aumentam são os diagnósticos. A patologização. Isso não significa que aumentem as doenças ou transtornos, já que não há nenhum critério objetivo que fundamente cientificamente este fenômeno. Por outro lado, a luta para barrar este processo absurdo de prescrição de medicamentos psiquiátricos, grande objetivo da indústria farmacêutica, que financia este processo mercadológico da patologização!

***

Texto originalmente publicado pelo site www.outraspalavras.net

Fernando de Freitas: um “amigo querido” que foi um guerreiro da mudança radical

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Rio de Janeiro Aerial Skyline - Brazil

Na última década, o apelo por uma mudança radical na psiquiatria tornou-se mais forte e mais organizado e, na América Latina, não havia voz mais alta – ou mais eficaz – do que a de Fernando de Freitas e seu colega Paulo Amarante. Juntos, eles lideraram um esforço psiquiátrico crítico de grande alcance; lançaram oo Mad in Brasil em 2016; e eles se tornaram associados do Instituto Internacional para a Retirada das Drogas Psiquiátricas (IIPDW) quando foi fundado, com Fernando viajando para Gotemburgo, Suécia, para sua reunião inaugural.

Fernando Freitas

Fernando, aos 68 anos, faleceu na última segunda-feira, 30 de janeiro, após cinco meses lutando contra um câncer no pâncreas.

À medida que a notícia da morte de Fernando se espalhava – para seus colegas no Brasil, para a comunidade internacional Mad in America, para os membros do IIIPDW e outros – havia um sentimento comum em suas expressões de pesar: Fernando de Freitas era um “querido amigo”, que deixou sua marca em todos aqueles que tiveram a sorte de conhecê-lo, e ele foi um guerreiro por mudanças radicais.

Confira abaixo algumas das homenagens:

Do Reino Unido:

“Conheci Fernando pela primeira vez em Gotemburgo e nos correspondemos depois disso, onde ele me apresentou a outras pessoas e discutimos muitos assuntos. Encontrei nele um companheiro de viagem não apenas na política de saúde mental, mas na política de maneira mais ampla. Ele era uma pessoa adorável e generosa. As pessoas que fornecem o tipo de solidariedade que ele fez são preciosas e sua perda será profundamente sentida em muitos lugares ao redor do mundo”. – Sami Timimi

“Que notícia terrivelmente triste. Nunca conheci o Fernando pessoalmente, mas graças ao zoom, tive várias conversas remotas com ele. Ele era tão caloroso, amigável e engraçado – essa é a minha lembrança dele. Mesmo no zoom, sua exuberância e paixão transbordavam. Realmente perdemos um ativista carismático e enérgico por mudanças na saúde mental, justiça social e política em geral”. – Joanna Moncrieff

“Ele foi um anfitrião gentil e generoso quando visitei o Brasil há alguns anos. Ele era muito bem informado sobre política, e compartilhamos nosso desgosto com o estado do partido governante do Reino Unido e nossa alegria com a reeleição de seu amado Lula. Ele fará muita falta.” – Lucy Johnstone

Da Islândia:

“Senti seu amor e amizade desde o primeiro momento. Conversamos muito em Gotemburgo e mantivemos contato via messenger. Sinto muita falta dele.”– Audur Axelsdottir

Da Holanda: 

“Estamos perdendo um amigo de grande coração.” – Peter Groot

“Sentiremos sua falta. Ele sempre foi uma pessoa inspiradora nas reuniões online. Ele plantou sementes; que outras pessoas continuem a receber atenção e crescer.” – Monique Timmermans

Da Suíça: 

“Minhas mais profundas condolências pela perda de um bom ser humano, um ser humano dedicado, e pelo Brasil – o país onde cresci – que perde uma pessoa boa e lutadora por fazer deste mundo um lugar melhor.” – Cláudia Esteve

Da Finlândia-

“Sou budista, então acredito no karma. Que suas muitas boas ações continuem a crescer e florescer e nos ajude a alcançar a mudança de paradigma vital na psiquiatria.” – Soili Takkala

Da Noruega

“Eu o conheci em Gøteborg e ele foi uma grande inspiração para começar o Mad na Noruega. Tive ótimas conversas com ele, ele foi tão caloroso e me apoiou. Um homem maravilhoso e uma inspiração para todos nós. Toda a equipe da Mad in Norway envia nossas condolências, ele é uma grande perda para nossa comunidade.” – Birgit Valla

Da Itália 

“Essa notícia me entristece muito. E entristece-me ainda mais que tenha sido impossível enviar ao Fernando o nosso abraço e as nossas palavras de estima no momento da sua doença. Nunca tive a chance de conhecê-lo pessoalmente, mas fiquei impressionado com seu senso de propósito, curiosidade, conhecimento sobre Basaglia (mais do que muitos italianos) e capacidade de se conectar mesmo online.”– Raffaella Pocobello

Da Suécia:

“Fernando era uma das pessoas mais gentis, mas também muito determinado a fazer uma mudança para um mundo melhor. Tenho lindas lembranças de nossos dias juntos em Gotemburgo.—Carina Hakkansson

Da Alemanha

“Uma perda real – seu legado sobrevive a ele e a todos aqueles tocados por sua bondade e generosidade. Dedicamos a ele o nosso livro “Withdrawal from Prescribed Psychotropic Drugs” (com sua excelente contribuição “Attitudes of investigador on the descontinuation of psychopharmacological treatment”) – que será lançado em duas semanas.” – Peter Lehmann e Craig Newnes

Dos EUA.

“Fernando foi um companheiro maravilhoso na minha viagem ao Brasil e ajudou na minha pesquisa antipsicótica. Tivemos várias conversas vibrantes e ele trouxe um espírito muito forte para o trabalho e para o mundo. Eu não fazia ideia de que ele estava doente. Uma verdadeira perda.” – Will Hall

“Estou muito triste ao saber da morte de Fernando. Nós nos conhecemos em Gotemburgo e ele, Kleo e eu éramos as únicas pessoas que ficaram um dia a mais e realmente se relacionaram. Nunca mais nos encontramos, mas mantivemos contato por e-mail e redes sociais. Ele exalava um firme senso de propósito com um profundo calor e bondade. É uma grande perda para a nossa comunidade”. – Swapnil Gupta

E do Brasil:

“Lamento profundamente a morte do nosso querido amigo Fernando Freitas, porque ele foi uma daquelas raras pessoas que souberam lutar pelas suas convicções, criando espaços de debate, fóruns de discussão e redes de solidariedade visando fortalecer um permanente questionamento dos abusos poder da psiquiatria biológica e os problemas derivados dos tratamentos psicofarmacológicos, como efeitos adversos graves, dependência e vícios muitas vezes sistematicamente negados. Como leitor e colaborador da Mad in Brasil, sinto uma enorme tristeza porque perdemos um trabalhador incansável, editor, tradutor e escritor em questões urgentes e atuais no campo da saúde mental. Fernando teve que lidar com críticas intolerantes mesmo entre os psiquiatras considerados humanistas. Destaco sua última colaboração, que acaba de ser publicada em Dossiê organizado por Marcia Mazon e por mim, na revista brasileira Estudos de Sociologia. No último número do ano de 2022, encontramos aquela que será provavelmente a última publicação de Fernando Freitas, escrita em colaboração com Luciana Jaramillo Caruso de Azevedo e intitulada “Medicalizando crianças e adolescentes“. – Sandra Caponi

Quanto a mim, pessoalmente, derramei mais do que algumas lágrimas na semana passada. Aqui está como ele costumava assinar seus e-mails, que falam sobre o calor que ele regularmente mostrava aos outros: “Um forte abraço, meu caro amigo”.

Reunião inaugural dos Associados do IIPDW. Fernando Freitas é o segundo da esquerda na linha de trás.

Fomentando a Psiquiatria Crítica no Brasil

Fernando Ferreira Pinto de Freitas doutorou-se em psicologia, com ênfase em psicologia social, pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica. Ele e Paulo Amarante se conheceram em 1982, no curso de saúde mental;  Fernando era aluno  e Paulo Amarante, professor. Para Amarante foi um “curso pioneiro, que iniciou o processo de crítica em psiquiatria – crítica ao modelo de psiquiatria manicomial e da medicalização no Brasil.”

Juntamente com outros ativistas, e inspirados pelo trabalho de Franco Basaglia na Itália – que ganhou fama por abolir os hospitais psiquiátricos naquele país-, eles ajudaram a fomentar um esforço de desinstitucionalização no Brasil. No final da década de 1980, Amarante foi um dos principais autores da legislação nacional que previa o tratamento comunitário de pacientes psiquiátricos e procurava proteger seus direitos humanos.

Em 2007, Freitas e Amarante uniram forças para criar um fórum de saúde mental e direitos humanos em cooperação com a Universidad das Madres de Plaza de Mayo na Argentina. Este foi um primeiro passo para iniciar a reforma psiquiátrica na década de 1980, quando os manicômios foram, em sua maioria, suplantados por uma rede nacional de Centros de Atenção Psicossocial e outros dispositivos de cuidado. Em seguida, Freitas e Amarante participaram da criação da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME). Por um tempo, Freitas foi um dos diretores da ABRASME, que é a maior entidade “crítica” de saúde mental da América Latina. Sob sua liderança conjunta, a ABRASME realizou conferências anuais, que foram projetadas em parte para ajudar a promover um movimento liderado por usuários no Brasil.

 

 

 

Fernando Freitas e Paulo Amarante

Foi assim que conheci Fernando e Paulo, pois eles me convidaram para falar nas conferências da ABRASME realizadas em Manaus, João Pessoa, Florianópolis e Rio de Janeiro. Foi então que experimentei o calor, a amizade e a generosidade de que tantos, nas suas homenagens a Fernando, escreveram.

Um dos momentos mais marcantes de uma conferência da Abrasme ocorreu durante uma palestra de Olga Runciman, que contou sobre sua recuperação – e a suspensão da medicação antipsicótica – após internação com diagnóstico de esquizofrenia. Muitos na assistência nunca tinham ouvido falar de tal coisa, e sua fala foi o equivalente a jogar uma pedra nas águas calmas de um lago. Você podia ver a onda de emoção se espalhando pela platéia e as “luzes” internas piscando enquanto suas palavras eram absorvidas.

“Conheci Fernando quando fui convidado por ele e Paulo Amarante para o Brasil em 2015”, lembrou Runciman. “Fui recebido não apenas no Brasil, mas em sua casa, onde conversamos sobre o estado do mundo e principalmente sobre a psiquiatria e suas drogas, e descobri que aqui estava outra pessoa que compartilhava a paixão por querer mudar o mundo no que diz respeito aos direitos e necessidades daqueles que sofrem em psiquiatria. Acontece que nós dois compartilhamos um sonho de que um dia haveria um movimento para apoiar a abstinência de drogas psiquiátricas. Mal sabíamos que um ano depois esse sonho se tornaria realidade! O IIPDW nasceu e Fernando tornou-se associado do nosso instituto e desempenhou um papel muito ativo no Brasil promovendo a abstinência de drogas.”

Ao perseguirem essas iniciativas, Freitas e Amarante o faziam dentro da mais destacada instituição de ciência e tecnologia: a Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Ambos eram professores da escola, e Amarante também dirigia um Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e atenção Psicossocial da Fiocruz. Freitas era um dos pesquisadores do laboratório.

Através de seus esforços, a Editora FIOCRUZ publicou uma tradução para o português de Anatomy of an Epidemic, com Freitas e Amarante co-escrevendo o prefácio. Em 2016, eles lançaram conjuntamente o Mad in Brasil, com Freitas e Amarante atuando como co-editores.

Em entrevista ao Mad in America no ano passado, Freitas contou como eles queriam que o Mad in Brasil promovesse uma transformação nos cuidados de saúde mental. “[Queremos] promover, criar, uma ruptura radical – uma ruptura – uma ruptura radical em nossa relação com o modelo psiquiátrico”, disse ele. Mesmo em uma abordagem centrada na comunidade, os elementos medicalizados – a confiança no diagnóstico, a ênfase nas drogas – precisam ser questionados”.

“Refletir, repensar, questionar. Queremos mudar a conversa”, disse.

Freitas foi um editor incansável. Ele traduzia regularmente artigos científicos, histórias pessoais e blogs publicados no Mad in America e outros sites afiliados para o português. Sua assistente, Camila Motta, publicava regularmente resenhas de artigos publicados em revistas médicas brasileiras. Em seus seis anos no comando, Freitas traduziu mais de 700 artigos – blogs, histórias pessoais e relatórios do MIA – com sua última tradução publicada em 16 de janeiro, pouco mais de uma semana antes de sua morte. Mad in Brasil desenvolveu um número constante de leitores mensais – o número de visitantes normalmente girava em torno de 20.000 por mês.

“Duas semanas antes de Fernando falecer, ele estava postando no Mad in Brasil”, disse Runciman. “Sua paixão pela mudança na saúde mental esteve lá até o fim.”

O diferencial de Mad in Brasil é que ele está sediada na principal instituição de ciência e saúde pública da América Latina, a FIOCRUZ. Por analogia, tente imaginar pesquisadores e líderes proeminentes do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos atuando como editores do Mad in America e publicando notícias científicas, blogs, histórias pessoais e relatórios detalhados que contam as falhas do modelo de doença da psiquiatria e a necessidade de uma mudança radical. Isso nunca aconteceria, é claro, e destaca um aspecto importante do que Mad in Brasil trouxe para esse empreendimento Mad in the World (e para o IIPDW): o esforço para transformar radicalmente a psiquiatria no Brasil teve sua base em uma instituição de prestígio na saúde pública, liderados por professores daquela instituição.

Depois de lançar Mad in Brasil, o próximo projeto de Freitas e Amarante era criar um “Seminário Internacional sobre a Epidemia de Drogas Psiquiátricas” anual. Eles organizaram seis dessas conferências, que normalmente envolviam convidar um grupo internacional de pesquisadores, pessoas com experiência e profissionais para dar palestras (primeiro por meio de apresentações presenciais no Brasil e depois online durante a pandemia). A lista de palestrantes internacionais inclui muitos nomes familiares ao Mad in America: Irving Kirsch, Laura Delano, Will Hall, Joanna Moncrieff, John Read, Lucy Johnstone e Jaakko Seikkula, para citar apenas alguns. Em novembro passado, para o sexto seminário internacional, eles convidaram Allen Frances e Andrew Scull para um debate sobre os méritos da psiquiatria e seus tratamentos.

Juntos, Freitas e Amarante escreveram em coautoria vários artigos e livros e prepararam teses para a ABRASME sobre a medicalização da vida, que decorreu da quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico da American Psychiatric Association. Mais recentemente, eles supervisionaram a tradução do livro de Jaakko Seikkula sobre Diálogo Aberto e co-escreveram um prefácio para o livro.

A Medicalização da Vida

Como pode ser visto na breve biografia, Fernando Freitas dedicou sua vida profissional buscando transformar a assistência psiquiátrica no Brasil e no geral. Fê-lo através de uma notável e duradoura amizade com Paulo Amarante.

É claro que havia um lado pessoal em ser convidado para o mundo deles e, como testemunham os sentimentos acima, Fernando deixou sua marca em tudo o que conheceu. Seu calor, sua inteligência, sua paixão e sua capacidade de amizade eram os traços definidores de seu caráter. Além disso, ele tinha um ótimo senso de humor e uma risada contagiante.

Para Freitas, Amarante e outros brasileiros que organizaram e falaram nesses eventos, o tema mais destacado foi a medicalização da vida, e a perda – para a sociedade, para seus filhos e para todos – que advém dessa patologização do ser humano como doença. Como Freitas e Amarante sugeriram em seu livro de 2015, The Medicalization of Psychiatry, isso levou a um senso empobrecido de si mesmo (e outros danos), e foi essa crença geral que animou todos os seus esforços.

Mad in America publicou uma resenha dos últimos escritos de Fernando sobre o assunto, que Sandra Caponi menciona acima, em 5 de janeiro deste ano.

Fernando deixa uma filha, Natália, e uma enteada, Lara. Como revelam as expressões de pesar, sua morte é uma perda para todos que desejam ver a psiquiatria “radicalmente transformada”.

Revistas Acadêmicas proeminentes pontuam “Baixo” em Medidas de Transparência e Abertura

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Um novo estudo publicado no Journal of the Royal Society of Medicine conclui que as revistas acadêmicas proeminentes têm pontuação muito baixa em medidas de transparência e abertura.

Antoni Gardener e colegas relatam que embora a pontuação TOP (Transparência e Promoção da Abertura) tenha melhorado ligeiramente durante a pandemia da COVID-19 (de uma média de 5/24 a 7/24), a pontuação geral é perturbadoramente baixa para muitas revistas acadêmicas estabelecidas.

Os periódicos que eles examinaram tiveram a pontuação mais baixa em termos de pré-registo de protocolos de estudo/planos de análise e apresentação de estudos de replicação. No entanto, tiveram a pontuação mais alta em termos de aderência à transparência dos dados. Os autores escrevem:

“A pandemia da COVID-19 destacou a importância da prática da ciência aberta. No entanto, os requisitos para práticas de ciência aberta nas políticas auditadas foram globalmente baixos, o que pode impedir o progresso na saúde e na pesquisa médica”. Como principais interessados na disseminação da pesquisa, as revistas devem promover uma cultura de pesquisa de maior transparência e práticas científicas abertas mais robustas”.

Publicadas em 2015, as Diretrizes de Promoção de Transparência e Abertura fornecem um conjunto de ferramentas para orientar a implementação de uma pesquisa melhor e mais transparente.

Os autores se propuseram avaliar as notas TOP para revistas acadêmicas de destaque e a examinar o impacto da pandemia COVID-19 sobre as práticas de transparência e abertura. Para atingir este objetivo, os pesquisadores selecionaram 19 periódicos das principais publicações de saúde e ciências médicas do google scholar. Depois, examinaram suas políticas de transparência e abertura em fevereiro de 2020 (pré-pandêmico) e maio de 2021 (pós-pandêmico).

Dois autores independentes mediram as notas TOP, com discrepâncias decididas por um terceiro pesquisador independente. As diretrizes TOP abordam oito áreas da política de publicação das revistas: citação de dados, transparência de dados, transparência de códigos, transparência de materiais, transparência de design e análise, pré-registo de estudos, pré-registo de análises e replicação.

As pontuações foram determinadas usando uma escala de 0 a 3 na qual 0 significa que a política do periódico não fez nenhuma menção à categoria correspondente, 1 “revela” como o estudo lidou com a categoria, 2 “requer” que o estudo aborde a categoria, e 3 “verifica” que o estudo abordou a categoria. Além disso, os autores mediram se cada revista era “signatária” do TOP (expressando sua vontade de adotar as normas TOP, não = 0 pontos, sim = 1), se eles permitiram relatórios registrados (não = 0, sim = 2) e se eles usaram crachás científicos abertos (não = 0, sim = 2).

O trabalho atual também examinou os conflitos de interesse nessas revistas utilizando as quatro normas do Comitê Internacional de Editores de Revistas Médicas (ICMJE). Estas normas são: receber pagamentos de terceiros, ter uma relação financeira com qualquer entidade que possa influenciar a pesquisa, quaisquer patentes relacionadas à pesquisa e quaisquer outras relações que possam impactar a pesquisa. O trabalho atual pontuou a divulgação de conflitos de interesse em uma escala de 0 a 4, com 0 divulgando nenhuma destas normas e 4 divulgando todas.

Com relação aos 8 padrões TOP, as 19 revistas examinadas no trabalho atual tiveram uma pontuação média de 5/24 antes da pandemia COVID-19, melhorando ligeiramente para 7/24 durante a pandemia. 58% dos periódicos examinados não mostraram nenhuma mudança durante a pesquisa atual. 26% melhoraram as políticas TOP, com cerca de 10% vendo uma redução em suas pontuações durante o mesmo período. Os periódicos com pontuação mais alta tiveram pontuação TOP de 14/24, sendo que os mais baixos receberam uma pontuação de 0/24.

Uma revista adicional tornou-se signatária da TOP durante o curso da pesquisa atual (9 foram signatárias antes da pandemia, dez depois). Apenas um periódico aceitou relatórios registrados e o fez tanto antes quanto durante a pandemia. 84% dos periódicos examinados revelaram todos os 4 padrões de conflito de interesses do ICMJE antes da pandemia, aumentando para 95% depois.

Os autores reconhecem várias limitações ao trabalho atual. Primeiro, as normas TOP incluem alguma linguagem ambígua (por exemplo, “deve”, “recomenda-se fortemente” e “espera”). Em segundo lugar, os autores examinaram as políticas da revista e não se os artigos publicados realmente sustentavam ou não essas políticas. Terceiro, as diretrizes TOP podem ser menos aplicáveis a periódicos altamente especializados, que os autores optaram por excluir do estudo atual.

Os autores concluem:

“Descobrimos que as 19 revistas de saúde e ciências médicas altamente classificadas tinham requisitos mínimos de transparência e padrões de abertura em suas políticas. Durante a pandemia da COVID-19, foram observadas melhorias nominais nas políticas dos periódicos. Como os principais guardiões da pesquisa e da disseminação de evidências que impactam os resultados individuais e societais em saúde, as políticas de periódicos devem ser revistas e melhoradas regularmente para refletir a necessidade contínua de pesquisa transparente e aberta”.

Muitas revistas acadêmicas têm demonstrado viés de publicação em estudos clínicos, com pesquisas que mostram resultados estatisticamente significativos com maior probabilidade de serem publicadas. Isto inflaciona a percepção da eficácia de medicamentos (como antipsicóticos e antidepressivos) e terapias, já que estudos que os consideram ineficazes muitas vezes ficam inéditos. Além disso, os periódicos publicam rotineiramente seus próprios editores, pondo em questão sua objetividade.

As pesquisas têm mostrado extensos conflitos de interesse não revelados em pesquisas médicas. Esses extensos conflitos de interesse estão freqüentemente ligados a editoriais “indevidamente favoráveis” escritos por autores com algum interesse no resultado do estudo que eles estão “avaliando”. As questões éticas em torno dos periódicos acadêmicos são tão pronunciadas que um autor comentou recentemente: “os periódicos se transformaram em operações de lavagem de informações para a indústria farmacêutica“.

A publicação acadêmica é uma indústria em grande escala, a par da música e do cinema. Pesquisas sugerem que, semelhante à indústria musical e cinematográfica, fazer com que seu trabalho seja publicado em muitas revistas acadêmicas é mais sobre ter um grande nome ou forte financiamento do que produzir um estudo sólido.

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Gardener, A. D., Hick, E. J., Jacklin, C., Tan, G., Cashin, A. G., Lee, H., Nunan, D., Toomey, E. C., & Richards, G. C. (2022). Open science and conflict of interest policies of medical and health sciences journals before and during the COVID-19 pandemic: A repeat cross-sectional study. JRSM Open13(11), 205427042211321. https://doi.org/10.1177/20542704221132139 (Link)

[Trad. e edição Fernando Freitas]

A Medicalização dos Comportamentos Infantis Faz Mais Mal do que Bem

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Em um novo artigo para uma importante revista brasileira de sociologia, Fernando Freitas  e Luciana Jaramillo Caruso de Azevedo argumentam que a psiquiatria e a psicologia estão medicalizando as partes normais da infância e da adolescência.

O artigo, intitulado “Medicalizando crianças e adolescentes”,  postula que a medicalização da infância, a patologização dos comportamentos e humores típicos e esperados nos jovens, não é científica e desencoraja a neurodivergência e a singularidade.

Através da medicalização, o mundo está culpando as crianças por sua desatenção e tristeza quando, na verdade, o mundo é o culpado.

“A pluralidade de explicações sobre o comportamento das crianças foi minada. A biologia (e seus operadores) tornou-se o dispositivo primordial da psicopatologia contemporânea, embasando correntes de pensamento que afirmam ser ateóricos por estarem fundamentadas na ética naturalista”, escrevem os autores. “Estas correntes reduzem a subjetividade à cognição e têm um menu de terapias e protocolos destinados a tratar todas as nuances das categorias descritas nos manuais psiquiátricos”.

Freitas começa sua argumentação primeiro definindo a medicalização. Ao fazer isso, ele faz perguntas cruciais como: “Em que ponto o sofrimento ‘normal’ se torna patológico?” E “haveria espaço designado para o desconforto ou para o que não está indo bem?”.

Com atenção especial à medicalização dos comportamentos e humores que freqüentemente se apresentam ao longo da infância até a adolescência, os autores demonstram como as explicações psiquiátricas são comumente utilizadas de maneiras que podem ser limitadoras e prejudiciais ao desenvolvimento. A biomedicina, o diagnóstico psiquiátrico e o tratamento farmacêutico têm redefinido a angústia humana e o sofrimento mental como sendo problemas médicos, e o mesmo vale para os comportamentos das crianças considerados como desviantes e difíceis de administrar.

Deste ponto de vista, o campo da psiquiatria rapidamente colonizou e mercantilizou a desatenção, a hiperatividade e a impulsividade. Tomando proveito de sua mercantilização, faixas de profissionais e especialistas vem se tornando um balcão único de atendimento para a inabilidade das crianças em se concentrar.

Os autores explicam:

“Desta forma, o contexto socioeconômico familiar de crianças e adolescentes começa a ser avaliado através de marcadores biológicos generalistas, que levantam mais perguntas do que respostas. Os impulsos agressivos outrora tolerados, assim como os comportamentos indesejáveis que faziam parte do universo infantil, entraram no universo psiquiátrico. Estes comportamentos representariam indicadores de risco para doenças mentais graves na vida adulta e, portanto, precisariam ser eliminados com fórceps medicamentosos”.

Os autores examinam então as conseqüências da medicalização para os jovens. Notando que a doença mental infantil continua a crescer globalmente, Freitas aponta que as famílias são informadas que seus filhos difíceis estão sofrendo, não por causas sociais, mas por causas biológicas – o que pode ser corrigido através da compra ainda mais no negócio da biomedicina e da patologização. Mas muito pouca atenção está sendo dada ao que significa ser uma criança e adolescente em 2023.

Freitas oferece então quatro observações do contexto brasileiro.

  1. As estruturas e estilos familiares são diferentes – com o aumento da mobilidade vem uma perda dos laços e raízes familiares. No que Freitas chama de “Mundo Ocidental”, há cada vez menos ênfase na família, e em seu lugar há uma ênfase na gratificação individual e imediata.
  2. A própria infância é diferente hoje em dia- as novas tecnologias, da Wikipédia à mídia social, têm alterado fundamentalmente a forma como crianças e adolescentes navegam e vêem o mundo.
  3. O marketing para crianças mudou – as crianças devem olhar, agir, comer e ser cuidadas de maneira muitas vezes difícil e cara.
  4. A educação é diferente hoje em dia – Há uma ênfase mais forte do que nunca no desempenho acadêmico, na produtividade e na competição.

Cada uma destas diferenças na experiência da infância e da adolescência no século XXI só é exacerbada pelo que Freitas chama de uma “cultura do narcisismo”. Ou, em outras palavras, um mundo impregnado de individualismo.

“A ideologia do crescimento pessoal, superficialmente otimista, irradia um profundo desespero e resignação”.

Em vez de olhar para a sociedade e para as mídias sociais por razões que as crianças estão ficando mais infelizes e ‘desfocadas’, nós olhamos para a medicina. Entretanto, os autores vêem estas categorias de doenças como explicações simplistas que muitas vezes oferecem um caminho para restringir e controlar as crianças.

Para Freitas, o tema em questão é a medicalização da infância em si mesma e os tratamentos disponíveis. As prescrições para estimulantes, antidepressivos e antipsicóticos têm aumentado para crianças em todo o mundo. Infelizmente, como a taxa de drogas psicotrópicas aumenta para a juventude, também aumenta sua taxa de suicídio – o que levanta a questão de saber se o modelo biomédico serve para enfrentar seu sofrimento.

Alguns usuários de serviços encontraram identidade e uma comunidade em seus diagnósticos psiquiátricos. Entretanto, Freitas argumenta que à medida que os diagnósticos e o ato de auto-diagnóstico proliferam, devemos nos perguntar se esses diagnósticos criam ou não oportunidades significativas de acomodação. Ou, ao invés disso, eles apenas convidam a mais estigmatização, ostracização e capacidade?

As crianças são muitas vezes o alvo da medicalização, do sobrediagnóstico e da polifarmácia, e ainda assim continuam a sofrer psicológica e emocionalmente. Isto é especialmente desconcertante quando as evidências indicam que alguns tratamentos podem fazer mais mal do que bem a longo prazo. O documento nos impulsiona a considerar as causas fundamentais do sofrimento que os jovens sofrem, tais como homofobia e transfobia, racismo, bullying, pobreza e poluição.

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Freitas, F., & de Azevedo, L. J. C. (2022). Medicalizando crianças e adolescentes. Estudos de Sociologia, e022022-e022022. (Link)

[trad. e edição Fernando Freitas]

Neuropolítica: Compreender a Política através da Neurociência é um assunto perigoso

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Pesquisadores da Universidade de Lund na Suécia argumentam que com o desenvolvimento do campo da “neuropolítica”, estamos considerando o cérebro como a causa das questões políticas, em vez de olhar para a história e o contexto social.

A “neuropolítica” é um campo preocupado com a tentativa de explicar a tomada de decisões, políticas e outras questões relacionadas, concentrando-se na fisiologia neurocientífica específica de indivíduos e grupos.

Os autores do trabalho, Niklas Altermark e Linda Nyberg, afirmam que este novo paradigma de examinar a política através de estudos do cérebro toma certas coisas como garantidas. Entre estas suposições está a crença de que a mente é igual ao cérebro, que a glorificação da neurociência para compreender a política encobre os problemas metodológicos com este tipo de pesquisa, e que grande parte desta pesquisa não aborda as questões éticas associadas.

Eles se baseiam em parte nos argumentos do filósofo Michel Foucault sobre a relação entre conhecimento e poder – por exemplo, os muitos casos na história psiquiátrica onde argumentos biológicos e programas de pesquisa iniciados pelos chamados especialistas/profissionais foram usados para reforçar estereótipos negativos e práticas psiquiátricas opressivas.

“Seguindo Foucault, Butler e Rose, entre outros, a questão que procuramos levantar neste texto não é como as verdades da biologia devem nos incitar a repensar a política, mas como estas verdades são feitas e podem ser entendidas como políticas em si mesmas.
Contra a naturalização do cérebro biológico, exortamos os analistas políticos a considerar as funções ideológicas que a neuropolítica serve e como ela está embutida nas estruturas de poder omnipresentes. O aspecto mais significativo de como os cientistas políticos se voltam para a neurociência diz respeito a como este campo de pesquisa permite um repertório de novas problemáticas, onde os problemas percebidos de como os humanos se comportam estão enraizados na materialidade de seus cérebros. Isto é o que temos chamado “a patologização da política”.


Os autores analisam três artigos de ” estudos de caso” neuropolíticos e os examinam tomando como referência os problemas mencionados anteriormente – o que eles chamam de “presunções metateóricas” relacionadas à ontologia (como as coisas são, por exemplo, se o cérebro “produz” ou é idêntico à mente versus alguma explicação alternativa), epistemologia (como sabemos das coisas) e ética (como indivíduos e sociedades devem se comportar).

Eles esclarecem que não estão dizendo que a neuropolítica é inerentemente ruim como campo de estudo, mas que há problemas específicos com o seu funcionamento, que muitas vezes devem ser tratados.

Os três estudos de caso examinados pelos autores incluem 1) um estudo sobre como os indivíduos desenvolvem (ou não desenvolvem) as condições neurológicas necessárias para se tornarem participantes de sistemas políticos democráticos, 2) um estudo examinando por que as pessoas não conseguem combater as mudanças climáticas, e finalmente 3) um estudo sobre os efeitos do declínio cognitivo relacionado à idade, em relação à liderança política.

O primeiro estudo, publicado em 2007 por Ivelin Sardamov na revista democratização, examina a neurociência por trás da qual certos indivíduos e grupos estão predispostos a participar de regimes políticos democráticos em comparação com outros grupos. Significativamente, os autores observam que esta agenda coincide com a política externa dos EUA como o principal motor das tentativas de trazer a “democracia ocidental” para o mundo em geral.

O estudo de Sardamov centra-se nos seguintes tópicos:

  • “Por que a democracia leva tempo para se consolidar”.
  • “Que condições prévias devem estar criadas para que a democratização decole”?
  • “Em que medida há fatores culturais que podem dificultar os processos de democratização?”

Sardamov argumenta que o pensamento e a atividade “democrática” não estão conectados ao cérebro humano. Ao invés disso, requer o desenvolvimento neuroplástico ao longo de gerações. Como Altermark e Nyberg são rápidos em apontar, embora Sardamov advirta contra acusações de “inferioridade” de certos grupos culturais e indivíduos, é um desafio evitar “julgamento [s] etnocêntrico e provavelmente racista em relação ao subdesenvolvimento dos cérebros de pessoas não-ocidentais”.

Aqui podemos ver as dimensões éticas ou normativas em jogo no pano de fundo de tal estudo. A suposição é que a democratização do tipo ocidental, marcada por qualidades como “raciocínio imparcial” e “desapego e comedimento”, é inerentemente desejável. Quer os leitores concordem ou não com esta linha de pensamento, é evidente que os julgamentos éticos que estão sendo feitos por Sardamov são politicamente contestáveis.

Poderíamos nos perguntar sobre a composição neural daqueles que defendem a difusão da política externa americana e sua “democratização” a ela associada para os cantos mais distantes do mundo, o que, naturalmente, não é abordado.

O segundo estudo de caso, publicado por Marco Grasso em uma edição de 2013 da revista Environmental Politics, realiza uma análise neurocientífica das razões pelas quais as pessoas não agem em termos de redução das emissões de carbono. Os autores afirmam que o artigo de Grasso é mais ” reflexivo” do que o de Sardamov, mas ainda assim, eles o contestam.

Grasso afirma “que as evidências neurocientíficas sugerem que o cérebro humano está ligado para agir com base em raciocínios consequencialistas e não em princípios abstratos de justiça”.

O consequencialismo é uma filosofia moral que se refere à idéia de que os seres humanos julgam as ações por seus resultados, em vez da filosofia moral “deontológica” comumente contrastada, que pode ser resumida pela idéia de que as ações são boas ou más em si mesmas, em vez de se basear no que elas produzem.

Os autores escrevem:

“Na interpretação de Grasso, o cérebro humano não está devidamente organizado para responder ao problema da mudança climática, pois os responsáveis pela mudança e as pessoas que sofrem seus efeitos estão separados no espaço e no tempo. Portanto, se quisermos que as pessoas mudem seu comportamento para reduzir as emissões de carbono, devemos desviar o debate para argumentos consequencialistas sobre os danos, a fim de corresponder ao tipo de raciocínio ao qual nossa organização neuronal está predisposta a reagir”.

Para Grasso, isto é seguido pela afirmação de que a neurociência revela a nossa “natureza interior” como consequencialista em nossa moralidade, portanto, os esforços para combater a mudança climática devem apelar para este tipo de filosofia moral em vez de uma filosofia baseada no “dever” como na deontologia, ou na “virtude” de uma pessoa como na filosofia moral da “ética da virtude”.

O terceiro estudo de caso, publicado numa edição de 2014 de Politics and the Life Sciences por Mark Fisher e colegas, argumenta essencialmente que as seções do cérebro relacionadas à função executiva declinam à medida que os indivíduos envelhecem. A conclusão para Fisher e colegas é que os cientistas sociais devem educar o público sobre os perigos de “votar em um líder idoso”. Este documento se envolve em especulações sobre líderes específicos e suas decisões, como a decisão “súbita” do ex-primeiro ministro israelense/geral Ariel Sharon de deixar a Faixa de Gaza em 2002.

Passando à discussão da ontologia, epistemologia e ética, Altermark e Nyberg fazem várias observações.

Primeiro, em termos de ontologia, eles observam que, como mencionado anteriormente, o campo da neuropolítica toma como certa a posição filosófica de que a mente é igual ao cérebro. Embora esta seja uma visão difundida entre muitos da comunidade científica, não está, em última análise, comprovada. Além disso, muitos filósofos, figuras espirituais e até mesmo cientistas questionam se este é o caso – por exemplo, veja os argumentos filosóficos em torno do Pampsiquismo – a crença de que a consciência está na base da realidade ao invés de ser um mero “produto” do cérebro.

Em segundo lugar, os autores argumentam que existem duas dificuldades epistemológicas com a neuropolítica enquanto campo. Primeiro, os métodos neurocientíficos, como as técnicas de imagem neural, estão longe de ser perfeitos, como a pesquisa tem revelado. Além disso, os autores apontam para o fato de que:

“… “neurofalar” acrescenta confiabilidade e legitimidade aos relatos científicos populares. Isto é dizer que as afirmações neuropolíticas sobre o conhecimento extraem parte de sua força da impressão de que eles nos apresentam evidências científicas objetivas. Seguindo seu status de ciência natural de ponta, fica claro que o campo de pesquisa da neuropolítica é sustentado por uma hierarquia relativa aos tipos de conhecimento gerados pelas ciências naturais e sociais – uma hierarquia na qual os cientistas sociais são instados a incorporar os resultados da pesquisa neurocientífica e não o contrário”.

Finalmente, os autores observam que eticamente falando, a pesquisa neuropolítica freqüentemente “contém afirmações sobre o que é certo e errado; como as coisas devem ser….”. Eles argumentam que isto tem sido evidente ao longo dos trabalhos que examinaram, que consideram determinadas agendas e normas políticas como inerentemente boas e desejáveis, sem questionamentos éticos.

Infelizmente, como também afirmam, as abordagens biológicas da psiquiatria e da psicologia têm uma longa história de “má conduta” nesta área, por exemplo: “eugenia, frenologia, ou confinamento dos deficientes mentais”.

Altermark e Nyberg deixam claro que embora não haja nada de inerentemente errado no estudo da relação entre estruturas neurais e política, nos estudos do mundo real, muitos dos mesmos velhos problemas que têm assombrado a psiquiatria biológica desde o seu início ainda continuam levantando problemas.

Este é o relato cauteloso de seu artigo: que ao olhar a “neuropolítica” sem considerar questões de ontologia, epistemologia e ética, a história pode rapidamente acabar se repetindo em termos dos abusos do passado da psiquiatria, bem como do presente.

Da mesma forma, a neuropolítica tem o perigoso potencial de reforçar o mesmo velho modelo médico de individualismo, que afasta os holofotes dos determinantes sociais da saúde, tais como práticas exploratórias ligadas ao capitalismo neoliberal, discriminação racial entre os jovens e muitos outros problemas que contribuem para o sofrimento humano fora do cérebro individual. Como resultado, estudos de regiões localizadas do cérebro sem atenção suficiente aos fatores sociais, econômicos e históricos sempre falharão em compreender o quadro completo necessário para uma mudança e cura reais e sustentadas.

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Altermark, N. & Nyberg, L. (2018). Neuro-problems: Knowing politics through the brain. Culture Unbound: Journal of Current Cultural Research10, 31-48. (Link)

[trad. e edição Fernando Freitas]

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